Com os 10 anos que nos distanciam de Junho de 2013, controvérsias sobre o significado, a profundidade e o alcance desse acontecimento histórico voltam à tona. Nesse debate, estamos em rota de colisão com a esquerda da ordem, particularmente o PT e seus satélites, que propagam que junho foi responsável por colocar o “ovo da serpente” do neofascismo no Brasil.

ANTONIO SOLER

Junho não foi raio em céu aberto

Exemplo dessa narrativa é o texto A jornada do abismo[1], de Olímpio Cruz Neto, publicado pela Fundação Perseu Abramo (PT) como parte dos debates sobre os 10 anos de Junho. Para o autor do texto, Junho parece ter sido um raio em céu aberto, pois o Brasil vivia uma “franca ascensão, com economia em alta, desemprego em baixa e muitas oportunidades para todos”.

Nos anos posteriores à crise econômica de 2008, os efeitos desta começam a se deslocar para a América Latina, o que leva à alta da inflação dos alimentos e à perda de capacidade do governo em ampliar investimentos sociais. Isso somado ao fato de que nenhuma reforma foi realizada pelo lulismo e os grandes problemas continuavam a afetar a vida das massas enquanto gastos bilionárias eram destinadas a obras preparatórias a eventos esportivos internacionais, o que faz com que setores da classe trabalhadora comecem a dar sinais de cansaço já nos anos de 2011 e 2012.[2]

Para pré-condenar Junho como responsável pelo aparecimento, crescimento e ascensão do neofascismo, Neto distorce totalmente o evento, sua dinâmica e significado afirmando que “o ano de 2013 também foi o ano que catalisou o extremismo nacionalista ultraconservador, calcado em princípios morais da família tradicional e das crenças cristãs”. Ao contrário disso, Junho foi uma onda de mobilizações que teve vários feixes motivadores, permitindo que uma acumulação de descontentamentos dos trabalhadores e de todos os oprimidos que, diante da repressão policial e a heroica resistência da juventude em São Paulo em 13 de Junho, foram o estopim de uma onda gigante de protestos.[3] 

A despeito da dura repressão, a onda de indignação não se deteve e seguiu contra a Copa das Confederações durante a segunda quinzena de junho. O ano de 2014 iniciou com a greve histórica dos garis no Rio de Janeiro, que foi seguida de importantes lutas de outras categorias em vários Estados. Nada de botar, chocar ou eclodir o ovo da serpente pode ser atribuído às energias combativas liberadas por Junho de 2013. O que, sim, contribuiu para o fortalecimento da extrema direita foi o papel que o sistema político como um todo, com destaque para as capitulações de Dilma, Lula e PT, cumpriu nesse processo.[4]

A conciliação de classes e o ovo da serpente

Depois de tentar cooptar o movimento com a proposta de plebiscito para uma “constituição política” no final do mês de junho, Dilma constrói um pacto com governos Estaduais, Judiciário, Congresso e burguesia para reprimir as manifestações contra a Copa das Confederações, criminalizar as greves, cooptar do a  direção do movimento de moradias (MTST) e montar uma megaoperação militar-policial na abertura da Copa que criou um verdadeiro Estado de Sítio que foi fundamental para derrotar a longa onda de protestos iniciada no ano anterior.

Em outubro de 2014, Dilma com uma margem mínima de votos foi reeleita com o argumento de que não iria aplicar políticas neoliberais, mas logo depois cometeu um enorme estelionato eleitoral tirando direitos e cortando investimentos sociais. Quando veio o impeachment, que contou com mobilizações de massas que chegaram a mobilizar milhões de pessoas e com uma aliança reacionária capitaneada pelo vice-presidente Michel Temer, Dilma, Lula e o PT não fizeram nenhum gesto para recuperar a confiança dos trabalhadores. Pelo contrário, apostaram na conciliação com a burguesia até o final. O resto da história todos conhecem: Dilma é impichada em 2016; Temer aprova a reforma Trabalhista e o Teto dos Gastos em 2017; tivemos a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro em 2018.

