Apresentamos abaixo a tradução parcial do ensaio La revolución permanente hoy, de Roberto Sáenz. Um importante trabalho de recuperação da teoria da revolução indissociada com a transição ao socialismo, particularmente da genial contribuição de Leon Trotsky a ela feita no começo do século XX.

Se em Marx encontramos autoemancipação da classe operária e a destruição do Estado burguês como elementos fundamentais da revolução socialista, em Lenin o papel insubstituível do partido de vanguarda no processo revolucionário, Trotsky nos lega na Revolução Permanente, a partir da economia-mundo, como elemento incontornável, uma nova compreensão da dinâmica das tarefas e sujeitos da revolução, na qual não se pode mais levar adiante as tarefas democráticas sem a revolução socialista e sem classe operária como sujeito histórico. E também que, essa revolução, que começa no âmbito nacional, só pode acabar de se desenvolver como revolução socialista em termos internacionais e mundiais.

O legado teórico de Trotsky é recuperado e aprofundado por Sáenz. Todas as revoluções do século XX reafirmaram o fundamental da teoria da Revolução Permanente: sem classe operária, organismo de poder e partidos revolucionários não se pode ter revolução socialista. Mas, Sáenz recupera e vai mais adiante, o balanço das revoluções do século XX demonstra que sem o elemento subjetivo (classe operária, partido revolucionário, organismos de poder) não se pode realizar nenhuma revolução socialista e nem colocar em pé autênticos Estados operários transicionais – a ditadura do proletariado.

A falta de diferenciação entre revolução socialista e outras formas de revolução, entre Estado operário e Estado burocrático confundiu brutalmente os trotskistas na segunda metade do século XX. Recuperar e ampliar a teoria da Revolução Permanente é uma operação teórico-programática fundamental para armar politicamente as novas gerações de socialistas revolucionários para a revolução do século XXI.

Assim, estamos felizes em poder disponibilizar a tradução de parte do La revolución permanente hoy aos nossos leitores, pois sua leitura e discussão, certamente, contribui de forma indispensável para a formação da juventude que começa a fazer suas primeiras experiências politicas revolucionárias.

Redação

A Revolução Permanente Hoje

A cem anos da Revolução Russa

Recuperando a teoria da revolução no seu sentido original

ROBERTO SÁENZ

 

  • Recuperar a teoria da revolução em seu sentido original

Queremos começar por estabelecer dois problemas. A primeira tem a ver com o fato de que a teoria da revolução socialista é uma teorização da revolução socialista intimamente ligada à generalização da experiência histórica. (…)

Os avatares revolucionários são complexos. Se você perder a perspectiva histórica pode cair do penhasco. O ciclo da Revolução Russa foi um pouco assim. As revoluções sociais são ricas, complexas, contraditórias. E várias interpretações da teoria da revolução caíram do penhasco durante o século passado. O guindaste teve que ser trazido; reparar o dano. Colocar a teoria da revolução de volta ao curso e tratar de colocá-la em “bom porto”. É disso que se trata esta elaboração teórica estratégica: uma luta para restabelecer a teoria da revolução socialista permanente, em seu sentido mais autêntico após os abismos do século passado.

O trotskismo ainda é uma corrente minoritária; uma corrente que sempre viveu das pauladas da realidade. Tão atordoado ficou que acabou muitas vezes cego, sem saber para onde estava indo. No segundo pós-guerra parecia perder sua razão de ser: o sentido original teoria da revolução permanente; nosso programa estratégico.

Terminou-se formulando uma teoria da revolução socialista, do Estado operário e da transição ao socialismo, sem o sujeito histórico chamado a protagonizá-la.

Houve, então, um resultado paradoxal que a experiência histórica, lida criticamente, propõe voltar a ser colocada em seu lugar: que não há revolução socialista nem transição para o socialismo sem a classe operária no poder. (…)

  • A teoria da revolução e da transição socialista

A reconsideração da teoria da revolução, ou seja, das forças motrizes para a transformação socialista da sociedade, combina duas teorias: a teoria da revolução socialista e a teoria da transição socialista; os ensinamentos de ambos  são ensinamentos profundamente entrelaçados.

Primeiro, os ensinamentos da revolução, do evento da própria revolução: a tomada do poder, a expropriação dos capitalistas, fim do estado burguês por uma forma revolucionária. Mas também combina uma questão decisiva e fundamental a qual o trotskismo deu as costas: a circunstância que ocorreu no dia seguinte: uma vez que se toma o poder. Quase poderíamos dizer que se constituiu todo um “trotskismo do pós-guerra”; um trotskismo adaptado às condições particulares do segundo pós-guerra, que veio a conceber a transição ao socialismo sem a classe operária, concepções que continuam a impactar muitas correntes (1).

Não é secundário quem assume o poder. Vários intérpretes do trotskismo ficaram à porta do tema porque, na realidade, o evento revolucionário, a tomada de poder, apenas abre a porta para as tarefas da emancipação social: acabar com a exploração do homem pelo homem. É apenas a abertura desta porta (Trotsky fez uma observação semelhante em relação à estatização dos meios de produção).

O problema é que foi estabelecida uma separação mecânica entre o momento eminentemente político-social, a tomada do poder, decisiva e fundamental evidentemente, e o processo subsequente de transformação da sociedade: “Muitas vezes se perde de vista que a expropriação não faz mais do que colocar o problema do socialismo, não se pode resolver por si mesmo”, afirmou Trotsky (2).

O processo de transição para o socialismo tem suas regras, suas próprias leis. Ter feito uma reformulação da teoria da revolução permanente separando a teoria do poder da teoria da transformação social e da revolução mundial, foi um erro (3). Nossa elaboração tenta amarrar o filme inteiro. (…)

Uma tentativa de recolocar a teoria da revolução socialista em pé, parafraseando aqui a ideia de Engels em que Marx “Inverteu a dialética idealista de Hegel; Ele a pôs sobre seus pés”. A que coloca no centro um sujeito social, um sujeito histórico: a classe operária. Aquela colocada pela combinação dialética entre a teoria da revolução e a teoria da transição.

