Martin Camacho, com colaboração de Renato Assad
A barbárie ultrapassou algum limite porque a notícia do assassinato de Moïse Kabamgabe, de 24 anos, transcendeu o lugar dos acontecimentos. Na maioria dos casos, estes atos de desmedida violência ficam na impunidade absoluta e se somam ao quadro social desastroso cada vez mais naturalizado. Novamente, a cidade de Rio de Janeiro é vitrine de uns dos casos mais sanguinários que se tem registro pela motivação e o modus operandi dos criminosos.
O ocorrido com Moïse, como com muitos imigrantes trabalhadores que emigram ao Brasil e sofrem dupla ou tripla exploração, não é um caso diferente. Sua reivindicação pelo salário teve como “resposta” para uma morte a pauladas. Uma atitude criminosa, mas que reflete o quão violenta é a sociedade brasileira na atualidade. O assassinato de mais um corpo preto aconteceu em uma zona nobre da cidade, na Barra da Tijuca. E nem mesmo a cena de violência, que posteriormente deixou o corpo ali escanteado, foi capaz de interromper as atividades comerciais daquele quiosque. A barbárie se apresenta de forma amena quando não é um de “nós”.
Moïse nasceu na nova República Democrática do Congo, país que presenciou uma das guerras mais sangrentas do continente africano. Ele escolheu o Brasil como um país para trabalhar, mas que também está em uma guerra cotidiana contra pobres, negros e trabalhadores. De qualquer forma, qualquer país do mundo é melhor do que um pais imerso em uma guerra fraticida e, em última instância, o imigrante tem poucas escolhas em relação a sua migração.
Umas das consequências do capitalismo nas suas periferias, principalmente em países africanos – os mais barbarizados pela colonização branca e os últimos a se libertarem de seus algozes -, é a forçada migração de milhares de pessoas todos os dias pela guerra, perseguição política, fome ou desastres climáticos. O Brasil como destino de milhares de imigrantes trabalhadores e refugiados faz, também, parte significativa deste processo, demostrando a perversa realidade de que para estes corpos não há lugar onde se “esconder”, uma condenação intrínseca à condição de classe e raça – independente das coordenadas geográficas.
O corpo, que estava com as mãos e pés amarrados – qualquer semelhança com o período escravagista não é mera coincidência -, foi encontrado já sem vida. Especula-se que o dono do quiosque onde trabalhava Moïse seja membro da milicia, versão que, sabendo do histórico da cidade e da ampla impunidade que reina diante de crimes contra o povo preto e favelado, não descartamos que seja verdade. O que fica evidente é que a investigação levanta uma série de suspeitas e se mostra extremamente insuficiente, como de costume.
O que não podemos permitir é que a impunidade se faça como desfecho, mais uma vez. A punição aos criminosos é ferramenta fundamental para, por um lado, fazer justiça, e, por outro, dar um recado claro à sociedade que racismo não será tolerado. Para além da prisão dos responsáveis, é necessário que se investigue as condições de trabalho nestes quiosques, marcas da cidade carioca.
Sabe-se que o termo “linchar” tem a sua origem com o estadunidense William Lynch, uma fazendeiro e capitão dono de escravos que defendia a existência de um tribunal privado – de donos de escravos –, onde condenavam e assassinavam aqueles que se rebelassem contra os seus senhores. O número de linchamentos de escravos em todo o continente americano é ainda difuso, porém, sabemos que este legado permanece na sociedade atual e faz todo ano milhares de vítimas, assim, como faziam na época da escravidão.
Sem sombra de dúvidas, o governo atual, racista, oferece terreno para que este tipo de crime siga ocorrendo – tanto por meio da corpo civil como por parte do Estado. Portanto, o significado desta bárbaro assassinato contempla margens históricas da formação da sociedade brasileira e, por isso, merece uma resposta também histórica. Uma resposta que possa servir como chama de um enfrentamento de massas incansável no combate ao racismo, como já faz o movimento negro.
Até agora, a principal figura da esquerda da ordem e favorito ao pleito eleitoral, Lula, não se pronunciou sobre o fato. Diante de um ano eleitoral, a pauta do racismo não pode, de maneira alguma, ser secundarizada ou utilizada como palanque eleitoral – aqui não queremos adentrar a discussão programática-, contudo, faz-se imediatamente central; para isso, a presença da mobilização de rua será decisiva para derrotar o neofascismo.
Familiares e a comunidade congolesa no Rio de Janeiro convocam um ato público em repúdio ao assassinato e exigindo justiça. O protesto será neste sábado, 05 de fevereiro, às 10h, em frente ao quiosque Tropicália, na Barra da Tijuca (Posto 8). Que este ato inflame as ruas da cidade não maravilhosa e transborde para as demais cidades do país, retomando o protagonismo dos explorados e oprimidos. Façamos justiça como fizeram por George Floyd!
Por Moïse, por justiça!
Chega de racismo e de impunidade!
Vidas negras importam!