Os socialistas revolucionários, marxistas, partem de uma convicção bem fundamentada: que a única alternativa para a humanidade evitar a barbárie é através da capacidade da classe trabalhadora de se erguer como a liderança de todos os explorados e oprimidos na construção do socialismo. O futuro da humanidade está tão estreitamente ligado ao da classe trabalhadora que o balanço político de qualquer figura histórica não pode ser separado de sua posição em relação aos trabalhadores e sua emancipação. Para compreender o alcance e os limites de Fidel Castro, declamações sentimentais ou discursos emocionais não são suficientes. É necessário mergulhar na história de Cuba, da classe trabalhadora cubana e da imensa revolução de 1959 com seu alcance e limites. Assim, em virtude do aniversário da Revolução Cubana e todo o interesse que, evidentemente, o tema suscita, republicamos texto editado de Roberto Ramirez escrito originalmente para a Revista SoB 22.
Redação
O Triunfo da Revolução Cubana em 1959
ROBERTO RAMIREZ
Durante o século XX, Cuba foi o cenário de dois processos revolucionários, um com uma marcada presença da classe operária que enfrentou a ditadura de Machado em 1933 (1) e no período pós-guerra testemunhou o desenvolvimento da segunda revolução cubana do século XX, esta foi triunfante. A segunda revolução apresenta, por um lado, uma clara continuidade com a de 1933 (e, em um sentido mais amplo, com as lutas do século XIX pela independência nacional, brutalmente cortada pela intervenção dos EUA). A corrente hegemônica de 1959 e seu líder, Fidel Castro, continuam a tradição populista radical pré-guerra, especialmente a de Guiteras.
Mas, por outro lado, a revolução de 1959 será o oposto da de 1933, ou pelo menos profundamente diferente. Longe de ser uma revolução onde a classe trabalhadora, agindo através de suas próprias organizações, desempenha um papel importante, a revolução de 1959 será popular, no sentido mais amplo da palavra.
Os fatos e as datas que marcaram o rumo da revolução de 1959 são bem conhecidos da vanguarda latino-americana, ao contrário do período anterior, quando uma das importantes revoluções operárias da América Latina no século XX ocorreu em Cuba, algo pouco conhecido pela grande maioria. Portanto, não vamos fazer aqui um relato histórico como o do período anterior. Recordaremos apenas alguns fatos e datas que precederam a revolução de 1959.
Fulgencio Batista, com seus funcionários do Partido Popular Socialista (2) em dois ministérios, governou até 1944. Durante esse período, Cuba desfrutou dos benefícios da Segunda Guerra Mundial, que elevaram o preço do açúcar e permitiram anos de prosperidade sem precedentes, fenômeno que também ocorreu em outros países da América Latina, como Argentina, Uruguai, Chile, etc., com outras produções primárias. O pós-guerra, com uma diminuição progressiva do preço do açúcar, especialmente a partir de 1952, fará Cuba voltar à realidade de uma monocultura que, com suas oscilações extremas, desloca econômica e socialmente a ilha.
Batista é sucedido pelo oponente Ramon Grau San Martin, o presidente do “governo dos cem dias” de 1933, que agora dirige o Partido Revolucionario Cubano Auténtico (3). Em 1948, também para o PRCA, outra das relíquias do Directório Estudiantil(4) de 1933, Carlos Prío Socarrás, torna-se presidente.
Os governos dos “reais”, especialmente o do Prio, ficaram famosos por seu grau fenomenal de corrupção…e isso em um país onde quase nenhum governante jamais havia parado de roubar! A exceção foi a ala radical do “governo dos 100 dias”(5), Guiteras, Chibas e outros. Especialmente Guiteras era famoso por sua austeridade Jacobina: como ministro, ele tinha apenas um terno.
Além disso, como os tempos da “guerra fria” já estavam presentes, os autênticos expulsaram do movimento sindical os dirigentes do PSP (Partido Socialista Popular). Os estalinistas sob as asas de Batista estiveram na vanguarda da burocratização dos sindicatos e sua subordinação ao Estado através do Ministério do Trabalho. Então, como ministros de Batista, eles não se cansaram de elogiar a aliança “anti-fascista” com a “Grande Democracia do Norte”. É por isso que, no clima da “guerra fria”, foi fácil afastá-los do aparato sindical [Gott, 145], para serem substituídos por burocratas aprovados por Washington.
Em um nível geral, o PSP também perdeu muito apoio político. Por um lado, foi rejeitado pela direita. Por outro lado, também foi rejeitado pela esquerda, porque era visto como parte da infame “politicagem”, um termo com o qual os cubanos englobavam os esquemas corruptos em governos, partidos e sindicatos, esquemas em que os estalinistas tinham notoriamente participado, entre outras coisas como ministros de Batista. Uma das grandes vantagens de Fidel seria se apresentar mais tarde como um “homem novo”, um lutador abnegado, de honestidade impecável, alheio à podridão da “politicagem”.
O desastre da administração dos autênticos e sua escandalosa corrupção, produziu em 1947 uma ruptura do PRCA. Eduardo Chibás, outra figura radical da revolução de 1933, que havia atuado sob a liderança de Guiteras no “governo dos 100 dias”, funda o Partido Ortodoxo, com o slogan “Vergonha contra o dinheiro” e “Prometemos não roubar”, o que revive um dos temas favoritos do populismo, a honestidade, e que mais tarde seria retomado pelo Movimiento 26 de Julio. Fidel Castro, que havia iniciado sua atividade política no movimento estudantil da Universidade de Havana, se tornaria mais tarde um dos líderes da juventude ortodoxa. Em 1951, Chibás morreu em um incidente inusitado: depois de proferir um inflamado discurso crítico no rádio – “O último nocaute” -, deu-se um tiro na frente do microfone. Um gesto de imolação também inscrito na tradição populista cubana.
O processo político foi abruptamente interrompido quando Fulgencio Batista, em 1952, um ano antes das eleições presidenciais, dá um golpe militar e retorna ao governo como ditador. Em 1954, ele convoca eleições onde era o único candidato. Sua ditadura abriu as portas para a revolução.
Em 26 de julho de 1953, Fidel Castro, que organizou um grupo de jovens, quase todos da juventude ortodoxa, fracassou ao tentar a tomada do quartel Moncada. Em 1956, após ser anistiado, ele prepara no México uma expedição que a bordo do iate Granma desembarca no dia 2 de dezembro na província de Oriente. As operações do Ejército Rebelde começaram então. Assim, o padrão da maioria das rebeliões ocorridas na ilha desde o século XIX se repete.