Portanto, no nexo de ambos os processos, foi colocado o caráter do Estado pós-revolucionário; o semi-estado proletário que deve emergir da revolução. Em O Estado e a Revolução, o problema da tomada do poder, a controvérsia com o centrismo Kautskista, é absolutamente central: devemos destruir o Estado burguês, a máquina do Estado capitalista, e erigir em sua substituição um novo Estado: um Estado operário, a ditadura do proletariado.

No entanto, simultaneamente, Lenin insiste que o Estado revolucionário é apenas um “semi-estado proletário”. Um semi-estado no sentido de que não é um mero aparato acima das massas (como é o Estado nas sociedades de classes), mas uma tendência a um crescente “o que fazer” das massas trabalhadoras para transformar a sociedade: que as massas assumam em suas mãos os assuntos!

Portanto, o Estado e a Revolução era o livro maldito do stalinismo (uma observação que fez Rakovsky no final dos anos 1920, resgatada por Broué), com Stalin indo para o extremo oposto do elã “libertário” desta obra de Lenin: os quadros [a burocracia] eram tudo; as massas, nada.

Veja que aqui, entre o “sangue” da guerra civil e o conceito geral de autoemancipação dos trabalhadores, existe uma dialética complexa. São diferentes níveis de abstração. Quando se fala sobre a estratégia se fala mais no campo da luta, se fala mais do “sangue”.

Mas quando se fala de perspectivas, dos fins da nossa ação, de revolução e transformação social, fala-se de autoemancipação, fala-se de um empreendimento coletivo, da emancipação dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores. Obra que, para não se confundir, inclui um lugar próprio ao partido revolucionário; não pode se entender em abstração dele (4).  

(…)

  • A teoria da revolução permanente reconsiderada

Para aprofundar nossa explanação, temos que recapitular um aspecto fundamental da teoria da revolução permanente; entender qual foi o paradoxo histórico.

Trotsky fez uma aposta estratégica com a teoria da revolução permanente que se demonstrou correta: a burguesia já tem tanto medo da classe operária que paralisa diante do limiar das transformações social. Uma coisa eram os Sans-culottes (sem propriedades), os artesãos de Paris. Outra bem diferente é a classe operária moderna, que constrói as obras de engenharia moderna tipo a Torre Eiffel (referimo-nos a obras da época). Os artesãos não iriam construir uma Torre Eiffel; mas cem anos depois já estava a classe operária moderna (com base no mercado mundial como “uma realidade com vida própria acima dos mercados nacionais”, afirmo o grande revolucionário russo) (5).

Além disso, houve o exemplo da Comuna de Paris no final do século XIX. A pequena burguesia tinha se demonstrado como uma nulidade em matéria política. Foi a classe operária chamada para liderar os acontecimentos; para tomar seus problemas em suas mãos, mas também da sociedade como um todo. Vamos lembrar a preocupação de Lenin de que a classe trabalhadora fosse “a todas as classes da sociedade”; tomar em suas mãos todos os flagelos da sociedade. Daí a importância de que deu a consigna “Abaixo a autocracia”, na polêmica com os economistas que falavam: “não vamos cuidar de mais nada do que das greves econômicas”.

Sua preocupação estava inscrita nas páginas do célebre  “O que fazer?” A elevação da classe operária como classe política já estava em Marx (embora sem ter a concepção clara do partido de vanguarda). Em Marx, a realização da classe operária como classe, é como classe política: como classe que é materialmente, mas também se reconhece politicamente: como uma classe em si e classe para si.

O conceito está no Manifesto Comunista. A classe operária existe. Mas se não se reconhece como tal, senão reconhece seus interesses históricos, não se realiza como classe histórica. Caudilho é uma classe histórica (6).

A ideia fundamental é que a classe operária como caudilha de todas as reivindicações, de todas as opressões, de todas as injustiças, se conduz ao poder como representante de todas essas lutas. Ver a lógica dos dois primeiros decretos de Lenin: nenhum foi um decreto operário. Lenin se dirige aos camponeses e decreta a terra para aquele que a trabalha. Mais tarde se dirige aos soldados, aos camponeses com uniforme, com o decreto de paz.

Lenin afirmava: “a revolução será realizada pelos explorados e oprimidos, não pela burguesia. Agora, entre os camponeses e os operários, não sei quem vai ser mais protagonista”. É por isso que ele falou de “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”. Não sabia quem iria protagonizar mais, quem iria dirigir, porque o campesinato na Rússia era muito grande.

Trotsky faz uma aposta estratégica: “é a classe operária aquela que vai tomar o poder”. Foi o que aconteceu: ditadura do proletariado apoiada pelo campesinato tomou o poder. Trotsky afirmou: “a tomada do poder por parte da classe operária, expropriando os capitalistas, questionando direitos de propriedade e levantando as demandas de todos os setores oprimidos, transforma a revolução em socialista”. Não ia ser assim ingênua a classe operária que após tomar o poder voltasse para a fábrica para continuar sendo explorada pelo patrão. Expropria. Questiona os direitos de propriedade transformando a revolução em socialista. Mas isso ocorre pela combinação das duas coisas: poder e expropriação; um não anda sem o outro.

Em geral, quando os trabalhadores ganham um sindicato ou uma eleição de base independente, eles ficam felizes e começam a fazer reivindicações. Quando um companheiro operário sabe que ganhou algo na hora ele diz: “bem, agora é nossa vez, vamos com tudo”. Essa é a lógica operária. Não há melhor “psicólogo político” do que o do trabalhador: enxerga a brecha, a oportunidade. Às vezes ingenuamente capaz que diga: “bom, pronto, ganhamos, agora façam tudo vocês”. Aí aparece a pergunta típica do delegado operário classista que diz: “ah, não companheiros, todos juntos porque senão eu só não posso”. É a coisa cômoda de operário que diz: “Ótimo, ganhamos, façam tudo”. O delegado diz: “Ah sim, e você? E você o que faz?”. O trabalhador de base responde: “Não, eu vou para casa”… Isso pode ser assumido de forma crítica apertando a classe operária que tome em suas mãos tarefas, ou de forma conservadora (burocrática, substituista) dizendo: “eu faço tudo” e mal educando a classe. “Os quadros são tudo”, costumava dizer Stalin, como vimos acima. É uma ótima frase de Stalin, esclarecendo: “Os quadros são tudo”, a classe nada.

