Apresentamos abaixo o ensaio teórico-político Questões de Estratégia: Reivindicações, partido e poder de Roberto Sáenz. Um profundo e abrangente texto dedicado a temas como: vigência do pensamento estratégico marxista, política parlamentar revolucionária, conquista do poder pelos explorados, construção partidária dentro desta perspectiva, dentre outros. Em tempos de catástrofe pandêmica, crise econômica depressiva, luta por uma saída radical explorados e oprimidos para essa crise global, o estudo critico deste ensaio é parte fundamental da formação teórica e do armamento político para encarar os desafios históricos que temos pela frente.

Redação

Questões de Estratégia

Reivindicações, partido e poder

POR ROBERTO SÁENZ  

“A ideia de uma estratégia revolucionária foi consolidada nos anos do pós-guerra, a princípio, sem dúvida, graças ao influxo de terminologia militar, mas não por acaso. Antes da guerra, tínhamos falado apenas da tática do partido proletário; Essa concepção correspondia com exatidão suficiente aos métodos parlamentares e sindicais vigentes na época e que não iam além do quadro de demandas e tarefas atuais. A tática limita-se a um sistema de medidas relacionadas a um problema particular dos assuntos atuais ou a um domínio determinado da luta de classes, enquanto a estratégia revolucionária se estende a um sistema combinado de ações que, em sua relação, em sua sucessão, em seu desenvolvimento, devem levar o proletariado à conquista do poder” (León Trotsky. Stalin, o grande organizador de derrotas).

  1. Retomar o pensamento estratégico

Na segunda década do século XXI, o debate estratégico se põe novamente na ordem do dia. Se no começo do novo século esse debate girou entorno da experiência dos zapatistas e no questionamento hollowaiano sobre “como mudar o mundo sem tomar o poder”, um segundo momento foi caracterizado pela análise dos processos de rebelião latino-americanos e que posição adotar diante dos novos governos do “socialismo do século XXI”. Poderíamos dizer que agora estamos entrando em um terceiro momento que começa a fundamentar-se ao redor da possibilidade de que uma formação reformista não tradicional como Syriza chegue ao governo na Grécia. Também devido às novas responsabilidades parlamentares que está alcançando a esquerda revolucionária em alguns países como a Argentina.

A experiência parlamentar da chamada “esquerda radical” tem mais de uma década na Europa à partir das vitórias eleitorais de alguns dos “partidos amplos” impulsionados, entre outras forças, por algumas das organizações do trotskismo europeu. Isto deu lugar a parlamentares em Portugal, Itália, Inglaterra e Alemanha, na maioria das vezes caracterizado por uma abordagem oportunista. No caso latino-americano, o PSOL do Brasil também tem parlamentares há vários anos, com um curso do mesmo tipo. Agora o desafio cabe a FIT (PO e PTS) na Argentina, uma frente de organizações mais à esquerda que suas correspondentes europeias, mas de todo modo com traços “oportunistas” e elementos de cretinismo parlamentar.

Isto está lançando um novo conjunto de problemas sobre a mesa, entre eles, a problemática do chamado “governo operário”, a qual nos dedicaremos mais abaixo. São expressão de que, lentamente, está se vivendo um processo de acumulação de experiências da classe operária e da esquerda a nível internacional, processo que começa a lançar às correntes revolucionárias responsabilidades novas, como a construção de nossas organizações como partidos orgânicos da ampla vanguarda e, inclusive, como partidos que em alguns casos têm o desafio de se lançar a influenciar setores mais amplos .

Desde já que o aprofundamento desta experiência em gera, e o desenvolvimento de nossos partidos em particular, vai depender de quanto se radicaliza o processo de luta, sobre a base da evolução geral da atual crise econômica mundial e dos desdobramentos geopolíticos e da luta de classes para qual ela dá origem. Os casos de 2013 no Brasil, Turquia e outros países são uma mostra de que o ciclo político internacional segue sendo de rebeliões populares independentemente de que a maturação dessas experiências e um salto em sua radicalização posterior não seja algo nada simples.

Estas maiores responsabilidades que assume a esquerda revolucionária criam a necessidade categórica de recuperar o debate estratégico. Nosso objetivo é prosseguir aqui a elaboração que começamos em “Ciência e arte da política revolucionária”. Nesse texto tentamos transmitir alguns rudimentos do que fazer político elementar para contribuir com a formação da nova geração militante que se forja no calor das lutas no novo século. Os desafios atuais da esquerda revolucionária nos colocam a dar um passo a mais: abordar e recriar alguns dos nós centrais da estratégia revolucionária nos apoiando nos ensinamentos de Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a partir das experiências em curso.

O que segue será, então, uma reflexão geral a respeito dos problemas da estratégia revolucionária que vai mais além das necessidades do momento. Não tem outro interesse senão ajudar a abordar-la como corresponde: lançando luz da perspectiva estratégica do (re)lançamento da revolução socialista no século XXI. Mais particularmente, sobre o que é o alfa e ômega da estratégia: o problema do poder da classe operária. 

A reflexão que pretendemos levar adiante aqui de nenhuma maneira entendemos como um tipo de receita ou regulamentos válidos para qualquer tempo e lugar; o resumo da experiência passada reúne princípios e ensinamentos universais, mas em nenhum caso exime da análise concreta de cada situação concreta: “A verdade sempre é concreta”, assinalava Trotsky. Apontamos isso porque muitas vezes as discussões sobre estratégia pretendem fazer uma gama de codificações que ensinem de antemão como lutar – e o que se deve ou não deve fazer em determinada situação. Uma ideia do tipo “ o conhecimento da experiência anterior nos permitiria não ter que pensar de novo cada vez que nos enfrentamos diante de uma determinada situação da luta de classes” seria um erro completo. Não se deve confundir o estudar, incluindo minuciosamente, as diversas circunstâncias e a política que tiveram os revolucionários frente a cada giro da situação com o fato de que cada circunstância deve ser abordada concretamente, aprendendo a pensar por si mesmo, claro que valendo-se do conjunto dos ensinamentos legados pela tradição do marxismo revolucionário. Tradição que, como dizia Trotsky citando Goethe, não pode ser assimilada mecanicamente pelas novas gerações, mas que deve ser reconquistada sobre a base da própria experiência.

Os ensinamentos deixados pelos grandes revolucionários, assim como a crítica sobre os limites de classe das experiências das revoluções anticapitalistas do segundo pós-guerra, são um fator de primeira ordem na formação da nova geração militante e na construção de nossos partidos como organizações de combate. Estes ensinamentos estratégicos partem do pressuposto metodológico de que a história não se realiza sozinha, de que o sistema não vai afundar por si mesmo por mais crises que esteja condenado a sofrer; tampouco é possível focar caprichosamente as tarefas lançadas de maneira que não seja partindo da realidade e das determinações dos processos tal como são. Porque, em definitivo, os problemas de estratégia revolucionária remetem também a problemas de método no terreno do marxismo.

É significativo que as obras políticas dos grandes revolucionários estejam cruzadas por apontamentos metodológicos. Nem o objetivismo fatalista nem o subjetivismo caprichoso são recomendáveis em matéria estratégica; apenas um enfoque realmente ativista, materialista dialético, pode servir para contribuir para a transformação social. Um enfoque que parta das condições objetivas tal como são e, ao mesmo tempo, não se apoie em nenhuma concepção fatalista que pretenda que a história vai se realizar em virtude de algum tipo de automatismo. Sobre as condições criadas objetivamente, o pensamento estratégico remete, precisamente, ao conjunto de passos levados adiante por uma “agência subjetiva” (a classe operária com o partido encabeçando) que deve empurrar as coisas em determinado sentido e não em outro.

2. O pensamento estratégico no marxismo revolucionário

2.1 A estratégia da centralidade operária na revolução

Não há maneira de abordar os problemas da estratégia revolucionária senão a partir de uma teoria da revolução; quer dizer, a concepção que se têm da dialética histórica que preside as perspectivas da transformação social.

As bases da compreensão mais precisa da teoria da revolução socialista em nosso tempo foram postas por León Trotsky desde o início do século passado, reforçadas e enriquecidas pela imensa experiência da Revolução Russa, assim como pelas revoluções históricas que lhe sucederam nos anos 20 e 30, enquanto vivia o próprio Trotsky.

Todas essas experiências, que incluíram a Revolução de Outubro, a alemã, a austríaca, o biênio vermelho na Itália e a revolução espanhola, entre as mais importantes, demonstraram que a resolução consequente das tarefas pendentes da revolução burguesa, o freio às tendências crescentes à guerra inter-imperialista e a barbárie capitalista, assim como o livre desenvolvimento das forças produtivas e as tarefas específicas da transição ao socialismo dependiam que a classe operária chegasse ao poder por intermédio de seus organismos e do partido revolucionário, e assim se afirmasse. 

Inclusive: revoluções com forte centralidade operária, mas sem partido revolucionário e com a ação cada vez mais contrarrevolucionária da socialdemocracia  e do stalinismo (todas as tentativas com exceção do outubro russo), foram derrotadas, discussão que Trotsky sustentou durante duas longas décadas de luta política implacável e que levou à formulação madura de sua teoria da revolução permanente, assim como a incontáveis ensinamentos em questão estratégica. 

As revoluções do segundo pós-guerra pareceram inverter todos os papéis. Nas décadas que sucederam a Segunda Guerra Mundial, em um conjunto de países como China, a ex-Iugoslávia, Cuba e Vietnã através de revoluções, e nos países do leste europeu através da ocupação pelo Exército Vermelho dirigido pela burocracia, se foi além do sistema imperante, expropriando os capitalistas e resolvendo parcialmente algumas das tarefas burguesas pendentes.

Se o processo da revolução socialista e a transição podia desenvolver-se automaticamente porque as direções burocráticas haviam se tornado em “empiricamente revolucionárias” (Mandel) ou pelo “peso das condições objetivas” (Moreno), ou por circunstâncias “excepcionais” inexplicáveis que no entanto “conservavam a regra” (quer dizer, a teoria original),[1] era evidente que ao menos uma parte da concepção original de Trotsky da teoria da revolução socialista deveria ser questionada.

Isso produziu todo tipo de desvios objetivistas entre as diversas forças em que se dividiu o trotskismo no segundo pós-guerra[2]. Uma grande desorientação estratégica prevaleceu em suas fileiras. Se apresentaram diversas interpretações, que nós criticamos em outros textos (ver “Notas críticas para a interpretação do movimento trotskista no segundo pós-guerra, Socialismo ou Barbárie 17/18). Essas interpretações explicam como o debate estratégico foi definhando até acabar praticamente fora da agenda com a queda do Muro de Berlim.

Hoje esse debate regressa, um pouco pela força dos fatos. Os novos desenvolvimentos da luta de classe e o recomeço da experiência da classe operária e o ciclo de rebeliões populares que estamos vivendo estão recolocando os problemas da teoria da revolução e da estratégia dos revolucionários na agenda.

Mas antes de abordar os problemas da estratégia revolucionária devemos encarar as questões vinculadas ao balanço da teoria da revolução, assim como os mesmos fins da luta emancipatória socialista, reflexão imprescindível para encarar os desafios revolucionários do novo século a partir do estudo crítico dos ensinamentos deixados pelo século anterior.

Desde nossa corrente tentamos fazer um esforço nesse sentido, abordando em textos tanto os problemas da revolução socialista como os da transição ao socialismo. Seguramente existem erros nesse esforço. Mas o que estamos seguros é que há um valor estratégico que deve ser encarado nessa reflexão como ponto de partida para qualquer desenvolvimento posterior. Reflexão que, em todo caso, só poderá encontrar sua síntese no calor do desenvolvimento de novas experiências revolucionárias neste novo século e da transformação de nossas organizações de partidos “liliputianos” que ainda somos em geral em verdadeiros partidos revolucionários. Isso dependerá tanto do desenvolvimento de condições objetivas como de nossa capacidade subjetiva para enfrentar revolucionariamente os desafios de nosso tempo.

Voltando a nosso tema, só queremos apontar a conclusão que obtivemos do reexame sobre a experiência do pós-guerra e do século XX em seu conjunto, na tomada desta problemática: não há substituto possível à classe trabalhadora, seus organismos, programas e partidos revolucionários na hora da revolução socialista e da transição ao socialismo. Se trata de uma tarefa histórica colocada para um sujeito com correntes radicais. E esse sujeito, como assinalaram Marx e Engels, é a classe operária.Histórica, estratégica e teoricamente não há outra classe social que possa levar adiante a tarefa da transformação social do capitalismo, ainda mais em um mundo como o de hoje, qualitativamente proletarizado. A revolução socialista é uma tarefa propriamente da classe trabalhadora: se ela não levar a cabo, ninguém o fará.

Essa é uma lição marcada a fogo por toda a experiência do século passado, tanto pela positiva (as conquistas da Revolução Russa, apesar de sua degeneração posterior) como pela negativa: a parcialidade das conquistas alcançadas pelas revoluções anticapitalistas e o bloqueio das sociedades não capitalistas em sua dinâmica transicional, na ausência do poder da classe operária. Porque, em definitivo, na transição não havia base econômica que garantia o caráter do processo; sua evolução depende do caráter do poder, e não em termos de definições em um papel, mas na vida social efetiva. A propriedade e a posse efetiva dos meios de produção, o poder político e a capacidade de planificação devem estar em mãos dos trabalhadores para que a transição caminhe no rumo do socialismo.

Nesta conclusão que ratifica que, a luz da experiência histórica do último século, a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. É sintomático que o próprio Ernest Mandel, que expressou uma linha seguidista as direções burocráticas ao longo de toda sua trajetória política, no final de sua vida deixou a seguinte reflexão: “As premissas políticas do substitucionismo levaram na prática, ao final da Segunda Guerra Mundial, a imposição de regimes como o do Kremlin na Europa oriental, com exceção da Iugoslávia, por meio da pressão militar-policial por cima, contra uma população recalcitrante, se não claramente hostil. Todos os acontecimentos posteriores, incluindo seu colapso ou quase colapso em 1989, derivam desta condição inicial. Demonstraram a impossibilidade de ‘construir o socialismo’ contra os desejos da maioria das massas trabalhadoras” (O poder e o dinheiro, 159).

Assim as coisas, a elevação da classe operária a classe dominante ao poder é alfa e ômega da estratégia dos socialistas revolucionários. E essa perspectiva é a que levanta, então, os problemas de estratégia (partido, organismos, poder), o que lhes dá seu contexto. Sem uma teoria da revolução acertada que supere os desvios objetivistas e subjetivistas não podem ser colocados corretamente os problemas da estratégia revolucionária, com toda a complexidade que levam.

Já a “transposição estratégica” da teoria da centralidade operária na revolução socialista é de imensa complexidade. Como assinalamos mais acima, não é se pode ser um simples receituário: toda a experiência histórica da luta revolucionária alimenta essa experiência, a começar pela experiência do bolchevismo e os ensinamentos de Lênin, de Trotsky e a luta implacável da Oposição de Esquerda, assim como a de Rosa Luxemburgo no seio da velha socialdemocracia. Após colocado esse marco, abordemos, agora, os problemas específicos da estratégia revolucionária.

2.2 O legado de Rosa, Lênin e Trotsky

Trotsky apontava que na socialdemocracia antes de 1914 praticamente não se conhecia a problemática da estratégia propriamente dita. Falava-se apenas de “problemas de tática” na hora de enquadrar a ação dos socialistas. De certo modo, isso era uma adaptação todavia inconsciente às características da época, marcada por uma progressão do capitalismo e uma atividade evolutiva que se sustentava nos marcos do sistema: o movimento era tudo, o fim nada, como havia dito, equivocada mas sagazmente, Bernstein.

Isso não quer dizer que não tiveram elementos de reflexão estratégica já desde o final do século XIX. Alguns desses elementos estavam implícitos na reflexão política e militar de Marx e Engels[3]. Mas foi sobretudo Rosa Luxemburgo quem inaugurou o pensamento estratégico propriamente dito, desde o momento em que irrompeu na socialdemocracia alemã. Fez mediante um trabalho de crítica cada vez mais sistemático a chamada “velha tática provada”, que se caracterizava por conquistas parlamentares, postos sindicais e reivindicações parciais como via régia da atividade dos socialistas. O pensamento de Rosa, de enorme riqueza e agudeza a este respeito, tinha a limitação, é certo, de suas condições de atuação política. Trotsky recorda que Rosa não chegou a colocar o problema da insurreição como tal, a organização da tomada do poder, questão que derivou um tanto mecanicamente da organização da greve de massas política. Essa limitação vinha, também, de uma debilidade na hora de pensar o partido como uma organização de combate: a seção dos melhores elementos da classe operária e da militância, de tal forma, uma carência em grande medida subproduto das condições em que atuou. Isto é, por baixo do peso morto do aparato socialdemocrata auto-satisfeito, deveria contrapor-lhe a ação vivificante e espontânea da classe operária desde abaixo.

Entretanto, não há nenhuma dúvida de que Rosa faz uma grande contribuição ao pensamento estratégico do socialismo revolucionário: “O mérito que corresponde a Rosa na elaboração do marxismo revolucionário contemporâneo é imenso. Ela foi a primeira que lançou e começou a resolver o problema da estratégia e da tática revolucionárias” (Ernest Mandel; Rosa Luxemburgo e a Socialdemocracia Alemã). E fez com uma perspicácia em relação às inércias da socialdemocracia alemã e se antecipou em muitos anos às formulações dos dois grandes revolucionários russos.[4]

Lênin e Trotsky deram um passo a mais.[5]  A experiência da Revolução de Outubro, assim como a criação da Terceira Internacional e os desafios colocados pela revolução no Ocidente e Oriente, alimentaram o pensamento estratégico de ambos. Lênin foi o ator central na orientação da Internacional até 1922. Trotsky foi o “segundo violino” por esses mesmos anos, e testemunha privilegiada do ciclo revolucionário íntegro do entre guerras, incluindo experiências históricas como a derrota da revolução alemã (1918-1923), a ascensão do nazismo (1933) e do fascismo italiano (1922), o fracasso da revolução chinesa (1925-27), a tragédia da revolução espanhola (1931-39), a derrota na Áustria (1934), a impotência da situação revolucionária na França (1936-37), e um largo etecetera. Foram experiências sem precedentes no apogeu da “Era dos Extremos” marcada pelo impulso inicial da época de crises, guerras e revoluções desde o início da Primeira Guerra Mundial, que merece um reestudo por parte das correntes do marxismo revolucionário.

Nossa corrente sempre vem insistindo na importância estratégica das revoluções clássicas do primeiro pós-guerra, por sua centralidade operária, presença de organismos de duplo poder, consciência socialista entre as amplas massas, e direção por parte do partido revolucionário. Entretanto, em virtude das consequências negativas sobre a teoria da revolução das revoluções anticapitalistas do segundo pós-guerra – sem classe operária, com centralidade campesina ou pequeno burguesa e com direções que reportavam de uma ou outra maneira ao stalinismo -, nos concentramos primeiro no estudo crítico das lições deixadas por essas últimas. É hora de nos dedicarmos, então, a essa “Era dos Extremos”.

O pensamento estratégico do marxismo revolucionário se enriqueceu enormemente ao calor das revoluções e das lutas políticas da segunda e terceira décadas do século XX, as mais revolucionárias da humanidade, com ensinamentos que entraram no acervo histórico do marxismo revolucionário. 

No caso de Rosa Luxemburgo, Reforma ou Revolução, os diversos textos sobre o parlamentarismo e os de debate sobre a greve de massas são de grande significado em questão estratégica. Em Lênin, textos como Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo são de grande valor educativo, comparável talvez por sua qualidade formativa do socialismo revolucionário com a importância do Manifesto Comunista no século anterior. Em Trotsky já a lista de textos de estratégia é quase infinita: é o pensador estratégico por excelência do marxismo revolucionário. Estava munido de uma teoria da revolução mais precisa, e viveu na plenitude das suas condições políticas e intelectuais nas duas décadas mais revolucionárias da humanidade. Daí que o resumo de sua experiência formulado em luta até a morte com o stalinismo se pode obter em textos como A Terceira Internacional Depois de Lênin, e nos estudos críticos dedicados a Alemanha, Espanha, França e China, uma verdadeira coleção de textos políticos de valor sem igual.

No segundo pós-guerra houve tentativas de desenvolver o pensamento estratégico pelo trotskismo, apesar de muito mais débeis e fragmentários. A falta de critério de classe com que foram abordadas as revoluções anticapitalistas do pós-guerra, assim como as limitações de toda ordem que tiveram as diversas correntes e dirigentes do trotskismo nessa época dificultaram as coisas. Entre elas, a sistemática adaptação do tronco principal do movimento trotskista (Pablo e Mandel) às direções burocráticas durante os processos do pós-guerra. Bensaïd, dirigente desta corrente já falecido, conta como se estudavam, ao que parece sem maiores delimitações, revoluções de caráter muito distinto: “A partir das grandes experiências revolucionárias do século XX (revolução russa e revolução chinesa, assim como também a revolução alemã, as frentes populares, a guerra-civil espanhola, a guerra de libertação vietnamita, maio de 68, Portugal, Chile), distinguimos duas grandes hipóteses: A greve geral insurrecional (GGI), e a da guerra popular prolongada (GPP). Elas resumem dois tipos de crise, duas formas de duplo poder, dois métodos de desenlaces das crises” (Sobre o retorno da questão político-estratégica”).

Com um ângulo mais crítico, outro dirigente dessa mesma corrente levanta: “A Liga (a LCR, partido histórico do mandelismo na França, hoje o NPA) teve uma tendência a reduzir a estratégia unicamente ao momento da crise revolucionária, inclusive às modalidades político-militares de conquista do poder, em particular através do estudo de diversos modelos(…). Sim, bem foi correto trabalhar estas questões, nossa inclinação consiste sempre em reduzir os problemas estratégicos a um debate de modelos, quando na realidade a estratégia engloba grande quantidade de dimensões na constituição do sujeito revolucionário. Essa inclinação para a modelização nos conduziu, além do mais, a cometer erros, em particular na América Latina, ao adaptar-nos às generalizações do modelo cubano por parte das correntes castristas” (François Sabado, “Elementos centrais de estratégia revolucionária nos países capitalistas desenvolvidos”, 2008). Aqui, a ideia de “modelização” e a carência de uma avaliação mais ampla dos sujeitos parece reduzir o debate estratégico a algo “técnico”, independentemente de se a classe operária é a que da o caráter da revolução ou não.

Por sua parte, ainda que de maneira fragmentaria, com imprecisões e fortes elementos de empirismo, assim como uma reformulação da teoria da revolução errônea, em chave objetivista, que levou à implosão da velha LIT[6], é de honestidade intelectual recordar que no que tange a um dos debates de estratégia mais importante no seio da IV Internacional no início dos anos 70, Nahuel Moreno acertou quando defendeu uma estratégia clássica de construção do partido e mobilização operária frente ao guerrilheiríssimo sustentado pelo mandelismo para a América Latina.

Em qualquer caso, recuperar uma perspectiva classista em relação à teoria da revolução é o caminho mais adequado para enfrentar as tarefas que vêm neste novo século: a luta por reabrir a experiência das revoluções socialistas propriamente ditas.

2.3 O conceito de estratégia

O pensamento estratégico do marxismo revolucionário deve partir hoje de três lugares. Primeiro, as maiores conquistas das contribuições de Trotsky, Lênin e Rosa Luxemburgo. Segundo, do balanço crítico das revoluções anticapitalistas, quer dizer, substituistas, não operárias e nem socialistas do pós-guerra. Terceiro, tornar concreta a questão de quais são os desafios que o atual ciclo político internacional nos tem colocado.

Sobre o conceito de estratégia, abordamos esta temática em Ciência e Arte da Política Revolucionária; aqui queremos avançar um passo mais. Trata-se de um conceito que provém da arte militar. Um dos mais altos pensadores da arte da guerra foi Carl Von Clausewitz, cuja teoria da guerra foi assimilada pelos grandes revolucionários. O pensador alemão considerava a estratégia como a compreensão totalizante das operações que conduziam ao triunfo na conflagração. Em toda guerra se dá um número indefinido de grandes e pequenas batalhas; nem é preciso dizer sobre as duas guerras mundiais que marcaram o século passado. Mas o que importa aqui é compreender que a estratégia é o encadeamento de cada uma das batalhas com o conjunto total da guerra para dar lugar ao objetivo final: o triunfo, quebrar a vontade do inimigo: “A estratégia é o uso do conflito para alcançar o objetivo da guerra. Portanto, deve dar um propósito a toda ação militar, propósito que deve estar de acordo com o objetivo da guerra” (De la guerra; 71).

Colocado o problema desde um ponto de vista mais geral, a estratégia é aquilo que dá sentido e liga cada um dos eventos parciais, táticos, da luta. A conquista do poder político é o objetivo final, e o objetivo é a alma de cada luta, sem o qual não temos uma real luta de classes, como dizia Rosa: “O que é que realmente constitui o caráter socialista do nosso movimento? As lutas práticas reais caem em três categorias: a luta sindical, a luta por reformas sociais e a luta por democratizar o estado capitalista. São realmente socialistas essas três formas de nossa luta? Mas que nada (…). Então, o que é que nos faz ser um partido socialista nas lutas de todos os dias? Só pode ser a relação entre estas três lutas práticas e nosso objetivo final. É apenas o objetivo final que constitui o espírito e o conteúdo de nossa luta socialista, o que a transforma em luta de classes” (Rosa Luxemburgo, “Intervenções no Congresso de Stuttgart, outubro 1989).

Como já apontamos, Trotsky recordava que na Segunda Internacional não havia pensamento estratégico propriamente dito; em todo caso, seu pensamento “estratégico” não era verdadeiramente tal, revolucionário: o momento parcial era tudo, o fim, nada. Simplesmente, por que no fim o socialismo viria como resultado do simples desenvolvimento das tarefas cotidianas. A rotina dessas tarefas levaria automaticamente ao novo sistema social.

Mas o pensamento estratégico renega todo automatismo. Se as coisas marcham sozinhas, não faz falta relacionar cada evento parcial ao quadro total da luta, nem faz falta construir, evidentemente, o partido. Mas se não for assim, e não é, então o esforço estratégico deve dominar cada momento parcial. Cada batalha, cada evento, cada reivindicação alcançada deve ser situada no contexto total da luta conjunta para que sirva aos objetivos de fundo dessa mesma luta: a conquista do poder pela classe operária.

A isso nos referimos quando falamos de estratégia revolucionária, ou mais propriamente, de pensamento estratégico.[7] Não é casual que, passada a época da Segunda Internacional, aberta a época histórica da revolução socialista com a Revolução de Outubro, Lênin e Trotsky abriram a “época de ouro” do pensamento estratégico. A época do imperialismo significou o fim do crescimento evolutivo do capitalismo. Já não se podia conceber, honestamente, a transformação social como um produto espontâneo do desenvolvimento histórico, de um “crescimento orgânico” das fileiras e conquistas da classe operária.

Da “velha tática provada” da socialdemocracia se sucedeu a experiência e o pensamento estratégico que não conta com o automatismo da transformação social, mas que deve inserir cada reivindicação, cada batalha, cada conquista parcial no contexto total de uma ação consciente orientada conscientemente para a transformação social.

Quando falamos de estratégia, então, temos em vista que qualquer vitória parcial, qualquer conquista sindical, qualquer obtenção de parlamentares deve pensar e levar em consideração a perspectiva estratégica do poder da classe operária e da construção do partido revolucionário como ponto de apoio consciente e imprescindível para essa perspectiva. E de um partido que não se faça rotineiro, que não se acomode às “grandes conquistas”, que não se autoproclame “campeão do mundo” antes de dar o verdadeiro combate (a luta pelo poder), mas sabe aproveitar cada conquista parcial para fortalecer-se de maneira orgânica, para ampliar suas fileiras e raio de ação no seio da classe operária e para preparar-se de maneira sistemática, através das diversas tarefas parciais e das lutas cotidianas da classe operária, na perspectiva do poder, apontando para ganhar as massas.

Desde já, o desenvolvimento do pensamento estratégico no marxismo revolucionário e a estratégia como “estrela polar” de nossa orientação não significa que não haja momentos táticos. Se a estratégia se dá pelo quadro total dos enfrentamentos na condução da guerra, a tática tem que ver, justamente, com essas batalhas, esses enfrentamentos, esses momentos parciais subordinados a estratégia geral mas que tem toda sua substância, toda sua especificidade, que de nenhuma maneira pode-se fazer abstração.

A marcha total da guerra depende, finalmente, da realidade de cada combate, do resultado de cada batalha; mal estrategista seria o general que tivesse desenhado em sua cabeça um “plano perfeito”, mas cujo exército perdera sistematicamente, uma a uma, todas as batalhas. A tática é, justamente, e de maneira dialética, a maneira de fazer valer a estratégia em cada um dos eventos parciais da luta; porque a luta não é um continuum abstrato, mas está pautada por tempos diversos: momentos de ataque, de defesa, de suspensão das hostilidades. Está caracterizada por um conjunto de combates substanciados em tempo e lugar (como uma luta de boxe, que tem vários rounds), e que há o que aprender a ganhar se quer triunfar na guerra como um todo.

Dito de outra maneira: a estratégia vivifica, mas não suspende (nem poderia fazê-lo) a importância de cada batalha parcial, mas apenas dá seu sentido geral. São essas batalhas parciais e seu resultado as que decidirão se nossa estratégia triunfará ou não: “É evidente por si mesmo que a estratégia deve entrar no campo de batalha com o exército para organizar os detalhes sobre o terreno e não  as modificações ao plano geral, coisa que é incessantemente necessária. Em consequência, a estratégia não pode nem por um momento suspender seu trabalho”(Clausewitz, Idem).

Dessas considerações gerais surge a diversidade de táticas de luta da classe operária e do marxismo revolucionário. Sobre elas também chegamos a dizer algo em  Ciência e Arte da Política Revolucionária, conceitos a que nos referimos.

2.4 O fundo político da estratégia

Passemos a outro aspecto da estratégia. Como é sabido, entre guerra e política existem relações íntimas que foram estudadas pelo marxismo. Com Clausewitz ficou estabelecido que a guerra é a continuidade da política (estatal) por outros meios, e o marxismo adaptou essa definição como a continuidade da luta de classes por meios violentos (Lênin).

No mesmo sentido, e atendendo a nova época aberta a partir da Primeira Guerra Mundial, León Trotsky apontava que a guerra civil, o enfrentamento direto entre as classes, é outra das formas dessa continuidade da política. Uma luta de classes que quando transborda na democracia burguesa – em termos gerais, comunismo vs. fascismo – adquire aspectos de um enfrentamento militar, na medida em que se põem sobre a mesa os problemas do armamento do proletariado, as milícias populares, a autodefesa, a ciência e a arte da insurreição.

Mas não se trata somente do momento culminante da guerra civil. A arte da guerra traz conceitos para a luta política enquanto, em definitivo, também no campo da política se sustenta um enfrentamento de classes irreconciliáveis: a política pode ser vista como continuidade da “guerra de classes” que se leva a cabo cotidianamente ao redor da exploração do trabalho entre os capitalistas e a classe operária.[8] E, desde esse ponto de vista, a arte da estratégia remete para a aprendizagem para a luta; ao passo que na disputa com a burocracia sindical, frente a repressão, nas greves, nas mobilizações, na ocupação dos locais de trabalho, na tomada de reféns, nos bloqueios de vias, o que se está levando adiante é uma ação direta em um “teatro de operações”, que supõe um conjunto de “regras da arte” a praticar (e que todo partido que se considere revolucionário deve aprender [9]).

Aqui entram os conceitos de “manobras” e “posições”. São duas formulações derivadas da arte militar, e significam que na hora de um objetivo político ou militar pode haver, grosso modo, duas maneiras de investir: o assalto direto da posição que se quiser tomar ou mediante um rodeio. Dito de outro modo: a ofensiva e a defensiva forma parte da arte da política; não apenas ocorrem no terreno militar. Os ensinamentos de Trotsky de que ambas táticas formam parte da arte da guerra seguem sendo de grande atualidade, assim como seu apontamento de que apenas um “simplório” poderia pensar que a única tática é a ofensiva. Dito isso, Trotsky insistia que, sem passar à ofensiva em determinado ponto, nunca poderia levar adiante a tomada do poder; sem essa iniciativa não se pode quebrar a inércia das relações de força estabelecidas e naturalizadas: para realizar um salto é preciso tomar impulso, mas o salto deve ser dado se quiser triunfar!

Queremos sublinhar outro aspecto que tem sua importância. As íntimas relações entre guerra e política não significam um reducionismo que perde de vista as leis específicas que caracterizam ambas as ordens da ação humana. Trotsky apontava o valor auxiliar, subordinado, das manobras que, em última instância, remetem sempre a um “fundo político”. As manobras, como a guerra em sua totalidade, são sempre a continuidade da política por outros meios; é a política o que lhes dá substância às coisas, além de que a arte das manobras tenha sua própria lógica que devemos aprender como instrumento para nos fazer valer.

Compreendemos essa preocupação de Trotsky quando criticava os aprendizes de bruxo da Terceira Internacional depois de Lenin, que pensavam que tudo valia ou que os truques poderiam enganar as leis da história. 

Estabeleçamos duas delimitações. Uma, que Trotsky está falando aqui mais propriamente de “manobras” no sentido das trapaças que se usam para impor determinada política frente aos adversários, e que, nesse sentido, afirmar-se, é inevitável e inclusive imprescindível para todo partido revolucionário que se preze como tal. Lenin em Esquerdismo, doença infantil do comunismo educava no mesmo sentido, por exemplo, sobre como toda corrente deve passar a impressão de ser mais do que realmente é com o objetivo de impressionar seus adversários. Dois, que quando se fala de manobras no terreno militar, se fala de outra coisa: como mover-se no campo de batalha; uma “manobra envolvente”, por exemplo, ou de “envolvimento”, como tantas que se deram no Frente Oriental na Segunda Guerra Mundial.[10] Ir pelos flancos, um assalto direto ou o que seja, são outras tantas manobras levadas adiante no combate.

Mas quando se aplicam esses ensinamentos no campo da política, há que compreender que as manobras seguem a mesma política: “A maioria proclamou que seu princípio principal era a manobra (…). A missão dessa escola estratégica consiste em obter pela manobra tudo o que só pode dar força revolucionária para a classe operária. Isso não quer dizer, no entanto, que, em geral, toda manobra seja inadmissível, quer dizer, incompatível com a estratégia revolucionária da classe operária. Mas é preciso compreender claramente o valor auxiliar subordinado das manobras, que devem ser utilizadas estritamente como meios, em relação aos métodos fundamentais da luta revolucionária (…). É preciso, pois, que o partido compreenda claramente cada manobra (…). Se trata do fundo político da manobra” (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas: 198-202).

Em definitivo, sempre manda a política, que nessa discussão é o conteúdo central, o fim de nossa ação, e sobre a qual as manobras são um meio, uma forma de fazer valer este fim: o de implantar toda a potência transformadora da política revolucionária.

2.5 O poder como Alfa e Ômega da Estratégia

Nesse texto identificamos o problema do poder como o centro da estratégia dos revolucionários. Não pode ser casual que, na hora do retorno do pensamento estratégico em inícios do século XXI, começar com um debate que se instaurou ao redor de “como mudar o mundo sem tomar o poder”. Tony Negri em termos mais gerais, e logo John Holloway de maneira direta (em seu livro com esse título) colocaram sobre a mesa essa discussão. É verdade que não durou muito; muitos de seus seguidores iniciais passaram rapidamente do “antiestatismo” abstrato para a idolatria estatista quando Chávez assumiu o governo na Venezuela e colocou em marcha a chamada “revolução bolivariana”.

Em todo o caso, o embasamento do debate colocado por Holloway sintonizava com um sentimento difuso em amplos setores da vanguarda, e hoje nas filas do chamado “autonomismo”: uma sensibilidade política que se caracteriza por traços anti-partido, ou pelo questionamento do lugar central da classe operária na estratégia revolucionária, além do rechaço às questões sobre o poder. Holloway tende a reproduzir, um século depois, o tipo de análise de Robert Michels sobre uma suposta “lei de ferro das oligarquias políticas”, no sentido da suposta “inevitabilidade” da burocratização das organizações no poder. É verdade que Holloway não compartilha do argumento reacionário do autor alemão no começo do século XX no sentido de que os explorados e oprimidos não poderiam autodeterminar-se por si mesmos. Muito bem, se vai para o outro lado: esse processo de autodeterminação é visto sem mediação alguma, como algo simples, direto. Com sua reivindicação irreal, o autor escocês parece querer resolver de uma vez todos os problemas da representação política, das massas e das vanguardas, da organização revolucionária, indo mesmo até o final de suas reivindicações sobre a necessidade de tomar o poder para que a revolução não apodreça e afunde. 

Mas aqui há dois problemas. O primeiro é que, como apontava Lênin, fora do poder tudo é ilusão. Não há escapatória ao fato de que na transição ao socialismo o Estado não pode ser abolido numa patada. O Estado deverá extinguir-se a medida que a luta de classes vá reabsorvendo-se. A abolição simples e plana é uma posição anarquista que perde de vista a inevitável centralidade do Estado como foco de todas as correlações políticas, onde todavia não é a sociedade como tal a que toma em suas mãos a direção dos assuntos, mas uma parte dela, por mais que o primeiro deve lançar-se sem desmaios na transição socialista autêntica. Daí que Pierre Naville, em sua colossal obra O Novo Leviatã, no início dos anos 70, falara mais de dissolução do que extinção (num enfoque mais ativo) do Estado na transição.

Mas essa sobrevivência de alguma forma de Estado, ou melhor, de um “semiEstado proletário”, como perguntou Lenin, não quer dizer que por algum fatalismo esteja condenado a burocratizar-se e corromper-se inevitavelmente. Isso depende de uma série de condições históricas entre as quais está, em primeiro lugar, a evolução real da luta de classes na arena nacional e internacional na qual esse Estado se desenvolva. Daí que a lei de ferro hollowiana da burocratização do poder seja uma racionalização abstrata e a posteriori de um processo que ocorreu no século XX por razões historicamente determinadas, e que deixaram um conjunto de ensinamentos, é verdade, mas que não tem nenhum tipo de fatalismo ou “lei” por cima do próprio desenvolvimento histórico.

Isso é o que nos traz de volta aos problemas de estratégia. A centralidade do problema do poder se coloca porque a ditadura do proletariado é a forma política por intermédio da qual se leva adiante a transformação econômica da sociedade pós-revolucionária. E sem classe operária no poder, deixando o poder a outras classes ou frações de classe, ou a uma burocracia que fale em nome da classe operária, mas na realidade atue em seus próprios interesses, não se pode levar a cabo essa transformação econômica da sociedade, tal como ensinaram já bem cedo Marx e Engels a partir da experiência da Comuna de Paris. Também a política tem horror ao vazio. 

Daí que, sumariamente, a estratégia revolucionária confluía nesse ponto nodal: a tomada do poder por parte da classe operária, única forma materialista de poder começar e levar adiante a transformação do capitalismo em socialismo.

3. Pressupostos gerais de uma política parlamentar revolucionária

Uma questão importante é situar os problemas estratégicos. As condições históricas dentro das quais está se materializando a luta de classes na atualidade se diferenciam do que poderíamos chamar de “período clássico” da estratégia revolucionária.

Após a Revolução Russa e nas décadas que se seguiram até o final da Segunda Guerra Mundial, experimentou-se uma “era de extremos” (como Eric Hobsbawm a denominou), onde a regra geral foi a derrubada da democracia burguesa pela revolução proletária e pelo fascismo. Se o regime parlamentar caracterizava, em maior ou menor grau, os principais países da Europa e os Estados Unidos nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, aquele espalhou-se na Europa continental após a Grande Guerra de 1914-1918 e por mais de duas décadas.

Isso mudou com o final da Segunda Guerra Mundial. A revolução social deslocou-se para países da periferia capitalista não caracterizados pela democracia burguesa, dando origem a uma série de processos anticapitalistas originais.

No centro do mundo, os grandes imperialismos derrotaram os desenvolvimentos revolucionários com a conivência do stalinismo, que deu origem a um crescimento da economia capitalista por três décadas (“os trinta gloriosos”), bem como à estabilização dos regimes. da democracia imperialista. E nas últimas décadas esta democracia burguesa se afirmou, estendendo-se universalmente no contexto do apogeu neoliberal; É por isso que os problemas da política revolucionária sob este regime são de total relevância, e ainda mais quando a esquerda obtém cargos parlamentares.

Foi o que aconteceu na Argentina e em outros países no último período, colocando na agenda o problema da abordagem revolucionária das tarefas parlamentares.

3.1 O império mundial da democracia burguesa

No contexto da crise capitalista aberta há mais de cinco anos e do atual ciclo político de rebeliões populares, e apesar da crescente perda de prestígio que as instituições parlamentares têm, em muitos casos, continuam a funcionar como um dique de contenção à radicalização das massas.

Em alguns casos, algo significativo acontece. Eleitoralmente há uma mudança para a esquerda, mas do ponto de vista da luta de classes direta, e apesar das múltiplas experiências da rebelião popular, a mudança para um escalão mais elevado em termos de radicalização não é algo que esta dado. Vejamos o exemplo da Grécia, o país com maior tradição de luta nas últimas décadas na Europa, em plena ebulição sob o impacto da crise: “Os líderes sindicais – os sociais-democratas em particular – têm uma responsabilidade histórica nesta questão. Aceitando os memorandos, tentando salvar os aparatos sindicais (…) contra os direitos dos trabalhadores, arrastaram os sindicatos (…) para uma crise histórica. Essa situação, combinada com o atraso no desenvolvimento de organizações sociais alternativas, levou a uma falta crítica de “armas defensivas” para a classe trabalhadora e em um período crucial. A combinação de todos esses fatores cria uma situação única e estranha. Por um lado, a classe trabalhadora parece incapaz de responder às circunstâncias, demolindo imediatamente os memorandos e as políticas de austeridade. Por outro lado, os cidadãos apoiam com força sem precedentes a esquerda política. Eles apóiam uma solução política (‘um governo de esquerda’), cujo público é forte e popular, apesar dos ataques de todos os instrumentos de poder contra tal eventualidade.”(“Grécia, Perspectivas da Esquerda do Syriza, Congresso do DEA “, em www.alencontre.org ).

Para além do que resultará de tal “governo de esquerda” encabeçado pela organização reformista Syriza, o peso eleitoral da esquerda no sentido amplo é de importância crescente naquele país e reflete algo que está acontecendo mais “universalmente” ( ver o caso da Costa Rica ou mesmo da Argentina, embora em um nível inferior). Ao mesmo tempo, não pode deixar de ser sublinhada a contradição de que esta projeção política da esquerda “radical” não é acompanhada por um processo de radicalização qualitativa das lutas, nem um peso qualitativo da esquerda entre os amplos batalhões dos trabalhadores. É uma das desigualdades e contradições do atual ciclo político, que coloca enormes desafios na questão da translação daquele peso político eleitoral, relativamente maior que em outros períodos, para um plano de construção orgânica das organizações revolucionárias.

Depreende-se disso que os problemas do parlamentarismo revolucionário assumem uma nova dimensão para as correntes de esquerda, forçadas de alguma forma a passar por essa experiência na busca de alcançar setores mais amplos. E é claro que uma das chaves desse empreendimento é como ele passa por essa experiência: se de forma revolucionária ou adaptando-se a instituições parlamentares, como infelizmente aconteceu na última década com as várias forças do trotskismo europeu, especialmente desde as experiências dos “partidos amplos” nesses países.

A diferença (ou melhor, o abismo) com os problemas colocados nas primeiras décadas do século XX é óbvia, uma vez que ainda se está em um período preparatório, longe da amplitude e riqueza dos problemas estratégicos colocados naquele período. Em qualquer caso, a necessidade de passar pela experiência parlamentar de maneira revolucionária também foi levantada durante a Terceira Internacional com Lênin em vida; daí a plena validade de seus ensinamentos sobre o assunto (ver “Esquerdismo:…” e outros textos). Mas o debate estratégico foi muito mais longe porque a Revolução Russa abriu de maneira direta, iminente por assim dizer, a era das crises, guerras e revoluções, e suas consequências no plano político: o enfraquecimento da democracia burguesa na Europa continental., das formações burguesas “centristas” e da socialdemocracia, e colocou na agenda os problemas da luta pelo poder, e da ciência e a arte da insurreição.

Este ainda não é o caso hoje. Internacionalmente, será necessário um choque muito mais profundo, acontecimentos catastróficos na crise econômica global, um salto na luta de classes internacional, bem como conflitos abertos entre os Estados para que isso aconteça; cenário que todavia não existe hoje. No momento, estamos vivendo um processo de rebeliões populares e sua reabsorção democrático-burguesa. Onde os desenvolvimentos são mais radicalizados, onde os confrontos diretos entre forças políticas são mais nus, como no mundo árabe, há um tremendo atraso de fatores subjetivos. O fato de que os confrontos nem parecem estar substanciados entre classes sociais, mas entre correntes religiosas, regiões, bandos armados e até tribos fazem que não se escape à tônica do ciclo político vivido, que não sejam ainda um nexo direto para um escalão superior. da luta de classes.

Neste contexto, os problemas da estratégia revolucionária ligada à ação parlamentar, a luta diária pelas reivindicações dos trabalhadores, a luta pela liderança contra a burocracia sindical, a luta para nos construirmos como fortes partidos de vanguarda orgânicos entre camadas cada vez mais amplas. da classe trabalhadora e, inclusive, entre os setores mais amplos das massas, é o que se coloca na ordem do dia. Enorme desafio para uma corrente que, como o trotskismo, vem de uma grande marginalidade histórica em termos de sua ligação com amplos setores dos explorados e oprimidos e, especificamente, da falta de uma tradição própria e de vínculos políticos sistemáticos dentro no seio do proletariado.

No entanto, seria um erro oportunista grave colocar qualquer limite ou muro esquemático entre os problemas estratégicos de hoje e os que surgirão amanhã; um “amanhã” que dependerá de uma soma de circunstâncias. Qualquer corrente que lide com suas tarefas rotineiramente, que perca de vista o fato de que no atual ciclo político estão implícitos viradas bruscas na situação, crises políticas agudas, momentos de solapamento da democracia burguesa (que carrega um grande descrédito em todo um conjunto dos países), cometeria o pior dos erros.

Apenas observando países como a Grécia, onde um certo deslocamento do centro e um crescimento dos extremos é detectado, se tem um pré-anúncio do que poderia ser um cenário de transição para uma maior radicalização política. O crescimento eleitoral do Aurora Dourada (agrupamento fascista), simultaneamente com o de Syriza e mais formações de esquerda como Antarsya, anunciam um cenário que vai além das formações tradicionais da democracia patronal e levanta a possibilidade de confrontos mais diretos entre as classes

Isso mesmo é o que aponta que os problemas do parlamentarismo não podem ser abordados em si mesmos, de maneira tática, separados de uma perspectiva revolucionária geral. Teorizações como as do “reformismo revolucionário” (a chamada “participação parlamentar em condições onde não há situações revolucionárias”) são uma adaptação oportunista às circunstâncias dadas pela desvinculação entre a ação parlamentar e as perspectivas mais gerais de transformação social. Algo assim como, que com o “lobby parlamentar”, grandes conquistas para os trabalhadores poderiam ser obtidas. [11]

Essa é uma perspectiva falsa. Entre o atual ciclo de rebeliões populares e a eventualidade de uma luta de classes mais radicalizada, não há nenhum compartimento estanque. Portanto, a recuperação do debate estratégico deve situar-se nas atuais circunstâncias de tempo e lugar, mas de modo algum abstraídas das perspectivas históricas mais gerais. A análise concreta da situação concreta não deve ser um expediente para abandonar a perspectiva da revolução socialista e do poder dos trabalhadores, mas sim o contrário: ser um elo para correlacionar as tarefas do presente com a transformação social, a perspectiva de avançar na consciência e organização independente da classe trabalhadora e na construção de nossos partidos como partidos revolucionários orgânicos no seio do que há de mais concentrado da classe trabalhadora.

3.2 – Reivindicações parciais e revolução

“[Rosa] estabeleceu o princípio estratégico de que a luta diária do proletariado deveria estar organicamente conectada com o objetivo final. Cada solução de tarefas diárias deve ser tal que levará ao objetivo final, não o se afastar dele (…). Isto porque cada ganho tático ou triunfo momentâneo (…) seria necessariamente transformado em uma vitória duvidosa que poderia evitar ou pelo menos adiar a conquista da vitória final”(Frölich: 70).

O debate deve começar pelo princípio início, no nível mais elementar: como correlacionar a luta pelas demandas imediatas dos trabalhadores com as perspectivas gerais. Esta questão tem muitos nomes na tradição revolucionária, mas, em suma, pode ser levantada sob a bandeira do debate sobre reforma ou revolução em nossos dias.

De certo modo, quase se poderia dizer que uma abordagem “realista” das coisas em nossos dias diria que hoje não há reformas nem revolução. Nem uma coisa nem outra seria possível. Mas esta é uma visão unilateral dos fatos que absolutiza as conquistas do capitalismo neoliberal das últimas décadas, as adiciona à queda do Muro de Berlim e terminam em uma conclusão derrotista que perde de vista a mudança de ciclo que estamos vivendo: um ciclo de rebeliões populares.

Naturalmente, estas são conquistas que não têm a magnitude das conquistas históricas do “período áureo” do capitalismo, nem dos “trinta gloriosos” do segundo período do pós-guerra. São outras condições históricas. Mas, ao mesmo tempo, nunca se deve perder de vista que as conquistas são sempre um subproduto das relações de forças (como afirmava Trotsky nos debates do Programa de Transição), e que não há um “limite econômico” absoluto que não possa fazer com que os capitalistas cedam conquistas, ao se verem ameaçados por um perigo maior.

Essa é a experiência do atual ciclo político na América Latina, onde, em seu momento, algumas conquistas mínimas foram alcançadas na Venezuela e na Bolívia. Não é preciso dizer que não se trata de conquistas estruturais ou de uma modificação orgânica no padrão de vida das massas, o que já colocaria uma dinâmica anticapitalista que não está presente em nenhum desses casos. Mas, se certo progresso social limitado foi alcançado, essas parcialidades recolocaram o debate de sua relação com as perspectivas mais gerais da luta contra o sistema capitalista. Sobre este último temos escrito na última década. Insistimos no perigo de que conquistas parciais sejam obtidas à custa de perspectivas gerais, em vez de serem uma ponte para elas. Desvios desse tipo foram observados em todas as correntes que capitularam ao chavismo, justificando-o de várias maneiras. Entre outros, sob o argumento de que a revolução socialista estaria “fora da agenda histórica”.

Esta questão geral tem uma derivação específica vinculada à ação parlamentar. Muitas vezes é dito dentro da esquerda revolucionária que o que vai ser feito é “aplicar o Programa de Transição”. Isso é muito bom. De fato, a obtenção de reivindicações parciais no nível político geral pode prestigiar a força que é visualizada como o mecanismo por trás desse objetivo. Mas há o problema de perder de vista algumas das condições básicas para a obtenção de reivindicações ou reformas parciais. A primeira é que não se pode de modo algum acreditar que isso seja possível no expediente único da ação parlamentar, ou que esse seja o objetivo principal dela. A tradição dos revolucionários assinala que o objetivo principal de uma bancada parlamentar da esquerda é realizar uma denúncia sistemática do antro de bandidos que é essa mesma instituição burguesa. A obtenção de reivindicações deve ser agitada desde o parlamento sem nunca perder de vista o fato de que o caminho para alcançá-las sempre passa por desencadear uma grande mobilização extraparlamentar; isto é, convidando as massas a confiar exclusivamente de sua própria força. Deve haver algo que force (e isso sempre acontece sob a ameaça de perder algo maior) às forças burguesas concederem algo. Não é por acaso que o fio revolucionário que une as reformas e a revolução desde o século XX é que as conquistas parciais só podem ser obtidas como um subproduto de uma grande luta revolucionária, de uma luta extraparlamentar que sacuda a sociedade como um todo.

As forças de esquerda com representação parlamentar que não se colocaram assim os problemas, mau serviço lhe fariam à utilização revolucionária do sistema bancário e à classe trabalhadora. Despertariam falsas ilusões que não poderiam satisfazer e depois desmoralizariam a própria classe. Talvez não seja tão bem conhecido que a força dos “sindicalistas revolucionários” na França no início do século XX e, de certo modo, da “antipolítica” de muitos setores sindicais naquele país até hoje veio das falsas expectativas criadas pelo Partido Socialista, que chegou a ter ministros socialistas no gabinete burguês nos primeiros anos do século passado (millerandismo), uma experiência que terminou em um completo fiasco e na desmoralização política de amplos setores da classe trabalhadora.

O parlamentarismo revolucionário começa por ter uma conexão firme entre a ação parlamentar e extraparlamentar; de entender que a representação parlamentar alcançada é uma grande conquista, um ponto de apoio muito importante, mas sempre secundário, subordinado e auxiliar ao principal: o impulso de uma mobilização mais ampla da classe trabalhadora e de sua organização independente. E de educar a classe trabalhadora que deve confiar apenas em suas próprias forças e não em qualquer combinação parlamentar que possa resolver os problemas pelo alto.

3.3 A necessidade de passar pela experiência parlamentar

Nas condições históricas atuais, seria um infantilismo abordar sectariamente a obrigação que nós, revolucionários, temos de passar pela experiência parlamentar. Uma organização que não empreendesse este desafio com toda a seriedade seria uma seita insignificante condenada a não cumprir qualquer papel histórico ou amadurecer como partido revolucionário. A obtenção de parlamentares é uma imensa conquista que faz com que nos tornemos fortes organizações revolucionárias de vanguarda e obtenham influência entre as massas. As conquistas parlamentares da esquerda revolucionária são muito progressistas, um dos sintomas mais importantes de que está amadurecendo, que seu papel político começa a atingir setores mais amplos, que está em curso uma progressão que deve ser explorada para sair da marginalidade a que historicamente estamos confinados no movimento trotskista.

Lênin também enfatizava a importância da participação parlamentar, que, assim como a atuação na maioria dos sindicatos, é uma condição para que os partidos revolucionários adquiram influência de massa. Isto não é algo para deixar dito e passar para outro ponto. Conseguir parlamentares e posições crescentes nas organizações tradicionais da classe trabalhadora é um desafio que leva todo um período histórico a qualquer partido revolucionário que se gaba de tal. Devemos estar cientes de que apenas pequenos partidos juvenis, grupos de propaganda, organizações extremamente minoritárias, são exclusivamente extraparlamentares. Obter representação nos parlamentos é uma conquista imensa, tática mas muito importante, dos revolucionários, o que os aproxima de um estágio mais avançado em termos de seu desenvolvimento partidário, embora nunca devamos perder de vista o fato de que a “maioridade” partidária se consegue principalmente dirigindo grandes lutas dos trabalhadores, grandes lutas de classes.

Em qualquer caso, avançar ao longo da escala de maturação em questões partidárias não pode ser alcançado sem passar pela experiência de embarcar nas tarefas sindicais e parlamentares diárias que dizem respeito aos grandes setores de massa. Quem não aprender a levar a cabo uma política eleitoral revolucionária e uma política sindical revolucionária, não avançará um centímetro na construção de seus partidos.

Mas esse grande desafio tático não poderá ser abordado corretamente, e levará aos acontecimentos mais catastróficos, se não for tratado com a seriedade do caso. Para os partidos atuais e as atuais gerações dirigentes e militantes, a passagem exitosa, revolucionária, pelo parlamento não é algo dado; estará submetida às pressões mais graves. Uma abordagem facilista de que estamos “confortáveis” no antro dos bandidos que é o Congresso pode ser fatal. Ao contrário, o “desconforto” deveria ser o sentimento natural se as coisas estão sendo bem feitas, de maneira revolucionária, o que não significa comportamento infantil, ou não aproveitar todas as possibilidades de visibilidade dadas pela instituição parlamentar.

Contudo, em contraste com a experiência dos bolcheviques da ciência e a arte da insurreição, poderia parecer que a conquista de parlamentares e seus desafios são, tão somente, uma minucia. Isso não é verdade: nem historicamente nem no nosso tempo esse desafio tem sido tão simples. Muitas vezes perdeu-se de vista a facilidade com que um regime parlamentar – que, de fato, era até mesmo democrático-burguês consistente ou consolidado – como o da Alemanha no início do século XX, engoliu a socialdemocracia e a Segunda Internacional em poucos anos. Naturalmente, eles operavam uma série de condições materiais como base para esses acontecimentos. As décadas que vão desde a derrota da Comuna de Paris até o início da Primeira Guerra Mundial (1871-1914) foram de um crescimento orgânico do capitalismo e de concessões às frações mais privilegiadas da classe trabalhadora nos países centrais. Nesta base econômica-social, se deu a capitulação da socialdemocracia clássica.

Mas isso não significa que o nível político do fenômeno não seja importante. Mesmo hoje, a democracia burguesa continua a exercer fascínio sobre as massas e também sobre os líderes políticos, mesmo os da esquerda.[12] Normalmente, as grandes massas veem a participação eleitoral e o parlamentarismo (para além de seu prestígio ou desprestígio circunstancial) como a única forma de existência. da política (o debate sobre assuntos gerais). Além disso, essa participação eleitoral, especialmente quando é bem-sucedida, gera inevitavelmente seus próprios interesses que podem deixar os líderes tontos e criar ilusões na base. Esta lógica tem a ver com as leis de uma campanha eleitoral que se baseia, em suma, na obtenção de votos, que pressiona por uma orientação que define esse objetivo como de um lugar. Ou, do ponto de vista construtivo, para organizar todo o plano organizacional do partido em uma base territorial, de modo a atingir o maior número de eleitores: se de uma freira ou de um trabalhador, dá no mesmo, todos os votos valem um e não importa de quem venha.

Quando se conquista alguns parlamentares, se quer mais. Tende-se a criar a sensação de que, quanto mais parlamentares são obtidos, evolutivamente, as coisas vão melhorar para o partido. O parlamento funciona como uma superestrutura que aparece como a expressão total da política; nos faz esquecer que as forças reais das classes sociais, suas alavancas materiais, estão fora do parlamento e não nele: “A ilusão sustentada pela burguesia em sua luta pelo poder (e ainda mais, por uma burguesia no poder) de que o parlamento é o eixo central da vida social e a força decisiva da história mundial não é apenas algo historicamente [explicável], mas também necessária. É uma noção que naturalmente desemboca em um esplêndido “cretinismo parlamentar” que não pode ver além do tagarelar de algumas centenas de parlamentares em uma assembleia legislativa, em direção às gigantescas forças da história mundial, forças que estão trabalhando fora, na frente do desenvolvimento social, e que não dão a menor importância à sua criação legal parlamentar ”(Rosa Luxemburgo, cit.).

O parlamento é uma “tribuna de cacarejo” e, para os revolucionários, uma âmbito para  se fazer denúncias e conseguir, em qualquer caso, vitórias parciais baseadas na mobilização extraparlamentar. Como assinalava  Rosa: “A luta de fala é útil como um método parlamentar apenas para um partido combativo que está buscando apoio popular. Fazer um discurso no parlamento, essencialmente, é sempre falar pela janela”(“Social Democracia e Parlamentarismo”, 1904). O grau de “totalização” alcançado pela “vida parlamentar” (multiplicada hoje ao infinito pelos meios de comunicação), é uma das grandes pressões impostas pela obtenção obrigatória, por outro lado, de parlamentares, e parte do que explica, em certas bases materiais, a capitulação da social democracia alemã histórica em na época. Ao longo das décadas, o trotskismo também teve dificuldade em sustentar uma política revolucionária quando obteve parlamentares. Vide a experiência do velho MAS, que, de qualquer forma, deve servir como um alerta sobre a necessidade de lidar com o assunto com toda a seriedade.