Em 1958, a oposição a Batista cresce em toda a ilha, mas em 9 de abril uma tentativa de greve geral falha, levando a uma dura repressão nas cidades. No entanto, em julho, uma ofensiva de Batista contra os rebeldes é derrotada à medida que o exército se desmorona. A ditadura já não se sustentava.
Em 1º de janeiro de 1959, Batista foge da ilha. O Ejército Rebelde e o Movimiento 26 de Julio tomam o poder. Em maio é aprovada a Lei de Reforma Agrária. As tensões com Washington começam a piorar e o processo revolucionário se torna mais radical, em um curso vertiginoso. Em 4 de fevereiro de 1960, Cuba assina um tratado comercial com a União Soviética. Em março, a fim de derrubar o governo Castro, agentes americanos iniciam ações de sabotagem e ataques que já estavam em preparação desde 1959. Em abril, o governo dos Estados Unidos planeja o bloqueio econômico da ilha, que vai crescer, com a retirada da quota de açúcar (setembro de 1960) e outras medidas. Em junho e julho, as refinarias de petróleo de propriedade imperialista se recusaram a processar o petróleo bruto recebido da URSS. Fidel expropria-os. Em agosto, Castro expropriou em massa as propriedades americanas. Em outubro de 1960, os EUA iniciam um bloqueio econômico total (que durará até hoje) e o governo inicia a expropriação em grande escala da burguesia cubana, a grande maioria da qual já havia se mudado para Miami meses antes.
Em janeiro de 1961, os EUA romperam as relações diplomáticas e, pouco depois, organizaram bombardeios em aeroportos cubanos. Em 4 de fevereiro, na Segunda Declaração de Havana, Fidel Castro proclama o caráter socialista da revolução, e em 17 de abril, na Baía dos Porcos, começa uma invasão de “gusanos” organizada pelos Estados Unidos, que é rapidamente derrotada.
Mas, desde então, a “institucionalização” da revolução, o fracasso da linha guerrilheira patrocinada por Guevara para a América Latina (6) e o isolamento internacional de Cuba, são elementos combinados para que a liderança cubana, Fidel Castro, conduza a ilha a uma estreita integração e dependência da burocracia de Moscou, copiando também seu modelo econômico e político. Neste contexto, o novo PCC (Partido Comunista Cubano) foi fundado em 1965, uma réplica dos partidos burocráticos únicos do bloco soviético. O regime político também se consolidou como um partido único, que não só administrava verticalmente o aparelho estatal, mas também todas as organizações sociais: trabalhadores, estudantes, mulheres, culturais e etc.
Na política externa, o governo cubano se alinhou incondicionalmente com o Kremlin. Em 1968, este curso atinge seu auge [Gott, 235 ff]: o governo cubano aplaude a invasão de Moscou na Tchecoslováquia para esmagar a Primavera de Praga. Em 1979, apoia a intervenção da URSS no Afeganistão, que marcará o início do fim do regime soviético. Em troca deste apoio incondicional, Moscou subsidia a economia cubana e subvenciona as forças militares para impedir a intervenção dos EUA. Mas, ao mesmo tempo, integrada o sistema soviético, Cuba “socialista” permanece, como desde o final do século XVIII, um país monoprodutor de açúcar.
Vinte anos após a Primavera de Praga, a burocracia de Moscou está em sua mais grave crise econômica, política e militar, que o Ocidente aproveita – com Reagan – para exercer pressão. No Kremlin, as correntes restauracionistas estão abrindo caminho – primeiro de forma disfarçada com Gorbachev (URSS 1985-91) e depois abertamente com Yeltsin (Rússia 1990-99). Já em meados dos anos 80, as aspirações da maioria da burocracia (que então se ” recicla ” no novo regime burguês na Rússia) é acabar com a “guerra fria” e buscar uma parceria com os EUA e o Ocidente [Gott, 273 ff]. Uma nova etapa será assim aberta, que segue aos nossos dias.
O quem, o quê e o como na segunda revolução cubana. O papel da classe operária
Como já dissemos, as forças motrizes sociais e políticas da revolução de 1959 apresentaram simultaneamente uma continuidade do processo de 1933 e, ao mesmo tempo, uma diferença profunda. Esta nova combinação de sujeitos sociais e políticos será o principal determinante do caráter da revolução – eminentemente popular e populista – assim como do tipo de Estado que será formado, seu regime, suas relações políticas e econômicas, e também das linhas que serão aplicadas em nível internacional.
Enquanto a revolução de 1959 é, em todos os sentidos, social e politicamente, o renascimento do populismo radical de uma geração atrás, a classe operária como tal fica em segundo plano (o oposto de 1933).
Nessa configuração não há apenas a influência dos resultados imediatos da derrota da Revolução de 1933, mas também o que aconteceu depois dela e pelo papel tenebroso desempenhado pelo PCC (mais tarde o SP).
A classe operária cubana, após ser derrotada naquela primeira revolução, foi aprisionada em um poderoso aparato de sindicatos burocráticos e estatizados, a CTC. Este processo, como alertou Trotsky no México, era geral na época. No entanto, em Cuba tinha características peculiares, pois foram principalmente os estalinistas que se encarregaram dela, e não as correntes nacionalistas burguesas como no México e depois na Argentina, com Perón.
Ao mesmo tempo, foram feitas concessões de cima para os trabalhadores sindicalizados, que se tornaram 50% da força de trabalho da ilha. Não é que não tenha havido luta: o proletariado cubano sempre se distinguiu por sua combatividade. Mas essa combatividade foi reprimida pelo aparelho e também guiada pelos meios sindicais e corporativos, cujo horizonte político não foi além das “pressões” para estender essas concessões.
Em 1947, a “guerra fria” interrompeu o romance entre os sindicalistas do PSP e o Estado. O governo Gral San Martin, junto com a polícia, despeja Lázaro Peña (7) e outros sindicalistas do PSP do “Palácio dos Trabalhadores”, o edifício da CTC, e os entrega a um sinistro burocrata amarelo, Eusebio Mujal, um gângster que mais tarde trabalharia ao serviço de Batista.
A classe operária entrou no processo revolucionário de meados dos anos 50 com estas graves desvantagens políticas e organizacionais. Como ocorreu com amplos setores da sociedade cubana, desde a burguesia até as camadas mais populares, com os trabalhadores não ocorreu diferente. Todavia, desta vez eles não foram a vanguarda indiscutível. E, acima de tudo, sua participação foi principalmente individual, como parte do povo, e não orgânica, como uma classe. Não existiam “soviets” ou sindicatos revolucionários, como em 1933, que derrubaram a ditadura através de greves gerais revolucionárias. (8)
Em 9 de abril de 1958, a derrota de uma tentativa revolucionária de greve geral deu um panorama sangrento desta mudança. A greve havia sido convocada pelos setores urbanos (“el llano”) de 26 de julho e outros movimentos (embora aparentemente com muitas reservas de Fidel Castro e dos comandantes de “la sierra”). Ao chamá-la, todos tinham em mente a greve geral insurrecional que havia acabado com Machado. Gott, 162] A custosa derrota desta iniciativa colocaria na mesa que a situação era muito diferente, e suas consequências aprofundaram a característica de que desta vez a vanguarda da luta não era a classe operária organizada.
