O artigo abaixo foi escrito no decorrer do segundo e terceiro dia de avanço das chamadas forças rebeldes até a queda de Damasco e do ditador Bashar-Al Assad, o que ocorreu de ontem para hoje.
Nas oito últimas horas as notícias dão conta de um ataque a bomba no centro de Damasco atribuído às forças israelenses e de que as Forças Defensivas de Israel (IDF, na sigla em inglês) entraram na Síria durante a madrugada e estão lutando “em quatro frentes”, segundo o oficial militar Herzi Halevi, citado pela Sky News.
A par disso, a TASS, a agência de notícias estatal russa, informou que Al-Assad está em Moscou, com membros da sua família e que Putin lhes ofereceu asilo político. Por último, a TV estatal síria anunciou a queda do ditador e se prepara a transição para um governo dos rebeldes. Enquanto isso, ocorriam manifestações de sírios exilados em Berlim, onde um dos manifestantes anunciava: “O futuro é nosso”.
Tais fatos, como demonstram os articulistas Senna e Dertaube, apontam tão somente que há muita água a correr por debaixo da ponte. Antes de qualquer prognóstico triunfalista, apenas com base numa ação progressiva de derrubada de um ditador sanguinário por forças que a mídia burguesa (e algumas de esquerda) chama de rebeldes, mas, que trazem internamente as mesmas contradições e reacionarismo daquelas que em Gaza e no Líbano são chamadas, por esta mesma mídia, de “terroristas”.
O único vaticínio a se declarar neste momento é que 1) os desdobramentos na Síria são parte de um reordenamento das posições geopolíticas na região posto dentro de um quadro geral que aponta um mundo em chamas; 2) O mais importante, a situação Síria pode se desdobrar de maneira favorável aos trabalhadores e oprimidos – inclusive com um impacto importante na luta contra o genocídio em Gaza, a luta mais importante pela libertação do Oriente Médio – apenas por uma possível retomada da rebelião das massas. Rebelião que foi interrompida pela repressão do ex-ditador, mas que no futuro pode ir no sentido de uma luta revolucionária que leve a transformações radicais de cima a baixo na Síria e na região como um todo.
Redação
Síria: A queda histórica de Bashar Al-Assad
A guerra civil síria parecia ter se acalmado para nunca mais voltar. De repente, as coisas mudaram completamente em menos de uma semana e terminaram com a queda da ditadura da família Al Assad, que governava a Síria desde 1971.
Agustín Sena e Federico Dertaube
As milícias islâmicas de Al-Golan derrubaram em um avanço fulminante um Al-Assad enfraquecido pelas guerras que consomem seus principais aliados, Rússia e Irã. A interminável guerra civil síria parecia ter acabado e retornou para terminar rapidamente. Deve ser uma das mudanças de regime mais abruptas da história recente.
Tudo começou em 2011. A Primavera Árabe foi uma explosão de mobilizações populares que tirou as velhas ditaduras de países como Egito e Tunísia. Em pouco tempo, as mobilizações chegaram a Damasco, capital síria. O papel principal foi desempenhado pelos bairros populares de maioria muçulmana sunita, o maior ramo religioso do país.
A ditadura de Assad respondeu com uma repressão brutal, perpetrando massacres indescritíveis contra a população civil. Também fez uso das tradicionais divisões sectárias-religiosas para ganhar o apoio de uma parte da população. Quis agitar o bicho-papão do fundamentalismo islâmico sunita para aumentar os temores de futura perseguição religiosa se seu regime se posiciona-se entre muçulmanos xiitas e alauítas.
Após os massacres, a rebelião se transformou em uma guerra civil. Muitos não estavam dispostos a simplesmente se deixar matar e pegaram a ferramenta militar que tinham a disposição para enfrentar o governo: grupos islâmicos. Outros, milhões, fugiram do país. Com a militarização do conflito, o protagonismo popular da disputa pelo futuro do país terminou.
Assad tinha o apoio da Rússia e do Irã. Foi de longe o lado mais bem armado em uma guerra sem fim. Além disso, os rebeldes foram divididos em vários grupos com interesses opostos.
Como dissemos, os grupos islâmicos sunitas foram os mais representativos. Mas eles estavam longe de ser um único lado. O maior grupo, a Frente Al-Nusra, estava ligado primeiro à Al-Qaeda e depois ao ISIS. Este é o grupo que, depois de muitas mudanças internas e ideológicas, acaba de triunfar. Confrontados por eles também estavam grupos islâmicos sunitas, mas do ramo salafista, ligado à Arábia Saudita. Alguns dos grupos sunitas foram até armados pelos Estados Unidos.
