Gostaríamos de nos dedicar aqui a um dos pontos mais heróicos da tradição que reivindicamos: a experiência da Oposição de Esquerda na URSS. Uma experiência praticamente desconhecida entre as novas gerações, a qual representa uma luta para não perder a memória histórica dos revolucionários. Uma luta que tem o valor agregado de enfrentar tanto o pós-modernismo atual, quanto as correntes de esquerda dedicadas à formação das novas gerações nas artes mais baixas do oportunismo.
Por Roberto Sáenz
24 abril, 2014
“Sim, devido à nossa concepção da revolução socialista, passamos por experiências tremendas e aterradoras. Mas nem a taiga, nem a tundra, nem a nossa vida difícil quebrou com o seu hálito gelado a nossa vontade de lutar até ao fim” (Samizdat, Vozes anônimas da oposição soviética).
O conceito de tradição partidária
Estabeleçamos primeiro o conceito de tradição. Refere-se à ligação da nossa atividade com a das gerações anteriores. Nós, correntes revolucionárias, reivindicamos as mais altas experiências de luta, batalhas, sacrifícios, desenvolvimentos políticos e organizacionais da classe trabalhadora nos seus dois séculos de história. Desde as primeiras lutas dos Ludistas (1815) e dos Cartistas (1830) na Inglaterra, passando pelas experiências de lutas da classe trabalhadora semi-independente nas revoluções de 1830 e 1848, a experiência heróica da Comuna de Paris (1871), a fundação da Primeira Internacional (1864), os Mártires de Chicago (1886), o Dia da Mulher Trabalhadora, os primeiros anos da Segunda Internacional, até à Revolução Russa (1917) e a Terceira Internacional na sua época revolucionária (1919-1923).
Tudo isto está na nossa tradição, assim como a luta heróica da Oposição de Esquerda, a fundação da Quarta Internacional por Trotsky (1938), a luta de Rosa Luxemburgo e Karl Liebeneck durante a Revolução Alemã, assim como o seu trágico assassinato pelos capangas da socialdemocracia em Janeiro de 1919. A isto pode acrescentar-se a longa lista de militantes trotskistas assassinados sob o nazismo e o stalinismo durante a Segunda Guerra Mundial.
Em suma: quando falamos da tradição dos revolucionários, trata-se dos fios de continuidade entre as experiências, ensinamentos e lutas das gerações anteriores, que reivindicamos como parte de uma causa comum, e que faz com que a amplitude de visão nunca devamos perder na nossa atividade.
As prisões como o último reduto da democracia proletária
Dentro da tradição que reivindicamos, interessa nos referirmos a um momento de imensa importância: a heroica batalha que a Oposição de Esquerda travou contra a burocratização do primeiro Estado Operário da história.
Podemos estabelecer algumas de suas etapas. A batalha começou com a “Declaração dos 46” (1923), um documento assinado por destacadas figuras do Partido Bolchevique, que alertava para a acumulação de graves problemas no campo da democracia partidária, bem como para o curso geral do país. Em seguida, as primeiras campanhas contra Leon Trotsky e o “Trotskismo” foram conduzidas pela “Troika” formada por Stalin, Kamenev e Zinoviev, um trio que lançou um ataque brutal denunciando o alegado carácter “anti-leninista” da teoria da Revolução Permanente, campanha contra a qual Trotsky respondeu imediatamente com obras como as Lições de Outubro (1924).
Entre 1926 e 1927 teve lugar a experiência da “Oposição Unificada”, após a ruptura de Zinoviev e Kamenev com Stalin e sua unificação com Trotsky. Stalin aliou-se então a Bukharin, rompendo com ele por ocasião de sua guinada “esquerdista” em 1929; Bukharin formaria então a chamada Oposição de Direita. Quando esta oposição unificada foi expulsa do partido no final de 1927 (no meio de um congresso do partido), Zinoviev e Kamenev capitularam imediatamente e a Oposição de Esquerda adquiriu sua fisionomia definitiva.