Assim, o fracasso teve uma importante consequência política e social. A derrubada de Batista por uma greve geral revolucionária teria provavelmente empurrado a classe trabalhadora de volta para os holofotes, como em 1933. Sua derrota, ao contrário, “levou a uma consolidação do controle interno de Castro sobre o movimento e, acompanhando isso, um papel muito maior, político e militar, para a guerrilha das Serras em detrimento do movimento urbano” [Farber, “As Origens…”, 118].
Ao contrário do que geralmente se acredita, a grande maioria dos combatentes do Movimiento 26 de julio e os outros movimentos armados não estavam nas “montanhas”, mas nas “planícies”, ou seja, nas cidades. E foi também nas cidades onde ocorreram cerca de 90% das baixas. Por esta razão, o estrondoso fracasso de 9 de abril de 1958 evidenciou o caráter político-social do Movimento 26 de julho, que nas cidades organizou milhares de lutadores clandestinos, mas ao mesmo tempo era organicamente alheio ao movimento operário e à classe trabalhadora.
Um enorme movimento populista
No capítulo anterior, descrevemos o fenômeno muito variado e complexo do populismo cubano, que também tem grandes analogias com movimentos latino-americanos similares. Entretanto, o que é fundamental não são essas semelhanças, mas sua enorme diferença: por que, excepcionalmente, uma corrente, Fidel Castro e seu Movimiento 26 de Julio, expropriaram o capitalismo, enquanto o resto dos movimentos populistas, nacionalistas ou frente populistas da América Latina nunca cruzaram essa linha?
A resposta típica dada na época pela maioria do movimento trotskista ainda hoje é expressa desta forma:
“Em 1º de janeiro de 1959… o Exército Rebelde liderado por Fidel Castro fez sua entrada triunfal em Havana. No entanto, a liderança do processo pertenceu ao Movimento 26 de Julho, uma frente política policlassista com um programa democrático limitado. Sob pressão do imperialismo americano, Fidel Castro declara Cuba um “país socialista” e acaba expropriando os principais meios de produção – as empresas imperialistas e burguesas locais. Esta transformação de Cuba em uma economia de transição para o socialismo, refutou a falsa tese dos estalinistas da “revolução por etapas” nos países semicoloniais, segundo a qual a classe trabalhadora deveria ser subordinada à suposta “burguesia nacional”.
“Entretanto, o estado operário que emergiu desta revolução não se baseou em conselhos de operários e camponeses, mas sim o exército guerrilheiro que se apropriou do poder estatal estabeleceu um regime que reproduziu sua estrutura de cima para baixo, ou seja, um estado operário burocraticamente deformado. [Keys, No. 1, Abril de 2008]
Citamos isto, não porque seja original, mas porque tem o mérito de resumir o que foi uma interpretação amplamente compartilhada pela maioria do movimento trotskista. Diferenças importantes foram expressas nesta base, mas em geral quase todas elas se basearam nesta base comum. A corrente de Moreno desenvolveu, com o tempo, posições diferentes, mas essencialmente independentes. Em contraste, a principal corrente do trotskismo europeu, a de Ernest Mandel, manteve um seguidismo quase incondicional à direção cubana.
Examinemos, então, esta explicação tão representativa, primeiro, do sujeito político que liderou a revolução – “o Movimiento 26 de julio, uma frente política policlassista com um programa democrático limitado” -; depois, da dialética dos acontecimentos – “sob pressão do imperialismo norte-americano, Fidel Castro declara Cuba um “país socialista” e os principais meios de produção são expropriados”.
O M-26/7 foi sobretudo um movimento populista e não uma “frente policlassista”, uma expressão que, se é que significa algo, indica uma “frente popular”(9) Mas, mesmo que fosse este o caso, o enigma de como esta “frente policlassista” – isto é, uma frente com um setor da burguesia dentro dela – depois de alguns meses acabou…expropriando a burguesia…Ou seja, um verdadeiro milagre político-social…
A “pressão do imperialismo” tem sido a resposta universal utilizada pela maioria não só do trotskismo, mas também da esquerda e do “progressismo” em geral. Isto aparentemente explica muita coisa, mas, ao mesmo tempo, não explica nada.
É uma verdade indiscutível que quase desde o início até a expropriação final da burguesia no fim dos anos 1960, ocorreu uma vertiginosa escalada de ataques e contra-ataques entre Fidel Castro e Washington.
Entretanto, há mais de um século na América Latina, o imperialismo estadunidense vem exercendo “pressão” sobre todos os governos em geral e, especialmente, sobre os governos nacionalistas, populistas e de frente popular, etc., que pretendem “desobedecê-lo” em alguma medida. E muitas vezes essas pressões foram violentas: promoção de golpes de Estado, intervenções militares, etc.
O problema é que nenhum – absolutamente nenhum! – desses governos respondeu como Fidel Castro respondeu. Portanto, a resposta não pode ser reduzida à generalidade das “pressões” imperialistas (claro, muito importantes), mas ao que era específico, peculiar no caso cubano, que fez a diferença. (10) E isto nos leva principalmente não ao fator “objetivo” das “pressões do imperialismo” em geral, mas ao mais subjetivo, o do movimento populista 26 de Julio e seu líder, Fidel Castro.
O 26 de julho, as classes, a crise da sociedade e o colapso do antigo Estado
Alguns marxistas, decididos contra todas as evidências de ver uma “revolução operária” no processo de 1959, destacam a participação dos setores assalariados na resistência contra Batista nas cidades, assim como a incorporação de semi-proletários da província do Oriente na guerrilha.
Isto tem sua importância, mas não leva às conclusões procuradas. De 26 de julho de 1953 até a tomada do poder em 1959, os lutadores – como já enfatizamos – foram integrados como indivíduos às estruturas político-militares dos movimentos (o Movimiento 26 de julio, o Ejército Rebelde, etc.), independentemente de sua origem e classe social.
Tanto o M-26/7 como o Ejército Rebelde, assim como outros movimentos que lutaram contra Batista, no estilo do novo Directorio Estudiantil, foram movimentos populistas, que se caracterizaram por se dirigir ao “povo” em geral, e incorporar individualmente pessoas de todos os setores sociais.