Foi naqueles anos que também explodiram as demandas dos curdos, o lado mais progressivo do complexo emaranhado que foi aquela guerra civil sem fim.
A guerra civil síria parecia ter acabado. Mas, de repente, retornou para terminar em menos de uma semana. E acaba de pôr fim a um regime de mais de 60 anos de existência, o da ditadura familiar de Al Assad.
Quem é Bashar Al Assad? O ditador derrubado
Bashar Al Assad é filho do primeiro ditador com esse sobrenome, Hafez Al Assad. Ele subiu ao poder após um golpe militar bem-sucedido em 1971, depois de muitos outros golpes militares.
A Síria, como a maioria dos países árabes, emergiu depois de ganhar independência dos colonos europeus que ocuparam a área após a Primeira Guerra Mundial. O último império a abranger a maior parte do mundo árabe, liderado por uma dinastia turca, foi o otomano. Este último entrou na guerra mundial como aliado da Alemanha e, após sua derrota, os territórios do antigo império turco foram divididos entre franceses e ingleses. Após a independência, os novos países foram formados com fronteiras mistas das antigas regiões administrativas otomanas e as divisões arbitrárias dos colonizadores europeus.
Hafez al-Assad fazia parte do Partido Baath de ideologia “socialista árabe”. Esse partido governou a Síria até ontem e acaba de ser banido pelos rebeldes. A ideologia “socialista árabe” é um daqueles “socialismos” que rejeitam a luta de classes e defendem a propriedade privada. Na realidade, é uma ideologia nacionalista burguesa. Baath significa “Renascimento”, e seu programa inicial era o de reconstruir a “unidade árabe” quebrada pela ocupação europeia. Sua base ideológica não era religiosa, mas secular, de “reconstrução” da “nação árabe”.
Não vamos nos debruçar muito sobre por que as classes dominantes do Oriente Médio foram incapazes de implementar esse programa. Em suma, os fatos são que o ramo sírio do Baath (o ramo iraquiano era o de Saddam Hussein) passou para o nacionalismo sírio. A maioria dos considerados “árabes” são, na verdade, povos “arabizados” pré-existentes, que adotaram principalmente a religião islâmica e a língua árabe. O nacionalismo sírio tentou traçar suas origens até o antigo império de Assur, na Assíria.
A vida política e a sociedade civil sírias continuaram a ser dominadas pelas velhas divisões sectárias-religiosas pré-capitalistas. Como em outros países do Oriente Médio, as divisões de classe modernas (capitalistas, trabalhadores, classes médias) estão misturadas com as sectárias-religiosas. A maioria dos trabalhadores sírios são muçulmanos sunitas. Apesar de se apresentar como um regime secular, na verdade o governo Assad se baseou na minoria religiosa muçulmana alauita. Os alauitas ocupavam todos os cargos de administração governamental, burocratica, militar, etc.
Hafez al-Assad, eliminando toda a dissidência no Partido Baath, conseguiu se tornar o ditador absoluto do país. Ele governou impondo-se com sangue e fogo. Com o passar dos anos, todos os traços de “nacionalismo” desapareceram definitivamente. Seu regime acolheu a era neoliberal de braços abertos. Mas seu domínio político parecia inabalável. Ele conseguiu forçar sua ditadura a uma dinastia familiar. Foi assim que Bashar Al Assad, seu filho, subiu ao poder após a morte de Hafez em 2000.
Na década de 1980, o antigo partido Baath havia desaparecido. Seu braço sírio tinha o apoio da URSS e Saddam Hussein, embora muitos o tenham esquecido o principal aliado dos Estados Unidos na área. Com o tempo, o regime de Assad tornou-se um dos principais aliados de Putin e do regime iraniano dos aiatolás no Oriente Médio. Aparentemente, o ditador júnior acaba de encontrar refúgio em Moscou.
Quem são os rebeldes?
Foi a ofensiva mais bem sucedida de rebeldes islâmicos na Síria nos últimos anos. O grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS ou Organização para Libertação do Levante) parece ter conseguido amalgamar a miríade de grupos islâmicos que se espalharam no noroeste da Síria após a retirada do Estado Islâmico.
O HTS é a refundação da antiga afiliada da Al Qaeda na Síria, fundada em 2003 sob o mandato do próprio Al-Golani. Em 2016 (o ano da retirada do ISIS), Al-Golani romperia definitivamente suas relações com a Al Qaeda e o próprio Estado Islâmico.
Nos últimos anos, ele deu várias entrevistas nas quais tenta se apresentar como uma variante moderada do islamismo reacionário, prometendo uma eventual tolerância para com as minorias étnicas e religiosas que ele mesmo prometeu destruir alguns anos antes. O HTS, como o resto dos chamados jihadistas, busca um governo da Sharia, a lei islâmica.
