112º aniversário de Simone de Beauvoir, seu gênio e espírito livre

Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, filosofa e feminista, escreveu sobre a condição da mulher na sociedade machista francesa, além de outras problemáticas que cercam as mulheres, dentre elas: sexualidade, aborto e o envelhecimento. Polêmica em sua época e nos dias atuais, é, sem dúvidas, um dos gênios do sexo feminino mais importantes do século XX. Simone morreu em Paris em 14 de abril de 1986 aos 78 anos de pneumonia.

Rosi Santos, Vermelhas para o Esquerda Web

“Nós não nos deixaremos intimidar pelos ataques violentos dirigidos à mulher nem deixar-se levar pelos elogios interesseiros que são destinados à ‘verdadeira mulher’ ” 

(Simone Beauvoir em A mulher independente, O segundo sexo)

No último dia 9, a filósofa e feminista mais importante e provocadora do século XX completaria 112 anos. Grande ícone do feminismo mundial, tão admirada quanto criticada, mas, sem dúvidas, uma precursora das discussões de gênero da contemporaneidade.

Em 2015, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) chamou atenção de grupos feministas e ativistas nas redes sociais. Uma de suas perguntas do caderno de Ciências e Humanidades trazia a célebre frase de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

Esse foi um evento inédito. Como feministas, vivemos para ver um dia o ENEM pautar o feminismo e falar sobre Simone de Beauvoir. Tal acontecimento em espaço institucional se relacionava com a efervescência do movimento feminista na América Latina e com a amplitude e atualidade da elaboração de Beauvoir.

Beauvoir foi uma escritora que não colocou limites à sua experiência prática e nem tampouco à escrita. Foi capaz de tornar compatível a racionalidade da filosofia com a reflexão de sua própria vida, escrevendo sobre sua experiência como mulher e mulher intelectual no século XX suportando todas críticas por escolher não colocar um muro entre a esfera pública e a particular, opção que tanto exige a cultura e a academia.

Foi uma das que mais fez um esforço não só intelectual, mas também pessoal, para desmascarar o conservadorismo, os estereótipos da construção de gênero e os privilégios masculinos que forjaram uma suposta fragilidade feminina.

Fragilidade, está, que Simone não conhecia. A epígrafe utilizada no início do texto serve para demonstrar seu raciocínio perspicaz e caráter forte. A frase foi reproduzida pela própria Simone a jornalistas homens quando questionaram seus relacionamentos, comportamento e até a autoria de suas obras, muitas vezes atribuída a Jean-Paul Sartre, seu companheiro.

Na ocasião do Segundo sexo, Simone está com quarenta anos e se vê impelida a dedicar sua escrita fundamentalmente às falsas crenças sobre feminilidade e à exigência de um Ser mulher distinto do Ser homem e, claro, do medo masculino da perda dessa tal feminilidade. Recusou-se, assim, a sofrer seus dramas existenciais de maneira diferente da dos homens, retomando em seus escritos a ideia básica da condição humana e social da mulher.

O ano é 1949, quando no O segundo sexo debruça-se sobre essa construção feminina no berço do iluminismo, na década de 1940, durante e depois da guerra, período em que a França está em uma enorme crise.

Logo depois do fim da ocupação nazista, em 1945, em meio a um déficit populacional importante, aumentar a população da francesa era uma questão político-econômica estratégica para tentar reerguer o país. O general Charles de Gaulle chega a falar em duplicar a população em 10 anos a todo custo.

Simone identifica, portanto, que existe um esforço político, econômico e cultural em recolocar a mulher na vida privada logo após a guerra, voltar a encastelá-las no lar era uma maneira de fazer reserva de mercado aos homens recém chegados do combate. Já a massa feminina deveria ser forçada a atender os interesses domésticos para manter a hierarquia patriarcal, inclusive os da reprodução biológica.

Tanto a admiração quanto o rechaço a Simone devem-se às interpelações à sociedade patriarcal francesa e mundial, provocadas por suas indagações sobre o lugar social que a sociedade dava às mulheres. Considerava, portanto, que o casamento e a geração de filhos alteravam muito mais a vida pessoal e profissional das mulheres do que a vida dos homens, indo na contra mão de que isso era um mandato natural.

Uma passagem do O Segundo sexo trás resumidamente um entendimento do que pretendia Simone para todas as mulheres francesas, mas que alcança todas as mulheres universalmente, ela diz: “a discriminação social produz nas mulheres efeitos morais e intelectuais tão profundos que parecem naturais”. Está aí, mas do que em um milhão de citações de comentadoras de Simone, o seu diagnóstico da condição feminina, bem como o seu objetivo de desnaturalizar essa percepção de mulher, sendo essa, de acordo com a autora, a tarefa primordial para liberá-la da opressão de gênero.

No entanto, não dá para incorporarmos as ideias e análises sobre a razão das opressões de gênero apresentadas por Beauvoir, e ignorar a profícua experiência prática das mulheres ao longo da história, sua resistência e luta, sua situação atual e suas perspectivas. Elementos estes pouco trabalhados pela autora.

Simone, apesar de apontar para a construção de gênero como um fator social, refere-se a gênero como homem e mulher unicamente. Além desse binarismo, afirma o Ser mulher em sua corporeidade e não como corpo-político. Esse não é um problema que se restringe às limitações da autora em si, mas esta efetivamente ligado a matriz teórica da qual Beauvoir é signatária: o existencialismo. Pensamento que é inserido por ela na teoria feminista a partir da noção de “corpo vivido”, e é o mesmo que propunha Merleau-Ponty, Sartre e o círculo de intelectuais que Simone frequentava e produzia.