“Os populistas vieram de todas as classes sociais, exceto os mais ricos e os mais pobres… [Embora entre os combatentes de Moncada e os do desembarque da Granma] houvesse trabalhadores por origem ou ocupação, muito poucos deles tinham tido qualquer atividade ou participação nas lutas políticas ou sindicais dos operários… [Farber, “As Origens…”, 50-51]
Depois, na Serra Maestra e no Oriente, o recrutamento de camponeses que quase não tinham experiência prévia em lutas camponesas “acrescentou um novo elemento à típica base populista urbana dos veteranos da Moncada e Granma… E foi muito importante para permitir que Fidel Castro os moldasse como fiéis seguidores de sua liderança como caudilho. Em qualquer caso, um círculo íntimo de homens “sem classe”, separados de toda a vida orgânica de qualquer classe social de Cuba, formou o coração ou centro político de Castro. [Farber, “The Origins…”, cit., p. 50]
O típico apelo do populismo ao “povo” em geral, à “nação”, às pessoas não como membros de uma classe social mas da “pátria”, tinha em Cuba uma ressonância e dimensões especiais e superlativas, que não tinham a ver com razões mágicas mas sim históricas e materiais: o curso histórico muito original de Cuba, a frustração brutal de sua independência pela intervenção do imperialismo americano, sua segunda frustração em 1933, sua formação econômico-social com um jugo quase colonial em relação aos EUA… em suma, todas as tensões que este desenvolvimento desigual e combinado gerou…
Em outros países da América Latina, estes tema do populismo e seus caudilhos, tais como apresentar-se acima das classes e incorporar a “pátria”, o “povo”, a “nação”, acabaram sendo coisas de ficção política (embora, é claro, a existência e o sucesso destas ficções indiquem elementos reais por trás delas).
Mas, em Cuba, muito mais do que em outros países, isso estava em sintonia com fatores e contradições reais e poderosos, desde a independência tardia e fracassada até diversas formas de relativa “desclassificação” ou “enfraquecimento” de todas as classes sociais, com relações “anormais”, conflituosas, de crise com as antigas instituições, organizações políticas, forças armadas, etc., que foram incluídas no repúdio universal da chamada “politicagem”. Ao mesmo tempo, não havia maior clareza sobre as alternativas a tudo isso.
Esses elementos facilitaram a ascensão de um caudilho e de um movimento que surgiu acima de toda essa imundície, representando os interesses gerais e superiores do país. O lema com o qual este grande líder se levantaria – “Pátria ou morte” – seria sério desta vez, embora ao mesmo tempo seu programa explícito fosse inicialmente vago e moderado.
“Cuba estava entre os países economicamente mais avançados da América Latina, com importantes classes burguesas, médias e operárias. Mas essas classes haviam sido fragilizadas politicamente após a revolução de 1933, da qual os capitalistas cubanos emergiram com um declínio significativo em sua hegemonia. Um grupo de sargentos amotinados substituiu o oficialismo proveniente dos círculos superiores da sociedade cubana. A classe operária estava altamente organizada em sindicatos, mas estes haviam se tornado muito burocráticos e corruptos… o que dificultou que essa classe desempenhasse um papel significativo na luta contra Batista… [Também,] nos anos 50, os fracos partidos políticos pré-Batista haviam se desintegrado, refletindo a fraqueza política de todas as classes… Era uma situação em que o Bonapartismo podia prosperar… um líder político que adquiriu um grau considerável de poder e liberdade de ação em relação tanto às classes dirigentes quanto às subordinadas (…) Por outro lado, havia uma liderança política revolucionária que, longe de ser uma pequena burguesia radical (como disse o PSP), era “sem classe”, no sentido de que não tinha fortes laços orgânicos ou institucionais nem com a pequena burguesia nem com as outras principais classes sociais” (Farber, cit., pp. 115 e seguintes).
Por outro lado, o Movimiento 26 de Julio e o Ejército Rebelde foram movimentos notavelmente juvenis, começando com seu líder máximo. Muito tem sido dito sobre isto, mas menos se tem pensado em suas implicações políticas e sociais. Eles compartilharam, tanto por causa de sua idade quanto pela desestruturação social de seus militantes e combatentes, as características da estudantada. Como assinalamos anteriormente, os estudantes, embora sejam oriundos de famílias burguesas e de classe média, e apenas uma minoria dos setores da classe trabalhadora, ainda não estão totalmente integrados nas relações de suas classes de origem. Assim, sob o impacto dos problemas gerais da sociedade – crises graves, ditaduras, injustiças flagrantes, opressão nacional, etc. -, muitas vezes podem ser orientadas em outras direções e defender outros interesses que não os de sua classe original.
Este processo de “desclassificação” (relativa) não deixou, entretanto, incólume os combatentes do M-26/7 e do Ejército Rebelde individualmente. Eles não foram de forma alguma “desclassificados” no sentido comum de “marginalidade”. Poderíamos dizer que sua “classe” sui generis ou, mais precisamente, sua estrutura social ou setor social imediato ao qual pertenciam, era essa mesma instituição pró-estatal, o exército do movimento (que logo se tornaria o Estado diretamente). Suas relações com as outras classes da sociedade foram estabelecidas através desta mediação, o que lhes deu considerável autonomia.
Desta forma, Castro e seu exército-movimento, no caminho para tomar o poder, puderam ganhar apoio de todas as classes sociais, sem serem ao mesmo tempo representantes diretos e orgânicos de nenhuma delas em particular.
No ângulo oposto, o regime de Batista acabou ganhando também o repúdio de todo o espectro social. Um amplo setor da elite tradicional sempre detestou o ex-sargento mulato (mesmo por razões aristocráticas-racistas) e se voltou para apoiar Fidel, no qual eles viram (erroneamente) um deles. A Igreja e a Maçonaria fizeram o mesmo. O resto da sociedade deu voltas idênticas: a Universidade, desde o início, tinha sido um duro foco de oposição; os trabalhadores, embora manietados por seu aparato sindical para agir como uma classe, também não queriam o ditador, e se voltaram cada vez mais para Castro. Mesmo as frações liberais do imperialismo estadunidense começaram a simpatizar massivamente com os barbudos, como refletido, por exemplo, no influente New York Times. No final, Batista, diretamente, representou apenas uma burguesia lúmpen de funcionários corruptos das Forças Armadas e parceiros cubanos das máfias estadunidenses.
Este “esvaziamento social” foi mortal não só para a ditadura, mas também para o estado burguês, pois levou à crise das forças armadas, que acabou desmoronando. Isto deixou o Movimiento 26 de Julio e sobretudo o Ejército Rebelde como o único poder estatal, no sentido pleno da palavra.
