Apresentamos a seguir uma resenha crítica sobre o filme “Barbie” que tem quebrado recordes nas bilheterias internacionais e nacionais, sendo a produção mais vista da empresa Warner de todos os tempos no Brasil.
Por Victor Artavia
“Barbie” (2023) é um filme americano dirigido por Greta Gerwig. Esse filme já se tornou um fenômeno cultural de massa, devido à sua engenhosa combinação de uma boneca icônica da cultura pop com alguns dos debates estabelecidos internacionalmente pelo movimento de mulheres. Essa peculiaridade explica seu sucesso, pois se conecta com um setor das novas gerações familiarizadas com o feminismo – em seu sentido mais amplo – e suas críticas ao patriarcado. Por outro lado, esse boom da Barbie não é isento de contradições, devido ao estereótipo de beleza hegemônica associado a essa boneca. Nesse sentido, para avaliar esse filme, é preciso ponderar seus aspectos progressistas e regressivos.
Em relação aos aspectos progressistas, não é um fato menor que uma produção dessa escala tenha como um de seus eixos uma crítica ao patriarcado e reivindique os direitos das mulheres. Vale destacar, por exemplo, a cena que compara as diferentes percepções vividas pelas personagens ao chegarem em Los Angeles. Para Barbie, a percepção era de assédio sexual, situação que as mulheres enfrentam diariamente. Ken, por outro lado, sentiu-se fortalecido por ser admirado e desejado por outras pessoas (com a vantagem de saber que não corre o risco de ser estuprado ou agredido fisicamente em nenhum momento de sua vida comum). Pensando em sociedades onde a cultura da hipersexualização das mulheres (“bajulação” com conteúdo sexual), que nada mais é do que uma forma de violência contra a mulher, é “naturalizada”, essa cena tem caráter educacional e inteligente para tratar desse assunto. Da mesma forma, a organização contra o estabelecimento do patriarcado em Barbieland é um reflexo da ação coletiva que tem caracterizado o movimento das mulheres nos últimos anos.
Outro aspecto positivo do filme são suas referências cinematográficas. Para começar, o prólogo inspirado em “Odisseia no Espaço”, de Kubrick, foi muito inteligente e deixou claro que o filme teria elementos interessantes. Além disso, a obra fez referências ao “O Show de Truman”, devido à construção de uma pequena sociedade controlada e à crise existencial que afetou Barbie a pensar em algo além de sua rotina diária. A paródia de Matrix foi muito engraçada, mas também inteligente, pois questionava o fato de que, de modo geral, a maioria das pessoas opta por evitar os problemas do mundo real para continuar com suas vidas pessoais. Por fim, um aspecto curioso foi a construção da personagem da Barbie como uma mulher em crise existencial que toma medidas para resolver seus problemas, comparável a uma personagem de Almodóvar.
Por outro lado, o filme não deixa de ter seus limites em termos de perspectiva política, principalmente porque reflete um feminismo liberal, branco e burguês. Para começar, em Barbieland e LA não há personagens em situação de pobreza, apenas profissionais bem-sucedidos com alto padrão de vida. Na verdade, a crise da Barbie gira em torno da possibilidade de ela morrer um dia, quando a maior parte da humanidade tem uma crise por causa do oposto, ou seja, por não ter ideia de como viver em um mundo de empregos precários, altos custos de vida (alimentação, serviços e aluguéis), falta de acesso à saúde e à educação, entre outras coisas que inevitavelmente têm um impacto em nossa saúde psicológica e emocional. No mundo da Barbie, nada disso se reflete e, ao contrário, é projetada uma típica vida suburbana americana, onde todos têm um emprego estável, um carro e casas espaçosas. Seu primeiro ato de cidadania no mundo real foi ir a um ginecologista de luxo. Em suma, é o mundo do “American Dream”.
Além disso, sua perspectiva feminista está enquadrada na lógica liberal de quebrar o “teto de vidro”. Sua ênfase está em contrastar uma Barbieland em que todas as posições de poder são ocupadas por mulheres com o que acontece em Los Angeles como exemplo do mundo real, que é totalmente dominado por homens em todos os níveis. Em outras palavras, sua crítica ao patriarcado consiste em denunciar a falta de representação feminina em cargos de decisão política e econômica, mas não questiona a existência de sociedades desiguais e estruturas de poder que dão origem à opressão das mulheres (assim como classe, racismo, xenofobia, entre outros). É um discurso cuja consequência lógica é glorificar figuras como Angela Merkel (ex-chanceler da Alemanha) ou Hillary Clinton (ex-candidata democrata e quase presidente dos EUA), representantes imperialistas que quebraram o “teto de vidro”, mas nunca defenderam uma agenda de emancipação social.
Nesse sentido, a abordagem do diretor, de Hollywood e da Mattel tem muito de “Pinkwashing”, típico do feminismo liberal. A Barbie é apresentada como uma boneca “desruptiva”, pois possibilitou que gerações de meninas crescessem brincando com bonecas profissionais e capacitadas (uma quebra simbólica do “teto de vidro”). Sem dúvida, o nível simbólico é muito importante, assim como a quebra da divisão sexual do trabalho na sociedade. Mas não se deve ignorar que a Barbie replica padrões de beleza hegemônicos e, portanto, causa sérios problemas de autoestima em relação a corpos reais, diversos em suas formas, tamanhos e tonalidades. Em suma, o filme é interessante, com trechos divertidos e alguns elementos progressistas. Mas também é necessário marcar os limites da visão feminista liberal, branca e burguesa que ele reproduz.