Há uma frase em “Dez dias que abalaram o mundo”. John Reed chega a Petrogrado junto com um operário dirigindo um caminhão (nos dias da tomada do poder) e o operário diz: “Minha Petrogrado, agora és toda minha.” Sob o capitalismo, os trabalhadores não têm a percepção de que as coisas são deles porque não são, pertencem à burguesia (mais tarde veremos que nos chamados “estados operários” não tinham essa percepção da propriedade nacionalizada como sua propriedade).

Permanecendo na formulação da revolução permanente de Trotsky, imagine que o operário dizia: “Minha Petrogrado, agora você é toda minha” e depois iria para a fábrica, cartão picado, doze horas de trabalho, como sempre. A classe operária toma o poder e expulsa o patrão aos chutes. Ela se livra dele. É uma mecânica coerente. A classe trabalhadora é protagonista do processo histórico, correntes revolucionárias trabalham aí, constroem o partido, colaboram com os sindicatos, com a construção de organismos de poder, com a politização, etc.

É uma bela combinação de elementos. Nós falamos sobre classe (e organismos e partido) a modo de um “continente” completo. Falar apenas de partido seria um erro. Mas neste grau de abstração em que estamos, a classe supõe o partido. Quando falamos sobre a classe operária, falamos da classe, de sua vanguarda, sua retaguarda, suas organizações, a estratégia, o partido, as manobras, tudo (7).

Então Trotsky diz que a classe operária é a protagonista histórica. Grande ratificação histórica de Trotsky. A Revolução Russa foi uma ratificação histórica. Trotsky estava entre a Rússia e a Europa, ele tinha percepções. A classe operária era uma potência e tinha feito a revolução de 1905. Na Alemanha foi uma potência organizativa. Trotsky partia do mercado mundial como uma totalidade já dominante no campo internacional; essa era a base material de sua teoria: daí o papel histórico que viu na classe operária em todos os países. (…)

paradoxo que houve nas revoluções do segundo pós-guerra, nas expropriações sem revolução, burocráticas, até nas medidas contrarrevolucionários de Stalin nas décadas de 1920 e 1930, é que se expropriou sem classe operária (uma inversão completa da lógica de raciocínio). Chegou-se à expropriação da burguesia sem a classe operária. Um paradoxo colossal. Desapropria-se sem a condição de possibilidade essencial, que é o papel histórico dos explorados e oprimidos. Uma tarefa a priori da emancipação, sem o sujeito da emancipação. Se expropria, mas quem faz os “gols” não é a classe operária.

Foram grandes revoluções, com milhões de camponeses. Mas com o paradoxo de que se levava a cabo uma tarefa histórica sem o sujeito chamado a protagonizá-la. Os trotskistas quebraram a cabeça, dizem: “Estado operário”. E as ideologias começam: “Não, a classe operária esteve sim”. Ah, sim, onde? Está desmentido pela historiografia atual. A classe operária não foi a protagonista na Revolução Chinesa, por exemplo. Frank Glass, um militante trotskista na China naquela época, importante, muito sensível (ele também tinha um pseudônimo em chinês, Li Fu-yen) afirmou que a Revolução Chinesa foi uma “revolução fria”.

Os trabalhadores tinham que esperar a chegada das tropas camponesas do Exército Vermelho maoísta. Lhes diziam: “trabalhe, seja bom; já vamos te contar o que fazer”. Maoístas vão às fábricas (Li Fu-yen conta) e dizem aos trabalhadores: “Agora, a fábrica é de vocês”, os trabalhadores olham para trás e dizem “com quem eles estão falando?”, “eles estão falando comigo?”, “eu não tenho nada a ver; eu não fiz nada!”.

Revolução “fria”… Imagine que a revolução é uma coisa quente, a coisa mais quente que existe. A revolução é como um formigueiro quando alguém chuta. Tudo é caótico no formigueiro, tudo é fúria. Mas Li fu Yen fala de “revolução fria” no caso da a classe operária em 49; é quase a antítese de uma revolução.

Claro, no campo a revolução não foi fria (foi uma guerra civil em regra) (8). Mas foi emoldurada burocraticamente, o que é uma coisa muito diferente. Mas não fria. Foi uma guerra civil monumental. Mas sem elementos de autodeterminação, mesmo camponeses. Está tudo documentado. Mao se ocupou em arregimentar o campesinato ao longo da Revolução. Tinha essa tremenda contradição (9).

Em Cuba existe outro paradoxo; a greve geral em maio 59 está mal preparada e fracassa. Quando vem a revolução, a classe operária participa do evento, mas como “cidadãos”, individualmente. O trotskismo começou a dizer que “na realidade, o campesinato sendo sem-terra tendia a ser um assalariado”… Todos os tipos de teorias para tentar descobrir uma classe operária que não havia estado. Como você definiria um Estado operário se a classe operária não estava lá?

Começou a fabular. Um fenômeno histórico novo ocorreu. Mas não era necessário defini-lo como “operário”. Fazer a estupidez de afirmar algo que não existia. Menos ainda quando se fala em revolução. Como falar da revolução sem perceber os verdadeiros protagonistas dela? Não se nega que a expropriação foi progressiva. Mas não se pode falar do caráter da revolução na abstração dos sujeitos que a encarnam.

(…)

  • Os problemas da propriedade estatizada

“A propriedade que é declarada como pertencente a todos não pertence a ninguém e se apropria dela o mais esperto” (Ditado popular nos países do leste europeu no pós-guerra)

Abordaremos agora as características que a propriedade estatizada deve possuir para ser um alicerce do estado operário. No movimento trotskista, a propriedade estatizada tem sido vista como a base per se do estado operário. Nosso ângulo busca questionar essa suposição – propriedade estatizada = estado operário – com a ideia de que dita propriedade não tem um caráter social em si mesmo: depende de em que mãos esteja; aquele que dominar o estado terá o controle da propriedade.

Assim, na transição socialista, a categoria da propriedade não é apenas econômica, mas também inclui uma dimensão política (10).

