Apresentamos abaixo o texto Um mundo mais perigoso, um mundo mais polarizado. Parte 1, escrito por Roberto Sáenz. Essa elaboração tem a forma de um relatório político sintético sobre os informes, discussões e sínteses da recente Conferência Internacional (a segunda de 2024) da Corrente Socialismo ou Barbárie, que foi realizada para aferir a situação política mundial – e nacionais – e as tarefas a serem enfrentadas no segundo semestre do ano. 

De maneira geral, consolidou-se a avaliação da Conferência realizada em fevereiro deste ano de que estamos em um mundo em que se aceleram os desequilíbrios estruturais na economia, geopolítica, mundo do trabalho e ecologia, fazendo com que não apenas seja reenergizada a época clássica de crises, guerra e revoluções descrita por Lênin, mas novos elementos críticos são introduzidos no cenário,  tais como a crise ambientais e a reescalada nuclear, um caminho perigoso que pode levar à autodestruição se não for interrompido pela ação do movimento de massas.

Por outro lado, ainda que com traços distintivos, reafirma-se, também, a característica de bipolo na luta de classes mundial, caracterização que já levantávamos em 2018: temos o compasso mundial de um pêndulo que, conjunturalmente, move-se à direita, mas que encontra a resistência de rebeliões populares, revoltas e multifacetadas mobilizações em várias partes do mundo. Mobilizações fragmentadas pela ausencia ainda de direções à altura das demandas, mas, como a luta em defesa de Gaza, surgem movimentos unificados por baixo. 

Esses movimentos, em que pese que não reivindicam ainda um programa ou saída socialista, colocam nas ruas uma nova geração de lutadores e lutadoras que, resgatando métodos de lutas clássicos, apresentam uma vanguarda de massas e uma nova terrenalidade da qual os grupos revolucionários em sua maioria não tem sabido se somar. Isso ocorre pela ausência de uma balanço estratégico das revoluções do século XX, pela aderência ao neoestalismo, pelo economicismo, campismo… O que apenas serve para replicar táticas que atrasam o enfrentamento radical à formações e governos de extrema direita (vide concretamente os efeitos nefastos desta perda de bússola política na tática sectária pela FITU na eleições do Centro Estudantil da Universidade Buenos Aires) e a outros processos da luta de classes. Assim, segue a primeira parte do relatório de nossa conferência que colocamos ao debate. 

Redação

Um mundo mais perigoso, um mundo mais polarizado. Parte 1 

ROBERTO SÁENZ 

 “A desescalada nuclear que se seguiu à Guerra Fria acabou, alertou o Pentágono esta semana. Em seu lugar, uma nova rivalidade entre potências nucleares ou quase nucleares, algumas delas paranoicas, está em andamento. É mais complicado e menos previsível do que o velho conflito bipolar entre os Estados Unidos e a URSS. Isso o torna mais perigoso” (The Economist, 15/08/24) 

O relatório destina-se a transmitir uma “estrutura” revisando as definições gerais da corrente. Não considero que tenha havido grandes modificações em relação às coordenadas de que falamos e à estrutura geral de análise da corrente em relação à discussão sobre a situação mundial que realizamos na última reunião em fevereiro passado (2024). Há esclarecimentos e tarefas pendentes, por isso vai ser um relatório de trabalho. 

1- Do objetivo ao subjetivo (da ruptura do equilíbrio internacional ao reinício da experiência histórica) 

Primeiro, a definição geral é que entramos em uma nova etapa mundial cuja tendência básica é ao desequilíbrio. Recordemos que havíamos assinalado que o novo cenário mundial que se abriu desde 2008 (para marcar um evento estrutural) é de crise, guerras, revoluções, barbárie e reação, enriquecendo de alguma forma a definição clássica de Lênin. [1] 

Falando de modo simples: o sinal de estabilização desde o final dos anos 1970, com a contraofensiva thatcherista e reaganiana, a queda do Muro, o fim do “mundo bipolar”, a hegemonia ianque indiscutível, etc., foi revertido. O sinal atual é uma tendência permanente à desestabilização (uma desestabilização cada vez mais perigosa) com crescentes eventos de derramamento de sangue que entrecruzam guerra e rebelião (ou revolução), ou guerra e causas justas (como a emancipação nacional ucraniana ou palestina, causas que não eram visíveis na etapa anterior anterior). O contexto é o crescente desequilíbrio internacional em todas as esferas.[2] 

Há um novo livro de Alex Callinicos (que ainda não conseguimos ler) que tem um bom título: The New Age of Catastrophe.[3] O fato é que estamos em um período de catástrofes crescentes, embora esse fenômeno deva ser visto em toda a sua dialética (novamente esta “palavrinha”, muito útil como método para entender os acontecimentos do presente);[4] para ir contra as interpretações utilizadas pelas correntes majoritárias na Europa e no Brasil, que são céticas. Mas essa não é a nossa interpretação. A nossa é mais mediatizada. Vemos no mundo elementos de bipolaridade na luta de classes, conceito que cunhamos desde 2016 e que desenvolveremos a seguir. 

Outra definição que já vínhamos utilizando, mas que deve ser reafirmada, é que o século XXI configura uma nova totalidade (algo que começa a avaliar-se por volta da segunda década deste século). Houve uma totalização (etapa) entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais com um ciclo de revoluções socialistas triunfantes e frustradas (a russa triunfante, as outras frustradas: Hungria, Alemanha, Espanha, China); outra totalização ou etapa no segundo período do pós-guerra com as revoluções anticapitalistas, mas não socialistas (China, Vietnã, Iugoslávia e Cuba), o triunfo da URSS sobre o nazismo e o boom econômico capitalista no Ocidente; um terceiro, o da hegemonia indiscutível dos Estados Unidos no final do século passado, o mundo unipolar, a pós-modernidade, o fim da história, a queda do Muro, etc.[5] E, obviamente, estamos em uma nova totalização desequilibrante cujos processos e contornos estão abertos e onde ainda não há resultantes (daí as características de desequilíbrio da etapa, se houvesse resultantes, haveria um novo equilíbrio). 