No início de 1929, Trotsky foi definitivamente expulso da URSS. Mas, em meados desse ano, ocorreu o grande ponto de virada na vida dos bolcheviques-leninistas. Numa guinada aparentemente “à esquerda” de Stalin para a industrialização acelerada do país e a coletivização forçada da produção agrária, foi desencadeada a crise mais dramática da história da Oposição de Esquerda.
Uma fração liderada por Preobrajensky, Smilga e Radek (eminentes líderes da Oposição de Esquerda, juntamente com Trotsky) apelou à capitulação com o argumento de que com esta mudança significava Stalin tinha passado à “implementação do programa da Oposição de Esquerda” …
Em meio a esta crise, a Oposição de Esquerda entrou em colapso numericamente: de 8000 membros caiu para 1000, em meio a uma grande desmoralização. Se tratou de uma verdadeira crise existencial que pôs em dúvida sua razão de ser uma tendência revolucionária; voltaremos a este debate mais adiante.
Entretanto, nota-se que após este momento de crise aguda, os bolcheviques-leninistas recuperaram as suas fileiras para 4000 militantes no início dos anos 1930 e o núcleo revolucionário dos bolcheviques manter-se-ia firme durante toda a década até à sua destruição física final.
Para se ter uma ideia de onde a Oposição de Esquerda recrutava no início da década de 1930, destacamos que tratava-se de uma “organização de vanguarda” alimentada principalmente no exílio dentro da própria URSS. Uma organização que operava no subsolo, com pouca ou nenhuma atividade “pública”, mas que animava verdadeiras “universidades populares” de debate e discussão sob as duras condições de detenção: a expressão última da “democracia operária” sob a burocratização da URSS!
A Oposição de Esquerda não era o único núcleo oposicionista de esquerda, mas era o mais bem organizado e politicamente mais coerente de todas as tendências à esquerda de Stalin. Outras correntes animavam este “espaço” como os Decistas (um antigo grupo fundado em 1919), bem como um amplo “arco-íris” de tons e grupos de esquerda (e ultraesquerdistas).
As prisões foram também povoadas por membros da Oposição Bukharinista de direita, restos do Menshevismo, os socialistas revolucionários e outros grupos reformistas que tinham militado nas trincheiras contra a Revolução de Outubro e apoiado o governo provisório de Kerensky.
A Crítica do Objetivismo
“O marxismo positivista da Segunda e Terceira Internacionais, que considerava o socialismo como uma batalha ganha antecipadamente, inelutavelmente inscrita no ‘progresso da história’ e cientificamente assegurada pela força das suas ‘leis’, foi radicalmente refutada no século XX” (“A Memória de Auschwitz e do Comunismo”. O ‘uso público’ da história”. Enzo Traverso)
Passemos agora aos argumentos do debate no seio da Oposição de Esquerda em 1929. Este remete a um assunto que já abordamos noutras ocasiões: a relação entre “o que” das tarefas a realizar para a revolução e o socialismo, o “quem” do sujeito que as realiza e o “como” (isto é, os métodos) com que são aplicadas.
Do exílio em Alma Ata, Trotsky salienta que não se tratava apenas de saber que medidas Stalin tomava, mas como as realizaria e quem as executaria: se é o aparelho burocrático, ou se é a classe trabalhadora e o partido sob um regime de democracia operária restabelecido. Christian Rakovsky, o principal líder da Oposição de Esquerda no interior do país, vai ainda mais longe, salientando que não se tratava de uma guinada à esquerda, mas de um conjunto de medidas que, na ausência da classe trabalhadora (da democracia dentro do partido), viriam reforçar a base de apoio da burocracia.
O debate foi realizado contra as posições de capitulação de Preobrajensky. Este, apoiado em uma leitura objetivista dos acontecimentos, pensou ter visto em Stalin a “confirmação” das suas teses econômicas. A suposta “lei do plano” por ele identificada em 1926 teria a sua própria “lógica objetiva”: uma lógica independente de quem dirigia o planejamento como tal; a classe ou a burocracia, não fazia diferença. Esta chamada “lei económica” teria “forçado” Stalin a fazer a guinada à esquerda. Uma guinada que, ao coletivizar o campo e dar lugar à industrialização do país, deveria resultar num “fortalecimento” das posições do proletariado: “(…) a teoria segundo a qual a industrialização e a coletivização teriam a consequência – automática – de reforçar o “núcleo proletário” do partido, comprometendo definitivamente este último, mais cedo do que mais tarde, no caminho da reforma” (Broué) [1].