  •  Propriedade privada e propriedade coletiva

A propriedade capitalista é uma categoria simples, do âmbito da economia. É uma forma de propriedade absoluta: o proprietário é o dono. É aí que termina todo o seu “mistério”. É por isso que no capitalismo o direito à propriedade é absoluto porque denota um poder direto sobre o bem em questão. É claro quem é o proprietário da empresa. Mesmo a complexificação das formas de propriedade sob o capitalismo (através de sociedades por ações e todas as outras formas de propriedade coletiva dos capitalistas), não questiona o fato de que a propriedade é uma relação do campo da economia.

Em A Ideologia Alemã Marx estabelece a seguinte sequência histórica: “Nos povos que emergiram da Idade Média, a propriedade tribal se desenvolve passando por várias etapas – propriedade feudal da terra, propriedade imobiliária corporativa, capital manufatureiro – até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e concorrência universal, à pura propriedade privada, que já foi despojada de toda aparência de comunidade (Gemeinwesen) e eliminou toda influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade”(Marx; 2010; 102)

As coisas se complicam com a propriedade estatizada. Quem possui os meios de produção em Estados não capitalistas? A priori “todos”: toda a população ex-explorada e oprimida, exceto obviamente os recém capitalistas expropriados, que são aqueles contra os quais este direito de propriedade popular é exercido, por assim dizer. (Pierre Naville afirmou acertadamente que se um direito de propriedade fosse declarado, era porque esse direito tinha que ser reivindicado contra alguém; na medida em que a propriedade realmente pertence a todos, não será mais propriedade; ela terá sido extinta, estará então no comunismo).

O que aconteceu com a propriedade estatizada na ex-URSS (e outros países não capitalistas) após a burocratização? O ditado popular que encabeça esta nota nos dá uma pista sobre seu rumo: “a propriedade que é declarada ‘de todos’ não pertence a ninguém e dela se apropria o mais esperto”; uma expressão que refletia a experiência real das massas em tais países.

Se esta apropriação da propriedade estatal (pelos “mais espertos”) era sistemática, o caráter a priori coletivo desta forma de propriedade fica questionado (mesmo que esta injustiça não tenha sido estabelecida legalmente). Porque deve ficar claro que não há como a propriedade estatizada se fazer valer, senão coletivamente.

A propriedade estatal é a forma de propriedade coletiva por antonomásia, em oposição à propriedade privada, que em seu modelo clássico é individual. Esta última é uma categoria econômica: não pressupõe qualquer forma de representação (política) para fazer valer. Portanto, é um direito de propriedade absoluto.

Mas no caso da propriedade estatizada, deve haver alguma forma de se afirmar seu caráter coletivo. Se isto não acontecer, se uma minoria de “espertos” se apropriam sistematicamente desta propriedade, seu caráter coletivo é questionado. Uma questão que, aliás, coloca entre parênteses o caráter operário do Estado, porque não é a classe trabalhadora que se beneficia desta forma de propriedade.

Com a propriedade privada capitalista, mesmo que seja juridicamente sancionada, e o Estado tem os cães de guarda da repressão para defendê-la, é um direito privado, por assim dizer, e não constitucional; não possui um caráter público como a propriedade estatal: a Constituição defende a propriedade privada, mas cada capitalista privado não é parte da Constituição.

Nos Estados operários as coisas são diferentes: a propriedade estatizada é um princípio do direito constitucional. O povo aparece na Constituição como dono dos meios de produção. E isto porque a propriedade estatal é um direito coletivo: não há como exercê-lo individualmente (11).

Mas e se esse coletivo, que tem o direito de exercer a propriedade, não está no poder? Tudo é posto em questão. Porque a propriedade estatal não pode ser pensada com a exclusão de seu caráter político. Milhões de pessoas só poderiam exercer seus direitos de propriedade coletivamente através de alguma forma de representação; Daí a questão de saber se a classe trabalhadora está (realmente) no poder.

E por isso sua forma não é tão absoluta como a propriedade privada, onde – no modelo clássico – o proprietário é claro, não pode haver dúvidas sobre quem é. Mas como o proprietário da propriedade estatizada é o povo ex-explorado; e como esse povo só pode manifestar-se como entidade coletiva, quer dizer, politicamente, se não tem instituições de representação, se não está realmente no poder, dita forma de propriedade deixa de ser uma “instituição” do Estado operário: passa a ser a “cobertura” de uma apropriação unilateral da riqueza por parte da burocracia (“os mais espertos”).

2.2) O conceito de propriedade em Marx

Vejamos agora o conceito geral de propriedade. Vamos pegar algumas definições das Formas que precedem a produção capitalista (FORMEN), um texto conhecido de Marx onde ele traçou o processo histórico de separação dos trabalhadores dos meios de produção, meios que historicamente estiveram ao alcance de suas mãos (12).

Marx afirma com respeito ao proprietário: “o indivíduo se comporta consigo mesmo como proprietário, como dono das condições de sua realidade“ (Marx; 1998. p.67). Fica claro que para Marx o proprietário é “o senhor de suas condições de existência”, ele realmente as domina. A palavra é forte, categórica, sublinhando o que queremos ressaltar sobre o verdadeiro caráter de todo verdadeiro proprietário (13). O proprietário é o mestre de suas condições de existência, de “sua realidade”, que é o mesmo que dizer de suas condições de produção, dos meios de produção; ele tem domínio sobre eles. Caso contrário, ele não é um proprietário.

Isto vale, ou deve valer, para todos os tipos de proprietários. Para todo aquele que seja considerado proprietário sob qualquer forma histórica (tenhamos em mente que, neste texto, Marx estava se referindo às formas de propriedade que precedem a propriedade capitalista). Também deve se aplicar aos trabalhadores proprietários coletivos do Estado operário. Marx define os atributos que fazem parte de todo proprietário; eles devem se aplicar, então, aos trabalhadores que fazem parte de um estado operário.

A complexidade aqui é que este tipo de propriedade (propriedade estatizada) só pode ser afirmada como propriedade coletiva; isto porque não é uma forma de propriedade privada (entende-se que estamos falando dos meios de produção), e que, portanto, só pode ser exercida coletivamente.

No caso de um estado operário não se trata de trabalhadores serem proprietários individuais de suas fábricas (como nas cooperativas sob o capitalismo): são os donos coletivos de todas as unidades de produção. Um coletivo que só pode então ser representado no nível político através de instituições que expressam tal poder.