Mais do que a palavra “desordem” usada pelo mandelismo (Pierre Rousset em alguns de seus informes ao “IV”), parece-me mais marxista, mais profundo, falar de uma nova etapa que reabre a época – que na verdade nunca havia sido fechada, como já apontamos – uma nova etapa de ruptura de equilíbrios e velhos consensos. Há visões impressionistas de correntes e autores marxistas, como o caso de Bensaïd, que propõem que a era das crises, guerras e revoluções chegou ao fim (por isso falam de “caos” planetário, que descritivamente é uma palavra aceitável, mas não indica tendências para nenhum lado; no final das contas, é um conceito pós-moderno)[6] e que se abriu uma “nova época” que coloca um ponto de interrogação para toda a estratégia teórica e política do marxismo revolucionário.[7] 

Passando do objetivo para o subjetivo em relação à nova etapa que atravessamos (ou seja, para o “reflexo” subjetivo dessa análise objetiva baseada no conceito de “caos planetário”), muitos marxistas e intelectuais cederam à pressão “melancólica” dos anos 90 com a queda do Muro de Berlim, circunstância vista como uma derrota do momento (restauração capitalista).  quando na realidade os antecedentes dessa derrota vieram de muito tempo atrás – o processo se confundiu com sua cristalização e, portanto, o momento foi hipostasiado –: a derrota da classe operária na URSS nos anos 30 e das revoluções antiburocráticas do pós-guerra no Leste Europeu, além da derrota da ascensão dos anos 70, o último grande processo de radicalização política até os dias atuais. O momento foi hipostasiado e muitas correntes permanecem ligadas a esse esquema superficial,[8] perdendo de vista seu pano de fundo histórico: o potencial desbloqueio da autêntica perspectiva socialista, bem como a oportunidade estratégica que isso abriu para relançar a batalha pelo socialismo (daí a importância do balanço do stalinismo). 

Expressão atual dessa extrema unilateralidade são obras como a do historiador Enzo Traverso, Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória, que têm uma visão cética e não científica da realidade; um olhar que poderíamos dizer puramente “fenomenológico”: avalia uma ruptura total na experiência histórica; não vê nenhum acúmulo de experiência no último período.[9] 

Para ter um exemplo da unilateralidade da abordagem de Traverso neste trabalho, ele aponta que com o final do século passamos de uma “memória estratégica orientada para o futuro” para uma circunstância “presentista” onde a tensão entre o passado e o futuro se torna uma espécie de dialética “negativa”: “Em tal contexto,  redescobrimos uma visão melancólica da história como memória dos vencidos (…) [uma] transição da utopia para a memória” (2018; 18). Afirma ainda que “(…) O futuro anterior está enterrado ou, melhor, engolido pelo mar, sem vínculos com o ‘horizonte da expectativa’ no presente. Aparece como um trauma que quebra a continuidade do tempo histórico” (Traverso; 2018; 155). 

Fim da utopia, o futuro enterrado, o passado como trauma… Essas declarações têm elementos de realidade, mas são retrógradas; perdem a perspectiva para frente, o que chamamos de elementos de acúmulo de experiência que estão ocorrendo passo a passo; É verdade que é mais lento do que gostaríamos, mas é inútil ficar exasperar-se com a realidade, porque ela é sempre maior do que nós. Se, de fato, o século XX deixou em questão a continuidade mecânica do tempo histórico, sua suposta “unilinearidade socialista”, Traverso perde de vista, repetimos, a reabertura simultânea da experiência histórica que está ocorrendo diante de nossos olhos.[10] 

Acontece que a dura realidade desta terceira década do século XXI está quebrando esse corte na memória histórica com martelos. Um exemplo entre muitos: o genocídio sionista em Gaza está produzindo as maiores mobilizações em defesa da causa palestina em uma geração. Mobilizações que no Oriente Médio e em outras partes da Ásia estão sendo capitalizadas por correntes islâmicas, mas que nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. são seculares e claramente direcionados à esquerda (a crise que abriram na campanha eleitoral de Biden foi uma das razões para sua substituição por Kamala Harris).[11] 

Mas os acontecimentos foram mais longe: colocaram sobre a mesa o fracasso da chamada solução de “dois Estados” e a solução de um Estado palestiniano livre, laico e não racista tornou-se mais uma vez realista. (Deve-se ter em mente, além disso, as crescentes divisões que estão ocorrendo dentro da sociedade israelense.[12]) 

Teremos também que ver a reviravolta que terá o movimento ecológico, que saiu um pouco de cena na pandemia; verificar a continuidade da força do movimento de mulheres e LGBT em nível internacional; as mobilizações antifascistas em andamento em países como Alemanha, Grã-Bretanha (ambos com desenvolvimentos recentes) e outros, bem como o potencial retorno do movimento pela desnuclearização e contra o militarismo, que certamente tomará exemplos de outros movimentos de mesmo sinal nos anos 70. 

Parte da “mecânica material” para o reinício da experiência histórica é que estamos em um período caracterizado por uma crescente polarização entre os Estados e na luta de classes. Uma dinâmica sistemática de ação e reação que acaba por ser assimétrica (uma “bipolaridade assimétrica”), onde todo tempo se dá “uma no cravo e outra na ferradura” e onde, por isso mesmo, as coisas acabam por não decantar.[13] 

Vejamos essas questões com mais detalhes. Entre os Estados, mais do que a bipolaridade, há uma espécie de multipolaridade, que, em todo caso, tende a se “resumir” em uma espécie de nova bipolaridade entre o imperialismo tradicional, os Estados Unidos e seus aliados no G-7 (Alemanha, Japão, Grã-Bretanha, França, Itália, Canadá) e a aliança entre China e Rússia (imperialismos em ascensão ou em reconstrução) e seus respectivos aliados (Irã, etc.). O viés dos confrontos entre eles (cada vez menos próximos, cada vez mais diretos) é interimperialista. Daí os cenários de enfrentamento interimperialista que começam a tomar forma e que pareciam delirantes décadas atrás: a hipótese de conflitos nucleares entre potências imperialistas. 