Como já observamos, Rakovsky colocou-se no campo oposto a Preobrajensky. Fê-lo com uma abordagem alternativa ao economismo que caracterizava o setor que capitulou. Rejeitou Preobrajensky por ter perdido de vista o facto de Marx ter criticado abordagens que viam a história como “fazer-se a si mesmo”; uma história com um H maiúsculo que realizaria os seus desígnios inelutavelmente fora das lutas sociais e políticas vivas. Rakovsky insistiu que na ausência do restabelecimento da democracia partidária, as medidas que Stalin estava tomando não podiam significar o regresso da URSS ao caminho revolucionário: “A única forma justa de abordar o problema é do ponto de vista político: não se trata de fazer uma filosofia da história (…) Lênin já tinha salientado que para fazer uma avaliação global era necessário ter uma atitude política, porque a política não é outra coisa senão a economia e o Estado concentrados” [2].
Uma nova geração assume
Após este debate, a Oposição de Esquerda consolidou-se; nunca mais teve uma “crise existencial” desta magnitude. Fora da URSS, o trabalho de Trotsky foi dando frutos e a Quarta Internacional foi sendo posta de pé, tendo sido fundada em 1938; a continuidade do marxismo revolucionário havia sido garantida.
Mas a situação concreta da oposição na URSS deteriorou-se cada vez mais. O cerco de Stalin aos “Trotskistas” tornou-se cada vez mais apertado, encurralando os seus principais líderes um por um. A ascensão de Hitler na Alemanha marcou a guinada final para a capitulação de Rakovsky e de outros famosos oposicionistas como o publicista Sosnovsky. Trotsky disse: “Stalin caçou Rakovsky com a ajuda de Hitler”. E assim o fez. Após a sua heróica resistência em saúde fragilizada (banido para lugares com 50 graus abaixo de zero), após uma tentativa falhada de fuga e no meio do isolamento mais completo, acabou por capitular com o argumento de que a ascensão de Hitler colocava um terreno completamente novo “pondo de lado desacordos anteriores”…
Contudo, nos campos de detenção tinha nascido uma nova geração de oposicionistas de esquerda; uma nova geração de trabalhadores e estudantes que, através de greves de fome e de todo o tipo de métodos heróicos de resistência, enfrentaram a burocracia assassina. Nomes como Fyodor N. Dingeltedt, Solntsev, Boris Eltsin, Pevzner, Man Nevelson, Sermuks, Pankratov, Iakovin, Mussia Magid, Maria M. Joffé, os irmãos Tsintsadze e muitos outros estavam entre os que faziam parte desta nova geração.
O avançado grau de burocratização da URSS na década de 1930 trouxe todo o tipo de discussões: sobre o carácter da URSS, a sua defesa incondicional, os problemas da democracia socialista, os problemas do partido. Serge refletiu sobre a sua chegada ao Ocidente após ser libertado em 1936 das garras de Stalin: “Somos muito poucos neste momento: algumas centenas, cerca de quinhentos (…) Entre nós, não existe uma grande unidade de pontos de vista. Eeltsin disse: “É a GPU que fomenta a nossa unidade”. Duas tendências principais dividem-nos, mais ou menos a meio: aqueles que acreditam que tudo deve ser revisto, que foram cometidos erros desde o início da Revolução de Outubro; e aqueles que consideram o bolchevismo como inatacável desde o seu início. Os primeiros estão inclinados a considerar que, em questões de organização, você tinha razão juntamente com Rosa Luxemburgo, em alguns casos em relação a Lenin noutra altura. Neste sentido existe um trotskismo cujas raízes remontam a um longo caminho (…) Também estamos divididos a meio sobre os problemas da democracia soviética e da ditadura (fomos os primeiros a apoiar a mais ampla democracia partidária no quadro da ditadura; a minha impressão é que esta é a tendência mais forte). Nas “prisões de isolamento” e noutros locais, podem agora ser encontrados, acima de tudo, os oposicionistas trotskistas de 1930-33. Resta apenas uma autoridade: a sua [Trotsky]. Vós possuis aí uma situação moral incomparável, de absoluta devoção” (Victor Serge citado por Pierre Broué em Os Trotskistas na União Soviética).