Se uma reforma agrária é realizada no campo, o camponês diz “este é meu pequeno Petrogrado” (por referência ao trabalhador que na obra de John Reed disse: “minha Petrogrado, agora é toda minha”). A terra, na verdade, não é mais do senhor: é dele. E essa é a definição de propriedade de Marx: uma relação material e factual, efetiva, não uma abstração.

Agora: quem vai se sentir como o dono de “sua Petrogrado” (sua propriedade) se ele sabe que tudo isso é uma piada; que nada é realmente dele, como acabou acontecendo nas sociedades que expropriaram os capitalistas, mas a classe operária não chegou ao poder.

Marx tem outra definição no mesmo sentido: “Propriedade: a relação entre o sujeito que trabalha e os pressupostos de seu trabalho, dado como algo que lhe pertence“(Marx; 1998, p.69). Para nós, em um Estado operário, o proprietário é o trabalhador que, através da ditadura do proletariado, através da democracia socialista, através da participação na produção, na planificação, na fábrica, é consciente em sua vida real (porque realmente é, não por causa de alguma forma de “sugestão coletiva”!), que é o dono das coisas, dos meios de produção.

No trotskismo, havia uma tendência a afirmar que as percepções não importavam. Como as percepções não poderiam importar? Os trabalhadores seriam idiotas: a classe social mais inocente da história; proprietários dos meios de produção sem se darem conta…

Como vimos, a definição de propriedade de Marx é uma afirmação forte, “adjetivada”:  o proprietário é alguém que se relaciona com os pressupostos de seu trabalho como se estivesse lidando com algo que efetivamente “lhe pertence”. Para dar um exemplo da vida cotidiana: você compra um sorvete para um menino de três anos; o menino fica todo atrapalhado, mas ele sabe que é seu sorvete. Você quer tirar dele, e ele se defende com unhas e dentes: “este é meu sorvete”.

O paradoxo seria que uma criança de três anos teria maior maturidade, maior percepção do que lhe pertence, do que a classe social em que o marxismo coloca suas esperanças na emancipação da humanidade…, mas isto é falso: se os trabalhadores não sentiam que a propriedade lhes pertencia, era porque não lhes pertencia!

As percepções são representações que são construídas com base na experiência. São construções, representações do mundo e suas relações construídas a partir da realidade, não ocorrências que vêm não se sabe de onde. Se não percebia que era dona dos meios de produção, algo ruim deveria estar acontecendo (mesmo que os burocratas não fossem os donos formais dos meios de produção, mas na verdade se apropriaram da propriedade, o que nos leva a outro aspecto da questão com o qual não podemos lidar aqui).

Como digressão, observemos que isto nos leva a outro aspecto do problema: a relação entre os conceitos de propriedade e apropriação real. Essas relações são frequentemente “sobrepostas” (como na propriedade privada capitalista), mas não precisam ser sempre. Em outras formas históricas de propriedade, a propriedade e a apropriação real têm sido diferentes. Por exemplo: na forma de cooperativa capitalista, a priori membros iguais da cooperativa apropriam-se desigualmente do produto do trabalho de todos (por exemplo, no caso de proprietários de cooperativas que cumprem as funções de administradores).

  • O caráter da propriedade na transição

Assim as coisas, os conceitos de propriedade e apropriação referem-se a um complexo de relações em que não apenas vale a relação jurídica de propriedade, mas também a apropriação real – que é, de fato, extrajurídica – dos bens.

Moshe Lewin (um dos maiores historiadores da União Soviética já falecido), contava em uma reportagem suas percepções na ex-URSS [14]).

Ele viveu lá nos anos 40 (escapou dos nazistas na Polônia em um caminhão do Exército Vermelho (15) e trabalhou em fábrica: “Quando vivi na União Soviética, tive discussões com trabalhadores, camponeses, oficiais e soldados, das quais ficou claro que as pessoas reagiam a seu ambiente à sua maneira, com suas próprias palavras. Vários estudos sobre o assunto confirmaram isso. Era impossível ver um trabalhador que lhe dissesse, em particular, que ele pertencia à classe dirigente. Quando eu trabalhava na Ural, os trabalhadores sabiam quem eles eram e quem eram os patrões (nachalstvo), os patrões, que tinham poder e privilégios. Quantas vezes ouvi os operários declararem: os patrões cuidam bem de si mesmos, mas não cuidam das pessoas “da nossa espécie”. Os engenheiros e gerentes tinham seu próprio restaurante dentro da empresa do qual saíram claramente satisfeitos. E os operários observaram: “Até as garçonetes em seu restaurante são mais gordinhas que as garçonetes em nosso restaurante! Foi o que disseram os operários, que estavam passando fome” (Lewin; 2015; 91).

Se, como vimos com Marx, o proprietário é alguém que se comporta com os pressupostos de seu trabalho “dado como algo que lhes pertence”, na ex-URSS e outras sociedades burocratizadas do período pós-guerra, uma de duas coisas: ou a propriedade não lhes pertencia (mas então não eram estados operários!), ou o conceito de propriedade marxiano estava equivocado e a propriedade carece de qualquer atributo de poder real sobre as condições de existência….

Opinamos que a primeira variante ocorreu: o Estado soviético deixou de ser um Estado operário quando a classe operária perdeu o poder na década de 1930; o que simultaneamente significou sua perda de poder sobre a propriedade estatizada. Para ser uma das bases do estado operário, a propriedade tem que estar nas mãos dos trabalhadores, não há outra alternativa.

Em um estado de trabalhadores, em uma sociedade de transição, a propriedade é transformada, ela deve tender a se tornar um feito coletivo; socializar-se. Mas isto pressupõe que a classe operária esteja efetivamente no poder. Sem esta condição, não há Estado operário: “O que mudou é a existência de um Estado proletário. Mas quem é o responsável pelo caráter de classe do Estado? Não podemos nos contentar em invocar a este respeito a estatização dos meios de produção. Isso seria entrar em um círculo vicioso. O Estado não é proletário porque nacionaliza, mas porque surgiu de uma revolução através da qual a classe trabalhadora quebrou a velha maquinaria burguesa do estado e tomou o poder político. Daí a novidade e a importância da pergunta que então surge: se o proletariado foi despojado do poder político, quem então o exerce em seu nome?” (Bensaid, 1978) (16).