O que tem se verificado é que o contexto em que se processa a experiência humana nesta terceira década do século XXI é muito diferente dos anteriores; a especificidade das questões que a marcam é inédita.[14]. Da mesma forma, e no outro polo, durante as últimas duas décadas vivemos rebeliões populares nos quatro pontos cardeais do globo, bem como o surgimento de diferentes tipos de movimentos, como o de mulheres e outros, área em que também está em curso uma dinâmica de bipolaridade: a dinâmica secular e modernizadora do direito ao aborto, por exemplo, versus a reação conservadora e ultramontana que questiona até mesmo as conquistas da Revolução Francesa (liberdades democráticas, por exemplo).[15] 

Por outro lado, é verdade que ainda não experimentamos novas revoluções. As últimas foram as revoluções polonesa, nicaraguense e iraniana no final dos anos 70, revoluções muito diferentes, mas o que as uniu é que visavam destruir o Estado existente. Não houve novas revoluções porque o período atual ainda é muito marcado por uma intensa desigualdade entre fatores objetivos e subjetivos: ainda estamos em um período em que uma crise da alternativa socialista domina no campo da subjetividade. E, no entanto, e simultaneamente, como em “uma onda que se fecha e outra que começa”, há um recomeço da experiência histórica. Nesse sentido, Kouvelakis sugere que as razões por trás do triunfo da NFP (Nova Frente Popular) nas recentes eleições parlamentares na França são ilustrativas: “Para encontrar algumas respostas [à grande votação da centro-esquerda, R.S.], devemos examinar mais de perto as forças motrizes desse ascenso [referindo-se à reação democrática que ocorreu entre o primeiro e o segundo turno das eleições capitalizadas pela Frente Popular]. Pode ter nos surpreendido e aliviado, mas não é de forma alguma um milagre. Poderíamos até dizer que vem de longe, da sedimentação deixada pelas batalhas sociais e políticas dos últimos anos.[16] Esta sedimentação se expressa em dois níveis. A primeira é a de uma sucessão de mobilizações que colocaram em movimento diversos e massivos setores da sociedade francesa (…) a luta contra a Lei do Trabalho, os Coletes Amarelos, as mobilizações feministas ou antirracistas, as revoltas de bairro, o movimento contra a reforma da previdência, sem esquecer a decisiva batalha de solidariedade com o povo palestino. É verdade que nenhum desses movimentos foi completamente bem-sucedido. Mas, graças a eles, uma atmosfera de politização, uma capacidade de ação e um sentimento generalizado de pertencimento a um campo social amplamente identificável se enraizaram no país. Foi esse acúmulo de experiência que tornou possível a mobilização popular amplamente auto-organizada, que foi o segredo da reversão do ímpeto entre os dois turnos das eleições, e que retardou a ascensão da onda marrom” (“Convertir la “prórroga” en una alternativa de poder “).[17] 

Vamos destacar outro elemento que mencionamos menos, mas que faz parte dessa sedimentação. Kouvelakis fala de uma crescente politização da nova vanguarda e é assim: há o exemplo dos campi americanos e sua solidariedade com a causa palestina, com imagens que não eram vistas desde os anos 70 naquele país! 

Por outro lado, em nossa opinião, Kouvelakis exagera um pouco quando fala de uma “onda marrom” por causa do crescimento muito real da extrema direita na França, que ele considera “fascista” simplesmente. Casos evidentes desse tipo de avaliações que dão origem a orientações oportunistas são as do NPA anticapitalista na França, ou do DSA nos Estados Unidos e da Jacobin em geral, da Resistência e do MES no Brasil, etc., todas organizações integradas em frentes de colaboração de classes. Parece que os critérios de classe política, que são de princípios, podem ser moedas de troca, usadas para confundir toda a elaboração do marxismo sobre a frente única. Uma elaboração que, no caso dele, transforma uma frente de independência de classe em seu oposto: uma política de frente popular. E é significativo que as correntes que se consideram “morenistas” estejam de quatro nessa política conciliatória expressamente rejeitada por Nahuel Moreno em panfletos educacionais como “A Traição da OCI“, um dos melhores textos do dirigente argentino.[18] 

Em suma: as análises unilateralmente “melancólicas” ao estilo de Traverso (isto é, de costas para o futuro) estão a desmoronar-se com o reaparecimento de um conjunto de velhos problemas em novas formas ou novos problemas que não existiam em períodos anteriores. E com isso também reaparece o debate estratégico, um debate que, é verdade, está lentamente avançando, mas pela força dos acontecimentos está começando a emergir.[19] 

2- Desequilíbrio geopolítico, perigo nuclear e retorno da questão nacional-colonial 

Vejamos agora os elementos de desequilíbrio que estão na base da nova etapa internacional e que parecem arrastar o mundo para o impensável até muito recentemente: a guerra interimperialista e a catástrofe ecológica (é claro que colocamos isso como uma das tendências em ação, não como uma necessidade mecânica).[20] No último período, o elemento mais desequilibrante é geopolítico: o confronto, resumidamente, dos EUA e seus aliados com a China e a Rússia. Esse confronto começou há uma década em torno de problemas econômicos e comerciais com a China, mas se espalhou cada vez mais até ser atualmente o principal elemento desestabilizador da situação mundial: “O vínculo econômico entre a China e os Estados Unidos é muito mais profundo e muito mais abrangente do que aquele entre a Rússia e os Estados Unidos (…) E essa ligação vai em ambas as direções (…) é impensável que os Estados Unidos sancionem a China como sancionaram a Rússia (…) Ao mesmo tempo, a China está muito mais envolvida com a economia global e seu setor de exportação continua sendo a força motriz de sua economia. Sempre gostei de salientar o notável paralelismo entre esta situação e a da Alemanha e do Reino Unido às vésperas da Primeira Guerra Mundial. No final do século XIX e início do século XX, esses países eram cada vez mais competitivos em termos de negócios e finanças, e sua rivalidade geopolítica tornou-se cada vez mais pronunciada. E, no entanto, eles estavam muito interligados em termos econômicos e sociais (…) mas o cabo de guerra desequilibrou-se e finalmente se tornou um dos estímulos da Primeira Guerra Mundial” (Ho-Fung Hung, Jacobin Lat). 

