Nas últimas semanas abundaram imagens muito fortes sobre a condição de desnutrição nas comunidades dos yanomami, que, de acordo com os especialistas em saúde pública, estão entre as mais graves do mundo. Embora não seja uma surpresa as condições históricas de abandono dos povos indígenas no pais, a atual crise que abrange os Yanomanis alcançou um novo patamar de brutalidade que, segundo a normativa internacional sobre direitos humanos, pode até ser qualificado de genocídio. 

VICTOR ARTAVIA

Uma catástrofe humanitária e cultural

De acordo com dados publicados pelo Ministério de Saúde, das 4332 crianças yanomami avaliadas recentemente, aproximadamente 1556 apresentaram déficit de peso, o qual equivale a um terço dessa população. Mais especificamente, 50% têm déficit com relação à sua idade e 80% com relação à sua altura. Além disso, atualmente há 700 indígenas internados nos hospitais de Boa Vista. Em palavras de Paulo Cesar Basta, médico especialista em Saúde Pública, o “estado nutricional das crianças yanomami é realmente muito pobre, comparável apenas aos dados relativos às crianças em algumas regiões da África subsaariana”.

Esta catástrofe humanitária se incrementou durante os anos que Bolsonaro esteve na presidência e, a partir do controle do aparato estatal, garantiu a impunidade dos garimpeiros e desativou as redes institucionais para atender os povos indígenas. Por exemplo, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) praticamente foi anulada pelo anterior governo, uma política que se traduziu no aumento da violência e morte contra indígenas, assim como na perseguição dos ativistas defensores de seus direitos. Estima-se que, entre 2019 e 2022, morreram 570 crianças yanomanis de até cinco anos por doenças curáveis, como desnutrição, malária e diarreia (29% mais que no período 2015-2018); além de se produzir malformações provocadas pelo lançamento de mercúrio aos rios pela mineração ilegal. 

Também, explodiu a invasão das terras indígenas e, de acordo com as lideranças yanomami, na atualidade há entre 20 e 30 mil garimpeiros em seus territórios (estima-se em 30 mil a população yanomami). Isso exerce uma forte pressão sobre os ecossistemas amazônicos pela contaminação e exploração dos recursos naturais na região, tornando a caça e a pesca mais difíceis, além de reduzir a produtividade dos solos para a agricultura. 

Por outro lado, os garimpeiros propagam doenças comuns entre os povos indígenas que, devido ao estado de desnutrição e pela falta de atenção sanitária apropriada, podem causar a morte de muitas pessoas. Isso acontece com a malária, cuja penetração nos territórios indígenas apresenta uma relação simétrica com a presença dos garimpeiros: em 2003, quando havia pouco garimpo, houve 246 registros dessa doença nos territórios yanomamis; em 2021, em pleno auge das invasões garimpeiras, as cifras ascenderam em até 21.883 casos.  

As consequências disso não se limitam à fome; ademais, provocam uma ruptura nos padrões de socialização dos povos yanomami, porque têm que dedicar mais tempo para conseguir comida em detrimento de suas tradições culturais e comunitárias. Ou seja, a fome provoca desnutrição e morte física, mas também coloca em perigo a continuidade do “tecido sociocultural” yanomami e, por conseguinte, de sua cosmovisão e cultura. 

Esse perigo não é novo para os yanomami. É preciso lembrar que, nos anos oitenta e noventa do século XX, sofreram os embates de 40 mil garimpeiros em seus territórios por uma primeira corrida do ouro, cujo saldo foi a morte de quase 40% dos integrantes desse grupo indígena. Devido a isso, 76% da população yanomami têm menos de 30 anos, um desequilíbrio demográfico que enfraqueceu a “cadeia de ancestralidade” pela baixa da população velha, um elemento central para garantir a passagem dos fundamentos culturais entre as gerações. 

Nesse sentido, a crise que atinge os yanomami vai além da fome e morte imediatas; inclui o perigo de morte de uma cultura ancestral milenar às custas do lucro das indústrias extrativistas ligadas a setores do capital nacional e ao mercado mundial capitalista. 

Uma guerra pelo território e contra a natureza 

A Amazônia cobre uma área de 5 milhões de Km² e abriga a maior bacia hidrográfica do mundo (20% da água potável) e a metade da biodiversidade do planeta. Além disso, lá mora 55,9% da população indígena do país; são 180 povos que cumprem uma função central na preservação e estimulação das florestas há mais de 10 mil anos. De acordo com estudos realizados por “Global Safety Net”, nos territórios indígenas encontram-se quase 50% das florestas não degradadas da bacia amazônica, as quais cumprem um papel fundamental na luta contra o câmbio climático. 

Então, há uma relação direta entre a demarcação e proteção dos territórios indígenas com a preservação do meio ambiente. Mas, também, há uma enorme pressão pela exploração extrativista dos recursos da Amazônia por parte do agronegócio e da mineração ilegal, dois setores incentivados pela alta demanda das commodities no mercado mundial

Em consequência, é compressível que, desde antes de ser eleito presidente, Bolsonaro deixara claro que não iria demarcar mais territórios indígenas e, através de um discurso em chave “nacionalista”, colocou-se como defensor da “soberania” do Brasil para explorar a floresta da Amazônia. Assim, colocou os cimentos do que aconteceu durante seu governo e persiste até hoje: uma guerra pelos territórios indígenas, cujas “tropas” são dezenas de milhares de garimpeiros apoiados por enormes forças do capital e com a cumplicidade do Estado burguês brasileiro.