Nos últimos anos, com a guerra civil em compasso de espera, Golani começou a eliminar grupos islâmicos concorrentes e consolidar seu domínio sobre o noroeste da Síria. A partir daí, lançou sua ofensiva visando diretamente a captura de Damasco, a capital, e a deposição do governo de Al-Assad.
Uma espécie de ataque relâmpago que parece ter pego de surpresa as forças do partido no poder. Em poucos dias, Golani assumiu o controle de 4 cidades. Entre eles está Aleppo, a mais populosa do país e o epicentro dos primeiros anos da guerra civil. Nos últimos momentos, Homs, na periferia da capital, Damasco, juntou-se à lista. As tropas de Al-Assad foram derrotadas naquela cidade poucas horas depois de chegarem para defendê-la.
Damasco foi acercada por tropas rebeldes e o governo de Assad entrou em colapso.
Uma velha guerra em um novo mundo
A situação na Síria está relativamente calma há vários anos. A guerra civil estava longe de terminar, mas os principais confrontos pareciam suspensos e o tabuleiro de xadrez estabilizado, com Al-Assad mantendo o controle de 70% do país.
Mas a ofensiva jihadista avançou de forma extraordinariamente rápida e expôs a fraqueza do regime de Assad. Acontece que a situação geopolítica e regional é dramaticamente diferente do que era há alguns anos. A guerra genocida em Gaza e sua recente extensão ao Líbano mantêm o Irã, o principal aliado regional da Síria de Assad, ocupado. O mesmo vale para a Rússia, outro grande aliado que enfrenta enormes dificuldades políticas devido à sua decisão anexionista de invadir Donbass na Ucrânia.
Era de se esperar que as posições de Al-Assad fossem enfraquecidas pela mudança na situação internacional e regional, e os jihadistas de Golani compreenderam isso muito claramente.
Deve-se acrescentar que do lado rebelde se alistava, aparentemente, o presidente turco Erdogan. A Turquia vem manobrando e reacomodando-se há vários anos para intervir como potência regional. Suas incursões na Síria foram consistentes durante a guerra civil e seu apoio aos jihadistas é público. Após a queda de Hama (NT: cidade em que o pai de Bashar– Hafez al-Assad – desferiu um ataque brutal em 1992 contra uma revolta sunita, deixando um rastro de 30.000 mortos), Erdogan disse: “Espero que o avanço [dos islâmitas] continue sem incidentes“. Como se o que ocorre fosse uma ação diplomática e não o cerco de cidades inteiras e milhões de civis sírios.
O desconhecido do novo regime e o novo (des)equilíbrio regional
A instabilidade regional acaba de tomar um novo rumo. A queda de Damasco é um chute no tabuleiro de xadrez da relação de poderes. O principal aliado do Irã e da Rússia acaba de entrar em colapso, mas não está claro se o novo regime liderado por islâmicos será um aliado fiel dos Estados Unidos ou de Israel. Claro, eles têm tentado mostrar que “moderaram” e já disseram que não veem as potências ocidentais como inimigas. É uma piscadela, no mínimo, de trégua.
O Oriente Médio é hoje um território polvilhado por conflitos armados que se cruzam, com vários outros em preparação. No dia seguinte à queda de Hama, por exemplo, Israel bombardeou a fronteira síria reivindicando a destruição de um alvo do Hezbollah, um aliado iraniano no Líbano. A queda do regime de Damasco provoca uma reordenação geral das posições na região.
Não está claro como as influências das potências dentro da região seriam reorganizadas. Mas os jihadistas de al-Golani já saíram a esclarecer que não veem as potências ocidentais como um inimigo, um sinal para os EUA, a União Europeia e, acima de tudo, para Israel. Outra informação que permanece opaca é o papel que os setores curdos desempenharão, até agora o único lado da guerra civil que expressou certas demandas progressivas ou minimamente seculares.
Em apenas uma semana, a ofensiva jihadista já criou 115.000 novos sírios deslocados, que fugiram das cidades em disputa devido à destruição absoluta da infraestrutura civil, como escolas e hospitais.
Do ponto de vista marxista revolucionário, não há emancipação possível para as massas sírias se elas permanecerem nas mãos de ditadores como Al-Assad ou de grupos arqui-reacionários como o islamismo. Isso só pode ser alcançado superando as divisões sectárias, étnicas e religiosas. A evolução da situação na Síria também terá um impacto importante na luta contra o genocídio em Gaza, a luta mais importante pela libertação do Oriente Médio.
Tradução de José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/siria-la-historica-caida-de-bashar-al-asad/