Argentina e a Ditadura: A tradição de dizer basta

Esse texto é o primeiro de uma série de ensaios sobre a ditadura militar no Brasil, Ditadura Militar que assombrou diversos países da América Latina, e que até hoje, nos custa demolir diversos de seus pilares em nossas sociedades. Mas que no entanto, é o nosso país em que tais pilares parecem estar extremamente firmes e atuantes. Tentaremos remarcar a importância da luta contra a Ditadura hoje, em especial sua cavalar influência política desde o fim do regime, representado na figura do governo do ex-militar Jair  Bolsonaro a frente da presidência do Brasil. Para começarmos a fazer esse recorte brasileiro desse período, convém iniciarmos parabenizando a imensa disposição de luta dos argentinos e argentinas, que nesse 24 de março, que em melhores condições que as nossas, – graças a mobilizações dos trabalhadores que arrancou medidas mais acertadas do governo de Alberto Fernandes, medidas mais acertadas no enfrentamento da pandemia -, souberam uma vez mais, ocupar massivamente às ruas, dessa vez, rechaçando os 45 anos da ditadura militar no país.

A direita saudosista da ditadura e os militares nunca descansam

*Rosi Santos – SoB e Vermelhass

O dia 24 de março, é uma das datas mais marcantes para toda a esquerda argentina, na verdade, para toda sociedade. Trata-se de um dos feriados nacionais mais importantes do país, pois marca a data do início do golpe de militar, ocorrido em 24 de março de 1976. As manifestações desse dia ocorre massivamente na capital, Buenos Aires, e o destaque é sua função pedagógica para o imaginário social, uma vez, que busca fortalecer a memória e manter uma consciência coletiva das graves violações do Estado aos Direitos Humanos e a democracia do país. Além de exigir, que seus perpetradores sejam devidamente processados e punidos. Assim, mesmo em pandemia, toda a esquerda combativa e milhares de pessoas comuns, foram às ruas remarcar a data, e dizer categoricamente ao governo: ditadura nunca mais.

Exemplo de luta contra a Ditadura Militar

A tradicional Marcha pela Memória, Verdade e Justiça mostrou, mais uma vez, que a sociedade não esqueceu e não esquecerá os horrores da ditadura, que deixou mais de 30 mil pessoas desaparecidas. Cidadãos cujas vidas foram usurpadas pelo governo militar. O chamado da marcha desse ano relembrou a participação do poder eclesiástico no regime, da Igreja Católica mais especificamente, que ao contrário do Brasil cumpriram um papel extremamente reacionário contribuindo para sequestros de bebês de companheiras grávidas perseguidas, dando origem, posteriormente, ao movimento Mães da Praça de Maio,[1] que busca até hoje os desaparecidos (adultos e crianças) da ditadura. Somente por conta dessa outra incansável luta foi possível que muitas pessoas, – crianças sequestradas e entregues a famílias de militares – fossem recuperadas e hoje sabem a verdade sobre suas origens e histórias de seus pais.

Também é interessante pensarmos, como esse tipo de marcha consegue capitalizar outras lutas, não só as do passado, mas também as de hoje, do período “democrático”. Esse ano com o empobrecimento ainda maior das massas trabalhadoras devido a crise sanitária e social, o movimento repudiou a manutenção do pagamento da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), feita no governo de Maurício Macri, e que, mais do que nunca, joga nas costas dos trabalhadores, da juventude e, sobretudo das mulheres, o ônus econômico e o mal-estar social causado pela crise.  Além disso, a manifestação trouxe a luta em curso contra a mega mineração que ameaça reservas naturais e sobrevivência de comunidades do sul do país, justiça pelo desaparecimento de Santiago Maldonado. A imunização de toda a população, e obviamente, a prisão dos militares que feriram os direitos humanos e democráticos do país, que ainda se encontram em liberdade.

Nossos companheiros da Corrente internacional Socialismo ou Barbárie, entre eles Manuela Castañeira (Dirigente nacional do Novo MAS) e ex candidata a presidência com dirigentes da juventude e Jorge Ayala (Dirigente sindical de FATE), exigindo a aparição com vida de Facundo Castro.

A Marcha pela Memória, Verdade e Justiça mostrou, mais uma vez, que a sociedade não esqueceu e não esquecerá os horrores da ditadura, que deixou mais de 30 mil pessoas desaparecidas. Cidadãos cujas vidas foram usurpadas pelo governo militar. O chamado da marcha desse ano relembrou a participação do poder eclesiástico no regime, da Igreja Católica mais especificamente, que diferente do Brasil, cumpriram um papel extremamente reacionário contribuindo inclusive para sequestros de bebês de companheiras grávidas. O que deu origem, posteriormente, ao movimento Mães da Praça de Maio, que buscam até hoje os desaparecidos (adultos e crianças). Somente por conta dessa incansável luta foi possível que muitas pessoas, – crianças sequestradas na época e entregues a famílias de militares – saberem a verdade sobre suas origens e histórias de seus pais.