Isto não significa que nos países não capitalistas a burocracia era proprietária. O Estado burocrático (tipo de Estado que a ex-URSS se tornou como um subproduto da burocratização [17]) não é um Estado burguês. Isto nos leva de volta a outro lado do problema, que não podemos desenvolver aqui, ligado às formas de apropriação de uma burocracia que não se tornou uma classe orgânica nem consagrou legalmente seu domínio sobre os meios de produção, mas que, no entanto, se apropriou deles.

O que estamos interessados em questionar aqui é a ideia de que a propriedade estatizada, por si só, era um atributo do Estado operário.  Isto independentemente de a classe trabalhadora ter ou não algum poder sobre tal propriedade (se estava no poder). Um poder que só poderia ser exercido coletivamente.

Porque, como já foi dito, quando falamos de propriedade estatizada estamos nos referindo não a qualquer forma de propriedade privada, individual, mas a uma forma de propriedade pública, coletiva. Propriedade que só pode ser reivindicada através de uma representação real de sua vontade coletiva; instituições que representam essa vontade coletiva, sejam sovietes, conselhos de trabalhadores, ou o que quer que seja, e que expressam que a classe operária está no poder.

Uma anedota afiada apresentada em Vida e Destino (uma obra bem conhecida de Vasili Grossman, um autor anti-stalinista soviético) também merece ser mencionada aqui: “Há algo que me soa estranho. Levanto-me para o trabalho às cinco da manhã; entro às seis. O que eu não entendo é porque ‘meus funcionários’, eles chegam às nove”. É preciso imaginar os trabalhadores como a classe dirigente e os empregados como seus empregados. Mas se você é o proprietário; se existe uma ditadura do proletariado; se você é a classe dirigente: por que você se levanta mais cedo do que aqueles que supostamente são seus “funcionários”?

Os problemas de uma teorização abstrata são óbvios; uma teoria de revolução que, como já assinalamos, faz da classe trabalhadora uma idiota. A percepção justa dos trabalhadores era de que outros tinham o poder e os privilégios; não eles. Como convencê-los de que se tratava de um Estado operário? Essa dificuldade é o que alguns quadros trotskistas encontraram quando viajaram para a ex-URSS no final dos anos 80 e não conseguiram convencer um único mortal de suas definições “esdruxulas” (nem um único trabalhador reconheceu a União Soviética como um “Estado operário”).

O proprietário é aquele que tem controle sobre suas condições de existência. Mas nenhum trabalhador reconheceu isto em países não capitalistas. Além disso, o caráter público da propriedade estatizada implica que, nas sociedades de transição, a propriedade também é uma categoria política.

A propriedade privada capitalista é uma relação de “sociedade civil”; não tem nenhum aspecto político. Mas a propriedade estatal é uma categoria simultaneamente econômica e política; isto na medida em que está necessariamente mediada pela entidade política que é o Estado. Ficam sobrepostos a “sociedade política”, o Estado, e a propriedade; se trata de uma definição política, não somente econômica.

Stalin fez Bukharin escrever que a propriedade na União Soviética pertencia a “todo o povo”. Uma definição que já era uma mistificação em sua época. A experiência histórica mostrou que a propriedade estatal deve estar à altura de seu caráter público a fim de se tornar uma alavanca para a transição. Transformar-se em uma propriedade cada vez mais controlada pelos trabalhadores como condição para que seja, efetivamente, propriedade de todo o povo.

O que, ao mesmo tempo, significa tender a se negar, cada vez mais, como propriedade, isto na medida em que se torna propriedade de todo o povo.  Pois se a propriedade pertence a todos, ela não deve ser reivindicada contra ninguém: ela deixa de ser propriedade. Que nada mais é do que a clássica teoria marxista da propriedade, que tantos marxistas esqueceram durante o século passado (ver A Revolução Traída, capítulo 3, “O Socialismo e o Estado”, de um brilhante autor chamado Leon Trotsky, a quem tanta profissão de fé é dedicada sem estudá-lo em profundidade).

Esta é a conotação que faz um autêntico Estado operário. Porque a propriedade estatizada, tendente à socialização da produção, não pode ser imposta em abstração da classe trabalhadora (18).

  • O Estado como economista e organizador

Vejamos agora o problema do Estado como tal. Possui vários aspectos. Um dos aspectos tem a ver com a questão da propriedade estatizada. Outro tem a ver com a especificidade do papel do Estado na transição; seu papel na mesma.

O que acontece aqui é semelhante ao que vimos em relação à propriedade: não é possível separar mecanicamente, como no capitalismo clássico, a ordem da economia da política, questão que terá consequências para a definição do caráter operário do Estado. Trotsky assinala que o Estado na transição assume um papel que não é meramente político: “A revolução proletária não apenas libera as forças produtivas das restrições da propriedade privada; também as coloca à disposição direta do Estado que ela mesma cria. Enquanto após a revolução o Estado burguês se limita ao papel de polícia, deixando o mercado para suas próprias leis, o Estado operário assume o papel direto de economista e organizador” (Trotsky, 1935).

Ou seja: é colocado como um dos termos da “equação econômica”, das relações econômicas. Na sociedade capitalista o Estado pode intervir ou não; ele pode regular ou não.  Mas os termos da equação econômica são o trabalhador e o patrão; é o capitalista quem dirige os negócios de sua empresa. É claro que o Estado tem um papel econômico. Mas este papel está relacionado às condições econômicas gerais: ao que é chamado de “macroeconomia”.

Nas sociedades em transição ao socialismo as coisas são diferentes: o Estado é necessariamente um dos termos da equação econômica: é, portanto, o economista e organizador da produção de material. O estado operário é o representante coletivo da classe trabalhadora; ele dialoga com os comitês das fábricas, com o gerente (ou gerentes) das fábricas; não são os comitês os únicos que têm o poder na produção; se tivessem, teríamos uma guerra de todos contra todos, federalismo, competição entre fábricas, etc.: é necessária a representação coletiva do poder dos trabalhadores, a planificação da economia nacional (19).

A tradição do marxismo revolucionário é pela ditadura do proletariado, para tomar o poder destruindo o Estado burguês, criando um novo Estado; antes um semi-estado proletário, como Lenin o definiu.

