Sobre a natureza das revoluções do pós-guerra

Prefácio

A vanguarda dos recentes processos de luta dentro do ciclo internacional de rebeliões populares, ou mesmo a de países como o Brasil, que se encontra em uma situação política com fortes elementos reacionários (marcada por uma intensa ofensiva que visa à criminalização das lutas dos trabalhadores, mas que começa a protagonizar importantes enfrentamentos) depara-se, em sua atividade cotidiana, com uma terrível inércia no campo da compreensão teórico-política apresentada pelas correntes políticas que compõem a chamada esquerda radical. O problema é que ampla maioria dessas organizações – no caso brasileiro podemos citar o PSTU (LIT) e a LER-QI (FT) – são incapazes de tirar sequer uma lição teórica sobre as revoluções do século anterior, tais como: seu caráter de classe, o papel do proletariado, a democracia operária, o papel dos partidos revolucionários, as tarefas de transição ao socialismo.

Na contramão desta postura, o artigo de Roberto Ramirez “Sobre a natureza das revoluções do pós-guerra e dos Estados ‘socialistas’” é parte do esforço que a Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie tem feito no sentido de, a partir da experiência histórica, realizar um real balanço histórico e teórico para atualizar as linhas mestras da teoria marxista sobre a revolução e o processo de transição ao socialismo[1]. A abordagem do autor, no melhor estilo dos grandes pensadores marxistas, apropria-se das categorias submetendo-as a uma análise crítica baseada no desenvolvimento concreto da realidade, postura teórica totalmente incomum em um cenário dominado pelo revisionismo ou pelo dogmatismo

Não se trata de um exercício acadêmico ou de polêmica entre seitas por disputa de prestígio ou coisa que o valha. Pois, da mesma forma que para Marx a Comuna de Paris foi fundamental para a obtenção de lições sobre as tarefas da revolução socialista, ou para Lênin, a experiência da luta sindical e política na Rússia na formulação do papel do partido, e, enfim, no caso de Trotsky, a ideia do desenvolvimento desigual e combinado para a formulação da teoria da revolução permanente e do programa de transição, neste momento, passar a limpo as revoluções do século XX é decisivo para estabelecer bases político-teóricas sólidas para o grande projeto histórico do relançamento da luta pelo socialismo no século XXI.

Esse passar a limpo é uma tarefa que está em curso, e não se realiza de um só golpe. Pois estamos balizados na atual etapa por uma imensa fragmentação das correntes revolucionárias e por um recomeço histórico da luta da classe. Desta forma, a realidade atual exige um esforço teórico continuado para dar conta da imensa tarefa que é compreender, nos seus principais contornos, a luta de classes hoje. Porém, estamos diante de um novo ciclo, porque existem elementos inequívocos de superação do período anterior – a classe operária por meio século (pós-guerra) esteve sob controle das correntes burocráticas e não protagonizou os principais processos de luta -, o que possibilita que as correntes marxistas revolucionárias estejam novamente à frente da direção dos principais processos da luta de classes e, por isso, não se pode tardar em tirar lições fundamentais para a luta revolucionária.

O leitor vai encontrar nesse artigo um resgate e uma atualização dos critérios marxistas para compreender e caracterizar como se estabelece o caráter de classe dos estados nas formações sociais e, mais particularmente, para a constituição da ditadura do proletariado. Critérios estes abandonados pela totalidade das correntes trotskistas no pós-guerra devido ao impressionismo teórico, por um lado, e pela perda do fio de continuidade do pensamento marxista militante, devido à liquidação física promovida pelo estalinismo e pela burguesia dos principais dirigentes dos processos revolucionários e das revoluções – mais notadamente Leon Trotsky – da primeira metade do século XX, por outro.

As revoluções do pós-guerra, segundo Ramirez, “pareciam desmentir a concepção originária de Marx que estabelecia relações unívocas ente a classe trabalhadora, revolução dos trabalhadores, ditadura do proletariado e socialismo.”, pois em uma análise objetivista e substituista as correntes que procuraram caracterizar esses processos desconsideraram que a revolução socialista tenha características distintivas em relação às revoluções tipicamente burguesas. Ou seja, a revolução socialista e o estabelecimento da ditadura do proletariado (estado operário) só podem se configurar como tal se realizados pelo protagonismo da classe operária.

A concepção objetivista/substituista desenvolve um amálgama teórico para “explicar” e “caracterizar” a revolução e seu verdadeiro caráter – socialista, democrático-nacionais ou anti-imperialistas e anticapitalista – totalmente avessa aos critérios marxistas. Não considera que a revolução, para ter um caráter socialista, tem que contar com a auto-atividade da classe operária durante a destruição revolucionária do estado burguês e que as expropriações dos meios de produção devem ser realizadas diretamente pela classe operária. Esse é o núcleo fundamental da teoria marxista da revolução proletária e da transição ao socialismo.

As revoluções burguesas tiveram um caráter exclusivamente político, não alteraram a estrutura econômica que já estava dada, adequando a superestrutura da sociedade a sua estrutura já anteriormente posta, o que permitiu que em alguns casos a burguesia fosse substituída por outros setores na luta contra o estado feudal. Já na revolução operária a classe trabalhadora não pode em hipótese alguma ser substituída por outra classe social para fazer a sua revolução, pois todo o edifício social tem que ser colocado abaixo (como propõe Marx) e um novo, precisa ser erguido. Desta forma, desde a derrubada do estado burguês, passando pela expropriação da burguesia, até a estruturação da produção, a revolução socialista tem que contar centralmente com o protagonismo da classe operária, da sua atividade consciente, e de seus instrumentos políticos no controle da produção e do Estado.

Uma das principais ênfases do artigo de Ramirez é que quando se trata da revolução socialista, e da fase de transição, a economia e a política perdem sua relativa independência, como é o caso dos estados capitalistas que podem conviver com diferentes regimes políticos (republicanos, monarquistas, democráticos, bonapartistas e etc.). Pois não é mais apenas a lei do valor que rege o mundo da produção e da troca e entra em cena o papel decisivo do planejamento, que se não estiver na mão dos trabalhadores, não pode estabelecer um estado operário e garantir o processo de transição ao comunismo.

Sem essa condição está mais do que demonstrado, pelas dezenas de experiências em todas as partes do globo, que não se pode superar totalmente a estrutura econômica, técnica e cultural que após a revolução é herdada do capitalismo. Como diz Ramirez, depois de um século de imensas revoluções cujo saldo foi o fracasso total e irremediável dos “substitutos” da classe trabalhadora, o “substituismo” está de novo erguido como programa e política de setores do marxismo revolucionário e da vanguarda.” Acreditamos que podemos sintetizar o tema – sem prejuízo da complexidade da elaboração que Ramirez nos apresenta – em três elementos básicos: a revolução socialista só pode ser levada a cabo pelo protagonismo da classe operária através dos seus instrumentos democráticos de luta, o desenvolvimento da consciência socialista e dos partidos operários revolucionários.

O artigo que ora prefaciamos não perpassa centralmente o tema do partido revolucionário. Foi comum no pós-guerra a ausência de partidos operários revolucionários na direção dos processos revolucionários. Estes tiveram como direção de partidos com base social nos camponeses, nas forças armadas, ou seja, em classes alheias a classe operária. Além disso, eram partidos com uma estrutura de funcionamento não baseada no centralismo democrático, mas em uma estrutura totalmente vertical e militarizada.

Mas, como as questões tratadas pelo autor, o tema partido e seu papel ganha interesse renovado com a polarização da luta de classe em todo o mundo e as dificuldades concretas encontradas pelos trabalhadores em encontrar instrumentos políticos (partidos revolucionários) capazes de inserir-se nas massas operárias, centralizá-las e dirigi-las de forma revolucionária. Deparamo-nos em uma situação que a ausência de partidos baseados na concepção leninista – revolucionários e democraticamente centralizados – tem sido um fator decisivo para que os processos de enfrentamento aos ataques burgueses promovidos pelos trabalhadores e a juventude durante a atual crise econômica mundial não atinjam mais que o estatuto de rebeliões. Para contribuir com a necessária superação desse déficit a corrente Socialismo ou Barbárie tem apostado na organização, no Brasil e em vários outros países, de partidos que se propõem a superar a ausência de partidos revolucionários fundados na concepção leninista, que tem se demonstrado totalmente vigente[2].