Rumo à ruptura com o Imperialismo, independência nacional e expropriação do capitalismo
Um novo estado estava assim começando a ser formado. Mas, por sua vez, este movimento e este exército, em primeiro lugar seu “Comandante-em-Chefe”, haviam adquirido anteriormente – como já assinalamos – “um considerável grau de poder e liberdade de ação em relação tanto à classe dominante quanto à classe subordinada”…“uma liderança política revolucionária que, longe de ser uma pequena burguesia radical…não tinha fortes laços orgânicos ou institucionais nem com a pequena burguesia nem com as outras principais classes sociais”.
Isso estabeleceu a grande diferença com o restante dos populismos de ontem e de hoje, de Juan Domingo Perón ou Jorge Eliécer Gaitán a Chávez…sem mencionar as “frentes policlassistas”; isto é, as clássicas “frentes populares”, no estilo da Unidade Popular Chilena de Salvador Allende, com correntes e partidos organicamente ligados a setores da burguesia, do aparato estatal (incluindo as forças armadas), da pequena burguesia e, sobretudo, às burocracias sindicais e políticas de “esquerda”.
É sobre esta diferença fundamental do sujeito político da revolução que os fatores “objetivos” atuarão, dentre eles (não o único) “a pressão do imperialismo americano”. E é devido a esse fator subjetivo, que as pressões do imperialismo darão, nesta ocasião, um resultado completamente diferente do resto dos casos em que foram aplicadas.
Por outro lado, este sujeito político não responderia simplesmente a estas “pressões” e ataques. As mais recentes investigações de historiadores marxistas -como Samuel Farber e Richard Got-, que também foram capazes de lidar com montanhas de documentação desclassificada tanto do Departamento de Estado como da ex-URSS, provam que de forma alguma a liderança cubana foi uma folha na tempestade, para a qual os ventos que sopravam levaram à ruptura com os EUA, primeiro, e à expropriação, depois. As primeiras iniciativas que configuraram o casus belli – tais como a Lei de Reforma Agrária, moderada mas inaceitável para os EUA e a oligarquia cubana – foram tomadas pela liderança de Castro sem consulta, negociações ou aprovação de Washington. Isto implicou na quebra consciente de uma regra colonial não escrita, mas obedecida desde 1902 por todos os governos da ilha (com exceção dos “100 dias” de Guiteras).
Em outras palavras, desde o início, Fidel não começou por defender-se, mas atacando o grande problema herdado de 1898-1902: a independência nacional de Cuba.
Naturalmente, isto não significa que estava nos planos de Castro chegar à expropriação do capitalismo. Mas também não significa que a condução da revolução tenha sido um objeto que se moveu porque outros estavam empurrando-a.(11) De qualquer forma, já em 1958, Castro escreveu confiantemente a Celia Sanchez que quando a guerra contra Batista terminasse, ele “começaria outra grande e muito mais longa guerra contra os Estados Unidos”. (Farber, “As Origens…”, 65) E sua previsão estava correta, e era para isso preparava-se: a revolução trazia mais uma vez à tona aquele grande problema histórico da independência nacional, que foi o fio ininterrupto que uniu as lutas heroicas do século XIX com as revoluções de 1933 e 1959.
Mas estas e outras considerações não foram expressas em um “programa” público (no estilo marxista), mas no segredo do círculo interno do “Máximo Líder”, como tem sido a regra de todos os bonapartismos e caudilhismos.
Como é a regra entre os movimentos populistas, M-26/7 não tinha um programa geral claramente formulado e o que foi escrito não era, de fato, muito avançado. Mas é não entender este tipo de movimento, querer medi-los com a vara dos partidos marxistas e dos operários, onde a questão do programa público e claramente formulado ocupa um lugar central. Nos movimentos populistas, poderíamos dizer que o programa se expressa principalmente no líder e suas ações, onde as considerações táticas têm também um peso transcendental em relação às mais estratégicas. Mas isto não implica, de forma alguma, que eles não possuam uma ideologia, que é muito forte e decisiva no caso do populismo radical cubano, com as profundas raízes históricas que já examinamos.
“Em contraste com as análises que retratam os líderes cubanos como meramente reagindo às políticas e ações dos EUA, sustento que esses líderes foram atores fortemente influenciados por suas próprias predisposições políticas e inclinações ideológicas. As mentes dos líderes cubanos não foram moldadas principalmente pela política dos EUA em relação a eles nos anos 1959 e 1960, mas em relação à política anterior dos EUA em Cuba e em outros lugares… e o fato mais importante foi, naturalmente, a política dos EUA em relação a Cuba desde o final do século 19… […] Castro era um caudilho, mas um caudilho com ideias. [Farber, “As Origens…”, 112 e seguintes].
O curso da revolução cubana rumo à independência nacional e à expropriação da burguesia não foi, portanto, uma expressão de qualquer “lei da gravidade” da política, mas o resultado de uma luta entre sujeitos políticos e sociais.
Naturalmente, como em qualquer processo histórico, na Revolução Cubana houve uma dialética de ação (e luta) dos sujeitos políticos e sociais – revolucionários e contrarrevolucionários – entrelaçada com os fatores relativamente mais “objetivos”.
Entre esses fatores estava, por exemplo, a existência da União Soviética, que naqueles anos parecia mesmo estar ganhando a corrida pelo desenvolvimento econômico e a influência geopolítica dos EUA. Este foi um fator que mesmo antes do triunfo da revolução entrou no horizonte das manobras M-26/7 (embora ao mesmo tempo, oficialmente, tenha sido apresentado aos EUA e especialmente à imprensa norte americana, como não “comunista” e até como “anticomunista”). (12)
Esta dialética de luta entre sujeitos revolucionários e contrarrevolucionários, combinada com fatores mais “objetivos”, estava levando, como sempre, a resultados que iam além e/ou eram diferentes daqueles previstos pelos diferentes atores.(13) Mas isto não tira o fato, ao contrário, de que os elementos determinantes destas combinações estavam nos sujeitos político-sociais.
Exército guerrilheiro, estado operário e transição ao socialismo
O M-26/7 e especialmente o Ejército Rebelde tornou-se o núcleo do novo estado. O que isso significava concretamente? Que eles se tornaram um aparelho burocrático que agora exercia funções estatais, ainda mais facilmente devido a sua relativa autonomia em relação a todas as classes da sociedade, sobre as quais eles haviam ” ascendido ” muito antes da tomada do poder.
