Superar amarras burocráticas para derrotar Bolsonaro e restabelecer direitos democráticos
ANTONIO SOLER
Vivemos uma conjuntura defensiva nesses seis meses de governo Bolsonaro, na qual as tendências da luta de classes predominantes são reacionárias, mas não podemos deixar de observar as contradições que colocam um cenário político vivo e prenhe de possibilidades de reversão da correlação de forças.
Embates entre poderes da república e unidade contra os trabalhadores
Bolsonaro governa a partir de Decretos que confrontam a legislação vigente, questiona abertamente os demais poderes e fortalece a ala militar no interior do seu governo.
Essa situação produz tensões entre as frações da classe dominante que manifestam-se, dentre outras formas, nas constantes disputas entre governo, parlamento e justiça. São muitos os embates entre os poderes, em alguns deles o governo é derrotado, mas reedita Decretos e Medidas Provisórias (MPs) e em alguns casos consegue fazer avançar sua agenda ultrarreacionária.
Na MP 870, editada para reorganizar o governo, a demarcação das terras indígenas deixaria de ser feita pela FUNAI (órgão ligado ao Ministério da Justiça e que cuida historicamente dessa questão) e passaria para o Ministério da Agricultura, o que significa deixar colocar a raposa para cuidar do galinheiro. Como o Congresso rejeitou a MP, o governo editou uma nova MP mantendo a demarcação das terras indígenas no Ministério da Agricultura em um claro desrespeito à regra de que o Executivo não pode no mesmo ano enviar duas MPs com o mesmo teor ao Congresso.
Esse impasse foi resolvido por liminar contrária ao governo concedida pelo Ministro do STF Luis Roberto Barroso, que devolveu a demarcação para o Ministério da Justiça. Mas, mesmo assim, as novas demarcações estão ameaçadas – mais de 500 territórios indígenas aguardam passar pelo processo de demarcação.
Outra rusga entre os poderes ocorreu em torno do Decreto que amplia o porte de armas e munição para uma série de categorias profissionais, para colecionadores e praticantes de tiro, o que está totalmente em desacordo com a Lei do Estatuto do Desarmamento. A Comissão do Senado que analisou a matéria a considerou ilegal com 15 votos contra e 9 a favor, pois essa flexibilização proposta pelo Decreto está totalmente em desacordo com a lei, o que não se admite em sistema legal algum. No entanto, essa matéria ainda será votada em Plenário e medidas deste governo para armar parte de sua base política, como a flexibilização da posse de armas em moradias, comércio e indústria com o objetivo de armar sua base social, está em pleno vigor.
O governo através de Decreto extinguiu órgãos (Conselhos, Comitês e Comissões) colegiados da administração pública federal. Como muitos desses órgãos foram criados por lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o Decreto governamental em mais uma derrota de Bolsonaro. Desta forma, os órgãos criados por Decretos poderão ser extintos pelo governo, o que torna ainda mais antidemocrática a administração pública.
Congresso e Judiciário reagem e procuram se fortalecer em meio ao jogo de forças instalado na política nacional desde 2013. Esse é o caso, por exemplo, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que obriga o poder Executivo a cumprir Emendas Orçamentárias Coletivas dos parlamentares. Agora tramita uma PEC no Congresso que amplia o poder das lideranças partidárias em relação às MPs do Executivo. Se aprovada for, as MPs deverão ser votadas em Comissões Especiais em até 40 dias ou caducarão (o prazo anterior para aprovar as MPs era de 120 dias), além disso, serão os líderes dos partidos que indicarão os membros das Comissões.
O judiciário, através do STF, também tem procurado se posicionar no jogo político nacional. Vota de maneira favorável ao Congresso e medidas “progressivas”, mas, também, demonstra que há alinhamento das instituições burguesa em torno dos “ajustes”. O mesmo STF que votou pela criminalização da homofobia aprovou que privatização das estatais – dentre elas a Petrobrás – podem ser feitas pelo governo sem passar pelo Parlamento, o fortalece o governo em benefício dos ajustes neoliberais.
Em meio ao caos aparente e derrotas parciais impostas pelos demais poderes, Bolsonaro age sistematicamente para ampliar o poder presidencial, atacar conquistas históricas e fortalecer sua base social com medidas que significam retrocessos profundos em conquistas sociais. Para estabelecer essa ofensiva, o governo se apoia em uma base eleitoral de massas que tem forte atuação nas redes sociais e demonstra força de mobilização nas ruas. Mas seu ultra reacionarismo não é majoritário na sociedade brasileira.
O freio e a reversão dos ataques do governo não podem ser realizados pelos demais poderes burgueses, pois têm o projeto comum de impor profundos “ajustes” neoliberais. Além de refletir a disputa entre frações da classe dominante e da oligarquia política, os embates entre Executivo, Congresso e Judiciário (que tem um pacto espúrio em torno da ‘reforma” da Previdência, privatizações e dos demais “ajustes”) só podem ser entendidos a partir da importante resistência das ruas que, se ainda não são fortes o suficiente para derrotar de forma categórica a brutal “reforma” da Previdência, cumpre um papel decisivo para frear o furor autoritário de Bolsonaro.
Essa vivacidade política e a forte oposição ao governo têm sido demonstrada de formas distintas desde o começo do ano: no Carnaval, nas passeatas do 8 de março, nas mobilizações estudantis, na Greve Geral e na última Marcha LGBT em São Paulo. Por conta dessa vitalidade, pelo crescente descontentamento popular e pela acumulação das contradições políticas no interior da classe dominante, não é uma hipótese desprovida de materialidade a possibilidade de impor derrotas categóricas a Bolsonaro e superar a defensiva. Mas, para isso os terríveis entraves burocráticos construídos pela burocracia precisam ser superados, permitindo que a juventude, as mulheres e a classe trabalhadora coloquem toda sua energia política em ação.