Por fim, a incapacidade de muitas correntes de chegarem a essas conclusões básicas (que, na verdade, resgatam e atualizam o marxismo clássico), levam-nas a uma série de equívocos de análise, programa e mesmo de política cotidiana, pois a luta revolucionária é feita pela atuação nos processos imediatos da luta de classes e na política para que esses processos avancem para enfrentamentos políticos mais radicalizados da luta de classe. Sem compreender qual é o papel da classe operária nos processos revolucionários, por exemplo, acaba-se não apostando constantemente no seu protagonismo, o que redunda em perda de oportunidades para que se vá tendo experiências não corporativistas e mesmo vitórias parciais, tendo em vista o peso que a classe operária mobilizada tem nos desdobramentos dos enfrentamentos de classe.

Antonio Soler

 

Sobre a natureza das revoluções do pós-guerra e dos Estados “socialistas”

Roberto Ramírez

O caminho da Revolução Cubana remete a questões teórico-políticas mais amplas, que se relacionam com o balanço das revoluções do século XX. Por exemplo, o caráter social dos Estados ditos “socialistas” e, especialmente, a natureza das revoluções do pós-guerra que expropriaram o capitalismo (como China e Cuba).

Isso se relaciona, por sua vez, com outro tema teórico e de avaliação histórica, mas também de imensa importância prática, porque tem que ver com a estratégia para o relançamento da luta pelo socialismo no século XXI: em que medida outros sujeitos sociais e políticos podem substituir a classe operária e trabalhadora na revolução socialista? Até onde isso é possível?

O problema do “substituismo” se colocou com toda a sua força ante a realidade de processos tais como China e, em seguida, Cuba, processos nos quais o proletariado não era, nem social nem politicamente, o sujeito de revoluções que expropriaram o capitalismo e que, ademais, reivindicavam-se socialistas. Isso parecia desmentir a concepção originária de Marx que estabelecia relações unívocas ente a classe operária, revolução operária, ditadura do proletariado e socialismo[3].

Em maior ou menor medida e sob formas diversas, grande parte do trotskismo do pós-guerra deu respostas “substituistas” aos impasses teóricos. Respostas que, por sua vez, implicavam uma revisão franca e honesta – como a de Nahuel Moreno – ou hipócrita – como a de Ernest Mandel – da teoria da revolução permanente de Trotsky, que, seguindo o marxismo clássico, colocava o centro de gravidade nos sujeitos sociais e políticos. É que as teorias “substitucionistas”, para explicar porque os sujeitos sociais e políticos não proletários faziam revoluções socialistas, encontraram as respostas não antes de tudo nos sujeitos, mas sim em uma sobredeterminação dos fatores “objetivos”: crise econômica e política, ataques do imperialismo e das burguesias, pressão irrefreável das massas, etc. “que não permitiam outro caminho senão a revolução socialista”.

Uma operação teórica semelhante se aplicou aos Estados onde o capitalismo havia sido expropriado. Ainda que neles a classe trabalhadora como sujeito social e político – como a “classe para si”, de que falava Trotsky – tivesse pouco ou nada a ver com sua conformação e condução, a maioria das correntes os declarou “Estados operários”, cujo conteúdo social era a “ditadura do proletariado”, mas sob uma forma ou regime burocrático. A expropriação da burguesia apenas, já era suficiente para dar o caráter operário ao Estado… mesmo que a classe operária não tivesse desempenhado papel algum nele como classe para si.

Uma pergunta incômoda que muitos preferem não enfrentar

Quanto aos “Estados operários” sem operários que chegaram ao século XX, há uma questão incômoda para a maioria das correntes que reivindicam o marxismo revolucionário: como se retornou ao capitalismo sem que se entremeassem com outras revoluções sangrentas, guerras civis ou invasões imperialistas que destruíssem esses “Estados operários”, e despojassem  também a classe trabalhadora (supostamente a classe dominante) da propriedade dos meios de produção e, em geral, do domínio da sociedade?

Isto, insistimos, teria ocorrido sem resistência significativa da classe trabalhadora. Os trabalhadores dos Estados burgueses do ocidente teriam resistido mais as privatizações de empresas públicas que as classes operárias das URSS, do Leste e da China à restauração do capitalismo. Não fizeram grande coisa para defender a propriedade nacionalizada (para não falar do suposto “Estado operário” em seu conjunto e sua “ditadura do proletariado”) [4].

É verdade que, excepcionalmente em Cuba, não podemos, todavia, falar de pleno retorno ao capitalismo. Mas a pergunta também ali se aplica, porque é evidente que, com muito mais demora, hoje o curso também aponta perigosamente para o sentido restauracionista.

Surpreendentemente, quase todas as correntes trotskistas varreram para debaixo do tapete esse problema transcendental ou se limitaram a análises superficiais para se esquivar do problema. Isso tem ocorrido não apenas em correntes que se caracterizam por seu baixo nível teórico, como PSTU-LIT ou àqueles agrupadas na UIT antes de esta se dividir. Também tem ocorrido com outras, como no mandelismo europeu, que exibe uma infinidade de quadros intelectuais de primeiro nível. Em nossa região, também é o caso do PTS-FT, que embora dedique alguns esforços à elaboração política, o faz a partir de uma matriz teórica em geral rígida e conservadora. Essa corrente tem se caracterizado por ter “zero de sensibilidade” no momento de enfrentar um debate e reflexão reais ao redor das experiências anticapitalistas do século passado.

Voltando a atenção ao mandelismo, é inconcebível que nunca se tenha “passado a limpo” e confrontado com os fatos as teorias construídas por Ernest Mandel sobre os “Estados operários” e suas burocracias, cuja última grande obra – um livro de 400 páginas dedicado à situação da URSS – iniciava com a tese de que era “inconcebível” e “ridículo” pensar que Gorbatchov ou a burocracia soviética em seu conjunto desejavam restaurar o capitalismo, uma vez que isso seria contra a sua natureza e interesses e equivaleria a “realizar um hara-kiri” [5]. Meses depois, a União Soviética e quase todos os “Estados operários” desapareceríam na noite da história. Nessa corrente, realizaram-se muitas especulações sobre o evento, tingidas todas de um pessimismo insondável que se utiliza como justificação “teórica” das piores capitulações oportunistas. Porém, jamais se ouviu uma reflexão autocrítica que pusesse em questão a teorização sobre os “Estados Operários” que, durante décadas, presidiu a Quarta Internacional dirigida por Ernest Mandel.

Cabe insistir sobre isso porque se trata realmente de um problema generalizado. O morenismo (ou melhor, as correntes que resultaram de sua implosão, contemporânea com a da URSS) não fez muito melhor do que se velho adversário mandelista. Outra grande corrente do trotskismo, liderada pelo SWP da Grã-Bretanha, devota que é da teoria do “capitalismo de Estado” de Tony Cliff, entendeu que a questão não pertencia a eles. “A URSS fora sempre capitalista e, agora, tratava-se apenas de uma privatização de empresas estatais”.

No entanto, é uma questão fundamental a questão de como, sem maior resistência da classe trabalhadora, retornou-se ao capitalismo sem o intermédio de uma contrarrevolução sangrenta e/ou uma guerra civil que destruísse o “Estado operário”. Como se despojou a classe operária (a classe supostamente dominante) da propriedade dos meios de produção?

Seria o primeiro caso na história em que uma “classe dominante” se permitiria a retirada de seu poder e propriedade desta maneira, sem resistência alguma. E esse processo teria, evidentemente, raízes profundas, porque (sob formas distintas), se desenvolveu tanto em países onde se produziu uma queda dos regimes stalinistas (ex-URSS e Leste) quanto em países onde o regime se manteve (China e Vietnam) [6].

Hoje, em relação à Cuba, este grande problema teórico-político adquire enorme importância prática dada as pressões restauracionistas que existem ali[7].

Depois desses eventos “transcendentais”, falar de “Estado operário” nos coloca diante de um grave problema conceitual e teórico. ”Estado operário” só pode significar que os trabalhadores é a classe dominante desse Estado (ainda que sob o controle mais ou menos usurpador de uma burocracia). Ou seja, uma ditadura do proletariado, para usar o conceito de Marx (que nunca falou em “Estado operário”). E se, excepcionalmente, sendo os trabalhadores a classe dominante, deixaram-se expropriar dessa forma, com uma facilidade tão escandalosa, o poder e a propriedade, ter-se-ia de concluir que o marxismo se equivocou sobre a possibilidade de o proletariado ser a classe que, ao se libertar, pode libertar todos os oprimidos e explorados, acabar com o capitalismo e, acima de tudo, liderar a construção de uma nova sociedade sem explorados e exploradores, o socialismo.

Insistimos nesse ponto: defender o “Estado operário” depois do que aconteceu na ex-URSS e no Leste (e, também, de outro modo, na China) significa atestar implicitamente um certificado de radical inépcia do proletariado para realizar essa tarefa histórica. Por isso, surpreende ver tantos marxistas e trotskistas ainda falando tranquilamente dos (extintos) “Estados operários” sem serem capazes de somar dois mais dois[8].