Quem afinal botou o “ovo da serpente” do neofascismo? Houve uma ofensiva reacionária da burguesia com apoio do imperialismo para depor Dilma porque na avaliação deles o seu governo não seria capaz de ir até o final na aplicação das contrarreformas.  Mas a questão é que para não romper com a burguesia, Dilma, Lula e direções burocráticas, ao invés de se apoiar nos processos de luta e apresentar políticas voltadas aos interesses dos trabalhadores, como bons governantes de conciliação, apostaram até o final no pacto com a burguesia.

Assim, para não romper definitivamente com a classe dominante, porque queriam voltar ao governo para governar as mesmas instituições que os expulsaram, passivamente aceitaram a ofensiva reacionária, o que contribuiu decisivamente para deixar o caminho livre para a eleição de Bolsonaro. Responsabilizar unicamente o lulismo pelo ovo da serpente seria uma estúpida unilateralidade que desarma para a luta contra a burguesia e a extrema direita, porém tirar da equação a responsabilidade que a política de conciliação de classes destes dirigentes teve em todo esse processo, como fazem muitas correntes, também é uma unilateralidade que, simetricamente, desarma para o enfrentamento aos ataques vindos do atual governo.[5]

Novos Junhos plenos virão

Estamos em um cenário de derrota eleitoral do neofascismo que mudou apenas parcialmente a desfavorável correlação de forças que vivemos nos últimos anos. E no seu lugar temos novamente um governo de conciliação de classes com intenções normalizadoras do mesmo regime político burguês que já acumula ao menos duas contrarreformas. À frente desse governo segue a mesma corrente política que não apenas rivalizou, reprimiu e contribui para derrotar Junho para manter o seu bloco com a classe dominante, mas que continua a se colocar contra qualquer ação política de massas que venha de baixo ou que não esteja submetida à sua estreita linha de conciliação de classes. Assim, sabemos de que lado ficará Lula e o PT diante de qualquer processo de mobilização que ameace a estabilidade do governo de conciliação ou do regime político que vai continuar a não dar conta das necessidades das massas.

Ao contrário de Lula e seus seguidores, defendemos Junho. Esse evento recoloca sobre a mesa duas grandes lições históricas: a potência que tem o movimento de massas, a juventude e os trabalhadores quando se organizam e lutam, e a necessidade imperativa de superar a conciliação de classes. O que não pode deixar de nos inspirar para realizar o combate pelas ruas para derrotar definitivamente o neofascismo, por um lado, e os ataques das contrarreformas de Lula, por outro.

Estamos em um momento em que existe ainda muita ilusão nesse governo, o que coloca a necessidade de combinar táticas de exigência e denúncia ao governo e à burocracia a partir da mobilização direta; unidade de ação para enfrentar os ataques de Lula e o neofascismo; frentes para lutar pela base; e frentes políticas para superar a falência política do PSOL. A partir daí, lutamos por Novos Junhos que contem com a participação organizada da classe trabalhadora, da juventude e dos oprimidos e com direções revolucionárias à altura das necessidades políticas e organização do movimento.

[1] Veja em https://fpabramo.org.br/focusbrasil/2023/06/09/a-jornada-do-abismo/

[2] Veja uma análise mais detalhada em http://www.socialismo-o-barbarie.org/wp-content/uploads/2015/11/O-colapso-do-lulismo-vers%C3%A3o-e-book.pdf

[3] Sobre o papel da crise urbana para a eclosão de Junho de 2013, veja o livro de Roberto Andrés, A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013. Zahar. 2023.

[4] Veja o texto de Marcos Nobre, Como junho levou a culpa pelos desastres do país  em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/06/como-junho-de-2013-levou-culpa-pelos-desastres-do-pais.shtml. Apesar de certo politicismo, o autor faz importantes apontamentos sobre o caráter dessa onda de protestos.

[5] Veja um exemplo dessa operação, que invariavelmente tenta camuflar o papel traidor da burocracia lulista, na elaboração da Resistência (corrente do PSOL) em https://esquerdaonline.com.br/2023/06/14/junho-dez-anos-depois/