Todo exército constitui necessariamente um aparelho disciplinado de cima para baixo. Mas, neste caso, foi um duplo verticalismo, pois não foi o exército de um movimento operário revolucionário, com organismos de classe democráticos (conselhos de trabalhadores, sindicatos revolucionários, partidos, etc.), mas as forças armadas de um movimento populista, que por sua vez funciona sob as regras de obedecer sem reservas às ordens do caudilho, agora oficialmente transformado em “Comandante-em-Chefe” e “Líder Máximo”.
De acordo com o estreito marco objetivista que caracterizou (e continua a caracterizar) a maioria do trotskismo do pós-guerra, a expropriação dos capitalistas teria dado, por si só, um caráter de “operário” ao novo Estado. Mas, infelizmente, “o estado operário que emergiu desta revolução não se baseou em conselhos de trabalhadores e camponeses, mas o exército guerrilheiro que se apropriou do poder estatal estabeleceu um regime que reproduziu sua estrutura verticalista, ou seja, um estado operário burocraticamente deformado”.
Mesmo que dependessem da classe trabalhadora (assim como de outras classes e setores da sociedade e do “povo” em geral), nem o M-26/7 nem o Ejército Rebelde, que agora constituía o Estado cubano, se tornaram automaticamente “operários” ao expropriar a burguesia. Suas relações com a classe operária continuaram a ser uma continuidade do período anterior.
O que foi feito (neste caso, a expropriação) não transforma magicamente a natureza social de quem o fez, nem como o fez.
Insistimos: a relação do novo poder com a classe operária e a sociedade como um todo continuou, com mudanças, a relação pré-1959 de Fidel e seus M-26/7 e Ejército Rebelde. Antes disso, buscou “o apoio de todas as classes sociais, sem ser ao mesmo tempo representantes diretos e orgânicos de nenhuma delas em particular”.(14) Agora, após o rompimento com a burguesia, o fez contando com o “povo” em geral, incluindo o proletariado. Mas isto não fez do novo Estado e de seu governo a expressão direta e orgânica da classe trabalhadora.
O novo Estado não será, então, a encarnação política da classe operária cubana, mas de uma burocracia, que a ausência de uma burguesia em nível exclusivamente nacional (embora não, é claro, em escala mundial) faz um “híbrido”: não é (ainda) uma burguesia, mas “é algo mais do que uma simples burocracia”. É a única camada social privilegiada e dominante, no sentido pleno desses termos, na sociedade. [L. Trotsky, “La revolution trahie”, p. 602]
Uma coisa é dar apoio. É muito diferente é decidir; isto é, exercer o poder
A direção deste estado burocrático, especialmente nos primeiros anos, recebeu o apoio fervoroso e sincero da maioria do povo cubano (incluindo a classe operária). Este apoio concentrou-se sobretudo no caudilho desta grande revolução, Fidel Castro.
Mas que os trabalhadores e as massas populares apoiem, não é o mesmo que a classe trabalhadora decida; ou seja, que ela exerça o poder (sua ditadura de classe), nem governe por meio de seus próprios órgãos de poder. O apoio é uma coisa. É bem diferente decidir, ou seja, exercer o poder.
Este abismo pode ser bem medido, comparando os dois grandes slogans da Revolução Russa de 1917 e da Revolução Cubana de 1959, respectivamente. O primeiro foi: “Todo poder aos conselhos de operários (soviets)”, que naquela época eram órgãos de massa extraordinariamente democráticos. No segundo, foi: “Comandante em chefe, ordene!”
Anos mais tarde, isto facilitaria uma simbiose entre o regime populista-bonapartista nascido da grande revolução de 1959 e o da burocracia Kremlin (que surgiu de uma das piores contra revoluções da história, a do estalinismo). Isso foi possível em grande parte porque ambos compartilharam esse “verticalismo”, que constitui ao mesmo tempo não só a negação da democracia operária, mas também de que o poder, o Estado, seja realmente da classe trabalhadora e, como veremos abaixo, e possa avançar na transição para o socialismo (dentro do que é possível para um pequeno país isolado).
Entretanto, como acontece na biologia, esta “simbiose” associou dois “sujeitos” de espécies diferentes: 1) o regime verticalista (mas no fundo caótico e sem regras claras), o populista-bonapartista do grande líder revolucionário, o Comandante em Chefe que se coloca acima de tudo e de todos; 2) o regime burocrático cinzento, impessoal, conservador e já petrificado do bloco soviético na era Brejnev.
Na grave crise do início dos anos 90, os dois aspectos desta “simbiose” se manifestaram claramente… e foi o primeiro deles, encarnado em Fidel Castro, que voltou ao centro do palco. Apesar de tudo, ele ainda era o portador da legitimidade da revolução de 1959. E isto não foi menos importante para vir à tona naquela crise gravíssima, enquanto na União Soviética e nos países do Leste Europeu os regimes burocráticos estavam se desmoronando como um castelo de cartas.
Uma grande revolução democrática e popular anti-imperialista que expropriou o capitalismo e conquistou a adiada independência nacional
O resultado da grande revolução de 1959 foi, então, contraditório. Suas duas imensas conquistas foram a independência nacional e a expropriação do capitalismo (dois pontos que, como vimos, no caso de Cuba, estavam qualitativamente mais entrelaçados que em outros países latino-americanos). É nesta base (e aproveitando a rivalidade geopolítica entre o imperialismo estadunidense e o bloco soviético) que Cuba conseguiu outras conquistas, como um notável (e muito mais igualitário) desenvolvimento em saúde e educação, e a erradicação da miséria, da extrema pobreza que castiga outros povos latino-americanos em maior ou menor grau.
Mas, ao mesmo tempo, isto não significou o estabelecimento de um estado ou poder dos operários, nem o estabelecimento de uma economia de transição ao socialismo, duas coisas que são inseparáveis uma da outra. O fato é que não há “automatismo” que, a partir da expropriação, faça a economia (e globalmente a formação econômico-social) marchar no sentido socialista. Tudo depende, em primeiro lugar, de quem lidera o processo revolucionário e como ele o faz! É por isso que a Revolução Cubana pode ser caracterizada como anticapitalista, mas não se tornou realmente socialista. Se há alguma lição a ser tirada do lamentável fim das dezenas de “países socialistas” que apareceram (e desapareceram) na segunda metade do século 20, é que neles não foi a classe operária e trabalhadora que os conduziu, nem foi ela quem realmente exerceu o poder. A revolução socialista ou é liderada pela classe operária com suas organizações de massa e seus partidos, ou não é uma revolução socialista.
Em Cuba, devido a uma série de fatores excepcionais, este final lamentável para a restauração capitalista foi adiado. Hoje em dia, as pressões estão aumentando nessa direção. Mas, simultaneamente, a classe operária cubana teve a oportunidade de ter um tempo extra para agir antes de que a derrota para ela e para os povos do continente seja consumada.