Essa cegueira “ortodoxa” simplesmente faz o jogo junto à corte de charlatões que desde a queda do “Muro de Berlim” decretou o desaparecimento da classe operáriae/ou decretou a inépcia desta para estabelecer seu próprio domínio. Mas isso, ao mesmo tempo, exige adequar a teoria aos novos fatos históricos e experiências da luta de classes sejam revolucionárias ou contrarrevolucionárias. Isso é o que o marxismo foi fazendo desde suas origens (e ao que, em certo sentido, deve-se retomar). Por isso, seria conveniente recordar como também foi mudando, em relação com a experiência histórica e estas realidades da luta de classes, a mesma teoria do Estado.

Alguns fantasmas da teoria marxista do Estado

Marx não desenvolveu uma teoria do Estado tão amplamente com fez com a teoria do valor e da mais-valia. Isso não significa, é claro, que não tenha produzido elaborações fundamentais que deram aos marxistas bases sólidas para uma compreensão teórica do Estado, ou seja, das instituições políticas que permitem a um setor (minoritário) da sociedade dominar e explorar o restante.

Mas, ao mesmo tempo, o caráter fragmentário do legado de Marx nesta área deixou grandes lacunas e problemas pendentes, especialmente porque estas elaborações se relacionam com um tipo concreto de sociedade, de Estado e até mesmo de situação política (como, por exemplo, o Golpe de Estado de Napoleão III). Isso apresenta dificuldades para a sua generalização.

Assim, não são exatamente as mesmas considerações teóricas sobre o Estado (nem o traço fundamental que Marx sublinha) no 18 de Brumário (um aparato burocrático que se coloca acima da sociedade, bonapartismo, etc.), ou nos Escritos Sobre a “Sociedade Asiática” (um Estado com um estrato burocrático que explora uma sociedade sem “classes” em sentindo estrito), ou então as de Engels na Origem da família, da propriedade privada e do Estado (o Estado como instrumento político de uma classe dominante, ainda que com anomalias a essa regra, como o absolutismo ou o bonapartismo).

Para complicar as coisas ainda mais, um conceito central na teoria do Estado, a definição de classe social, nunca foi desenvolvida por Marx. O maior teórico da luta de classes jamais formulou uma definição universal do que é uma classe social. Pelo menos, uma definição que seja valida não só para o capitalismo – onde a coisa está um pouco mais clara – mas para o conjunto das formações sócio-econômicas em que impera a exploração do homem pelo homem e, portanto, existe o Estado. Em princípio, podemos tomar como referencia o lugar das classes nas relações de produção, porém, na verdade, isso só é relativamente exato no capitalismo.

É no terceiro tomo de O Capital, que Marx daria, de passagem, a definição mais “global”, mais geral do Estado (definição que, ademais, chama atenção porque não utiliza a palavra “classe”). Com ela, Marx pretendia abarcar “toda forma específica de Estado”. É uma definição que convémlevar muito em conta também para o problema dos Estados que surgiram das revoluções do século XX: “A forma específica na qual trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos determina a relação de dependência entre senhores e não-senhores, tal como se desprende diretamente da produção mesma, e que, por sua vez, retroage sobre ela. É também a base sobre a qual repousa toda a estrutura da comunidade econômica e as condições mesmas de produção, e, portanto, ao mesmo tempo, a forma política específica.”

E mais adiante dizia: “É sempre nesta relação que encontramos o segredo íntimo, o fundamento oculto de todo o edifício social, e, portanto, também a forma política, revestida pela relação de soberania e dependência; em uma palavra, a forma política específica de Estado (grifos de Ramires). Recordemos, finalmente, que, nem para Marx nem para Engels, o Estado deveria ser sempre necessária e diretamente o Estado exclusivo e/ou direto de uma classe “proprietária” (no sentido, por exemplo, da sociedade escravagista antiga ou a atual, capitalista). Marx já havia analisado fenômeno das sociedades chamadas “asiáticas”. Por sua vez, Engels dizia que “por exceção, há períodos em que as classes em luta estão tão equilibradas que o poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em relação a uma e outra classe” [9].

A abertura, no século XX, de uma “época de guerras e revoluções” trouxe à tona a necessidade de reformular e ao mesmo tempo restaurar a teoria do Estado em sua essência revolucionária, já que no interior da Segunda Internacional eram difundidas interpretações reformistas. Havia sido “esquecida”, entre outras coisas, a necessidade da destruição revolucionária do Estado burguês e da constituição de outro Estado: “ou seja, o proletariado organizado como classe dominante”. Essa tarefa, para a qual atenta Lênin em O Estado e a Revolução, define o Estado proletário numa forma essencialmente político-social: não será um Estado de burocratas, mas um Estado dos operários armados… um Estado realmente democrático: o Estado dos conselhos de deputados operários e soldados” (grifos de Lênin).

Anos mais tarde, Lênin deverá corrigir isso parcialmente ao afirmar que não existia simplesmente um “Estado Operário”, mas que a realidade da URSS havia produzido um “Estado operário com deformações burocráticas”.

As concepções na oposição de Esquerda

No início dos anos 30, era evidente que essa caracterização da União Soviética também já havia caducado. A URSS já não era o “estado democrático de operários armados” e o câncer das “deformações burocráticas” chegava ao conjunto do Estado. Então, na Oposição de Esquerda formulam-se duas definições.

Cristian Rakovsky, que em muitos aspectos havia se adiantado a Trotsky na análise do fenômeno de burocracia[10], sustentava que “de um Estado operário com deformações burocráticas – como Lênin definia a forma política do nosso estado – estamos caminhando para um Estado burocrático com restos proletários comunistas[11].

Com esta definição, Rakovsky seguia os caminhos clássicos de definição político-social de Estado. Isto é, levar em consideração essencialmente “a relação de dependência entre senhores e não-senhores”, que, por sua vez, baseia-se na “forma específica na qual o trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos”.

Mais tarde, Trotsky construirá uma definição diferente, mas, em certos aspectos, não absolutamentecontrária a de Rakovsky, a de “Estados Operário Degenerado”.

Assim, na década de 30, desenvolve-se o trabalho teórico de Trotsky a respeito deste curso inesperado de degeneração burocrática do primeiro Estado originado de uma revolução dos trabalhadores na história. Sua obra teórica é monumental, considerando que não só se tratava de um fenômeno inesperado, mas de algo absolutamente novo, “sem precedentes” nas experiências anteriores de luta de classes e eventos históricos. Mas isso dá a toda sua obra – desde A Revolução Traída até as dezenas de trabalhos menores, porém não menos importantes – uma característica que muitas vezes não é levada em conta: que obrigatória e inevitavelmente tal obra apresenta hipóteses e elementos contraditórios e, sobretudo, de análises e prognósticos alternantes.

Consciente disso, Trotsky em A Revolução Traída assinala que “os doutrinários não se satisfarão, naturalmente, com essa definição tão vaga [do caráter social de URSS]. Eles gostariam de fórmulas categóricas: sim e sim; não e não. As questões de sociologia seriam bem mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso que eliminar, no desenvolvimento de uma precisão lógica, os elementos que contrariam nossos esquemas e que, amanhã, os podem refutar. Em nossa análise, tememos, acima de todo, violentar o dinamismo de uma formação social que não tem precedentes e não conhece analogias” (grifo de Ramires). Devemos ter muito em conta esse ponto de vista metodológico, porque às vezes se esquece de que hoje já vimos o “final do filme” dos “Estados operários burocráticos”. Trotsky só pôde assistir aos primeiros minutos. Nós, sim, temos precedentes!

Mas retornemos à análise de Trotsky sobre a URSS. Dado que a classe trabalhadora soviética não só havia sido despojada de todo o poder real, mas que também, sob o terror stalinista, suportava uma dominação política e a um regime de trabalho brutais, Trotsky se vê obrigado a realizar uma reformulação da teoria clássica de Marx (e, por conseguinte, de Lênin). Ele argumenta que, apesar de sua degeneração, o estado soviético ainda pode continuar sendo definido como “operário” enquanto conservar “as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro”, e desde que elas “não sejam liquidadas, o proletariado continua sendo a classe dominante” (L. Trotsky, A natureza de classe do estado soviético).