Como aponta este analista chinês, no plano econômico e comercial as coisas se estenderam a um crescente confronto militar com a Rússia a propósito da guerra na Ucrânia e as tensões progressivas com a China em torno de Taiwan, adicionando no último período um conjunto de confrontos ou guerras po procuração, como está acontecendo na Ucrânia, no Oriente Médio e potencialmente na própria Taiwan, em uma circunstância em que o conjunto de relações geopolíticas desequilibradas está sendo rearranjado em torno de dois pólos: o pólo do imperialismo tradicional (os EUA mais as nações do G-7, como já apontamos) e o pólo que está sendo construído em torno da China e da Rússia adicionando potências regionais como o Irã,  Coreia do Norte, etc.[21] 

Antes da guerra na Ucrânia, a China pensava que sua situação e a da Rússia eram semelhantes. Isso ficou claro em uma declaração conjunta de 4 de fevereiro de 2022 de Putin e Xi Jinping durante a abertura das Olimpíadas [ou seja, imediatamente antes do desencadeamento da invasão da Ucrânia por Putin no final daquele mês, RS], na qual a China expressou seu apoio à oposição da Rússia à presença da OTAN nos países da ex-URSS. Ao mesmo tempo, a Rússia também apoia a China em sua oposição à criação de uma aliança de segurança [dirigida pelos EUA] no Pacífico e na Ásia. As questões mais disputadas são as de Taiwan, do Mar da China Meridional e de todos esses países do Sudeste Asiático, que têm disputas territoriais com a China. Durante a Guerra Fria, todos eles foram estados satélites do império americano (…) Mas no século XXI, a situação é muito diferente daquela do início da modernidade ou da Guerra Fria (…) Agora o nacionalismo está no ar em todos os lugares, da Ucrânia a Taiwan, à Malásia e a todos esses estados menores. Todo mundo quer autodeterminação e independência. Uma maneira de conquistá-lo é fazer com que as grandes potências se oponham, e é isso que os estados menores estão fazendo” (Ho-Fung Hung, idem). Logicamente, entre todas essas circunstâncias há matizes de importância, mas colocamos a citação como uma ilustração dos crescentes confrontos geopolíticos que aproximam o perigo de um confronto militar direto entre as forças imperialistas, como apontamos no início deste ponto, algo impensável nas últimas quatro décadas.[22] 

A esses elementos impensáveis em pleno desenvolvimento foi adicionado agora um elemento não insignificante: os crescentes “ruídos” na questão militar e nuclear.[23] A guerra na Ucrânia deu claramente início a uma nova era de rearmamento internacional. O par imperialismo-militarismo estudado por nossos clássicos (Lenin e Rosa acima de tudo, textos que devemos estudar novamente) está de volta para ficar. É claro que os países da UE estão tentando atingir o piso proposto pela OTAN de 2% do PIB dedicado aos gastos militares e que os EUA também estão aumentando seus gastos militares (os maiores do planeta, cerca de 800 bilhões de dólares por ano!), assim como a China (metade do orçamento militar dos EUA) e a Rússia (1/8 do orçamento militar dos EUA) estão fazendo o mesmo. E isso já inclui o retorno do recrutamento em alguns países, algo que não pode ser descartado de forma alguma como algo que vá se estendendo (a Dinamarca acaba de reintroduzir o serviço militar obrigatório a partir de 2027, para mulheres). 

Por outro lado, além da extensão dos conflitos armados que veremos em seguida, o fato muito novo marcado pela imprensa imperialista nas últimas semanas é o retorno da corrida nuclear: “(…) Os perigos nucleares proliferaram e sofreram mutações. O número de ogivas nucleares está aumentando novamente, já que a China pretende expandir seu arsenal de algumas centenas há uma década para cerca de mil [ou 1500] até 2035 [agora estão em “apenas” 300]. Isso criará uma terceira potência nuclear pela primeira vez. Enquanto isso, a tecnologia está se expandindo para novos domínios e mãos. A Rússia planeja colocar bombas nucleares no espaço. Ogivas nucleares da Coreia do Norte que podem atingir o território dos EUA Milícias como os houthis têm armas sofisticadas (embora não nucleares). China, Irã, Rússia e Coréia do Norte estão cooperando em questões militares e também podem compartilhar tecnologia de mísseis” (The Economist, idem). 

O artigo de referência que estamos citando, o centro desta edição da revista inglesa, coloca como fatos prováveis (mais prováveis do que décadas atrás) a possibilidade de um conflito nuclear mais perigoso do que o que foi possível no segundo período pós-guerra, quando havia apenas duas potências nucleares (Estados Unidos e Rússia). Fala com preocupação de que os Estados Unidos poderia enfrentar todos os países mencionados acima coligados em matéria nuclear, e que essa circunstância poderia “incinerar cidades americanas” …[24] 

Assim, uma das novidades radicais do novo cenário mundial em matéria geopolítica, repetimos, é o retorno da corrida armamentista e particularmente da carreta nuclear, com tudo o que isso significa em termos do potencial de autoextermínio da humanidade, questão à qual voltaremos a seguir. 

Junto com o exposto, o outro fato novo é o retorno de guerras e conflitos militares que têm um alcance global e um componente da luta de classes (ou seja, guerras convencionais não tão convencionais)[25]. Na invasão do Iraque não houve um componente claro de luta de classes, embora houvesse um elemento de guerra de emancipação nacional contra os ianques, apesar da liderança de Saddam Hussein. Mas nas duas “guerras” que estamos experimentando há um componente de guerra por procuração e também um componente de guerra de emancipação nacional. Os ucranianos não querem que seu país seja ocupado, e é por isso que a forte resistência que eles conseguem sustentar, embora seja instrumentalizada pelo Ocidente e pela direção pró-imperialista de Zelensky. E também em Gaza, onde há um genocídio colossal – há 40.000 mortos oficialmente assassinados até o momento e mais 40.000 não reconhecidos – mas é um conflito sem fim porque os objetivos de Netanyahu são inatingíveis. 

Sinceramente, acredito que o que estamos vivendo neste momento muito sombrio – e é um momento sombrio porque a eliminação dos palestinos atingiu outro nível – é sem precedentes. Em termos do discurso de Israel e da intensidade e propósito de suas políticas de eliminação, não houve tal período na história: é uma nova fase de brutalidade contra o povo palestino. Mas mesmo neste tempo sombrio devemos entender que os projetos de assentamentos coloniais que se desintegram sempre usam os piores meios para sobreviver [Pappe aponta que eles estão sempre condenados a se desintegrar, mais cedo ou mais tarde. R.S.]. Foi o caso da África do Sul e do Vietnã do Sul (…) Com base em uma análise calma de especialistas, afirmo que estamos testemunhando o fim do projeto sionista, não há dúvida” (Ilan Pappe, “Apesar deste tempo sombrio, o colonialismo por assentamentos de Israel chega ao fim“). Pappe acrescenta que de tal colapso emerge de repente um vazio; que é como um muro que é lentamente erodido pelas rachaduras que se abrem dentro dele e que desmorona em um breve instante, e que devemos nos preparar para esse colapso, para a desintegração do Estado de Israel e seu projeto de assentamento colonial. 