Vazamentos feitos pelo Intercept colocam elemento explosivo
Bolsonaro (PSL) foi eleito na crista da onda reacionária construída pela classe dominante e pelos principais partidos da oligarquia política tradicional. Esse resultado eleitoral tem seu peso na realidade e impôs uma situação de defensiva. Mas essa correlação de forças não significa, de antemão, que a classe trabalhadora tenha sofrido uma derrota histórica e não possa reverter a situação nos próximos lances da luta de classes.
Apesar da situação defensiva, existem elementos de resistência que formam contratendências que não são desprezíveis. Neste sentido, as denúncias do site Intercept – somadas à maior atividade de setores de massas contra os vários ataques do governo – coloca para a situação política um componente que, a depender dos desdobramentos vindouros, pode tornar-se fator explosivo e de reversão da dinâmica política.
Os vazamentos entre conversas de Sérgio Moro e integrantes da Procuradoria Geral da República da Operação Lava Jato deixam mais do que evidente que todo o processo que levou ao impeachment de Dilma, à prisão de Lula e à eleição de Bolsonaro tiveram nessa operação um aliado fundamental. Os diálogos vazados demonstram que o então Juiz Federal Sérgio Moro – que agora é Ministro da Justiça de Bolsonaro – atuou sistematicamente em parceria com a Procuradoria Federal em cada um dos momentos decisivos do processo político citado acima.
Todo esse processo constituiu uma manobra reacionária que significou um atentado à soberania popular e ao direito democrático do povo decidir. Em outras palavras, a eleição de 2018 foi fraudada para impor ao povo essa agenda ultrarreacionária em torno das reformas neoliberais, dos ataques aos direitos trabalhistas, das privatizações e etc.
Assim, as denúncias do site Intercept colocam em suspeição não apenas Moro e a prisão de Lula, mas todo edifício reacionário montado no Brasil a partir de 2014. Está provado que a eleição de Bolsonaro – sem falar em outros problemas, como é o caso dos disparos ilegais de milhões de mensagens pelo WhatsApp – foi uma fraude que precisa ser anulada. Assim, a luta pela libertação de Lula, em que pese as inconciliáveis diferenças que temos com o lulismo e sua política de conciliação permanente, corresponsável pela situação atual, coloca-se em um novo patamar. Junto com a luta contra a “reforma” da Previdência e todos os ataques do governo, a luta pela libertação de Lula ganha destaque em nosso sistema de consignas, pois se concretizada abre imediatamente uma conjuntura política totalmente distinta.
Como já discutimos em outras notas, não podemos fazer do “Lula Livre” uma campanha unidimensional, eleitoreira e desligada das demais demandas da classe trabalhadora, como faz a burocracia. Na qual sua libertação sirva à estratégia oportunista de desgaste do governo até a eleição presidencial de 2022. Foi justamente essa linha de confiar nas instituições burguesas – uma estratégia conciliatória, oportunista e traidora que a burocracia lulista repete incansavelmente – que levou à situação em que estamos hoje.
Estamos em uma situação política, devido ao peso que a burocracia tem sobre as organizações dos trabalhadores, que exige a defesa intransigente da unidade de ação com o lulismo, mas essa unidade deve ser combinada de forma indissociável com a diferenciação política (exigência e denúncia) com essa mesma burocracia. Pois, sem essa postura não podemos contribuir para a construção de um poderoso movimento para impor ao governo derrotas categóricas em seus ataques, reverter a correlação de forças e construir uma alternativa estratégica de direção para a classe trabalhadora.
Desta feita, a luta contra a prisão de Lula deve ser tomada com uma lógica oposta pelo vértice à levada pelo lulismo. Deve ser conectada à luta contra todos ataques do governo para tirá-lo do poder e impor novas eleições já. Ou seja, uma perspectiva estratégica que não confia nas instituições do regime, mas única e exclusivamente na luta e na auto-organização dos trabalhadores, medida de todas as coisas no campo político.
Hoje, a bandeira que mais unifica o conjunto da classe trabalhadora é a luta contra a “reforma” da Previdência, mas os vazamentos do Intercept desmascaram todas manobras antidemocráticas da ofensiva reacionária e potencializa uma crise política que deve ser aproveitada para impulsionar a luta contras as “reformas” e por saídas políticas dos trabalhadores.
Desta forma, não podemos cair nas alternativas politicistas, como as que o PT e cia apresentam, em que o “Lula Livre” significa esperar as próximas eleições, ou saídas economicistas, como de setores da esquerda socialista, que creem que basta lutar para derrotar a contrarreformas imediatas. É preciso, diante de toda crise política, apresentar uma saída política da classe trabalhadora, do contrário, ficamos submetidos às saídas políticas da burguesia (manter Bolsonaro no poder ao menos até passar a “reforma” da previdência) ou da burocracia (libertar Lula e esperar a eleição presidencial de 2022).
Para finalizar, a esquerda socialista, a começar pelo nosso partido (PSOL), precisa construir uma saída política própria. A nosso ver, essa saída política passa hoje pela combinação entre a batalha para impor uma derrota categórica à “reforma” da Previdência e aos demais ataques do governo combinada com a luta para devolver ao povo o direito democrático de decidir tirado pela ofensiva reacionária desde 2014. Tarefa política que alinha a luta para derrotar as contrarreformas, pela Libertação de Lula, pelo Fora Bolsonaro, Moro e Mourão e por Eleições Gerais já!