Era inevitável que tudo estivesse em discussão dado o isolamento e as tremendas condições de detenção em que estes militantes se encontravam; ainda por cima face ao fenômeno original da burocratização da maior revolução da história da humanidade.
Nas prisões era obviamente possível ser muito agudo quanto ao grau a que a degeneração da Revolução de Outubro tinha atingido. Mas havia também a dificuldade de comparar este processo degenerativo com o processo mais global e internacional da luta de classes que tinha lugar com a ascensão do nazismo. Esta foi a síntese que Trotsky tentou fazer a partir do seu exílio em obras imensas como A Revolução Traída, onde procurou analisar o fenômeno da burocratização sem perder de vista o ângulo da defesa incondicional da URSS.
Uma das páginas mais gloriosas da luta revolucionária
A Oposição de Esquerda efervescia em discussões; isto continuou até que praticamente todos os bolcheviques leninistas fossem mortos: “solução final” como qualifica agudamente Broué [3], que foi levada a cabo em correspondência com os últimos julgamentos de Moscou (durante as Grandes Purgas de 1936-1938, 8 milhões de pessoas foram presas e cerca de 700.000 foram assassinadas; a nata da geração revolucionária e mais além). A partir daí, já não havia literalmente mais militantes da Oposição de Esquerda na URSS: “a greve de fome iniciada em 27 de Outubro de 1936 durou 132 dias. Todos os meios foram utilizados para a quebrar: alimentação forçada e suspensão do aquecimento em temperaturas de 50 graus abaixo de zero. Os grevistas resistiram. De repente, no início de 1937, as autoridades prisionais cederam a uma ordem de Moscou: todas as exigências foram satisfeitas e os grevistas foram gradualmente alimentados sob supervisão médica. Após alguns meses de tréguas, a repressão recomeçou (…) [Mas após um período de ‘calma’] numa manhã de Março de 1938, trinta e cinco homens e mulheres, bolcheviques leninistas, foram levados para a tundra, alinhados ao longo de covas preparadas e metralhados (…) Dia após dia, as execuções continuaram da mesma maneira durante dois meses. O homem que foi encarregado por Stalin da ‘solução final’ dos problemas da Oposição de Esquerda chamava-se Kachketin” (Broué, idem).
A luta da Oposição de Esquerda foi assim inscrita entre as páginas mais gloriosas e, ao mesmo tempo, as mais trágicas do socialismo revolucionário. É dever das novas gerações conhecer esta história heróica, bem como tomar nota de que este capítulo constitui uma das mais importantes da nossa tradição como corrente; uma tradição que vem do patrimônio histórico comum do movimento trotskista do qual fazemos parte e que, além disso, como vimos, deixou e não pôde deixar, lições políticas e metodológicas em matéria da nossa abordagem ao marxismo: “Kachketin, de pé sobre uma rocha, dava sinal para os carrascos. Tudo foi abafado, desalentado, os cânticos, os espíritos, as vidas. Páginas de histórias inacabadas foram pisoteadas. Quanto poderiam ainda dar à revolução, ao povo, à vida? Mas elas tinham desaparecido. Definitivamente e sem retorno possível” (M.M. Joffe, A Long Night, citado por Broué, idem).
Cabe às novas gerações retomar este legado; assegurar que estas vidas não tenham caído em vão, relançando a luta pela revolução socialista neste novo século.
[1] Para mais informações sobre este debate veja o texto de Roberto Sáenz: “Democracia obrera, plan y mercado”. A dialéctica da transição socialista”. Em www.socialismo-o-barbarie.org.
[2] “Uma homenagem crítica a um grande revolucionário”. As ‘Astrakan Letters’ de Christian Rakovsky”. Luis Paredes, em www.socialismo-o-barbarie.org.
[3] Broué não incorpora ingenuamente esta categoria; pelo contrário, está diretamente ligada à “solução final” do problema judeu implementado por Hitler a partir do início de 1942, que consistiu na sua aniquilação sistemática.