O caso da Ucrânia é muito complexo, porque para entendê-lo é preciso entender não apenas o conflito interimperialista, mas também voltar ao legado do stalinismo na Ucrânia, o Holodomor, etc., e não fazer análises simplistas como fazem praticamente todas as correntes, desde aquelas que estão com Putin como o PO argentino, até aquelas que querem enviar armas para a Ucrânia como o mandelismo. O mandelismo entende mais o problema específico da Ucrânia, mas não entende o problema do imperialismo (o que é delirante, já que o centro de sua corrente é a França), e o PO nunca entenderá nada enquanto continuar acreditando que o capitalismo não foi restaurado na Rússia (outra posição delirante). 

No caso da corrente do PTS argentino, há o paradoxo de que eles estão visivelmente divididos com seu grupo na França sobre as duas questões: no que diz respeito à Ucrânia, Juan Chingo tem uma posição campista que obscurece sua visão sobre o caráter capitalista e imperialista na reconstrução da Rússia (Chingo teve as posições mais esquemáticas dessa corrente em relação ao balanço, ou sua ausência de balanço, do stalinismo). E em relação a Gaza, eles têm na França uma posição oposta à expressa publicamente na Argentina: os primeiros são acríticos em relação ao Hamas e os segundos se recusam a defender o povo palestino incondicionalmente 

Além disso, Zelensky agora entrou na Rússia por uma área perto de Kursk (local da batalha de tanques mais importante da história durante a Segunda Guerra Mundial e que acabou marcando o destino do nazismo na guerra); um avanço cujo resultado é incerto quando Putin parece continuar avançando na outra frente da guerra (ele acaba de conquistar uma importante cidade em Donetsk):  “O que a Ucrânia fará agora? O avanço tem sido tão rápido, e os russos têm sido tão lentos para responder, que a Ucrânia deve estar repensando as metas. Os ganhos iniciais elevaram o moral de seu povo e deram confiança renovada aos apoiadores ocidentais da Ucrânia, que querem mais apoio militar. A Ucrânia também quer que a Rússia retire as tropas da frente de guerra, especialmente da região de Donetsk, onde a Rússia está avançando em torno do eixo entre as cidades de Toretsk, Pokrovsk e Chasiv Yar. Desde o início da incursão na Rússia, a Ucrânia perdeu o controle da cidade de Hrodivka, a 15 quilômetros de Pokrovsk” (The Economist, 15/08/24). 

A análise de nossa corrente não mudou desde o primeiro dia do conflito, quando caracterizamos que estamos diante de um duplo conflito: um legítimo, de emancipação nacional e outro interimperialista reacionário (ver “Sobre o caráter da guerra na Ucrânia” e “Sobre a dinâmica da guerra na Ucrânia“). Para uma saída do conflito, propomos a retirada da Rússia de todos os territórios ocupados, rejeitando o alinhamento de Zelensky com o imperialismo tradicional e a OTAN. 

Boris Kagarlitsky, preso por Putin meses atrás e agora libertado, deixa algumas definições importantes sobre o conflito: “(…) as pessoas na Ucrânia não querem fazer parte da Rússia. Os cidadãos ucranianos mostraram que não querem fazer parte da Rússia. Apoiamos a autodeterminação, apoiamos as decisões democráticas. Apoiamos as pessoas em seu direito de decidir a quem querem pertencer (…) os oito anos de guerra por procuração russa no Donbass foram um tremendo fracasso. O povo de Donbass estava muito confuso e frustrado. Muitos deles estão muito descontentes com o que a Rússia está fazendo (…) [Na Rússia] não há sinal de que a classe operária apoie a guerra. Mas a classe operária russa é fraca, derrotada por uma enorme desindustrialização. A burocracia russa é enorme; fica do lado do governo, não importa o que ele faça” (“Detrás del desastre ruso en Ucrania. Entrevista”).[26] 

No caso de Gaza, a novidade é que se atualiza o debate sobre a questão colonial que vem do século passado, neste caso o de uma luta emancipatória que não é dirigida por forças do nacionalismo burguês – nem pelo PC como nas etapas anteriores – mas por forças islâmicas. Esta é uma novidade que atualizou o debate com “orangotangos” como Lutte Ouvriere na França, que afirmam “nem Hamas nem Netanyahu“, como se os oprimidos fossem iguais aos opressores; ou com seguidores do Hamas, como o PO argentino (algo que já apontamos); através da discussão sobre qual posição ter diante dos atos terroristas de organizações que representam as massas de um país oprimido.[27] Desta forma, tornou-se moda reler Frantz Fanon (não lemos sua obra no momento em que escrevemos este texto), a quem o trotskismo clássico nunca apoiou, mas o mandelismo sim, um autor que reivindica o terrorismo como método de ação política (nós o entendemos e podemos até defendê-lo dependendo das circunstâncias, mas não o apoiamos porque é um método substituista para a ação de massas).[28] 

O marxista britânico Gilbert Achcar coloca essa discussão nos dias atuais. Ele afirma corretamente que a mentalidade subjacente à ação do Hamas é a de Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon. A de Fanon é a interpretação mais conhecida dos sentimentos [de vingança] do colonizado, feita por um pensador que também era psiquiatra (Fanon teve a infelicidade de morrer muito jovem). Fanon refletiu sobre as lutas dos colonizados, particularmente dos argelinos, contra o colonialismo francês, métodos que incluíam bombardear bares de Argel frequentados por pessoas de origem francesa. O autor, de origem martinicana, aponta que:”O colonizado que decide realizar este programa, está propenso a todo momento à violência. Desde o seu nascimento, fica claro para ele que este mundo estreito, repleto de contradições, só pode ser desafiado pela violência absoluta (…) Não há equivalência de resultados, no entanto, porque o bombardeio por avião ou o tiro de canhão da frota supera em horror e importância as respostas dos colonizados. Esse ir e vir do terror desmistifica o mais alienado dos colonizados” (Achcar citando Fanon, ” Gaza: La catástrofe inminente y la urgencia de detenerla “).[29] Achcar acrescenta que alguns dos atos cometidos pelo Hamas em 7 de outubro foram atos terroristas se “por terrorismo se entende a matança deliberada de pessoas desarmadas”, mas observa que o terrorismo de estado sionista evidentemente causou o maior número de vítimas na história do terrorismo por grupos estatais. 

