Sob uma disputa saturada, pouca discussão na base e menos votantes, a coalizão “Fazer Valer a Luta” se mantém na direção da gestão, agora incorporando a Juventude Sem Medo do PSOL. Enquanto isso, a oposição de esquerda se fortalece na FFLCH tendo votações expressivas na Letras e no Vão. O processo foi marcado pela recomposição do campo petista na USP, derrotado severamente na última eleição. Este elemento, bem como o avanço da esquerda socialista, sem nenhuma dúvida, é fruto do desgaste da atual gestão e de sua política de desmobilização das lutas estudantis.

PEDRO CINTRA

No final do último mês de maio, ocorreram as eleições para escolher a nova direção do Diretório Central dos Estudantes (DCE Livre da USP), a principal entidade do movimento estudantil uspiano. Sob pouco envolvimento e discussões nas bases, se cristalizou a recondução da atual gestão, agora sob a coalizão “Fazer Valer a Luta”, e o fortalecimento do lulismo governista que terminou na segunda posição. Na dianteira, duas forças variantes e complementares da conciliação de classes. 

No campo da oposição de esquerda, nós da Juventude Já Basta/SoB ao lado da Faísca Revolucionária/MRT conformamos a “Intifada”, uma chapa em defesa da unidade da esquerda independente para derrotar a reitoria racista da USP e enfrentar os ataques dos governos. Levantando a necessidade de fortalecer a independência de classe e resgatar os históricos métodos de luta e democracia estudantil, obtivemos uma importante vitória ao ficar na quarta posição com 383 votos e expressivas votações em espaços chave como a Letras, onde ganhamos a urna, e no Vão da História e Geografia, onde fomos a segunda força mais votada. 

Mais do que um voto

Antes de qualquer análise, nos parece essencial traçar algumas linhas sobre como se deu a disputa. Sobretudo no espaço universitário, as tarefas de um processo eleitoral democrático são muito maiores do que definir, sob algumas opções, um grupo vencedor. As eleições das entidades estudantis devem ser uma verdadeira escola da democracia operária. Elas devem cumprir um papel não só de aproximar do debate político o conjunto dos estudantes, como também, a partir de uma ampla discussão político-programática, apontar o horizonte das lutas que devem ser encaradas pelos estudantes. Trata-se de um processo fundamental para contribuir para a politização das novas gerações e fazer a luta política não só na esfera universitária, mas também em um nível mais amplo. 

As eleições para o DCE Livre da USP pouco refletiram essas tarefas, muito pelo contrário, foram marco de uma saturante e despolitizada disputa pelo aparato que pouco conseguiu transmitir a gravidade do cenário universitário, estadual e nacional. Problemas e desafios não faltam na conjuntura. As eleições se realizaram sob uma reacionária ofensiva da reitoria de Carlotti contra os estudantes trabalhadores, um ataque que se reflete na profunda precarização do CRUSP e na mudança do horário do noturno. A nível estadual, enfrentamos o governo assassino de Tarcísio, figura chave da extrema-direita bolsonarista que, enquanto campo político, segue com uma força institucional e social com grande capacidade de mobilizar sua base e pautar sua agenda ultrarreacionária ao país, um elemento central que algumas organizações da esquerda independente parecem deixar de lado. Já a nível federal, encontra-se a coalizão conciliadora de Lula e Alckmin que governa atendendo a agenda dos tubarões do mercado privado e firmando um ultraconservador pacto de governabilidade com Arthur Lira (PP), presidente da Câmara que sustentou Bolsonaro e que hoje faz avançar projetos como o escandaloso PL 1904, um profundo ataque ao direito das mulheres. O projeto apelidado de “PL do Estupro”, se aprovado, punirá mais duramente as vítimas de estupro que seus próprios agressores. No campo econômico, a greve das federais, condenada publicamente por Lula, enfrenta o arcabouço fiscal do governo que aplica à mão de ferro um duro ajuste à educação. 

Estes temas centrais pouco permearam o debate entre as chapas. O processo teve dificuldade de envolver os estudantes e não é coincidência que o quórum foi um dos mais baixos dos últimos anos. Depositaram seu voto nas urnas, somente 9 mil estudantes, um contingente que não representa sequer um décimo de toda a comunidade estudantil da USP. A baixa politização não é fruto do acaso e muito menos deve nos gerar a ideia de que os alunos não ligam para o que acontece em seu meio. Culpabilizar a base é o refúgio daqueles covardes que buscam esconder seus erros e se omitir de suas responsabilidades.

É o caso da gestão “É tudo pra ontem”, agora reeleita sob a coalizão “Fazer Valer a Luta” incorporando a governista Juventude Sem Medo do PSOL. Essa gestão não convoca há oito meses uma assembleia geral e desde o início do ano não se articula para organizar o enfrentamento aos graves ataques da reitoria. A falta de espaços de base fez com que a discussão política chegasse para a grande maioria somente no momento das eleições. Isso impediu que os estudantes, em especial os calouros, construíssem um acúmulo sobre os debates políticos entre as correntes. Por isso, a impressão para muitos ingressantes de que todas as chapas pareciam iguais. Esse quadro, somado à saturação das panfletagens e certa dose de assédio político, marcou uma disputa visceral que por vezes mais afastou do que aproximou a base discente do debate.

Uma direção organizadora de derrotas

Um tema que se destacou nas campanhas eleitorais foi a greve do ano de 2023. Não poderia ser diferente. Desde o final da greve, não foi convocado qualquer espaço de base para encerrar, de fato, o processo. Isso aconteceu porque a atual gestão reeleita, quando perdeu a votação para encerrar a greve, simplesmente desapareceu da universidade e abandonou de maneira consciente a luta, dividindo o movimento e jogando por terra uma possível vitória política coletiva, algo que abriu espaço para uma severa contraofensiva da reitoria. Ou seja, poderíamos ter saído com uma vitória política da greve, ao menos, com o movimento mais organizado e consciente de suas tarefas e métodos. Aqui cabe mencionar o papel em relação à ocupação e a denúncia pública na Folha de São Paulo diante de uma circular que ameaçava com reprovação automática milhares de estudantes como forma de punir e coibir a greve como instrumento legítimo e necessário à luta. 

Nessa mesma linha, não tivemos, desde então, qualquer espaço político unitário para fazer um balanço coletivo do processo grevista e das concessões apresentadas pela reitoria. Não à toa, tivemos que escutar nesse semestre em uma assembleia da Letras, por parte do coletivo Juntos/MES (PSOL) de que deveríamos “superar o método de assembleia”, uma posição que expressa de maneira pedagógica a natureza reformista, burocrática e entreguista dessa corrente e da atual gestão do DCE, agora compondo a aliança “Fazer Valer a Luta”. Por este campo, o que se ouviu foi um discurso que pintava a greve como uma categórica vitória sobre Carlotti e Tarcísio com grandes conquistas. Um discurso de faz de conta que tenta esconder o papel traidor que essa direção teve à frente da greve, burocratizando o comando de greve e sendo incapaz de formular um programa unitário de luta. Esse diagnóstico desenvolvemos em nosso texto de balanço da greve [1], escrito em novembro do ano passado. 

É preciso colocar alguns pingos nos is. De fato, a greve foi um importante processo de mobilização que representou para uma nova geração de estudantes a retomada das experiências históricas de luta do movimento estudantil. Foi a primeira vez, em alguns anos, que a universidade em conjunto se levantou para construir piquetes, atos e assembleias para exigir contração de professores e melhores condições de permanência. Porém, essa versão da história que diz que a greve impôs uma amarga derrota à reitoria choca-se com a realidade. A maior evidência desse elemento é que Carlotti e toda sua podre camarilha burocrática estão mais do que confortáveis. Em seu trono de Reitor favorito de Tarcísio, Carlotti leva adiante suas políticas de elitização e embranquecimento da universidade, avançando na expulsão de estudantes trabalhadores da USP, em especial, aqueles que ingressaram através das cotas étnico-raciais após muita luta e resistência. 

Nem sequer as concessões arrancadas pela mobilização estudantil foram cumpridas: Dos 148 professores temporários prometidos para dezembro de 2023, somente 12 foram contratados, segundo a Folha de S. Paulo. Essa postura brutal, que diga-se de passagem, expulsou 11 estudantes do CEPE sem qualquer reação à altura por parte do movimento estudantil, nada condiz com a história de “burocracia universitária derrotada” ecoada pelos reformistas e estalinistas. A tranquilidade da reitoria em destilar seu ódio de classe é produto de uma covarde e traidora direção do DCE que, por se negar a convocar espaços de base para organizar a luta, acaba sendo cúmplice, na prática, dos ataques de Carlotti.

A polarização real 

As eleições foram marcadas pela polarização política entre dois campos, um deles composto pela chapa governista envergonhada “Fazer Valer a Luta” (Correnteza/UP e Juventudes do PSOL), o outro pela chapa lulista puro sangue “Reviravolta” (UJS/PCdoB, Juventudes do PT e LPJ). Sendo as duas maiores chapas inscritas, elas buscaram, durante todo o processo, reduzir o debate à uma falsa dicotomia entre si. Dizemos uma dicotomia farsesca porque para além de traições à frente das entidades estudantis, essas correntes, cada uma à sua medida, refletem uma política de submissão à conciliação de classes, uma caracterização que desenvolvemos em nossa declaração eleitoral [2] publicada em maio deste ano.

Isso não quer dizer que estes dois campos são iguais e nem que se utilizam dos mesmos métodos. Não faltaram denúncias contra o campo majoritário e seu modus operandi que chega ao nível de tentar fraudar urnas, práticas que ameaçam a democracia estudantil e reproduzem os métodos mais sujos da direita e da classe dominante. Entretanto, paira sobre o ar uma verdade. O fortalecimento do campo petista, que sofreu uma dura derrota nas eleições anteriores, não é nada mais que produto do fracasso da gestão “É tudo para ontem” frente aos vários desafios políticos, um desgaste que abriu margem para setores à direita ganharem espaço na universidade. 