Mas a questão é que se o Estado é o “termo político”, o coletivo dessa equação, e é colocado como o economista e organizador da economia, e da planificação econômico, em mãos de quem o Estado está é fundamental.

Então: quem seria o economista e organizador da produção? Uma burocracia que fale em seu próprio nome, mas se aproprie da maior parte da produção, como aconteceu na ex-URSS burocratizada?

Nós insistimos. Não é como na propriedade privada capitalista, onde o Estado pode ajudar via macroeconomia, mas é o capitalista que determina qual é seu negócio. Quem diz em um Estado operário “este é meu negócio” se não é a classe operária? O problema é que no modelo abstrato do “Estado operário” tende-se a perder o problema fundamental em quais mãos o estado está realmente (quando a questão é que a economia está nas mãos do estado).

Porque se o Estado está a cargo da economia, mas o Estado não está nas mãos da classe operária, o problema que se gera é que a economia não funciona estrategicamente para beneficiar tal classe, o que põe em questão o caráter social do Estado.

No estado operário, na transição socialista, é decisivo em que mãos o Estado está; é central. Não se pode fazer abstração disso. Porque este Estado é parte integral do mecanismo da economia: não é apenas uma relação política, é também econômica: porque é economista e organizador.

E no mesmo texto Trotsky acrescenta outra definição -geral, mas profunda – que vai no sentido que temos apontado, que “milita” contra as definições puramente mecânicas e economicistas da transição: afirma que, diferentemente do capitalismo, o socialismo se constrói conscientemente: é uma construção consciente.

Como é planejado, a quem se beneficia, a quem é sacrificado, é central. Todos sabem o que é a economia, como são tomadas suas decisões: enquanto houver uma economia, há escassez. É preciso decidir. É preciso escolher. Nem todos os pedidos podem ser atendidos.

E, portanto, para que a exploração do trabalho não retorne (como acontecia na ex-URSS sob diferentes formas e intensidades em diferentes momentos), é necessário consultar, é necessário decidir coletivamente. E pode ser que o coletivo de trabalhadores diga “renunciamos ao consumo presente para o bem das gerações futuras”. Mas tem que ser uma decisão democrática, coletiva e consciente: não o disfarce da retomada da exploração do trabalho nas mãos de uma burocracia.

Se o Estado operário é economista e organizador, quem está à sua frente é decisivo: quem economiza e quem organiza, e de acordo com quais interesses e quais perspectivas, e de que maneira, de que modo.

2.5) A forma finalmente descoberta da ditadura do proletariado

Temos, todavia, duas categorias: Estado operário e ditadura do proletariado. Usamos as duas.  Mas é mais própria do marxismo revolucionário a categoria da ditadura do proletariado: indica de uma maneira mais categórica quem exerce a ditadura.

Aparentemente, o primeiro a formular a categoria do “Estado operário” foi Kautsky, cujo fetichismo estatista é amplamente conhecido. Seria interessante levar adiante uma genealogia do conceito que remonta a algumas discussões na Primeira Internacional. Nela foi realizada uma discussão sobre o problema da propriedade estatal contra as tendências proudhonianas e anarquistas, que rejeitaram esta forma de propriedade em nome de uma pequena propriedade privada.

O problema tem a ver com as derivações estatistas e/ou economistas da categoria estatal dos trabalhadores. Devemos lembrar que Marx definiu a Comuna de Paris como “a forma finalmente descoberta da ditadura do proletariado”. Isto não quer dizer que não utilizamos a categoria do Estado operário. Mas o problema aqui é que tem sido uma fórmula mal utilizada; usada de uma forma que não explica quem, que classe realmente exerce a ditadura, domina a sociedade.

A ditadura do proletariado em Lenin é uma “ditadura de um novo tipo”, pois é a maioria que a exerce o poder sobre a minoria. E uma “democracia de um novo tipo”, porque é a primeira vez na história que a maioria explorada e oprimida exerce o poder. Isto está ligado a outra determinação que tem a ver com a democracia socialista, a democracia operária, a forma do exercício coletivo do poder pela classe trabalhadora.

É claro que estas formas políticas do Estado de transição não devem ser entendidas ingenuamente. Não só pressupõem ditadura sobre a burguesia, guerra civil com o imperialismo, mas em seu próprio coração (nos sovietes ou em quaisquer organismos de poder e representação que sejam), há uma luta de partidos, uma luta de tendências, uma luta pelo poder.

O problema da democracia socialista é colocado como um subproduto de um entendimento factual: que o trabalho de transição socialista, o trabalho de transformação da sociedade, não pode ser levado adiante apenas de cima: ele deve ser uma tarefa cada vez mais coletiva, abrangendo seções cada vez maiores das massas. Porque transformar a sociedade, a economia, coletivizando a produção, dirigindo coletivamente os meios de produção, acabando com as relações opressivas na família, requer um envolvimento crescente de camadas crescentes da população.

Lenin diz isso quando levanta a aspiração de que “a última cozinheira aprenda a administrar os assuntos do Estado”. A população trabalhadora tem ideias e representações do mundo: eles são classe em si mesmos e classe para si mesmos. Eles têm ideias políticas e têm que se expressar de alguma forma; na democracia dentro do partido, na democracia dos sovietes: tem que haver alguma esfera de representação de sua vontade coletiva e de suas discussões.

Estas discussões não devem ser abordadas ingenuamente porque a luta política é duríssima. Mas deve haver uma esfera de representação dos matizes de opinião, que foi a primeira coisa que o stalinismo matou quando burocratizou a vida política e apodreceu o partido bolchevique; não se podia participar, não se podia expressar a opinião, não se podia decidir.

Existe uma questão muito profunda que contava o historiador marxista russo já falecido Vadim Rogovin (que tem uma obra monumental sobre as purgas dos anos 1930): ele ressalta que como resultado do terror que as Grandes Purgas provocaram, ninguém tinha uma opinião, ou melhor, que opiniões honestas sobre as coisas deixaram de existir na URSS.

Mas é óbvio que, sob estas condições, a existência de uma democracia operária, de democracia socialista, é impossível; mesmo para a classe trabalhadora poder exercer o poder, sua ditadura. Como se pode exercer a representação política e a democracia socialista se ninguém pode dizer o que pensa? Só pode ser exercitado se todos puderem dizer, mais ou menos livremente, o que pensam.