Na verdade, essa mudança radical no “centro de gravidade” da teoria marxista do estado escondiadois problemas (e perigos):

  1. Tendia a uma “petição de princípio”: que a propriedade estatal dos meios de produção (que implicava a ausência de capitalistas privados) era por si “operária” (ou que, pelo menos, continuava outorgando um caráter proletário ao Estado)
  2. Porém, esta operação teórica abriria também as portas para uma complicação mais profunda e mais complexa. Para o marxismo, as relações de propriedade não constituem a estrutura de uma sociedade (relações de produção), mas são apenas a sua “expressão jurídica”; em outras palavras, as relações de propriedade são na verdade parte da “superestrutura jurídica e política” da sociedade (K. Marx Prefácio à contribuição à crítica da economia política).

Essa “expressão jurídica” não é uma relação direta, mas dialeticamentemediada através das instituições do Estado, das leis e até mesmo dos “costumes”. No decorrer da história, entre as relações de produção e as relações de propriedade têm tido lugar todas as variações do desenvolvimento desigual e confiando e suas respectivas mediações.

O marxismo vulgar, especialmente o de DNA stalinista e/ou economicista, frequentemente dá por resolvido que só existem ou existiram duas situações possíveis em relação com os bens em geral e aos meios de produção em particular: a propriedade absoluta e seu reverso, a não-propriedade também absoluta.

Porém, na verdade, isto tem sido excepcional na história. Só houve nas formações sociais escravagistas (Grécia clássica e Roma) e, sobretudo, nas capitalistas modernas. No resto, tem prevalecido toda sorte de combinações de formas “intermediárias”, complexas e por vezes ambíguas, de posse e usufruto, ou, inclusive, de propriedade “compartilhada” (sobre um mesmo bem, pessoas diferentes têm direitos diferentes; por exemplo, no feudalismo, em uma floresta, o senhor poderia ter direitos de caça exclusivos, e os servos, os de coletar a lenha disposta no solo desde que não realizasse o corte de árvores, etc). Ademais, estas formas podem estar legisladas explicitamente ou não. Nos períodos de transição, isto tende a se combinar com defasagens importantes – “atrasos” ou “avanços” relativos – entre a estrutura (relações de produção) e sua “expressão jurídica” (relações de propriedade)[12].

Trotsky, ao apontar o foco da definição de ”Estado Operário Degenerado” para “as formas de propriedade criadas pela Revolução de Outubro”, estava girando em torno – como referido acima – de uma relação de caráter jurídico, isto é, superestrutural. Isso deixou sob uma penumbra uma questão fundamental: as relações de produção que configuravam a estrutura socioeconômica da União Soviética[13].

Isso nos remete ao problema mais amplo e crucial das relações de produção na transição do capitalismo ao socialismo. Concretamente: essas relações de produção são essencialmente as mesmas em um “estado operário burocrático” que em um verdadeiro estado operário, onde impere a democracia socialista e a classe trabalhadora seja a que realmente exerça o poder e não seja substituída por uma burocracia que pretende governar em seu nome?

Veremos mais adiante que, sobre esta questão crucial, Trotsky não responde de modo a dar uma resposta ao todo clara, senão nos dando formulações parcialmente contraditórias.

Além disso, naquela época, Trotsky provavelmente teria razão a nível político, ainda que tenha “forçado” desproporcionalmente as determinações clássicas da teoria marxista do Estado. Comoesclareceu mais tarde, “a definição da URSS como Estado Operário” não é empregada como “uma categoria lógica, e inclusive algo ética”, mas “como uma categoria histórica que atingiu os limites de sua própria negação” (grifo de Ramírez)[14].

Mas Trotsky não queria cruzar tais limites, por razões políticas compreensíveis. Não queria descartar possibilidades de que “um evento histórico de grande importância, uma mudança de situação na URSS” poderia levar à “queda da burocracia stalinista”. Ele sabia que este grande evento histórico – a Segunda Guerra Mundial – estava prestes a estourar: era esse teste objetivo da luta de classes o que decidiria em definitivo[15]. Assim, em A Revolução Traída conclui que, em ultima instância, “o problema do caráter social da URSS ainda não foi resolvido pela história”.

Todavia, a guerra não terminou com a “derrubada da burocracia stalinista” e com a regeneração operária da URSS. Pelo contrário, foi no pós-guerra que a burocracia atingiu o auge de seu poder geopolítico e de sua influência sobre o movimento operário e sobre a esquerda mundial, graças a ter encabeçado, juntamente com as “democracias ocidentais” a guerra contra o nazi-fascismo. Por outro lado, os trotskistas saíram como uma ínfimae marginal minoria que remava dificultosamente contra a corrente.

A guerra mundial Havia dado resultados muito diferentes da alternativa imaginada por Trotsky. Essa alternativa foi colocada em termos absolutos que não se deram: contrarrevolução fascista (com a liquidação da URSS, incluindo sua burocracia) ou revolução operária e socialista, com a consequente regeneração do Estado soviético e a derrubada da burocracia stalinista.

Trotsky possuía todo o direito de fazer essa “aposta na revolução”. Mas osresultados da Segunda Guerra Mundial não foram esses: apresentou-se um “híbrido”, uma combinação não prevista. O Nazi-fascismo não triunfou na Europa, porém tampouco a revolução operária socialista. Surgiram situações revolucionárias (inclusive com elementos de duplo poder) em importantes países da Europa, tais como França, Itália e inclusive em algumas regiões da Alemanha. Mas, como sabemos, foram decisivos os pactos entre o imperialismo e a burocracia do Kremlin para contê-los e logo o desarmá-los.

A condição de vencedores do nazi-fascismo permitiu aos estalinistas estabelecer um rígido controle sobre a maioria do movimento operário e de massa europeu (enquanto o resto sucumbiu ao domínio da socialdemocracia, não menos contrarrevolucionária). As tendências instintivas, contudo inorgânicas das massas operárias para tomar o poder e guiar a revolução socialista colidiram com o decisivo em situações como estas, os fatores subjetivos: consciência, programa, organização política e social da vanguarda e das massas trabalhadoras.

O fato é que o epicentro das lutas revolucionárias se deslocou da Europa para a periferia (Ásia, África e América Latina). Europa, ou melhor, o proletariado e o movimento operário na Europa, desde 1848, haviam sido o epicentro mundial das revoluções e, em geral, da luta pelo socialismo. Mas, desde a derrota da revolução espanhola durante a guerra civil de 1936-39, isso não mais aconteceu até agora. Embora tenha havido lutas importantes, com grande intervenção operária e com repercussão mundial – a revolução dos Conselhos Operários da Hungria (1956), o Maio Francês (1968), a Revolução Portuguesa (1974) e outros processos – o “centro de gravidade” revolucionário no mundo transferiu-se para a periferia, com profundas consequências no que tange aos sujeitos sociais e políticos envolvidos.

Essa “transferência” das revoluções no período seguinte à Segunda Guerra Mundial teve o seu evento geopoliticamente mais importante na China, ainda que o valor da Revolução Cubana também seja enorme. E não é um problema teórico menor que afrontamos o de explicar como revolução de envergadura comparável a da Rússia (que ademais se reivindica “socialista”), tenha chegado a ser o que é hoje: que a China é a fábrica (capitalista) do mundo e a “locomotiva” do capitalismo mundial[16].

Expropriações e revoluções após a segunda guerra mundial

A expropriação da burguesia nos países da Europa do leste e a posterior vitória da Revolução Chinesa em 1949 recolocaram aos trotskistas todos os problemas da teoria do Estado.

A maioria se inclinou a “adaptar” a nova situação (e a dar-lhe uma nova incoerência) ao ponto de vista de Trotsky na década de 30, enquanto a definir o caráter declasse do Estado exclusivamente a partir do primado da propriedade estatal. Só que agora se distinguia entre “Estado Operário Degenerado” (URSS) e os “Novos Estados Operários Deformados” (Leste Europeu, China, etc.), que já eram burocratizados desde o seu nascimento[17].  Uma minoria escolheu soluções teóricas não muito melhores, como a do “Coletivismo Burocrático” [18] ou do “Capitalismo de Estado”, o que é, aliás, politicamente muito perigoso, pois tendia a igualar o imperialismo ianque e o “capitalismo de Estado” e/ou “imperialismo soviético” [19].

Dez anos depois da China, a Revolução Cubana veio adicionar novas complicações teóricas, já amplamente consideradas no estudo publicado nesta edição[20].

A solução do “Estado Operário Deformado”, embora tenha aparecido como uma continuação de Trotsky, na verdade implicava uma generalização abusiva que desfigurava seu raciocínio marxista, isto é, histórico-concreto. Com essa “operação teórica”, “Estado operário” deixava de ser uma categoria histórica (como em Trotsky), e transformava-se em uma categoria lógica: ou seja, metafísica[21]. Ou, nas palavras de Marx, em uma categoria “imortal, imutável e imóvel”, deixando de lado qualquer consideração sobre as relações sociais reais em que se inseria… e aquelas que geraram a própria categoria[22].