A partir da defesa das duas grandes conquistas da revolução de 1959 – emancipação nacional e expropriação do capitalismo – os trabalhadores, se mobilizarem com independência e consciência de classe, podem impor outro resultado.
Notas:
1. Em 1933, uma revolução foi desencadeada, liderada pela classe operária. A revolução começou com uma greve dos motoristas de ônibus em Havana, em julho. “Isto levou a um confronto sangrento entre os motoristas e a polícia. Mas outros trabalhadores aderiram à greve… Em agosto, o que havia sido um protesto operário comum se transformou em uma greve geral com características insurrecionais. [Gott, 135].
Aterrorizados, a Embaixada dos Estados Unidos e a burguesia cubana deixam Machado sem apoio e o aconselham a renunciar. O ditador fugiu em 12 de agosto. Mas isso não acalmou as coisas: “Sua queda levou à primeira revolução cubana do século XX…Sem a pressão da ditadura…desencadeou-se um aumento do fervor revolucionário…A onda de agitação se espalhou pelas regiões de cana de açúcar até os engenhos de açúcar mais distantes… [Gott, 135-136]
Um relatório dos observadores estadunidenses descreveu a situação da seguinte forma: “Há uma estimativa de 36 usinas sob o controle de operários. Os soviéts foram organizados em Mabay, Jaronu, Senado, Santa Lúcia e outros engenhos de açúcar. Guardas operárias foram formadas, armados com bastões e armas. Uma braçadeira vermelha serve como seu uniforme. Os operários confraternizam com os soldados e a polícia… Durante a primeira etapa do movimento, as manifestações em Camaguey e no Oriente foram frequentemente lideradas por um operário, um camponês e um soldado…”. Citado por Gott, 136] Este relatório acrescentava que os comitês operários haviam assumido as ferrovias, alguns portos e pequenas cidades. Eles também tinham começado a organizar a distribuição de alimentos à população e a distribuir a terra.
2. O Partido Socialista Popular (PSP) é o nome adotado em 1942 pela organização estalinista em Cuba.
3. Em janeiro de 1936, com a revolução já derrotada, Batista prevê uma abertura democrática e convoca a eleições. As figuras reformistas do Directorio, como Grau San Martín e Prío Socarrás, adaptaram-se imediatamente à situação, fundando o Partido Revolucionário Cubano Autêntico (copiando o nome da organização política de Martí). Na verdade, um partido burguês normal, com militância de classe média, que atuou como “oposição de Sua Majestade” ao regime Batista.
4. O primeiro Directorio Estudiantil foi criado em 1927, quando o ditador Machado estava preparando uma reforma para poder ser reeleito. Ele foi imediatamente dissolvido pela repressão, mas isto levou muitos de seus ativistas a formas mais clandestinas e violentas de oposição. Em setembro de 1930, o Directorio é restabelecido como uma organização secreta e inicia uma forte campanha terrorista.
5. Em 4 de setembro de 1933, uma rebelião de sargentos, corporais e soldados, liderada por um mulato de origem humilde -Fulgencio Batista Zaldívar- ocorreu na principal guarnição militar, Camp Columbia, em Havana. A Direção Estudantil se une à “rebelião dos sargentos”. A partir de então, o antigo oficialismo foi expulso do Exército. Sargentos e cabos, como Batista, tomaram seus postos. Dias mais tarde, esta coalizão do Directorio com Batista e seus sargentos estabeleceu um novo governo, provavelmente o primeiro na República que não foi acordado com o embaixador dos EUA, que foi rápido em negar seu reconhecimento. Passou para a história como o “governo dos 100 dias”.
Foi presidido por Ramón Grau San Martín, um médico e professor rico ligado ao Directorio Estudantil, um reformador morno. Entretanto, Antonio Guiteras, Secretário do Interior, que era a ala mais radical do novo governo, e que assumiu a liderança da revolução na época, foi quem assumiu nesse momento o comando da revolução. Mas, ao mesmo tempo, o sargento Batista consolidou seu comando do novo exército…e discretamente se associou à Embaixada.
6. Inicialmente, a famosa convocação de Guevara para fazer “um, dois, três Vietnãs” e as atividades que ele liderou pessoalmente, primeiro na África e depois na guerrilha derrotada na Bolívia, onde ele morreu em 1967, apontavam em uma direção internacionalista que se chocou com a política de “coexistência pacífica” promovida pelo Kremlin. Aqui não podemos fazer um balanço abrangente dessas tentativas, ambas falharam. Apenas pontuemos, em relação à América Latina, que as boas intenções de Guevara de levar a cabo uma luta revolucionária continental que resgatasse Cuba do isolamento e infligisse uma derrota capital ao imperialismo resultou numa estratégia desastrosa: a do foco guerrilheiro.
7. Em 1936, o stalinismo pactua com Batista para dar-lhe apoio político em troca da legalidade e seu patrocínio para tomar o aparato sindical. “As pessoas que trabalham para derrubar Batista – declarou a revista da Internacional Comunista – não estão agindo no interesse do povo cubano”. Batista permitiu que o PCC formasse uma nova central operária, a CTC, liderado por Lázaro Peña, um operário negro da indústria do fumo. Após o triunfo da Revolução, Fidel Castro o colocará à frente da CTC.
8. “A direção [mujalista] dos sindicatos suprimiu à força todas as forças dissidentes que ameaçavam seu pacto [com Batista]. A classe operária organizada sofreu assim uma dupla ditadura: a de Eusebio Mujal e a de Fulgencio Batista. Sem organizações autônomas, a classe trabalhadora foi atomizada. O principal resultado foi que os trabalhadores que se voltam cada vez mais contra Batista o fizeram como cidadãos individuais, e não como membros de organizações coletivas da classe operária. ” [Farber, “The Origins …”, 128]
9. Um exemplo típico de “frente policlassista” ou “frente popular” foi a UP (Unidade Popular) do Chile, que governou com Salvador Allende de 1970 a 73. O M-26/7 não era, é claro, uma organização sindical, mas, ao mesmo tempo, pouco tinha a ver com essas coalizões.
10. O marxismo revolucionário do século XXI herdou o peso morto das explicações “objetivistas” das revoluções do pós-guerra, que viraram de cabeça para baixo a teoria da revolução permanente, centrando-se não sujeitos sociais e políticos, mas nos chamados “fatores objetivos”, os ataques do imperialismo, as crises econômicas, as tarefas “objetivas” colocadas pela revolução, etc., etc. Esse debate, então, é de rigorosa atualidade, para analisar esse problema teórico como um todo, recomendamos ver no SoB nº 17/18 “Notas sobre a teoria da revolução permanente”, de Roberto Sáenz; especialmente, “Críticas à concepção das revoluções “socialistas objetivas”.