Esse feminismo existencialista inaugurado por ela, mais identificado na obra O segundo sexo, diverge da visão marxista sobre a condição da mulher. E, vez por outra, opõe-se ou ignora a questão do poder e, principalmente, ao materialismo dialético. Uma controvérsia que acaba levando a não dar importância ao papel específico da mulher na luta pelo socialismo, o que em parte explica a certa reserva de Simone em relação as agitações políticas feminista daquela época.

No entanto, mais do que criticar, é importante reconhecer que Simone abre uma janela conceitual decisiva que deve ser cotejada com a práxis militante. Além disso, é preciso ir para além dos preconceitos em relação ao seu lugar social, pois aquela feminista burguesa, branca, culta e parisiense tinha e ainda tem muito a dizer sobre as bases das opressões vividas pelas mulheres.

Muito comentada e pouco lida

Além de O segundo sexo, que dispensa apresentações, a versatilidade de Simone nos presenteia um texto pouco conhecido, o “A mulher desiludida”. Mais preferível a tradução para o espanhol, “La mujer rota”, algo parecido com mulher quebrada, destroçada ou algo similar, à expressão sem chão para o português.

A tradução atual do português é lamentável, inclusive reforça estereótipos de gênero. A obra é um verdadeiro chacoalhão sobre a ideia de amor romântico e da dependência afetiva. Uma ficção que trás situações que qualquer mulher pode ter experimentado em maior ou menor grau; com ele pode-se chorar sozinha diante dos acontecimentos e rir pelos mesmos motivos.

Escrito em primeira pessoa, a pensadora trás a história de mulheres que reavaliam seu lugar social e desejam uma revanche da vida. Com metáforas ricas e extremamente profundas, é um verdadeiro desassossego, premiado de ensinamentos contra a invisibilização e de luta pela reconstrução da identidade da mulher por ela mesma. Além de desmascarar o arquétipo da mulher abandonada afetivamente, remonta a força da mulher e seu protagonismo reconstituído.

O mesmo ocorre com outra obra de Beauvoir ausente, inclusive, nos mais renomados grupos de estudos de gênero do Brasil, onde parece que se evita outra temática pouco agradável na condição das mulheres na sociedade patriarcal, a problemática da idade, ou melhor, da velhice, trabalhada no livro “A velhice” (1970). 

Mesmo que nessa obra a autora, com um pouco mais de sessenta anos, trate da velhice em geral, aponta que o envelhecimento humano é um tema de injustiça social e que, no caso das mulheres, tal injustiça aparece mais precocemente.

Esse é um texto mais tardio de Simone, que parece trazer uma elaboração mais influenciada pelo marxismo. Diz que, apesar do capitalismo já ter encontrado uma maneira de incorporar a velhice ao sistema, os velhos estão marginalizados na sociedade moderna e a convivência plena com os outros seres é incompatível. Sendo a experiência de não utilidade nesse sistema o que causa a infelicidade nessa etapa da vida.

Um livro multifacetário e com uma posição política mais demarcada que reserva longas passagens sobre a exploração dos trabalhadores e seu descarte quando idosos. Um eficiente trabalho sobre a gerontologia, com vistas a descrever que o processo de envelhecimento e da “decadência” corpórea é individual, mas sua experiência é social. Principalmente para as mulheres que são parte de uma sociedade que exalta a juventude e a beleza como bens supremos e eternos a serem conquistados e mantidos.

“Inaugurei minha nova existência subindo as escadas da Biblioteca Sainte-Geneviève…”

Simpatize-se ou não por Simone, suas obras possuem muita autoridade filosófica. Passar incólume sobre elas é impossível. Além de sua obra, o apaixonante de Beauvoir são as escolhas que fez, viveu sem ressentimentos até o fim. De maneira única, viveu a dor e a delícia de ser uma mulher livre em sua época.

Uma fonte de inspiração que oferece ao feminismo contemporâneo ferramentas conceituais para negar o segundo lugar dado as mulheres. O que é interpretado pela nova geração de feministas, na necessidade de construir o protagonismo não só existencial, mas também político desse “segundo sexo”, tão bem esmiuçado por ela.

Esse feminismo é forjado na concepção política e militante de que as mulheres para sua liberação devem formar comunidade política, coisa que historicamente foi natural para os homens. A dispersão social feminina, enquanto sujeito oprimido é uma armadilha e faz com que as mulheres em geral não se identificam tão facilmente entre si.

O que faz, dentre outras coisas, com que infelizmente uma mulher branca se identifique mais facilmente com um homem branco do que com uma mulher negra, ou que uma mulher burguesa se identifique mais com um homem burguês do que com uma proletária. Levando ao fenômeno da fragmentação social e política, que beneficia apenas a manutenção da ordem opressiva para todas as mulheres, o patriarcado.

Além disso, contribui enormemente para a construção da personalidade de uma mulher externa a ela e as outras, na qual a única coesão existente se faz pela sua biologia ou por uma condição feminina mutilada, social e culturalmente, disso se trata o “não se nasce mulher, torna-se”.

Por isso, a genialidade e exemplo de liberdade de Simone é o que faz ano após ano suas elaborações levar muitas mulheres a ambicionar uma vida diferente do que lhes é programado pela família e pela sociedade. Caminho esse que só pode ser alcançado, como tão bem soube ela, pela independência material, política e cultural. Enfim, Simone de Beauvoir se imortalizou por sua contribuição teórica e vida, o que a coloca entre as figuras mais importantes e indispensáveis para a luta pelos os direitos e pela emancipação da mulher.