Terceira Jornada do Pensamento Socialista
“À um rompimento histórico na situação mundial”
Apresentamos abaixo uma versão editada da intervenção de Roberto Saenz (abertura) na recente 3ª Jornada do Pensamento Socialista realizada em 24 e 25 de agosto passado no Hotel Bauen.
22/09/2018
Depois que os Estados Unidos lançaram ontem sua maior ofensiva comercial contra a China, a gigante asiática anunciou ontem a imposição de novas tarifas sobre produtos norte-americanos por US $ 60 bilhões, em resposta às tarifas alfandegárias anunciadas por Washington sobre produtos chineses acima de US $ 200 bilhões. (…) Horas depois do anúncio, o presidente Donald Trump acusou a China de tentar influenciar as eleições nos EUA (…) “A China declarou abertamente que está ativamente tentando impactar e mudar nossas eleições, atacando nossos agricultores e trabalhadores industriais por sua lealdade a mim”. (La Nacion, 19/09/18)
Boa tarde, a todos e todas! Gostaria de agradecer a Claudio Katz por sua presença no painel e também gostaria de dar as boas-vindas a Inés Zadu e Marcelo Yunes. Cláudio e Marcelo deixaram as coisas um pouco difíceis com suas intervenções: entre “a continuidade com elementos de crise do neoliberalismo” de Cláudio, e o “apocalipse” de Marcelo, são como extremos que exigem alguma matização.
Parece-nos ser um debate complexo. Existem contradições entre os fatores objetivos e subjetivos que fazem a totalidade mundial. Mas eu quero dar, mais do que uma definição analítica, uma definição sintética. E nisso tenho um matiz com Claudio, sem que isso me leve ao catastrofismo de algumas correntes.
Em nossa opinião, se vive um esgotamento da ordem capitalista como tem sido nas últimas décadas: estamos passando por uma grave crise nas condições de estabilidade do capitalismo neoliberal globalizado de hoje. É uma definição do tipo sintético. Os traços característicos do capitalismo, do sistema mundo capitalista das últimas décadas, de 90 a esta parte, seus três traços mais característicos, apresentam elementos de crise.
A extensão da crise em cada um desses componentes é difícil de medir. E, acima de tudo, sua correlação subjetiva é complexa, não se traduz mecanicamente em novas revoluções socialistas. Mas é fato que as três bases da estabilidade capitalista das últimas três ou quatro décadas mostram elementos de crise que nos colocam em um momento diferente.
Quais são essas três bases que afetam o equilíbrio capitalista? Primeiro, uma crise na globalização capitalista. Não há uma reversão, mas sim uma paralizia do elemento globalizante. Não dizemos apenas os marxistas, que procuramos “pelo em ovo” para a luta de classes: o faz a revista The Economist que vem insistindo, por exemplo, no fenômeno da empresa local.
Há uma certa reversão, uma certa crise no impulso globalizante. Entre outras razões, por um motivo apontado por Cláudio: porque a tendência globalizante colide com as necessidades dos Estados; necessidades que não são exatamente as mesmas. Você não pode desterritorializar toda a produção nos EUA (mesmo que dê lucros a Bill Gates), porque isso significaria negar os EUA como um Estado [1].
Além disso, há outro problema: o capitalismo continua a se ajustar brutalmente à mercantilização de todos os bens e à superexploração capitalista do mundo. Mas não terminam de reverter o relativo declínio na taxa de lucro: há uma fome brutal por lucros que não acaba se satisfazendo.
Isso traz elementos de qualidade, não apenas de quantidade, como diz Claudio. Traz elementos que indicam que o capitalismo neoliberal em sua configuração atual mostra sinais de esgotamento. E também mostra combinações diferentes do neoliberal clássico entre economia e Estado. Não é exatamente igual a combinação de economia e Estado nos EUA ou na Europa Ocidental, que a combinação desses dois fatores na China ou na Rússia: são combinações distintas [2].
Segundo problema: há elementos de uma crise geopolítica, o disse muito bem Claudio. Há uma imensa novidade, um paradoxo brutal, que é o surgimento da China, que está abaixo dos Estados Unidos em produto em relação ao PIB mundial, mas que apresenta um sério desafio.
O capitalismo neoliberal clássico aspirava à unipolaridade. E nosso colega Roberto Ramírez escreveu uma nota no ano passado falando sobre “multipolaridade”. A multipolaridade também pode ser entendida como “caos”, “desordem”, falta de um gendarme indiscutível. O capitalismo neoliberal teve nos anos 90 um gendarme indiscutível: os Estados Unidos. Mas esse gendarme incontestável está sendo questionado e o que explica a Trump é uma tentativa empírica de reafirmar sua primazia.
Terceiro elemento: os países mais ocidentais (América do Norte, Europa Ocidental e América Latina), porque existem outros regimes políticos nos demais países, estão há décadas sob o domínio da democracia burguesa. Esta é a forma mais estável de dominação, como afirmou Lenin.