11. No trotskismo do pós-guerra, revisões “objetivistas” e/ou “substituistas” da teoria da revolução permanente foram feitas para explicar como esse tipo de sujeito político-social expropriou a burguesia. Tiveram expressões muito variadas, como as de Mandel ou de Moreno, mas dentro desses parâmetros.
Mandel, sem dizer que estava colocando tudo de ponta cabeça, apresentou como uma “teoria da revolução permanente” uma mistura original de “substitucionismo” e “objetivismo”. Falou que “a ditadura do proletariado foi estabelecida na Iugoslávia, China, Vietnã e Cuba por direções revolucionárias pragmáticas, que têm uma prática revolucionária, mas não a teoria ou o programa adequado, nem para sua revolução nem menos ainda para a revolução mundial”. [Mandel, In Defense of the Permanent Revolution, p. 54] Claro, dessas “direções revolucionárias pragmáticas” seu caráter social nunca foi claro.
Moreno, por sua vez, assume francamente que está revisando a teoria da revolução permanente. Mas, ao contrário de Mandel, ele tenta manter uma posição mais independente das direções burocráticas. Sua solução foi passar os sujeitos para um plano secundário. A revolução se moveria não pela luta entre sujeitos históricos, sociais e políticos, como argumentou Trotsky, mas movida por uma “combinação objetiva de tarefas”. Essas “combinações objetivas de tarefas” estabeleceriam uma espécie de lei da gravidade dos processos revolucionários. Moreno dá um carro como exemplo: “Para um carro andar, existem duas maneiras, uma é alguém dar a partida e movimentar; outra é subir uma ladeira e o carro se mover [sozinho]. Neste último caso, o movimento é objetivo, não o para ninguém, é um processo objetivo. ” [Moreno, “Critique …”, 18] No entanto, a história da Revolução Cubana nega esse tipo de “lei da gravidade” das revoluções. O carro da revolução cubana tinha um motorista, Fidel Castro e seu exército-movimento nacional-populista. As voltas e direções desse carro, seja em ladeira ou em subida, foram dadas por aquele sujeito político-social que estava ao volante.
12. Está documentado que, já em 1958, foram tentados contatos com o bloco soviético, por meio de empresas dessa origem na Costa Rica, com um objetivo imediato: obter armas que foram negadas nos Estados Unidos. Após o triunfo da revolução, os contatos com Moscou foram administrados preventivamente quase imediatamente e por iniciativa cubana, muito antes de começarem os atritos com os Estados Unidos em torno da Lei da Reforma Agrária e outras medidas. Ao mesmo tempo em que tudo se processava em estrito sigilo, Castro publicamente, e mesmo em viagem aos Estados Unidos, evitava ambiguamente assumir compromissos que começavam a ser exigidos por Washington, para tirar as dúvidas e temores que sua política suscitava no imperialismo. Partindo desses e de outros fatos, uma legião de charlatães, ao estilo de Montaner, especulou sobre a “conspiração comunista” dos Castros e Che Guevara, liderada de Moscou, que explicaria tudo o que aconteceu. Na verdade, o Kremlin estava completamente desinteressado pelo que acontecia em Cuba, que considerava, no âmbito dos acordos de Yalta-Potsdam, parte da esfera de influência dos Estados Unidos. Tanto em relação aos Estados Unidos como à União Soviética, foi a liderança cubana que tomou a iniciativa, e não o contrário, inicialmente dentro de uma política pragmática para aproveitar o confronto entre os dois blocos da guerra fria. [Gott, 178 a 183], [Farber, “The Origins …”, 143 e seguintes].
13. Um exemplo dessa dialética entre o subjetivo e o objetivo foi a expropriação final da burguesia. No início dos problemas do governo de Castro com os Estados Unidos e diante de medidas ainda moderadas (Lei de Redução de Rendas, Reforma Agrária etc.), a burguesia cometeu o erro de ir em massa para Miami. Muito antes de ser expropriada, a burguesia tirou uma espécie de “férias”, certa de que o “Big Brother” de Washington colocaria “a casa em ordem” em semanas ou meses. O superlativo “cipayismo” ou “malinchismo” da burguesia cubana, na qual o anexacionismo ainda estava vivo, prega uma peça nisso. Sua decisão de sair é respondida com a intervenção em suas empresas e fazendas, e depois com a desapropriação. [Murray, 48 ff.] Seus filhos e netos ainda estão esperando para voltar … e obter suas propriedades de volta.
14. Esta localização (relativamente) “acima” das classes também pode ser ilustrada pelos episódios (muito menos conhecidos) de confrontos com setores de trabalhadores durante o mesmo processo revolucionário. Assim, Castro, em 21 de maio de 1959, saiu para enfrentar duramente os camponeses e trabalhadores rurais que haviam iniciado a distribuição de terras. Seria ele, lá de cima, quem daria conta disso por meio da Lei da Reforma Agrária, não os camponeses ou os trabalhadores rurais! [Murray, 62]. O mesmo aconteceu em relação às greves de trabalhadores, condenadas antes mesmo da desapropriação das empresas privadas. Em relação aos sindicatos, algum tempo depois de os burocratas mujalistas que serviram à ditadura serem varridos pelos próprios trabalhadores, Castro iniciou de cima um expurgo de dirigentes – a maioria deles a partir de 26 de julho – que não eram incondicionais, e substituiu-os principalmente por burocratas do PSP, de obediência garantida. [Farber, “The Origins …”, 122-123, 125-126, 163] [Murray, 94 e segs.]
Textos citados:
– “Brief History of the Cuban Labor Movement & Social Policy”, Gente de la Semana, Vol. 1, Havana, January 5, 1958, No. 1, American Edition.
– Claves Nº 1, “1959: ¿Qué fue la revolución cubana?”, 03/04/08
– Farber, Sam, “The Origins of the Cuban Revolution Reconsidered”, University of North Carolina Press, USA, 2006.
– Gott, Richard, “Cuba – A new history”, Yale University Press, USA, 2005.
– Mandel, Ernest, “In Defence of the Permanent Revolution”, International Viewpoint, 32, 1983.
– Murray, Joseph P., “La segunda revolución en Cuba”, Iguazú, Buenos Aires, 1965.
– Trotsky, “La révolution trahie”, en “De la révolution”, Les Éditions du Minuit, París, 1963.
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Publicação original: http://izquierdaweb.com/60-anos-de-la-revolucion-cubana-fidel-castro-la-clase-obrera-y-el-socialismo/
Tradução: Antonio Soler