De acordo com a concepção metafísica ou “lógica”, qualquer Estado que expropriasse e/ou possuísse os meios de produção fundamentais passava a se automaticamente um “Estado operário” mesmo que nenhum operário, menos ainda a classe operária como tal, tivesse alguma relação com tal fato. Se houvesse desapropriação instantaneamente o Estado se transformava em “operário”, fazendo abstração total do processo de luta de classes que havia levado a esta medida; ou seja, deixando de lado os sujeitos sociais e políticos que a aplicavam, e como o faziam. Nas palavras de Marx, abstraia-se das “reais relações [sociais]”, em que se dava[23]. Quem expropriava e como se expropriava eram questões relegadas aúltimo plano, ou desapareciam completamente.

Às expressões “Estado operário” ou “ditadura do proletariado” foram adicionados alguns adjetivos, como “deformado” ou “burocrático”, como se fossem variações de uma mesma família, algo como as panteras ou os gatos domésticos, que são ambos da mesma família zoológica dos felinos. Porém, no âmbito da sociologia e política, essa operação pode resultar ainda mais perigosa que confundir um gato com uma pantera.

A generalização foi, então, o conceito de “Estado Operário”, mesmo naqueles Estados em que a classe operária tinha pouco a ver com o Estado “de carne e osso” (ainda que às vezes este falasse em nome daquela). Ou seja, a classe operária pouco tinha a ver com o Estado concreto tal como se encarna em suas instituições (que eram completamente da burocracia).

Estado e Regime Político, Superestrutura e Relações de Produção.

Resulta do que nós estamos explicando que agrande maioria do trotskismo de pós-guerra generalizou quase até o absoluto duas hipóteses de Trotsky. Isto foi uma extrapolação, já que essas hipóteses estavam em contradição com outros aspectos de sua análise sobre a terra incógnita[24]·, que era o primeiro ensaio de um Estado onde o capitalismo havia sido expropriado. Acontece que, como já assinalamos, Trotsky não queria excluir qualquer variação possível de “uma formação social que não tinha precedentes”.

As duas hipóteses mencionadas estão estreitamente ligadas entre si. 1) O Estado operário, tal como os Estados burgueses, poderia ter regimes políticos completamente diferentes, a saber: regime burocrático ou de democracia operária. Em outras palavras: nas mesmas bases sociais e estruturais podem erigir-se superestruturas muito diferentes, tal como ocorre no capitalismo. 2) Que algumas classes e/ou setores sociais poderiam substituir a classe operária, cumprindo tarefas históricas que corresponderiam ao proletariado.

O objetivismo – isto é, o primado do que se faz a despeito de quem e como se faz – foi acompanhado pelo já mencionado substituismo. Mas, insistimos, estas hipóteses foram extrapolações do pensamento global de Trotsky, convertidas, pois, em teses, em afirmações axiomáticas.

O raciocínio foi mais ou menos o seguinte: os Estados burgueses mostram como um mesmo Estado pode ter diversos regimes políticos (monárquicos, bonapartistas, democráticos, fascistas etc.). Eles são regimes muito diferentes (às vezes até mesmo apoiam-se sobre setores distintos das classes exploradoras), mas o caráter de classe do Estado é o mesmo: burguês.

Da mesma forma, um Estado operário pode instaurar diferentes regimes políticos. Se se apoia nas camadas burocráticas, será um Estado operário burocratizado. Se, no entanto, o regime se apoia na classe trabalhadora organizada democraticamente, será um Estado operário de “democracia socialista” (Mandel) ou “revolucionário” (Moreno).

Além disso, o próprio Trotsky fez observar os antecedentes do “sustituismo” em algumas revoluções burguesas. Um dos exemplos que ele menciona foi o do regime Bismarck, que completou a tarefa historicamente progressiva de unificar a Alemanha (que a burguesia havia sido incapaz de consumar) e que se apoiava nos proprietários de terras prussianas de estirpe feudal. Da mesma forma, a situação da luta de classes no pós-guerra fez com que setores sociais não proletários realizassem tarefas que se acreditavam ser reservadas à classe operária.

Seja com um “exagero demasiado” em intelectuais como Isaac Deutscher (que chegou a estender isso para o próprio Stalin) e com maior ou menor amplitude, segundo as distintas correntes do trotskismo, esta concepção “substituista” foi norma no pós-guerra. Porém, o curso dos supostos “Estados operários” e agora os perigos que se levantam frente a Cuba, obrigam hoje a reconsiderar tudo isso.

Em primeiro lugar, não é possível generalizar todas as formações econômico-sociais (e menos ainda as que expropriaram a burguesia) uma característica que é quase exclusiva do capitalismo: a saber, a separação extrema entre estrutura e superestrutura, entre as relações de produção e as de dominação política, entre a economia e o Estado, entre o homem como homo economicus (comprador ou vendedor no mercado da força de trabalho, que de determina a fundamental divisão de classes da sociedade) e a ficção dos “cidadãos iguais” na esfera política. Isto dá ao capitalismo, nessa esfera política, um caráter extremamente “plástico” que não tem nem poderiam ter outras formações econômico-sociais, tanto pré-capitalistas como pós-capitalistas.[25]

É uma enorme vantagem de o capitalismo possuir essa plasticidade política, a qual permite que o Estado burguês possa ter como “regime político” desde ditaduras fascistas ou regimes militares como o de Pinochet até regimes ao estilo Chaves, passando pelas formas de “democracia” republicana “normal”, pelas monarquias constitucionais (Grã-Bretanha) ou despóticas (Arábia Saudita), pelos regimes semi-teocráticos (Irã) etc. Mas o resto das formações sociais não tem semelhante plasticidade. Por exemplo, no feudalismo clássico seria inconcebível semelhante separação entre as funções superestruturais politico-jurídico-militares do senhor feudal das suas funções estruturais, a extração de produto e trabalho excedentes de seus servos.

Insistimos: trata-se de um traço muito importantee quase único do capitalismo, que só foi compartilhado excepcionalmente (porém de forma qualitativa mais restrita) por algumas formações sociais baseadas na escravidão (cidades da Grécia antiga no seu período clássico edepois, em parte, Roma).

Isso faz com que os capitalistas possam exercer o poder do Estado muito menos diretamente do que as classes ou camadas dominantes de outras formações sociais: fazem-no pela mediação de um pessoal especializado: as burocracias políticas e militares. Estas são recrutadas principalmente nas ambiguamente chamadas “classes médias”, estendendo-se também ao resto do espectro social: desde os remanescentes das velhas classes capitalistas (tais como os ridículos monarcas e aristocratas de tantos países europeus) aos dirigentes “proletários” (estilo Lula, por exemplo). Diante das crises, isto permite ao capitalismo não só mudar de “elenco”, mas mais ainda, de regime. Assim, ascendem e caem governos, mudam os regimes, mas o capitalismo permanece. A conturbada história de Cuba até 1959 é um dos tantos testemunhos disso.

Pois bem: pouco ou nada disso pode acontecer uma vez expropriados os capitalistas: Estado, regime e economia deixam de ser (relativamente) “autônomos”. Extingue-se essa “externalidade” mútua entre produção e Estado, estrutura e superestrutura.

Como explicou Trotsky, as razões para essa diferença baseiam-se no fato de que o capitalismo pode reproduzir-se “automaticamente”. Mas se expropria aos capitalistas os principais meios de produção, a coisa se deixa de ser “automática”. Extingue-se o “automatismo” com que o capital garante sua reprodução e valorização. Alguém deve não só comandar e administrar o funcionamento de produção e da economia em geral, mas também cuidar para que as massas operárias trabalhem com uma eficiência e produtividade comparáveis com as do capitalismo[26].

Que isto intente fazer o “Estado dos burocratas” (acima e sem qualquer controle ou direito de decisão dos produtores) ou realize o “Estado democrático dos trabalhadores armados” não é uma mera diferença no “regime político”, localizada nas nuvens das superestruturas. Em outras palavras: não se trata de um regime que poderia ser substituído por outro (como no capitalismo), enquanto, sob isto, as relações deprodução seguiriam mais ou menos iguais. Pelo contrário, ambas as opções implicam diferenças radicais no tipo de Estado, porque tem a ver, mais profundamente, com o que podemos até chamar de diferentes modos de produção na transição (ou algo que, pelo menos, aponta nesse sentido).

Em “A economia soviética em perigo”, um texto de 1932, Trotsky faz um paralelo interessante entre alguns possíveis modos de produção que se esboçam após a expropriação dos capitalistas.