Somente em 2020 foram reportados 1.576 conflitos por terra, nos quais umas 81 mil famílias tiveram suas terras invadidas, e um 71,8% dessas correspondeu a indígenas. Também, entre 2010 e 2020, a mineração ilegal cresceu 495% nas terras indígenas demarcadas. Os garimpeiros também impulsionam o desmatamento, que aumentou 309% entre outubro de 2018 e dezembro de 2022.

Diante disso, o governo Bolsonaro foi cúmplice, pois não realizou nenhuma ação para expulsar os garimpeiros ilegais; de fato, descumpriu decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) para proteger os territórios yanomami; mesmo o ex vice-presidente, Hamilton Mourão, declarou que era muito complexo tirar os “3500” garimpeiros, demonstrando sua conivência com os criminosos (até pelo fato de reduzir os números reais dos invasores!).  

Assim, as tropas de garimpeiros invasores ficaram com total impunidade para cometer seus ataques contra os yanomami e destruição da natureza durante os últimos anos, tarefas que puderam desenvolver com facilidade, pois sempre tiveram acesso ao mercado formal de armas e a aviação civil, cumplicidade de setores do exército e um apoio tácito do governo e autoridades locais ligadas ao bolsonarismo.  

Punição para Bolsonaro e para todos os responsáveis pelo genocídio yanomami!

De acordo com a “Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio” em seu artigo II, este consiste nos atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, entre os quais enumera o “assassinato de membros do grupo; “dano grave à integridade física ou mental”; “sujeição intencional (…) a condições de vida pensadas para provocar sua destruição física total ou parcial”; “medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo”; “transferência à força de crianças do grupo para outro grupo”.

Embora o Congresso tenha aprovado esta convenção desde 1951, é um fato irrefutável que, o Estado brasileiro, se caracteriza por um acionar opressor contra os povos indígenas em seu território, e, em muitas ocasiões, essa foi a base que desencadeou formas de violência extrema contra os integrantes desses grupos étnicos. Por exemplo, durante a primeira corrida do ouro, teve lugar o massacre de “Haximu” em agosto de 1993, quando um grupo de 23 garimpeiros assassinaram 12 yanomami e feriram outros quatro, além de queimar as malocas (habitações dos indígenas) e as plantações da comunidade. Este massacre provocou a primeira e única condenação por genocídio no Brasil.  

Sem dúvida, a violência contra os indígenas incrementou-se durante o governo de Bolsonaro devido a sua defesa sem peias do agronegócio e o direito de explorar os recursos naturais da floresta amazônica de forma predatória. Por isso, o aumento do desmatamento e o garimpo, assim como os ataques contra os povos indígenas e a natureza, são consequência direta da gestão governamental do bolsonarismo, da ultradireita e de amplos setores da burguesia.  

Mas, também, não se pode esquecer que, em outros governos capitalistas “normais”, os povos indígenas e as florestas foram alvo dos interesses capitalistas e das autoridades. Um caso foi a implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte pelos governos de Lula e Dilma, uma estrutura que arrasou com territórios de importância arqueológica. 

Então, diante da atual crise humanitária dos yanomami e a histórica opressão do Estado brasileiro contra os povos indígenas, é preciso um programa que, além de atender a emergência de forma imediata, também tenha por objetivo preparar as condições para a autodefesa das comunidades indígenas ante o perigo permanente do garimpo, o agronegócio e do Estado. 

  • Prisão e punição para Bolsonaro, os militares e garimpeiros responsáveis pelo genocídio dos yanomami! A primeira medida efetiva contra o genocídio é colocar na cadeia aos criminosos responsáveis pelo genocídio, principalmente os que empresariam o negócio e atravessam a extração  de ouro.
  • Expulsão imediata dos invasores e relançamento das demarcações dos territórios indígenas. Além de proteger a vida dos povos indígenas, as demarcações são uma forma de garantir a preservação da floresta amazônica diante do avanço do agronegócio e da mineração. 
  • Implementação de um programa de saúde pública emergencial nos territórios indígenas, para combater a desnutrição e outras doenças derivadas das invasões garimpeiras. 
  • Direito à autodefesa indígena diante das forças de agressão. Os garimpeiros são “tropas” invasoras a serviço de grupos capitalistas e protegidos pelo bolsonarismo (seja no governo federal ou estaduais). Por outro lado, não se pode ter confiança alguma nas forças armadas e no Estado burguês brasileiro –inclusive com Lula no governo-, pois são responsáveis ou cúmplices históricos da exploração e opressão dos povos indígenas. Por isso, defendemos o direito à autodefesa indígena –inclusive armada- diante as “tropas” garimpeiras e de forma independente do exército ou da polícia. 
  • Campanha de solidariedade das organizações sindicais e dos movimentos sociais. É preciso articular a maior unidade entre a classe operária, trabalhadores rurais, movimento de mulheres e negros, estudantes, etc., com os yanomamis e os povos indígenas. A solidariedade entre os explorados e oprimidos é uma tarefa permanente na luta contra a violência do capital e dos setores reacionários.

  • Pela refundação social e política do Brasil sobre novas bases sociais anticapitalistas. O genocídio contra os yanomami não é um acidente histórico; pelo contrário, comprova o caráter racista e explorador a partir do qual fundou-se o Estado burguês brasileiro, acrescentado recentemente pelo fortalecimento do neofascismo bolsonarista. Não existe capitalismo sem racismo e exploração da população trabalhadora. Diante disso, o conjunto dos setores explorados e oprimidos –classe operária, indígenas, trabalhadores rurais, mulheres, negros, LGBTI, estudantes e etc.- temos que lutar por refundar o país por meio de um movimento de massas que imponha uma Assembleia Constituinte pela base, democrática e soberana e em um sentido anticapitalista.

 

Fontes consultadas: