Declaração da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie
Tudo começou como um protesto contra a reforma fiscal do governo de Ivan Duque. Mas rapidamente se transformou em uma rebelião que está questionando o próprio regime político colombiano.
A greve nacional convocada pela CUT em 28 de abril em rejeição aos aumentos de impostos para a classe trabalhadora foi como uma faísca que incendiou a pradaria. As mobilizações ocorridas em várias cidades também desafiaram uma decisão judicial que as proibia com a desculpa da situação sanitária. Mas a mobilização não tem feito mais que crescer.
Poucos dias depois, em 2 de maio, o governo anunciou que estava retirando o projeto de “Lei de Solidariedade Sustentável”, um eufemismo para aumentar o IVA sobre produtos de consumo em massa e ampliar a base de contribuintes. O projeto de lei deixou intacta a isenção de impostos para as grandes empresas.
O retrocesso de Duque foi assimilado pelas massas mobilizadas como um triunfo, e longe de ir para casa, elas aumentaram sua força e convicção para ir em busca de mais. O que começou como uma greve de caráter fundamentalmente operária passou a envolver todas as classes populares, jovens, povos indígenas e camponeses.
Isto contrasta com os dias de novembro de 2019, que ocorreram no calor da onda de rebeliões latino-americanas. Embora naquela ocasião o processo fosse importante, seu caráter era centralmente juvenil, com forte peso dos setores estudantis. Por outro lado, o que a Colômbia está vivendo nestes dias tem raízes sociais mais profundas, iniciadas pela classe trabalhadora organizada nos sindicatos e posteriormente estendidas às outras classes populares, além da juventude estudantil.
Agora, as demandas são muito mais gerais e profundas: a mobilização está questionando o regime político colombiano, um dos mais reacionários da América Latina durante décadas.
Uma catástrofe social explosiva
Em que pese não haver campanhas midiáticas nem indignação moral da direita internacional, a vida na Colômbia tem sido uma verdadeira tragédia social por décadas.
Desde antes do período conhecido como “La Violencia” (que colocou os partidos conservadores e liberais clássicos um contra o outro dos anos 1920 até os anos 1950), grandes partes do campo colombiano foram devastadas por gangues armadas paramilitares. Nos anos 60, surgiram as FARC e outros grupos armados que defendiam a reforma agrária. Assim, a Colômbia vive há muitos anos uma realidade cotidiana de guerra civil.
Com o tempo, a maioria dos bandos armados (principalmente paramilitares) foram se transformndo em poderosos grupos narcotraficantes que assassinam e expulsam camponeses há bem mais de meio século. Ilegalmente controlados pela burguesia e pelo Estado, eles são os garantidores da sistemática apropriação de terra e do deslocamento forçado de pessoas.
Assim, sem fazer muito barulho no mundo da mídia internacional, a Colômbia é o país com o maior número de migrantes internos do planeta: nada menos que 7 a 8 milhões de colombianos. Os grupos armados dos partidos do regime desde antes (Conservadores e Liberais), os grupos armados do Uribismo agora; foram responsáveis durante décadas por inúmeros massacres, extorsões, expulsões, roubos e crimes brutais. Estima-se que somente o grupo de extrema-direita Autodefesas Unidas da Colômbia (às quais Uribe supostamente está ligado) assassinaram mais de 94.000 pessoas.
Os milhões de desalojados incham as fileiras dos pobres nas grandes cidades, onde vivem em bairros precários, em empregos instáveis e informais. A mão-de-obra informal atinge mais de 60% dos trabalhadores ativos.
A pandemia tornou tudo ainda pior. O índice oficial de desemprego é de 17%, com picos de 20% em algumas cidades. A pobreza monetária (ou seja, pessoas que não atingem o mínimo de subsistência) é superior a 42%. A Colômbia é o segundo país mais desigual da América do Sul, atrás apenas do Chile.
Um detonador para questionar tudo
Com a queda da reforma tributária também caiu o Ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, que foi quem a projetou e a promoveu. Abriu-se então uma crise política no governo, alimentada pelo repúdio à repressão feroz com que Duque e o Ministro da Defesa responderam, acusando os manifestantes de serem terroristas e de serem organizados pelas FARC.
Em meio a esta crise política, o governo se depara com queixas muito mais profundas do que a rejeição de uma reforma. O Comitê Nacional de Greve (CNP), que reúne cerca de 50 organizações políticas, sociais, sindicais, camponesas e estudantis que estão organizando os protestos, convocou uma nova greve nacional para amanhã, quarta-feira, e publicou um programa (ver https://prensarural.org/spip/spip.php?article26670 ) com suas reivindicações.
Nele se exige a desmilitarização imediata das cidades, a punição dos responsáveis por todos os massacres contra líderes camponeses e ambientalistas, assim como o desmantelamento do esquadrão antidisturbios da polícia (ESMAD).
Eles também estão exigindo o estabelecimento de uma renda básica universal, a revogação da reforma de saúde proposta pelo governo e o fornecimento de vacinas para todos, a implementação de um plano econômico que priorize a indústria nacional e a agricultura sustentável e etc.
Isto quer dizer que as exigências estão questionando a orientação geral não só do atual governo, mas do Estado capitalista colombiano, que exerceu seu poder em estreita relação com as Forças Armadas e ajoelhando-se servilmente ao imperialismo ianque e seus interesses na América Latina.
Neste ponto há que se enfatizar que o questionamento da orientação ultra-repressiva do Estado colombiano é um elemento muito profundo. As Forças Armadas são um ator político central na Colômbia, que, com a desculpa da guerra contra o narcotráfico e as FARC, vem realizando há anos uma “guerra interna”, que na realidade é um verdadeiro massacre com milhares de vítimas civis. Na Colômbia são chamados de “falsos positivos”. São assassinatos de civis que o exército disfarça de confrontos com guerrilheiros ou traficantes de drogas. Estima-se que só nos últimos sete anos houve pelo menos 6.400 assassinatos de civis e ativistas nas mãos das Forças Armadas e grupos paramilitares relacionados, como a AUC (Autodefesas Unidas de Colombia).
Desse ponto de vista, o regime colombiano é um dos mais reacionários da América Latina, uma democracia burguesa “de exceção”, uma das mais militarizadas e repressivas do continente. Em outro dia de protestos, em setembro passado, oito pessoas foram mortas pela repressão. E na rebelião atual, pelo menos 27 vítimas fatais da repressão brutal já foram confirmadas.
Ontem à noite, imagens brutais circularam nas redes sociais de uma verdadeira caça pelas forças repressivas, principalmente nos bairros populares de Bogotá e Cali. O governo está tentando deter a rebelião com o método histórico do Estado colombiano: repressão e assassinato.
Entretanto, a escalada da repressão não foi capaz de apaziguar a mobilização, que hoje, mais uma vez, está ocorrendo em repúdio à brutal ação repressiva. Para amanhã, o CNP está convocando uma nova greve nacional com mobilizações em todo o país. As cartas estão dadas e não há outra alternativa a jogar: amplas massas chegaram à conclusão de que está na hora de impor outra realidade, e a repressão está alimentando essa determinação maciça. Recuar agora diante da repressão é fazê-lo por muito tempo: os próximos dias podem determinar os destinos da Colômbia por muitos anos.
Cali: epicentro da rebelião
Enquanto o Comitê Nacional de Greve se mantém em posições puramente reivindicativas, o movimento operário e popular da cidade de Cali já percebeu mais claramente as conseqüências de sua própria ação. A cidade exige a demissão da Duque.
“Reconhecemos que ganhamos uma primeira batalha diante da decisão do governo de retirar a Reforma Tributária, mas não ganhamos a luta. Até que todo o pacote da Duque seja retirado, o que inclui a Reforma Trabalhista, Reforma da Saúde e Reforma da Previdência, até que seja feita justiça para as pessoas mortas, feridas e capturadas neste árduo trabalho de mobilização, até que as cidades sejam desmilitarizadas e, sobretudo, até que a Duque se demita, a greve em Cali e Valle del Cauca não cessará”, disse dias atrás em um comunicado a liderança dos protestos na cidade.
E o comunicado de 2 de maio continua: “Comunicamos ao público que a greve assumirá o caráter de greve cívica indefinida e a partir das 5 horas da manhã de segunda-feira, 3 de maio, um bloqueio total, permanente e indefinido continuará em toda Cali e Valle del Cauca, razão pela qual as concentrações nas entradas da cidade, nas ruas e nas principais vias da cidade continuarão com firmeza. Comunica-se que somente as missões médicas e humanitárias e o fornecimento de alimentos poderão passar pelos pontos de concentração“.
Cali tem muitos motivos para se rebelar. Milhões de seus habitantes fazem parte das famílias camponesas desalojadas que enchem os bairros populares de sua periferia.
A cidade é o ponto de convergência de Cauca, Valle del Cauca e Chocó: áreas rurais amplamente controladas por gangues paramilitares. O crime organizado ligado aos repressores estatais é particularmente forte em Cali, onde o tráfico de armas e os assassinatos são uma ocorrência diária. A repressão é mais severa porque a presença militar e paramilitar é mais forte. É por isso que a resistência também precisa ficar mais dura: tomar as coisas em suas próprias mãos é literalmente uma questão de vida ou morte.
Por sua vez, delegações maciças de povos nativos do campo chegaram para fortalecer os bloqueios, convergindo em massa com trabalhadores, jovens, mulheres…
A cidade de Cali tem sido o centro da resistência e tem vivido durante dias e dias em uma greve geral de fato. Os bloqueios totais da cidade e a permanência da mobilização popular nas ruas a impuseram.
É também por isso que esta cidade é a que tem sofrido com a maior sanha e ódio a brutal repressão da ESMAD e das forças armadas.
Embaralhar e dar de novo a política colombiana?
Tudo isso significa que estamos mais uma vez testemunhando uma rebelião que, impulsionada em princípio por uma demanda específica, acaba sendo um detonador de algo muito maior, e a mobilização popular tende a questionar todo o status quo político e econômico do país.
Foi exatamente isso que aconteceu também no Chile, na imensa rebelião popular de 2019. Lá, um protesto de estudantes do ensino médio contra o aumento das tarifas de metrô desencadeou o maior processo de mobilização em meio século que questionou o regime pós-Pinochet, e venceu o chamado para um referendo sobre a reforma constitucional. A analogia não termina aí: tanto a Colômbia como o Chile foram bastiões históricos do neoliberalismo latino-americano e aliados ferrenhos dos Estados Unidos. Mas em ambos os países isso está sendo desafiado pela ação de rua das massas.
Acontece que a rebelião crescente na Colômbia está sendo um golpe muito duro para o Uribismo, o mais à direita do grupo político burguês do país, que tem sido hegemônico por muitos anos. Álvaro Uribe foi duas vezes presidente e embora atualmente seja senador, é fato que ele ainda é o líder político mais influente do país.
Durante anos, o Uribismo foi o principal contrapeso da direita aos processos políticos de centro-esquerda na América Latina. De fato, a direita na Colômbia nos últimos anos construiu sua hegemonia como a ala mais furiosamente intervencionista da Venezuela no continente.
A rebelião atual está in crescendo, e se ela continuar seu curso não podemos descartar que mais cabeças de ministros rolarão ou que o poder do próprio Duque chegue a estar questionado. Se esta tendência se confirmar, poderemos estar vivendo um rearranjo das peças no jogo político colombiano… e latino-americano.
Se isso acontecer, o regime reacionário, paramilitar e antipopular que tem dominado a vida colombiana por décadas pode cair. As massas em luta têm muito a ganhar; para começar, os direitos democráticos de organização básicos.
Fora Duque!
Assembleia Constituinte para acabar com o regime neoliberal e repressivo
O governo repressor e assassino de Iván Duque tem que cair
A reforma tributária veio agravar uma realidade econômica que faz do país um paraíso para as multinacionais da banana, mineração, açúcar e (é claro) empresas farmacêuticas. A Colômbia é aos olhos do dogma neoliberal o outro “modelo” a seguir além do Chile. Hoje podem ver como se derruba segundo a segundo o mito, delineado com os números desenhados do “crescimento”.
Não se trata mais de uma reforma. Agora a mobilização e a greve reuniram as demandas populares de todos os explorados e oprimidos, da cidade e do campo: a retirada da reforma de saúde, o fortalecimento do plano de vacinação, uma renda básica universal para enfrentar a crise, a proteção da produção agrícola nacional e de seus recursos naturais, o fim do contínuo deslocamento forçado dos camponeses, o acesso à educação pública, o desmantelamento da polícia anti-motins (ESMAD)…
O conjunto dessas exigências supera o que o governo Duque e o regime Uribista como um todo querem ou podem dar. Seu “modelo” econômico, sua forma específica de acumulação capitalista, sua forma de governar o país… tudo desmorona com essas exigências. Dar às massas populares o que elas exigem é derrubar Duque e a razão de ser do regime. É por isso que Duque tem que cair e com ele todo o regime político.
Por outro lado, rebelião, por si só, levanta novas formas de organização a partir de baixo que devemos impulsionar e aprofundar. Os comitês de greve nas diferentes cidades são ferramentas para organizar a luta, mas também pontos de apoio para reunir, a partir de baixo, os trabalhadores e setores populares que estão liderando a rebelião.
Impor um programa alternativo ao neoliberalismo que durante anos hegemonizou a política colombiana não pode ser feito confiando nas instituições deste regime criminoso, nem na burocracia sindical que durante todos estes anos conciliava com os governos pró-Uribe, embora agora deva sair a lutar sob a pressão das circunstâncias.
Finalmente, o programa alternativo que a rebelião expressa através de suas exigências questiona algo muito mais profundo do que a orientação política do governo atual. Não é apenas o governo Duque: é todo o regime político colombiano baseado na militarização, repressão aos ativistas rurais e urbanos, privatização da saúde, educação e serviços básicos, e total subordinação ao imperialismo.
É necessário criar uma grande Assembléia Constituinte organizada desde abaixo que deponha este regime reacionário e que permita abrir uma nova perspectiva para os explorados e oprimidos de reorganizar completamente o país, colocando a frente seus próprios interesses.
Redigida em 04/05/2021, publicado originalmente em http://izquierdaweb.com/rebelion-en-colombia-duque-tiene-que-caer/
Tradução: José Roberto Silva