A Igreja Brasil teve dois posicionamentos. Inicialmente aprovou e contradisse o golpe, a divisão no seu interior era conhecida, os dois setores tinham acordo comum sobre a preocupação com violações de direitos humanos. Em 02 de julho 1964 quatro meses de regime a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi impelida a anunciar a posição pública de apoio ao governo militar. Mas com a crescente efervescência da Pastoral Operária e teólogas e teólogos da Teologia da Libertação, em 1977 a CNBB realiza encontros de representantes eclesiásticos, preparando a Igreja para tomar enfrentar o regime.

[1] Na época, as mulheres eram identificadas por usarem um lenço na cabeça, como era comum as senhoras da época , chegavam individualmente e faziam rondas em torno da Praça de Maio, sempre em movimento, uma vez que, sob as normas do regime ditatorial, eram proibidas as reuniões e concentrações em vias públicas.

“A CONSCILIAÇÃO DE CLASSES É INIMIGA

DA VERDADE DA MEMÓRIA E DA JUSTIÇA”

Esse ano, vertentes políticas do peronismo de todas as matizes, inclusive as ligadas ao presidente Alberto Fernandez e Cristina Kirchner, se ausentaram da marcha amplamente convocada, o que representa não só uma enorme adaptação ao regime político que dizem repudiar e a institucionalidade generalizada na América Latina que trata de ocultar e apaziguar qualquer movimento de justiça aos eventos nefastos que deixaram mais de 50 mil mortos e mais de 30 mil desaparecidos, além de 400 mil presos e torturados, somente na Argentina, Brasil, Chile e Paraguai.[1]

O terrorismo de Estado, vivido pela Argentina, Brasil e outros países da América Latina foram orquestrados pela Operação Condor, intervencionismo  estadunidense, que defendendo seus próprios interesses econômico, foi responsável entre outras coisas, pelo sistemático ocultamento das sérias violações que ocorriam em nossa região contra opositores do governo e sociedade civil, fator que levou enormemente ao que estamos criticando no Brasil: o entendimento equivocado desse processo nefasto em nosso continente.  Fenômeno que ocorre, particularmente em nosso país.

Por isso, fazemos um debate fraterno ao conjunto da esquerda revolucionária brasileira, para que como faz a esquerda argentina, saía de uma espécie de inércia, não só política, como também memorial, sobre a ditadura militar brasileira. Esse é nosso desafio, diante de um governo explicitamente golpista como o de Bolsonaro, e diante do fortalecimento da mentalidade ultra reacionária em nosso país, expressando-se politicamente e nas ruas nessa data. Disputando a narrativa reacionária do que foi e o que representa até os dias atuais a ditadura militar de 1964, além, de exigir a criação de um fórum realmente aberto, independente de governos, com a participação da esquerda, historiadores e academia em geral. Verdadeiramente democrático, por  verdade , justiça e reparação.

Como dissemos, foi somente através da luta diuturna contra os militares, que a sociedade argentina pode resgatar diversas  vítimas do regime, e que conseguiu, diferente de outros países da América Latina, a punição de diversos genocidas e líderes do alto escalação militar. Um exemplo de luta que reforça a necessidade da esquerda brasileira, da intelectualidade, meios de comunicação e diversas organizações civis, não relegar ao Estado que outrora matou, que se entregue para que seja punido.

Para terminar esse breve ensaio, na próxima nota, entre outras coisas, falaremos sobre alguns aspectos da consciência do povo brasileiro e da construção da história popular pós-ditadura, da celebrada por alguns  e criticada por muitos Lei da Anistia (6.638/79), que perdoou crimes de qualquer natureza praticados por motivações políticas, inclusive crimes praticados por militares no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e da criação pela superestrutura da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma e os desafios enfrentados por essa, com o setores das Forças Armadas.

*Rosi Santos, residiu na Argentina e pertence a tendência interna do Psol Socialismo ou Barbárie, e suas variações em diversos países.


Lo que dejó la Plaza de Mayo

[1] https://www.acervovladimirherzog.org.br/ e http://memoriasdaditadura.org.br/america-latina-em-transe/

CNBB. Exigências cristãs de uma ordem política. São Paulo: Paulinas, 1977.

CELAM. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. São Paulo: Loyola, 1980.

CAMPOS, José Narino de. Brasil: uma Igreja diferente. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 1981.

Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

GUTIÉRREZ, G. Teología de la liberación. Salamanca: Sígueme, 2004.

SOUZA, Robson Sávio Reis (Org.). 50 Anos do Golpe Civil-militar: a Igreja e a Universidade. Belo Horizonte: FUMARC, 4014.