No entanto, existem elementos de questionamento pela direita e também pela esquerda à democracia burguesa, ao seu império universal. A democracia burguesa continua a dominar. Mas o que esses elementos de atrito e instabilidade refletem é que as bases sociais que tornaram possível o império mundial da democracia burguesa estão em crise. É por isso que esses novos fenômenos de polarização emergem. Ou seja: a tendência para um mundo menos pós-moderno.
Essas três são as bases do desenvolvimento capitalista neoliberal que eram características das últimas décadas; décadas chamadas de a “grande moderação”: uma moderação que parece estar acabando. Elas foram naturalizados como o que “sempre foi”; como “o sistema como ele é” sem pensar que poderia funcionar de qualquer outra forma.
Então, acho que com a palavra “continuidade”, a qual Claudio se refere, se perde o qualitativo: a potencialidade de que estamos transitando uma ruptura histórica.
Isso não aventura resultantes. Não aventura definições que excedam a realidade. Mas aventura o que Marcelo disse, que é muito ilustrativo. É todo um exagero o do “apocalipse” sentido por certos burgueses; que poderia existir e, porisso, adquirem propriedades na Austrália; como se afastando do centro do mundo.
Mas se olharem para o mundo, há muito barulho no ambiente. Por exemplo, Claudio diz: “Trump bate na mesa, mas ele quer negociar”. Obviamente, isso é assim. Mas há uma dialética da luta de classes e das leis da sociedade, que tem a ver com as consequências não intencionais da ação (sociologia clássica).
Quando você tem um poder material-social tão grande, não és totalmente dono de suas ações. Trump faz “cloucuras”, mas que têm consequências. Afirma que decretou “uma guerra comercial limitada” e que “vencerá” a guerra … Por enquanto, é uma guerra comercial limitada. Mas a primeira coisa que precisa ser dita é que, para o capitalismo neoliberal de livre mercado, as guerras comerciais são um elemento novo. Embora, por enquanto, a coisa é ainda limitada, é perigosa para a dinâmica do sistema: pode ir muito além dos desejos do aprendiz de feiticeiro.
Claro, se Trump governasse a Argentina, do ponto de vista do mundo, isso não importaria para ninguém. Ele nos estupraria e nos importaría muito a nós. Mas não importaria a mais ninguém. Mas as ações de Trump são as ações do presidente dos Estados Unidos; É outra coisa. Assim, as conseqüências não intencionais de sua ação podem desencadear uma guerra comercial em regra que mergulhará o mundo em uma maiuscula depressão econômica.
O cenário é mais complexo; um cenário em que os elementos de polarização emergem como um subproduto de uma crise mais estrutural, mais profunda.
Que ponto complexo há aqui? Que isso se processa em primeiro lugar pela direita e não pela esquerda. Nós não estamos em uma conjuntura de esquerda; estamos em uma conjuntura internacionalmente de direita. Se processa por aí.
Mas imediatamente devemos marcar que existe uma dinâmica da “física/política”: o movimento pendular. Em 20 de janeiro de 2016, Ines disse muito bem, assumiu Trump. E em 21 de janeiro de 2016, foi a Marcha das Mulheres de 2016; a irrupção do movimento mundial das mulheres neste caso contra Trump. Esse é o movimento pendular: se te cutucam, você responde.
No subjetivo, nossa impressão é que coexistem duas tendências contraditórias: uma adversa e outra positiva. Claudio foi equilibrado porque há derrotistas que só enxergam uma tendência. E enquanto Claudio falou da subsistência de elementos da derrota, ele o compensou.
Nós vemos assim. O elemento mais objetivo é que a classe trabalhadora se recompõe estruturalmente em regiões como a China e muitas outras partes do mundo seguindo a acumulação capitalista. No entanto, permanece uma grande crise de alternativa socialista.
Há um problema com a perspectiva socialista que não se recupera pela hipoteca do fracasso das revoluções do século XX. Há uma crise de alternativas porque a convicção de que um mundo melhor é possível não está clara nas mentes da maioria dos explorados e oprimidos, pesa mais a naturalização do existente: a pragmática do existente.
Essa tendência, a falta de convicção de que um mundo melhor é possível, joga contra em um metabolismo complexo: porque historicamente metabolizar novos lugares de formação da classe trabalhadora e se erguer e, por sua vez, fazer o balanço das revoluções do século passado e das derrotas, é um metabolismo complexo.
Eu vi o filme “We, the workers“, que dura três horas e meia, sobre a classe trabalhadora chinesa, é impressionante: um metabolismo de uma classe trabalhadora dessa magnitude é lento, é histórico, é uma classe trabalhadora de vossa idade super jovem.
É por isso que há um elemento em sentido contrário que é o recomeço histórico da experiência entre as novas gerações. Inês perguntou algo que ainda não podemos responder; isso tem a ver com o fato de que há uma nova onda de feminismo, que tem uma conotação de politização e dá vida ao internacionalismo: uma luta que transcende as fronteiras da mão do movimento de mulheres e da juventude em geral.
Porque são as garotas e os garotos; na Argentina, os vasos comunicantes são visíveis. Esteve no 13J, no 8A e agora começa a ter uma ascensão estudantil. Porque são os jovens, é a juventude mundial. Havia a ideia de César da “união entre gerações”, que é muito boa, é a juventude mundial que anima todos os movimentos de luta.
São muito jovens os que saem a lutar; quase meninos e meninas. E esse fenômeno é global. Você tem duas tendências na subjetividade do movimento de massa. Uma tendência em que a crise das alternativas subsiste. E outra tendência de retomada da experiência histórica onde há toda uma nova geração do movimento de mulheres, de jovens e também da classe trabalhadora.
“We,the workers”, por exemplo, mostra as formas elementares de organização dos trabalhadores na China. São formas elementares, não são desenvolvidas. Em muitos dos lugares onde havia formas desenvolvidas de organização dos trabalhadores, foram derrotadas, por razões estruturais e subjetivas.
Hoje há um processo duplo, uma bipolaridade: um fenômeno de giro à direita e dificuldades, e de resposta bipolar à esquerda. Nessa dificuldade está, por exemplo, o surgimento da classe trabalhadora como classe. E, por outro lado, um elemento de recuperação: o surgimento de novas gerações, inclusive trabalhadoras.
A importância estratégica da classe trabalhadora é óbvia: a classe trabalhadora entra em cena e muda tudo! A classe trabalhadora é “prata na mão ou bunda no chão”: se vamos lutar, vamos lutar. É o Estaleiro. E é também a classe social que está no centro da produção, que é mais difícil de entrar.
Temos um panorama em que a estabilidade capitalista está ameaçada. Vamos ver como isso se desenvolve. Porque os fundamentos da estabilidade são minados e onde uma crise de alternativas subsiste no subjetivo, mas há elementos de um recomeço da experiência histórica e essas duas tendências competem.
Existem as regiões. A América Latina persiste como uma das mais dinâmicas, apesar do giro à direita regional; giro para a direita que de todo modo ainda não está consolidado (veja os casos da Argentina e do Brasil).
Claudio afirmou que o dinamismo regional tem a ver com a Revolução Cubana. Eu discordo Eu acho que tem uma base muito mais objetiva; Eu não acho que seja por causa da Revolução Cubana que foi degradada por décadas; que hoje não é uma revolução, mas um estado terrivelmente burocratizado, ainda que haja conquistas.
O que há na região é uma tradição política secular e uma vitalidade do movimento de massas, com um grau de presença da classe trabalhadora e de sindicalização; em resumo: uma estrutura social culturalmente desenvolvida que colide com uma base econômica atrasada, com um baixo grau relativo de produtividade do trabalho. Há um choque entre classes sociais altamente desenvolvidas e uma infra-estrutura econômica atrasada. O resultado é a América Latina. Para mim, é um fenômeno mais objetivo.
Termino com o seguinte. Agradecemos a Claudio por sua presença. Porque desde uma enorme honestidade intelectual vem aqui para fazer a discussão. Isso nos permite ter um escopo mais objetivo de debate, não apenas entre nós: ampliar o escopo do debate em um momento em que ainda há muita fragmentação à esquerda.
Estamos na Terceira Jornada do Pensamento Socialista. E esse painel é para apresentarmos a revista Socialismo ou Barbárie nº32/33: um grande esforço que marca o desenvolvimento de nossa corrente; um esforço de elaboração, de construção do partido e da corrente, da militância, do estudo, da luta que nos fortalece como corrente, como tendência.
O título da revista é “Um mundo em crise. À abertura da época de crise, guerras e revoluções “. E tenho a convicção de que estamos indo para esse lado, companheiros e companheiras. Que estamos indo para uma luta de classes mais difícil. Que a mediação eleitoral existe, continuará a existir; devemos participar e usá-lo como possamos.
Mas entendendo que vamos a enfrentamentos mais diretos entre as classes e que as novas gerações têm um grande teste junto às gerações mais velhas; todos juntos. Há que se construir o jogo. Há que se construir a corrente. E devemos apostar com tudo na corrente revolucionária do socialismo neste século XXI, que é a nossa corrente histórica: o trotskismo.
NOTAS
[1] Entende-se que os Estados têm exigências, por exemplo, em termos de suas contas com o mundo (balanço de pagamentos e comerciais), que não são as de uma empresa privada (cujo único critério são os lucros, não importa onde a produção é feita).
[2] Enquanto no primeiro caso a lei do valor prevalece livremente, no caso da China ou da Rússia a intervenção do Estado introduz algumas modificações. Daí a tarifa de importação que Trump está agora introduzindo.
Tradução José Roberrto Silva