Por um lado, haveria a planificação dos burocratas que pensam possuir uma “mente universal” a qual lhes permitiria “traçar a priori um plano econômico perfeito e acabado, começando com o número de acres de trigo e terminando com o último botão dos jalecos” e que do mesmo modo “tão facilmente prescindem da democracia soviética e do controle do mercado”.

Por outro, haveria “uma economia da etapa de transição por meio da inter-relação desses três elementos: planificação estatal, o mercado e a democracia soviética”. E, desses três “elementos”, Trotsky põe como decisivo a democracia operária e socialista, porque “a luta entre os distintos interesses como fator fundamental da planificação nos conduz ao terreno da política”.

Assim, a política e a democracia socialista (superestrutura) são partes integrantes e inseparáveis das relações de produção (estrutura) da transição. E isto também se aplica àquela outra forma de produção: aquela que a burocracia comanda: esta também é sobre determinada pela dominação burocrática, que não pode tolerar a democracia operária, porque se faria impossível apoderar-se de uma parte significativa do produto excedente.

Isto, por sua vez, determina não meramente dois regimes diferentes (burocrático e revolucionário) do mesmo Estado operário, mas, dois tipos de Estado diferentes devido ao caráter social e não só “político” desses Estados.[27].

Todavia, devemos dizer algo mais sobre essa questão fundamental das relações deprodução na transição do capitalismo ao socialismo. A expropriação da burguesia em um país – seja em vastos territórios como China e Rússia, seja em uma pequena ilha como Cuba – não o emancipa da economia mundial, que permanece capitalista. Ou, dito de outra forma, não o emancipa da lei do valor.

A partir daselaborações de Trotsky – entre elas, a da fundamental unidade da economia mundial-, Pierre Naville aprofundou a análise das relações de produção nos países em que se deu aexpropriação do capitalismo. Isso foi desenvolvido principalmente em relação a URSS, mas em termos gerais também é válido para Cuba.

Naville, desenvolvendo um exemplo mencionado por Marx, comparava estas sociedades com uma cooperativa de trabalho. Ali não há patrões, mas o nível de desenvolvimento das forças produtivase o fato de que essa cooperativa existe em escala nacional, no marco da economia capitalista mundial, torna-se ainda impossível superar ou “abolir” o trabalho assalariado, e, portanto, a mais-valia. Como forma “transitória” impõe-se ainda uma auto-exploração (conceito de Marx) ou uma “exploração mútua” (conforme Naville). Em outras palavras: ainda há mais-valia, ou seja, valor excedente não pago ao trabalhador, mas ela não vai para os bolsos de um empregador privado: vai para a cooperativa. A mais-valia é estatizada.

No entanto, o problema se apresenta como já advertia a Plataforma da Oposição de Esquerda em 1927, quando o excedente estatizado vai parar cada vez mais nas mãos da burocracia. Décadas mais tarde, isto já havia dado um salto qualitativo. O “socialismo” soviético se apresentava então como “uma espécie de argumento de cooperativas operando sob uma série de leis herdadas do capitalismo e coordenadas pela mão brutal de uma burocracia[28].

Tal como assinalava Trotsky, a apropriação do produto excedente pela burocracia não constituiu um sistema de exploração “orgânico”, como o capitalismo ou as formações anteriores. Por isso não durou séculos (como o feudalismo ou capitalismo), mas apenas um suspiro, se o medimos em suas proporções históricas. Não houve lugar na história paraum “coletivismo burocrático”. Com notável rapidez, descambou de diferentes maneiras. No entanto, é importante compreender, sobretudo para o futuro e para a retomada da luta pelo socialismo, que isto foi efetivamente um sistema de exploração. Embora não tenha sido “orgânico”, foi, no entanto estrutural, e uma das muitas formas de regime político que pode assumir um mesmo Estado operário.

Para deixar isso mais claro, tomaremos uma analogia formulada por Nahuel Moreno sobre a transição. Moreno dizia que era como uma estrada de ferro. Se o trem da revolução fosse conduzido por direções burocráticas e/ou pequeno-burguesas, então, se detinha na estação “expropriação da burguesia” e não seguia avançando na transição para o socialismo.

Na verdade, as coisas têm sido mais complicadas. Jamais as ferrovias tiveram uma só via: há bifurcações, desvios e também “becos sem saída”; isto é, que não chegam a lugar algum. Podemos dizer que frente ao trem da revolução se abrem duas vias. Se quem o dirige é uma burocracia, tomará um beco sem saída… e retornará ao capitalismo. Se se impõe o programa da democracia operária e socialista e o condutor é realmente a classe operária autodeterminada, o trem tomará outra direção: o caminho de transição para o socialismo.

Assim, as burocracias, organizadas em Estados “todo poderosos”, não pararam o trem após a expropriação, mas seguiram marchando por outras vias. Inicialmente, nem a burocracia stalinista nem a maoísta tenderam a restauração capitalista, mas seguiram tentando fazer “orgânico” e historicamente duradouro seu sistema de exploração “inorgânico”.

Por esse caminho se estabeleceram “Estados burocráticos” (ou “socialismo de Estado”, como chamava Pierre Naville), que finalmente se demonstravam sem maiores perspectivas históricas. Ou seja, fracassaram miseravelmente. Entre outros motivos, porque eram economias nacionais no marco de uma economia mundial capitalista, e porque o sistema burocrático foi incapaz de um desenvolvimento sustentável das forças produtivas. Após os fracassos, as burocracias se direcionavam para a restauração, ainda que sob formas distintas. Cuba, mais tardiamente pelos motivos que apontamos, está diante da mesma encruzilhada.

Éimpossível abstrair o também determinante elemento político (democracia operária e socialista ou ditadura burocrática) destesfracassos econômicos, que tiveram como consequência não só a perda da maior conquista revolucionária da história (a expropriação do capitalismo em um terço da humanidade), senão algo inclusive pior: uma grave crise na consciência dos trabalhadores sobre a possibilidade de uma alternativa socialista ao capitalismo.

Classes, burocracia e substituismo

Isto nos remete a uma reflexão final sobre o “substituismo”, que após os desastres do século XX, alguns querem colocar de volta nos altares, não só acendendo velas a Chávez, mas também, agora, a Raul Castro.

Trotsky, de fato, colocou-se uma questão, tomando o exemplo dos junkers prussianos e também o da Restauração Meiji (1868) que, a partir “de cima”, fez passar vertiginosamente o Japão do feudalismo ao capitalismo imperialista. Tanto os junkers prussianos, cuja liderança era Bismarck, como os setores da aristocracia japonesa conduzidos pelo Imperador Meijieram estratos sociais de origem feudal que cumpriram tarefas burguesas historicamente progressistas (a unificação da Alemanha, o desenvolvimento do capitalismo no Japão, etc.).

Fazendo uma analogia hipotética, Trotsky se perguntava em que medida a burocracia soviética – um estrato pequeno–burguês – poderia desempenhar um papel temporariamente “substitutivo” parecido. Ou seja, cumprir limitada e contraditoriamente tarefas do proletariado e do socialismo. Porém, ao mesmo tempo, levantava hipóteses opostas (que geralmente não são lembradas), como, por exemplo, que o domínio da burocracia já significaria, mais cedo ou tarde, a restauração do capitalismo “a frio”.

Mas nós, como mencionamos acima, ao contrário de Trotsky, tivemos a oportunidade de ver o final do filme: nenhuma burocracia cumpriu um papel como o de Bismarck, ou do Imperador Meiji, nem qualquer coisa parecida. Deu-se, porém, a outra hipótese de Trotsky: a de que os burocratas conduziriam à restauração capitalista. Hoje já temos essa comprovação, da qual careceu Trotsky em vida. E não há fato ou motivo algum que indique que a burocracia cubana será exceção.

Esse resultado se deve a uma qualidade também exclusiva do capitalismo: a vastíssima capacidade, nacional e mundialmente, de assimilar-se a outras classes e estratos sociais pré-capitalistas exploradores e/ou privilegiados, “aburguesá-los” e colocá-los a seu serviço. Nem a classe operária nem um Estado proletário teriam tal capacidade. O capitalismo tem aburguesado líderes tribais, reis, imperadores, marajás, sheiks, junkers, samurais e a todo e quanto explorador e/ou privilegiado pré-capitalista que já haja existido no planeta. E também, lamentavelmente, por outro lado, tem assimilado e domesticado legiões de burocratas operários (incluindo muitos que foram inicialmente lutadores legítimos), líderes guerrilheiros e dirigentes de movimentos sociais campesinos, indígenas, etc. Também tem devorado ademais duas gerações históricas de partidos originalmente operários, os socialistas, oriundos da Segunda Internacional, e os comunistas, da Terceira.