A polarização, essa sim real, se estabeleceu entre o campo da conciliação de classes e o da oposição de esquerda independente. Entre a submissão aos governos da classe dominante e o classismo revolucionário. Essa disputa se expressou especialmente na FFLCH, onde os resultados da variante “vermelha” da conciliação, “Fazer Valer a Luta”, demonstraram um enfraquecimento da gestão em um setor importante da vanguarda. Nota-se também o fortalecimento dos setores da esquerda independente que, se aglutinados, superam em votos a chapa eleita. Na FFLCH, a Intifada se consolidou na oposição à gestão conciliadora, ocupando a segunda posição e sendo seguido de “Disputar o presente”, “Reviravolta”, “Acampamentos e Barricadas” e “Chapa Comunista”. É claro que não podemos levar os números como proporções exatas da realidade, porém este é um elemento que demonstra não só o rechaço à política de submissão da luta ao calendário eleitoral aplicado pela atual gestão, mas também uma importante reserva de mobilização na vanguarda. Como acúmulo do debate, se reforça a tarefa de unificar a oposição de esquerda frente a atual gestão burocrática e omissa e consolidar na Universidade de São Paulo, um polo de luta independente que mobilize a juventude para pôr abaixo o governo de Tarcísio e enfrentar os ataques do governo burguês de Lula e Alckmin. 

É nesse marco, que a decisão do Rebeldia/PSTU, força que compôs a chapa “Acampamentos e Barricadas”, representa um profundo equívoco tático. Uma posição que adia a construção de um campo real de oposição de esquerda e abre espaço para que setores reformistas e traidores, sobretudo o estalinismo, seguirem se fortalecendo na universidade. As divergências políticas seguem e seguirão existindo, inclusive as que temos com a Faísca, porém é inadiável construção de uma alternativa unificada e anticapitalista que dispute os estudantes para uma perspectiva de luta e independência de classe. É nesta perspectiva que seguiremos apostando e batalhando para além do calendário eleitoral.

Construir uma nova direção 

O resultado das eleições na FFLCH e as  recentes mobilizações contra o PL 1904 e a PEC 45, ao contrário no que aposta a direção do DCE, demonstram que há reserva de combatividade e mobilização não só na USP, mas no movimento como um todo. Neste cenário, se apontam algumas necessidades centrais. A primeira é construir uma resposta à altura frente aos graves ataques das reitorias e dos governos dos patrões cavando na USP uma trincheira independente de luta e organização para construir uma universidade para a juventude trabalhadora. Um projeto de universidade completamente oposto ao que hoje vivenciamos, em que a produção de conhecimento não esteja à serviço do fortalecimento do complexo científico-militar sionista que massacra o povo palestino através de convênios acadêmicos, mas sim da construção de alternativas para enfrentar as mudanças climáticas e seus profundos impactos aos países periféricos deste sistema. Uma universidade em que a juventude trabalhadora possa ingressar e desfrutar plenamente de seu direito à educação sem enfrentar qualquer tipo de filtro elitista e racista. 

Para dar conta deste projeto e mobilizar as bases estudantis, outra tarefa se coloca como indispensável na atual conjuntura: É necessário refundar o movimento estudantil sob as bandeiras da independência de classe e da unidade operário-estudantil. É preciso resgatar os métodos de luta e democracia estudantil que, em incontáveis momentos da história, fizeram tremer os governos da burguesia e conquistaram gigantescas vitórias para juventude e  todos os explorados e oprimidos. 

Para além de qualquer processo eleitoral, seguiremos dando a incansável batalha pela unidade da oposição de esquerda e pela superação do imobilismo que permeia as direções políticas do movimento estudantil. Neste momento, se coloca como fundamental a convocação ampla de uma assembleia geral de estudantes, a primeira do ano, para construir junto às bases um forte plano de lutas em unidade aos trabalhadores e docentes que imponha um freio ao avanço galopante da reitoria contra o direito à educação. Para além da luta unificada estadual pelo Fora Tarcísio, esse plano também poderia ser parte da construção de uma grande campanha nacional pelo aborto legal para derrotar em unidade pelas ruas o ultrarreacionário PL 1904, um gigantesco ataque às mulheres trabalhadoras e pessoas que gestam. 

Notas:

  1. Nota “Um recomeço cheio de desafios e possibilidades”: Balanço do Já Basta! da greve da USP em esquerdaweb.com/um-recomeco-cheio-de-desafios-e-possibilidades/

2. Nota “Refundar o movimento estudantil: A política do Já Basta! às eleições para o DCE Livre da USP” em esquerdaweb.com/refundar-o-movimento-estudantil-a-politica-do-ja-basta-as-eleicoes-para-o-dce-livre-da-usp/