E, no entanto, esse não é o problema. Nossa posição é que a ação de 7 de outubro foi uma mistura de ação militar legítima com elementos de terrorismo. Condenamos os elementos do terrorismo, porque são sempre utilizados contra os oprimidos, como se vê no dramático genocídio que está sendo cometido contra o povo de Gaza, embora a política daí resultante seja mais contraditória. 

Como digressão, apontamos que a posição do PCF na guerra da Argélia (no final dos anos 50) foi tão traiçoeira na defesa do imperialismo francês, que fez com que uma grande parte da juventude rompesse com esse partido, preparando o que dez anos depois seria o Maio francês, um processo onde o corpo estudantil esteve representado pelo anarquismo, maoísmo e trotskismo, mas não pelo Partido Comunista tradicional. 

Na França do pós-guerra, o PCF foi amplamente legitimado como “o partido dos fusilados” (por causa dos 70.000 membros baleados de sua militância pelo nazismo). Por outro lado, a façanha popular de Stalingrado e, em geral, o papel “soviético” na Frente Oriental, deu aos Partidos Comunistas do Ocidente (especialmente o PCF e o PCI) um enorme prestígio, um prestígio que eles desperdiçaram com sua política de conciliação de classes no período imediato do pós-guerra, e que teve seu golpe de misericórdia no caso francês – entre os jovens, não no movimento operário – com a traição na Argélia.[30] Correntes marxistas como o althusserianismo emergiram de seu seio, não sem contrações e conflitos, para relegitimar o stalinismo na universidade. O próprio Althusser via no PCF a “encarnação prática da classe operária”, embora reconhecesse em algum momento que não tinha contato com os operários comunistas (Françoise Dosse, A saga dos intelectuais franceses, 1944-1989).[31] 

Por último, mas não menos importante, há a questão de Taiwan. Um terreno onde geralmente seguimos o marxista chinês Au Loong-Yu e baseado no qual escrevemos nossos próprios textos (“¿Estalla China? La mayor ola de protestas desde Tiananmen”, em izquierda web,. Programaticamente propomos o direito à autodeterminação, embora não sejamos a favor de sua independência da China continental).[32] Por enquanto, não houve um grande salto militar no conflito, nem a China se sentiu segura para se lançar e tirar proveito da crise em relação à Ucrânia e Gaza. Aproveitou esses conflitos para se engajar na diplomacia internacional e aparecer como um novo mediador que desloca a hegemonia dos EUA na região. Um acordo foi feito entre a Arábia Saudita e o Irã (dois países arqui-inimigos até agora, um sunita e outro xiita) mediado pela China. E todas as forças da oposição palestina também acabaram de se reunir sob seus auspícios, propondo um governo de unidade nacional palestino, que tem um elemento progressista no momento porque dá respaldo ao Hamas, em meio ao genocídio em Gaza e à ação terrorista de Israel contra todos os seus líderes. 

Em resumo, sobre este ponto: não há desenlace na Ucrânia, não há desenlace em Gaza, ainda não eclodiu um conflito em Taiwan; tudo isso faz parte da conjuntura atual. 

 

Bibliografia 

Gilbert Achcar, “Gaza: La catástrofe inminente y la urgencia de detenerla”, Viento Sur, 18/10/23. 

Gunther Anders, La obsolescencia del hombre, Pre-Textos, España, 2011. 

Francoise Dosse, A saga dos intelectuais franceses, 1944-1989, volume I, A prova da historia, Estacao Liberdade, Brasil, 2021. 

Ho-Fung Hung, “Crecen las tensiones entre China y Estados Unidos”, parte uno, Jacobin Lat, sem data. 

Boris Kagarlitsky, “Detrás del desastre ruso en Ucrania. Entrevista”, Sin permiso, 16/04/22. 

Statis Kouvelakis, “Francia tras las elecciones legislativas. Convertir la ‘prorroga’ en una alternativa de poder, Viento Sur, 13/07/24. 

George Lukács, El asalto a la razón, Ediciones Grijalbo, México, 1968. 

Ilan Pappe, “A pesar de este tiempo oscuro, el colonialismo de asentamiento de Israel llega a su fin”, Viento Sur, 20/02/24. 

Pierre Rousset, “Estados Unidos y Eurasia: reflexiones geopolíticas en un momento de crisis mundial”, Viento sur, 2/09/22. 

Roberto Sáenz, “Guía de estudio sobre la situación mundial: ha comenzado una nueva etapa”, izquierda web, 11/03/23. 

Enzo Traverso, Melancolía de izquierda. Marxismo, historia y memoria, Fondo de Cultura Económica, Argentina, 2018. 

 

Notas 

[1] A definição clássica de Lenin é que com o século XX (mais precisamente em 1914) se abriu uma época de crises, guerras e revoluções. Acreditamos que depois de um certo impasse com a queda do Muro de Berlim, o que estamos vivendo é a reabertura daquela época que nunca havia se encerrado (aqui há uma dialética de “fechamento” e reabertura que é interessante e que as correntes mais impressionistas perderam de vista). Uma época que, após a experiência do século passado, é mais dialética, menos “unilinear”, por assim dizer, razão pela qual deve ser definida incorporando os conceitos de barbárie e reação (o século passado demonstrou, se ainda fosse necessário, que não há unilinearidade histórica; as tendências são para o socialismo ou a barbárie). 

[2] Embora pareça delirante, a esfera econômica, apesar de tudo, é a que transmite a estabilidade mais relativa até agora. Isso pode parecer controverso, mas atento ao crescente declínio no crescimento do PIB, a criação sustentada de capital fictício e assim por diante, não é, no momento, a economia que mais desestabilizou as coisas. Como Lenin diria sobre o materialismo de Hegel na Ciência da Lógica, é paradoxal, mas é um fato. 

[3] Citamos Callinicos esclarecendo que ele é um autor que consideramos muito eurocêntrico e pouco inspirador. Não sabemos se esta obra vai mudar nosso parecer. 