Finalmente, repetimos que não se trata aqui de debates acadêmicos (como seria com Deustcher, se este estivesse vivo), nem de tampouco negar, em abstrato, a possibilidade de que setores sociais e políticos não proletários, em circunstâncias especialíssimas, cumpram limitadamente tarefas históricas que corresponderiam ao proletariado, como foi o caso da Revolução Cubana.

O problema concreto é outro: depois de um século de imensas revoluções cujo saldo foi o fracasso total e irremediável dos “substitutos” da classe operária, o “substituismo” está novamente erguido como programa e política de setores do marxismo revolucionário e da vanguarda.

Diante desta situação concreta – que atravessa o marxismo revolucionário na América Latina e no resto do mundo – acreditamos que a nossa posição, de fato, deve ser contundente: não há “substituismo” que valha! Se não conseguimos reerguer a luta de classe trabalhadora e o movimento operário, ninguém poderá substituí-los!

Notas:

[1] Sobre esse tema a Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie tem uma respeitável e inovadora elaboração teórica que pode encontrada nas revistas Socialismo ou Barbárie nº 17/18 Notas sobre la teoría de la revolución permanente a comienzos del siglo XXI, por Roberto Sáenz; revista nº 25 Plan, mercado y democracia obrera – La dialéctica de la transición socialista, por Roberto Sáenz; revista  nº 19 China 1949: una revolución campesina anticapitalista, por Roberto Sáenz, nº 22 Un debate crucial en la izquierda – Cuba frente a una encrucijada, Roberto Ramiirez.

[2] O tema da atualidade da concepção leninista de partido é tratado no artigo A vigência de O que fazer? em nossa época, por Roberto Sáenz na revista Socialismo ou Barbárie nº 23/24.

[3] Deve-se fazer notar que, já nos tempos de Marx e Engels, à maltratada palavra “socialismo” se pretendia dar qualquer significado. Por isso, no Manifesto Comunista se vem obrigados a clarificar as variedades de “socialismos” fraudulentos em voga. Para isso, empregaram antes de tudo um critério de classe; isto é, dos sujeitos sociais que se expressam nestes pretendidos “socialismos”. Neste século XX, esta interessada nebulosidade do conceito de socialismo chegou a um grau de fraude escandaloso. Assim, chamaram-se “socialistas” a grande maioria dos governos e partidos das ex-colônias afro-asiáticas (como os de Nasser no Egito, Assad na Síria e até Sadam Hussein no Iraque) ou partidos como o PS da França ou o PSOE da Espanha.

[4]Obviamente, nesta transição houve crises políticas e enfrentamentos que em algumas ocasiões fizeram correr sangre. Entretanto, esses fatos não só não foram a regra, como que não tiveram que ver com uma defesa da propriedade supostamente “socialista”, nem de um “estado operário”, e nem mesmo com uma rechaço à restauração. Um dos fatos de maior repercussão, o de Tiem An Men, por exemplo, não houve nada nesse sentido. Tampouco na rebelião popular que pôs abaixo Ceaucescu na Romênia. Nem nas lutas, algumas sangrentas, que houve nos processos de separação da ex–União Soviética. Tampouco as guerras que levaram à dissolução da Iugoslávia se deram entre restauracionistas e opositores à volta do capitalismo.

[5]Oú va l’URSS de de Gobatchev? Paris, La Bréche, 1989, p. 20. [N.T. Hara-Kiri (literalmente, cortar a barriga ou o estômago) é o termo popular para o Seppuku, ritual de suicídio dos samurais]

[6]Destacamos aqueles de queda (ou mudança) advindos de regimes stalinistas da ex- URSS e do  Leste porque o que aconteceu com a burocracia “operária” teve muitas variantes. Porém, em geral, a burocracia como tal não foi liquidada (inclusive em países em que houve excepcionalmente revoltas violentas, como na Romênia, ou onde havia grandes movimentos políticos de oposição em condições de substituí-la, como na Polônia). Em maior ou menor medida, dependendo do caso, a burocracia se “renovou” no novo regime, e simultaneamente setores dela se tornaram empresários. O processo na Rússia é particularmente interessante. Depois do desastre do neoliberalismo “puro” de Yeltsin e seu bando de “oligarcas”, que culminou com a bancarrota financeira de 1998, conquista a hegemonia o núcleo central da burocracia sobrevivente, principalmente a ex – KGB e as Forças Armadas, que aparecem, aliás, representando e mediando – com um regime bonapartista forte – os interesses do conjunto da nova burguesia russa e do Estado russo em seu confronto econômico e geopolítico com os Estados Unidos e a União Europeia. Assim se foi dando uma luta, com episódios sangrentos, entre Putin e alguns dos “oligarcas” que estavam demasiadamente ligados a capitais ocidentais, e que abririam caminho para converter a Rússia em uma semicolônia do ocidente.

[7]No caso da Cuba, deve- se chamar a atenção para este grave problema que nem mesmo se colocam aqueles que acreditam que o capitalismo já foi restaurado na ilha, como é o caso do PSTU- LIT. Já em 2000, os companheiros consideravam que a restauração estava consumada ou em vias de se concluir. No entanto, desde então, em tudo o que têm escrito para demonstrá-lo, nunca lhes passa pela cabeça tentar explicar como se pode passar gradual e evolutivamente da ditadura do proletariado (Estado Operário) à ditadura da Burguesia (Estado burguês).

[8]Demarquemos que isso nos leva a diferenças radicais entre o curso histórico da União Soviética e dos países onde se expropriou burguesia no pós–guerra. A revolução de Outubro de 1917 originou efetivamente um Estado encarnado do poder dos sovietes. Por isso, foi necessária a contrarrevolução mais sangrenta do século XX – mais ainda do que a de Hitler na Alemanha, nas décadas de 20 e 30, para estabelecer e consolidar o poder da burocracia. Isto incluiu o extermínio em massa da vanguarda operária e de quase todos os bolcheviques que haviam feito a revolução de Outubro. Não houve processos similares no segundo pós-guerra. As convulsões sangrentas pelas quais atravessou a China foram de natureza muito distinta. Seu centro foram essencialmente lutas interburocráticas, alimentadas pelas contradições do “socialismo em um só país” evidenciadas pelos disparates voluntaristas de Mao. Os episódios em que apareceu a classe operária giraram ao redor desse eixo.

[9] Engels, El origen de la familia, da propiedad privada e el Estado, OEME, tomo VII, Cartago, Buenos Aires, 1973.  

[10]Entre outros aspectos, no sentido de que a burocracia soviética havia deixado de ser parte da classe trabalhadora, questão na qual Trotsky oscila bastante.

[11]Declaração em vista do XVI Congresso  do  PC, 12/4/1930, Cahiers Leon Trotsky, nº 6, Paris, 1980, disponível na ediçção española da Antídoto da revolução Traída. Inicialmente, a carta havia sido publicada no Boletim da Oposição, em que Trotsky editava no exílio.

[12]Dois exemplos disto: 1) Uma das medidas fundamentais dos colonizadores europeus na Ásia e na África (por exemplo, os ingleses na Índia) foi impor uma legislação que consagrava as normas de propriedade absoluta do capitalismo. Esta mudança superestrutural, jurídica, foi uma arma poderosa arma para liquidar a partir “desde cima” as formas de propriedade e as relações estruturais de produção pré-capitalistas, sobretudo no campo (o que implicava ao mesmo tempo a ruína e a desapropriação em massa do campesinato); 2) Um exemplo inverso: em 2007, o parlamento chinês aprovou uma lei consagrando o pleno direito à propriedade privada capitalista (isto é, dos meios de produção e de troca). Obviamente, seria ridículo afirmar a esta data que teria chegado ao fim o “Estado operário” chinês, como deveríamos fazer se nos orientássemos somente pelas relações jurídicas de propriedade para definir o caráter de classe do Estado. Essa lei não foi o princípio, mas o fim de um longo processo de décadas de mudanças estruturais (isto é, de transformações nas relações de produção) e também superestruturais, que inicialmente operaram de fato, adiantando-se a sua “legalização” final. Nem as multinacionais nem a nova burguesia chinesa, originada principalmente da burocracia, esperaram esse dia para começar a explorar os operários e acumular capital. Contudo, ao mesmo tempo, a reivindicação pela “garantia de segurança jurídica”, no intuito de adequar a leia à realidade, já era um forte clamor de todos os capitalistas, chineses e estrangeiros.

[13]Isto é, deslocou-se o centro do problema, o que assinalava Marx como “a forma específica em que o trabalho excedente não pago é extraído dos produtores imediatos”, o que “determina a relação de dependência entre senhores e não-senhores, tal como se desprende diretamente da produção mesma e que por sua vez retroage sobe ela”, e que constitui o “segredo íntimo, e o fundamento oculto de todo o edifício social, e, portanto também a forma política revestida pela relação de soberanía e dependência; em uma palavra, de toda forma específica do Estado”.

[14]“Cuestiones del trabajo ruso”, carta de 17/2/1939, Oeuvres, tomo XX, Paris, INI.T, 1980.

[15]As definições de Rakovsky e Trotsky são diferentes, mas não absolutamente contrárias. Ambas são categorías dialéticas, isto é, “histórico-temporais”, como dizia Marx. Tanto Rakovsky como Trotsky coincidem em assinalar um proceso contra-revolucionário que ainda não havia sido totalmente consumado: “estamos caminando para um estado burocrático com restos proletários comunistas”, afirmou Rakovsky; o Estado operário “é uma categoría histórica que atingiu os limites de sua própria negação”, afirma Trotsky. Mas enquanto Rakovsky dá ênfase ao já visível ponto de chegada, Trotsky, no entanto, ressalta o ponto de partida: uma grande revolução operária, da qual só restava a propriedade nacionalizada.

[16]A este “mistério” que é escandalosamente ignorado por muitos, temos dedicado extensos trabalhos nas revistas Socialismo ou Barbárie nº 17,18,19 e 21, com textos de Roberto Sáenz.

[17]Uma corrente minoritária, encabeçada por Tony Cliff, desenvolveu a teoría do “capitalismo de Estado”, que apresentava problemas teórico-políticos distintos, mas não menos graves do que a maioria que definia a esses Estados como operários, exclusivamente baseada na estatização dos meios de produção.

[18]Sabe-se que a corrente “Coletivista Burocrática” teve um personagem de importancia em Max Schachtman, o qual deu origem a posições de direita. Uma minoría permaneceu no âmbito do socialismo  revolucionário,  encarnada em intelectuais como Hal Draper.

[19]Obviamente, havia de se defender incondicionalmente a URSS frente a qualquer ataque do imperialismo, como hoje tem de se fazer com Cuba frente aos EUA. Mas esta defesa incondicional não depende de que os consideremos “Estados Operários”, mas de que são atacados pelo imperialismo. Desse modo, é também um dever fundamental defender todas as conquistas das revoluções do século XX que permaneçam ainda em pé, como podem ser a propriedade nacionalizada, as melhorias na saúde, educação, condições de trabalho, etc.

[20]Referência do autor à edição em que se publicou originalmente ese artigo, isto é, na revista SoB 22, Novembro de 2008 (N.T.).

[21]A reviravolta de Trotsky em relação à teoria do Estado, deslocando o centro da questão das relações deprodução às formas de propriedade –havia aberto a porta (ou pelo menos a janela) a este erro posterior. No entanto, em seu conjunto, o pensamento de Trotsky foi profundamente dialético. Expressava uma reflexão que poderíamos parafrasear do seguinte modo: “A revolução operária e socialista, que começou na Rússia em 1917, não se espalhou para a Alemanha e outros países avançados da Europa, mas ficou isolada em um país muito atrasado. Nessas condições, uma burocracia brutal pôde se apropriar do poder e ir aniquilando as conquistas de Outubro. No entanto, apesar da burocracia, continuou a subsistiruma conquista muito importante: a propriedade estatizada. Assim, ainda que o ‘Estado operário’ esteja claramente“ ao limite de sua negação”, não devemos dar tudo por perdido: estamos no limiar de uma guerra mundial, um acontecimento histórico de enorme importância, que pode levar a uma alteração da situação na URSS e ao colapso da burocracia stalinista”. Trotsky pode ter se equivocado em seu prognóstico, mas metodologicamente este não era incorreto: tinha relação com o curso degenerativo seguido por uma grande revolução operária e socialista. Sua (questionável) “simplificação” da definição social da URSS se inseriam esta compreensão correta do momento da luta de classes.

[22]Isto nos remete a um problema teórico que  está nas bases da constituição do marxismo. Com efeito, Marx lançou as bases do “materialismo histórico” polemizando contra a utilização de categorias de forma “lógica”, isto é, metafísica (assim como corretamente criticava Trotsky no que tange à abordagem da discussão da URSS). A polêmica de Marx com Proudhon, num plano mais teórico, teve esse ponto como fundamental. Assim, em sua Carta a Annenkov (28/12/1846), Marx afirma contra Proudhon o princípio materialista histórico de que as categorias “são apenas expressões abstratas dessas reaisrelações [sociais] existentes e só permanecem verdadeiras enquanto essas relações sociais existirem (…) Portanto, estas categorias não são mais eternas que as relações que elas expressam. Elas são produtos históricos e transitórios”. Marx, finalmente, criticava aqueles que tomavam “a abstração, a categoria tomada em si mesma, a despeito dos homens e de suas atividades materiais”. Com o qual, a categoria pode se tornar “imortal, imutável e imóvel” (grifos de Marx).

[23]Como veremos, este seria também o ponto de partida da confusão quando, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma onda de estatizações, não só na China e na Europa Oriental, mas também em muitos países africanos e asiáticos. Uma complicação adicional foi que muitos desses governos que emergiam nas ex-colônias europeias, recém-independentes, reivindicavam-se “socialistas”. Então, muitos trotskistas, como o mandelista Lívio Maitán, indagavam-se se o Egito não tinha se tornado, “a frio”, um estado operário”, uma vez que Nasser, além de se proclamar “socialista”, havia estatizado quase toda a economia. Outros, ainda mais delirantes que Maitán, “descobriram” que, além dos reconhecidos “Estados Operários” da China, Europa Oriental, Cuba, etc., havia outra boa dúzia de estados operários; por exemplo, a Etiópia sob o regime militar terrorista de Mengistu Haile Mariam. E, finalmente, lembremo-nos de como o mandelismo declarou “Estado Operário” à Nicarágua governada por Daniel Ortega.

[24]Termo em latim para “terra desconhecida” [N.T].

[25]Sobre as demais formações econômico-sociais, valem estas observações de Perry Anderson: “Todos os modos de produção das sociedades anteriores ao capitalismo extraem o trabalho excedente dos produtores imediatos mediante a coerção extra–econômica (o que implica, principalmente, mas não exclusivamente, alguma forma de poder estatal)”. Mas no capitalismo, prossegue Anderson, “os meios pelos quais se extrai o excedente dos produtores diretos são ‘puramente’ econômicos em sua forma: o contrato de trabalho, a troca igual entre agentes livres, que reproduz, a cada hora e a cada dia, a desigualdade e a opressão. Os meios de produção anteriores operam através de sanções extra-econômicas: de parentesco, consuetudinárias, religiosas, jurídicas ou políticas… portanto, é impossível interpretar essas sanções como algo separado das relações econômicas. As ‘superestruturas’ de parentesco, a religião, a família, o direto ou o Estado entram necessariamente na estrutura constitutiva do modo de produção das formações sociais pré–capitalistas” (P. Anderson, El Estado Absolutista, grifos de Ramírez). Entendemos que algo análogo ocorre após a expropriação dos capitalistas.

[26]O que não significa, é claro, que a lei do valor deixe de vigorar, nem que se possa imediatamente “abolir” o trabalho assalariado, especialmente em economias nacionais atrasadas, como foi o caso Cuba e demais países onde o capitalismo foi expropriado no século XX.

[27]Exclui isto, em princípio, as possíveis diferenças de regime na transição? De maneira nenhuma! Mas essas diferenças se movem em um espectro qualitativamente menos amplo que nas formações capitalistas. Por exemplo, o regime político de um futuro estado operário boliviano não poderia deixar de ter em conta o problema dos povos originários. Da mesma maneira, na América Central, o regime deveria provavelmente assumir a forma de uma federação socialista, e não um estado unitário. Assim sendo, a necessidade política de classe trabalhadora para estabelecer sua hegemonia sobre todos os explorados e oprimidos irá certamente conduzir a certas concessões institucionais, de acordo com a realidade social de cada pais ou região. Isso também se aplica aos Estados Burocráticos: o regime político na URSS não foi exatamente o mesmo nos tempo de Stalin que na época de Brejenev ou ainda período posterior de Gorbachov. Mas, da mesma forma, estas variantes se deram dentro de margens qualitativamente mais estreitas que no capitalismo.

[28]Pierre Naville, Le nouveau Leviathan, tomo 2, volumen 1, capítulo 3, París, Antrophos, 1970.Não é demais recordar que Moreno muito estimava a obra de Naville.