A luta política é dura e talvez seja assustador dizer aquilo em que se acredita. É uma luta política, não é uma brincadeira, é frequentemente uma “guerra”, há “piquetes”; é uma luta política. Neste texto, estamos em um certo nível de abstração. Se o tornássemos mais concreto, daríamos conta das exigências mais complexas da luta de classes, das circunstâncias da guerra civil, do que ela impõe, da ruptura de todos os laços de solidariedade entre classes antagônicas, do “sangue” que a domina, etc.

Mas em qualquer caso, deve ficar claro que o problema da democracia socialista é a representação da vontade coletiva de uma classe social que é enorme e que tem que se expressar. Há lutas pela hegemonia; uma luta de tendências: um partido não seria revolucionário se não aspirasse a dirigir!

Mas uma coisa é dirigir e outra é suprimir fisicamente toda a oposição; é por isso que Trotsky, em A Revolução Traída, apresentou a defesa do pluripartidarismo soviético. Uma coisa é dirigir com um punho de ferro através das organizações de massa; outra é suprimir as organizações de massa: as esferas da polêmica e da luta política.

Uma coisa é dar um amplo espaço à luta política; outra coisa é suprimi-la, transformá-la em um fato policial, que é o que o stalinismo fez.

Sem a classe trabalhadora no poder através de órgãos representativos de sua vontade coletiva (partido, sovietes, ou o que quer que seja); sem a propriedade estatizada, os meios de produção, realmente nas mãos da classe trabalhadora, o que se tem não é um Estado operário, uma sociedade de transição para o socialismo: tem-se um processo de transição abortado, um Estado burocrático onde a dinâmica da revolução permanente foi bloqueada.

Notas:

(1) Ousamos dizer que na América Latina esse déficit impacta sobre a maioria dos fluxos; na Europa a ausência balanços sistemáticos, ecletismo.

(2) “Mas se fosse difícil alcançar o poder, teria sido mais difícil mantê-la. A dificuldade objetiva e histórica enfrentada por uma classe que tem que transformar ao mesmo tempo a economia, a as bases políticas e a tradição cultural constituem um ato de consciência e vontade, que nada tem a ver com movimentos mecânicos da economia com os quais a burguesia revolucionária, uma vez que realizou sua revolução antifeudal (Jesús Jaén, “Entre a Marselhesa e o Internacional (em centenário da Revolução Russa)”, Vento Sul, 17/04/17.

(3) Veja os casos de Moreno, Mandel e muitos outros dirigentes trotskistas do pós-guerra.

(4) Veja a respeito dessas relações entre fins e meios de ação: Ciência e arte da política revolucionária; especialmente capítulo 8 da referida obra: “Os fins e os meios, ou a luta de classes como lei suprema “.

(5) Lembremos que o império do mercado mundial é a base material de toda a teoria da revolução permanente.

(6) A referência ao historiador britânico E. P. Thompson, que insistiu neste ângulo de considerar a classe não apenas como um fato econômico, mas também político e “moral”.

(7) Vamos lembrar que estamos no nível da teoria da revolução no sentido de suas forças motrizes e a ação da classe como uma classe consciente; portanto, o problema do partido está “resumido” no da classe em geral.

(8) Uma imensa guerra civil, talvez a mais imensa da história.

(9) Veja nosso artigo “China 1949: uma revolução anticapitalista”.

(10) Recomendamos a leitura “Evgeny Pashukanis e a superação marxista do direito”, de Marcelo Buitrago (Revista SoB nº30), artigo que pode ser visto como complementar a esta nota.

(11) Este apelo ao “povo inteiro” como “proprietário” dos meios de produção estava contido na Constituição de Stalin de 1937, redigida por Bukharin antes de ele ser assassinado a mando de Stalin. É uma verdade de Perogrullo afirmar que para aquela época de tratava de um cinismo enorme; a classe operária tinha perdido todos os atributos do poder.

(12) Sabe-se que o primeiro meio de produção da humanidade, além de ser o objeto de produção da mesma, foi (é) a natureza: seu laboratório natural (Marx).

(13) No mesmo sentido – de apreciar as relações reais que estão por trás das relações de propriedade – Marx expressou sua crítica ao Proudhon:  “O que aborda Proudhon é a moderna propriedade burguesa como existe hoje. A questão ‘o que é propriedade’ só poderia ser respondida por uma análise crítica da ‘Economia Política’, que abrangeria o conjunto das relações de propriedade, não em sua expressão jurídica, como relações volitivas, mas em sua forma real, ou seja, como relações de produção” (Carta a J.B. Schweitzer, 24/01/1865, MIA)

(14) Denis Paillard diz sobre o valor que Moshe Lewin dava às percepções: ele as tratava como “instantâneas”, “instantâneas” que faziam a nitidez de seu olhar, sua capacidade de compreender os detalhes que dão sentido às coisas (Udri, Pailard, 2010)

(15) Moshe Lewin sempre foi grato aos soldados russos que o ajudaram a fugir dos nazistas.

(16) Esta última é uma questão retórica, é entendida, porque em nossa opinião ninguém pode exercer o poder em nome da classe trabalhadora; nenhum outro estrato social e partido que não seja da classe trabalhadora, que não reivindique ser da classe trabalhadora.

(17) Cristian Rakovsky, de quem tomamos esta definição, falou no início dos anos 30 que a URSS havia se tornado um “Estado burocrático com restos do proletariado comunista”.

(18) A socialização da produção é outro lado do mesmo problema que estamos vendo ligado à abolição de toda propriedade; tem a ver com o que acontece no processo produtivo, onde os trabalhadores como um todo assumem cada vez mais o controle do processo produtivo; processo que desta forma é socializado e, portanto, líquida a separação entre trabalho morto e trabalho vivo, liquida a propriedade como uma relação fetichizada, reificada, oposta ao coletivo dos trabalhadores que, desta forma, passam a controlar realmente o processo de produção, eles se emancipam.

(19) Assim, Lenin e Trotsky rejeitaram as posições sindicalistas da Oposição Operária de Alexandra Kolontai e Alexander Shliapnikov.

Tradução: Gabriel Mendes e Antonio Soler

Leia o texto em espanhol na integra em http://izquierdaweb.com/revolucion-permanente-hoy/