[4] Fala-se muito no marxismo sobre dialética, mas ela é pouco compreendida e aplicada às análises. A analogia de Trotsky sobre os canais e como eles se rompem em um determinado momento é muito útil para entender os acontecimentos político-sociais em geral “La fuerza estratégica de la dialéctica”, izquierda web). 

[5] A pós-modernidade seria uma das formas de pensamento irracional do século XXI. No momento em que escrevo esta nota, estamos estudando o texto de Lukács O Assalto à Razão, e devemos reconhecer que ele tem coisas valiosas e atuais além de sua “cegueira” consciente em relação ao irracionalismo do stalinismo (a cumplicidade do filósofo húngaro com o stalinismo salta a cada passo e o “perseguiu” por toda a vida). 

[6] Este é o título do documento do último congresso mundial desta corrente, que não temos em mãos para colocar literalmente. 

[7] Esse desarmamento estratégico do mandelismo (ou pós-mandelismo) desde o início dos anos 2000 terminou em desastre, abrindo caminho para uma lógica de conciliação de classes em suas fileiras. Este é um erro estratégico que desarma e dá origem a uma visão onde as fronteiras de classe e revolucionários em geral estão se confundindo, por exemplo, agora com a entrada do NPA anticapitalista na frente popular na França. O mesmo acontece com o PSOL no Brasil, entrando na Frente Ampla de Lula e Alckmin. 

[8] Por exemplo, Resistencia e Valerio Arcary do Brasil. 

[9] Ainda não lemos o último livro de Traverso chamado Revolución, que provavelmente tem alguma modificação em seu viés. 

[10] Em nossa obra Marxismo e a Transição Socialista, Volume I, recuperamos o conceito de utopia, os “sonhos que são sonhados acordados”, como Ernst Bloch os chamou em sua obra O Princípio da Esperança, sonhos que, embora hoje não tenham um conteúdo ideologicamente “socialista” como no início do século passado (uma diferença qualitativa do ponto de vista da subjetividade), não se podem dar-se materialmente abolidos: não podem ser abolidos porque a realidade o impede. 

[11] “Joe genocida” é o apelido dado a Biden por seu apoio incondicional a Netanyahu. 

[12]Se a necessidade de lutar e eliminar o povo palestino for excluída, o que resta são dois campos judeus em desacordo, assim como os vimos se enfrentando nas ruas de Tel Aviv e Jerusalém até 6 de outubro de 2023. Enormes manifestações daqueles que se autodenominam judeus laicos, maioritariamente de origem europeia, que acreditam que é possível criar um Estado democrático pluralista mantendo a ocupação e o apartheid contra a população palestiniana no interior de Israel, confrontados com um novo tipo de sionismo messiânico desenvolvido nos assentamentos judaicos da Cisjordânia (…),  que de repente se instalaram entre nós com a pretensão de que agora podem criar uma espécie de teocracia sionista sem qualquer consideração pela democracia e convencidos de que esta é a única perspectiva para um futuro estado judeu” (Ilan Pappe; idem). 

[13] O objetivismo de quem vê tudo “desmoronando” também é muito ruim. Mas também é a visão cética das correntes que têm como monotema os problemas da extrema direita, que avaliam de forma impressionista e sem considerar os outros problemas, o conjunto total de elementos que marcam a realidade internacional. 

[14] Adiantamos uma lista de forma puramente descritiva: crise ecológica, militarização, retorno da questão nuclear, pandemias, crise econômica, esvaziamento dos regimes de democracia burguesa, surgimento de governos iliberais, crescimento da extrema direita, reinício da experiência dos explorados e oprimidos, etc. 

[15] As diretrizes conservadoras nessa matéria (no Brasil de Bolsonaro eram chamadas de “pautas consuetudinárias”) expressam essa reação que também é comum a Trump, Milei, Orban, Modi, etc., cada uma com suas características e que questionam aspectos da modernidade e do iluminismo. É uma espécie de luta renovada da razão contra a irracionalidade: “(…) polêmica científica honesta [é] substituída por deturpação, calúnia e demagogia (…) O desprezo pelo entendimento e pela razão, a glorificação pura e simples da intuição, a teoria aristocrática do conhecimento, a rejeição do progresso social, da mitologia, etc., são outros tantos motivos que podemos descobrir (…) em todo irracionalista” (Lukács; 1968; introdução). 

[16] Este conceito de “sedimentação da experiência” é muito bom e complementar ao nosso conceito de acumulação de experiência; quase se poderia dizer que são sinônimos, embora a acumulação tenha uma voz mais ativa e a sedimentação soe como algo que ocorre por decantação. 

[17] Lembramos que em uma visita à França (2016) conversamos com Malewsky, o colega editor da revista mandelista Inprecor, em seu escritório nas instalações da Rue Ten. Ele nos apontou que estamos em uma etapa “pior que a de Thatcher, de pura regressão e desacumulação”, e enfatizamos a ele que não é esse o caso:  que estamos em um período de reinício da experiência, apesar do ambiente reacionário. É evidente que na França tal experiência existe, e se o trotskismo não pode capitalizá-la de maneira prática, é por razões subjetivas e não objetivas. Na Argentina, apesar dos crescentes traços “gorilas” e cloacais do trotskismo, a experiência dos últimos 20 anos após o Argentinazo foi capitalizada, embora de forma desigual. Isso ocorre de formas diferentes de como é avaliado internacionalmente – em outros países, se conhece a FITU apenas por suas conquistas eleitorais e não ao nosso partido por estar fora dessa frente – mas marca uma vitalidade desigual entre as principais forças do nosso movimento que, no nosso caso, é cada vez mais afirmada pelas bases e entre a juventude. No movimento operário, todas as forças estão enfraquecidas depois de travar importantes batalhas de vanguarda, como as de Gestamp ou Lear, nas quais fomos derrotados (NMAS e PTS). No caso dos pneumáticos, a experiência de recuperação do sindicato foi iniciada por nosso partido e depois apropriada pelo PO, demagogicamente e de forma aparatista, apenas para despolitizá-la e reduzi-la a mero sindicalismo. Agora a SUTNA está enfrentando uma situação dramática em que teve mil demissões e não conseguiu fazer nada… O PO das últimas décadas grita muito e luta pouco. Os elementos de adaptação ao regime e ao Estado, que são insensivelmente afirmados, são comuns ao PTS e ao PO: força relativa no topo; fraqueza crescente na base. Não falamos do MST porque ele não elabora nada e a orientação deles é de verdureiro, de construir-se e de juntar por juntar, sem nenhum acordo de princípios ou de política. 

[18] Sobre isso, ver ” Brasil: los elásticos límites del posibilismo”, izquierda web. 

[19] O retorno da elaboração teórica marxista, ainda nos círculos de vanguarda, mas alcançando novos horizontes, faz parte da nova etapa. Propõe às correntes socialistas revolucionárias aprofundar a elaboração teórica em torno do balanço do século passado (teoria da revolução e teoria da transição socialista) e os novos problemas: o caráter do imperialismo hoje, o militarismo, a ecologia, o gênero, a nova classe operária, etc. 

[20] As tendências em ação, como o próprio nome indica, devem ser acompanhadas com a análise concreta de cada giro concreto. Em todo o caso, é um fato que estamos no período mais perigoso da situação mundial em muitas décadas. 

[21] Por enquanto, a China não parece estar aproveitando a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza para avançar em Taiwan, além de circunstâncias de extrema tensão que parecem continuar em um “cabo de guerra”. 

[22] Neste texto não nos dedicamos à crítica do campismo, da visão campista do confronto entre potências imperialistas (uma derivação clássica na esquerda), mas retomamos – em termos gerais, embora a partir de posições diferentes das suas – a proposta de Pierre Rousset de que, para entender os atuais confrontos interimperialistas, “é preciso libertar-se do software mental herdado da Guerra Fria” (“Estados Unidos y Eurasia: reflexiones geopolíticas en un momento de crisis mundial“). 

[23] Na Ucrânia, por exemplo, Zelensky está cruzando “linhas vermelhas” ao intervir com armamento militar dos EUA em território russo, algo que o G-7 supostamente se propôs a evitar. No caso do avanço sobre as áreas ao redor de Kursk, essas potências não disseram “esta boca é minha”. A Rússia parece ser “moderada” até agora em relação a esse avanço, mas a situação só aumenta a discussão sobre o possível uso de “armas nucleares táticas” enquanto a corrida armamentista se estende ao espaço (aparentemente, a Rússia colocaria ogivas nucleares no espaço sideral ao redor da Terra, uma questão a ser verificada, mas que,  sem dúvida, expressa uma novidade radical e perigosa que, se ainda não tem um grande público entre as massas (afetadas pela agitação da vida cotidiana, como diria Marx), ainda é muito real (não é por acaso que a revista britânica bicentenária The Economist dedicou duas notas ao problema nuclear em suas últimas edições. Veremos um exemplo disso abaixo). 

[24] Quanto tempo isso levará para gerar paranóia na população dos EUA, não sabemos. 

[25] Na realidade, os conflitos interimperialistas e as lutas pela emancipação nacional foram misturados na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. Lenin deu palestras sobre o assunto enquanto Rosa Luxemburgo tinha uma posição sectária sobre o assunto (Lenin, O Direito à Autodeterminação das Nações). 

[26] E Kagarlitsky acrescenta um fato importante sobre o stalinismo: “Eu não vivi sob Stalin. A União Soviética, lembro-me, era cínica em um sentido sensato. Ou seja, alguns rituais foram mantidos, mas as pessoas eram cínicas sobre isso; Eram rituais religiosos que são apenas parte da vida. Agora eles querem que as pessoas fiquem animadas. Se não estiverdes entusiasmados, sereis severamente castigados” (idem). 

[27] Nossa corrente, em geral, condena os atos terroristas como o marxismo revolucionário sempre fez: ação armada contra civis desarmados. 

[28] Frantz Fanon foi um revolucionário, psiquiatra, filósofo e escritor da Martinica (uma colônia francesa até hoje). Ele apoiou a luta pela independência da Argélia e foi membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia. Sua principal obra é Os Condenados da Terra. 

[29] É entendível a canalização ou a sublimação pela violência daqueles que se sentem sistematicamente assediados – e o são! – pelos ocupantes de suas terras. A partir daí, transformar a “violência absoluta” em estratégia política vai, no entanto, um longo caminho. Por outro lado, é necessário diferenciar a estratégia do terror da guerrilha. A guerra de guerrilhas é uma luta armada de grupos “irregulares” contra os grupos armados de um Estado. O terror é o ataque “impune” a grupos de civis. O marxismo revolucionário entende, mas condena, o terrorismo, porque ele sempre se volta contra os oprimidos. A guerra de guerrilhas é outra coisa, que pode ser uma tática auxiliar ao que é principal: a mobilização de massas. 

[30] Esses golpes de misericórdia foram diversos. No caso inglês do PCB, o golpe veio com a entrada de tanques russos em Budapeste em 1956. 

[31] Dosse conta que o pós-guerra imediato representou o momento mais importante da hegemonia conquistada pelo PCF, da qual gozava uma dupla legitimidade: a resistência interna, graças à eficácia de sua organização armada, os FTP (franco-atiradores e guerrilheiros franceses), e o capital de simpatia pela URSS, a pátria-mãe, cuja abnegação exigiu um alto preço na vitória contra o nazismo. Stalingrado representou o sacrifício supremo de um Exército Vermelho que conseguiu conquistar Berlim: “Stalingrado”, escreveu Edgar Morin, “despertou em mim, e sem dúvida em milhares como eu, críticas, dúvidas, hesitações. Stalingrado expurgou todos os crimes do passado e até acabou justificando-os (…) Em novembro de 1946, o PCF contava com 800.000 membros contra 208.000 em 1937, além de obter 28,89% dos votos nas eleições de novembro de 1946” (idem, 45. A história, ademais, mostra que obter semelhante influência eleitoral de massas depende de eventos históricos da luta de classes e que, em geral, não funciona por mera acumulação). 

[32] O próprio Au Loong-Yu explica o caráter contraditório da China como um imperialismo emergente que ainda tem tarefas domésticas inacabadas. Ao mesmo tempo, propõe o direito incondicional à autodeterminação do povo taiwanês e a mudança desse problema nas últimas décadas devido à simples “acumulação de tempo” e à perda de atratividade da própria China, capitalista e autocrática. 

 

Traduzido por José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/un-mundo-mas-peligroso-un-mundo-mas-polarizado-parte-1/

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