3.4 – A educação política das massas como objetivo principal

Dito isso, não há que se perder de vista o fato de que estas são tarefas táticas; que a obtenção de parlamentares é uma tarefa auxiliar que está sempre inserida no contexto estratégico da ação extraparlamentar, que é o principal: o impulso para direcionar a ação da classe trabalhadora e a luta pelo poder quando se obtenham as condições para tal efeito

Por isso, que há de se falar de uma política parlamentar revolucionária. E é aí que os ensinamentos de Rosa Luxemburgo vêm em nosso auxílio novamente. Quase se poderia dizer que a luta contra a adaptação parlamentar tem nela a maior professora entre os revolucionários.

Vamos fazer um pouco de história. Como já dissemos, a socialdemocracia alemã foi administrada com a “velha tática comprovada” que consistia em ganhar representação parlamentar, expandir as fileiras dos sindicatos controlados pelo partido, obter conquistas democráticas e daí sairia a conquista quase insensível do poder.

Do ponto de vista teórico, se justificava em um infeliz texto de Engels (mutilado pela liderança do partido, mas de qualquer modo impressionista) escrito como prefácio de uma nova edição da Guerra Civil de Marx na França, publicada em 1895, e que funcionou como seu “testamento político”. Nesse texto, se santificava o curso da socialdemocracia alemã, que que não fazia mais que crescer e crescer. Engels chegou a declarações como as seguintes: “Os dois milhões de eleitores enviados [pela socialdemocracia alemã. RS] ao escrutínio (…) constituem a massa mais numerosa, a mais compacta, o decisivo “grupo de choque” do exército proletário internacional. Esta massa significa agora mais de um quarto dos votos (…). Seu crescimento ocorre de maneira tão espontânea, constante, irresistível e, ao mesmo tempo, tão tranquila, quanto um processo natural (…). Se continuarmos como antes, no final do século teremos conquistado a maioria das camadas intermediárias da sociedade (…) e cresceremos para se tornar o poder decisivo do país, ao qual todas as outras forças terão que se curvar, Eles queiram ou não. Manter este crescimento incansavelmente até que, por si só, se torne mais forte que o sistema governamental no poder, não desgastar este “grupo de choque” com combates de vanguarda, mas mantê-lo intacto até o dia decisivo; Esta é a nossa principal tarefa”(F. Engels, introdução de 1895 para A luta de classes na França, citado por Ernest Mandel).

Evidentemente, o texto era de uma unilateralidade dramática. Contra os desejos de seu autor, serviu de cobertura para a virada oportunista da socialdemocracia alemã.[13] Se o crescimento do partido fosse realizado de maneira tão “natural” e “irresistível”, e se algum passo para a ação direta seria “esgotar-se” a vanguarda em  combates “inúteis”, estava claro que a estratégia não deveria ser mais do que o parlamentarismo, que acabará denunciando Luxemburgo como a real estratégia da social democracia.

Posteriormente Rosa levantou-se contra esse desvio e colocou as condições de uma abordagem revolucionária à atividade socialdemocrata: “O fato que divide  a política socialista da política burguesa é que os socialistas se opõem a toda a ordem existente e devem agir no parlamento burguês fundamentalmente como oposição. A atividade socialista no parlamento cumpre seu objetivo mais importante, a educação da classe trabalhadora, através da crítica sistemática ao partido dominante e sua política. Os socialistas estão muito distantes da ordem burguesa para impor reformas práticas e profundas de natureza progressivo. Portanto, a oposição de princípio ao partido dominante torna-se, para todo partido de oposição, e especialmente para o socialista, o único método viável para alcançar resultados práticos. Sem a possibilidade de impor sua política através de uma maioria parlamentar, os socialistas são forçados a uma luta constante para obter concessões da burguesia. Eles podem conseguir isso fazendo uma oposição crítica de três maneiras: 1) suas consignas são as mais avançadas, de modo que quando eles competem nas eleições com os partidos burgueses fazem valer a pressão das massas votantes, 2) denunciam constantemente  o governo ao povo e agitam a opinião pública, 3) sua agitação dentro e fora do parlamento atrai massas cada vez mais numerosas e, assim, tornar-se uma potência com o qual devem contar o governo e o conjunto da burguesia” (Rosa Luxemburgo,“ A crise socialista  na França ”, em Obras escolhidas: 54).

Rosa insistia em critérios para a luta parlamentar que acreditamos de importância decisiva como um “guia” para a ação revolucionária em seu seio, por isso citamos isso na íntegra. Primeiro, que a organização revolucionária se posicione sempre como um partido de oposição e de uma oposição não a elementos parciais, mas a todo o sistema. Segundo, a principal tarefa do porta-voz parlamentar revolucionário (um tribuno popular, como Lênin a chamara) tem como norte, sempre, servir aos objetivos da educação política da classe trabalhadora. Assim, a denúncia do covil de bandidos que é o parlamento seja uma tarefa central do deputado revolucionário. Terceiro, que no momento da luta para arrancar concessões no parlamento, há que se fazer valer a pressão extraparlamentar das massas; ou seja, o ponto de apoio parlamentar é uma ferramenta auxiliar para o fundamental: alcançar a mobilização extraparlamentar dos explorados e oprimidos, a única maneira real de se obter reivindicações. Quarto, que na “luta dos debates” que ocorre na esfera parlamentar, os revolucionários sempre devemos falar, principalmente, para “fora da janela” do parlamento. Isto é, falar para os trabalhadores e não para o resto dos “pares” burgueses. Em quinto lugar, devemos evitar o despertar de qualquer ilusão de que reformas significativas nas condições de vida poderiam ser alcançadas através de meios parlamentares, ou de que, desde cima, graciosamente, parlamentares socialistas pudessem resolver os problemas. Devemos sistematicamente educar as massas no sentido contrário: o de confiar apenas em suas próprias forças.[14]

3.5 O trabalho parlamentar prático

Quando os parlamentares são eleitos, parece ser uma regra que rapidamente perdem de vista o fato de que a atividade parlamentar é sempre auxiliar, uma base para o que é principal: o impulso da mobilização direta dos trabalhadores e o fato de que a atividade central do partido, seus principais esforços, devem ser dedicados a isso.

É claro que a obtenção da representação parlamentar dá ao partido uma posição: uma projeção para o cenário público e político que o tira da marginalidade. Portanto, seria um crime infantil não aproveitar totalmente esse novo ponto de apoio para a construção do partido. Sua atividade parlamentar tem leis específicas: esforços e recursos humanos devem estar voltados para esse fim, e quem não o fizer renuncia aos critérios de um partido revolucionário sério e maduro.

Mas aqui nos referimos a outra coisa: se a política dos revolucionários deve subordinar as lutas e atividades que ocorrem fora do parlamento à “agenda parlamentar”, ou, se, pelo contrário, esta agenda dos parlamentares da esquerda deve subordinar-se aos movimentos e lutas que ocorrem fora do Congresso. Este é um dos problemas estratégicos de abordar as tarefas parlamentares da maior importância. Desde outro ângulo, Rosa não disse nada diferente: “O perigo que paira sobre o sufrágio universal será aliviado na medida em que as classes dominantes tomem nota de que o poder real da socialdemocracia de modo algum repousa na influência de seus deputados. no Reichstag [o parlamento alemão. RS], mas sim que se sustenta fora, na população como tal: “nas ruas”, e que se a necessidade emergir, a socialdemocracia será capaz e estará disposta a mobilizar as pessoas diretamente para a proteção de seus próprios direitos políticos “. (“Socialdemocracia e parlamentarismo“).

A verdadeira força da esquerda revolucionária está fora do parlamento, “nas ruas”. Este ensinamento de Rosa, longe de ser uma obviedade, adquire grande importância educacional no momento em que a esquerda não vacile, não perca os pontos de referência fundamentais, não confunda o avanço em sua influência política geral com influência orgânica. E, pelo contrário, saiba usar revolucionariamente a sua posição parlamentar precisamente para esse fim: tornar-se uma verdadeira potência fora do Congresso, no seio mais profundo da classe trabalhadora.

Mas ainda precisamos abordar outro ângulo da questão: construir uma agenda de reivindicações para o próprio parlamento. A representação parlamentar serve como um amplificador da política do partido revolucionário; permite-lhe alcançar setores mais amplos, na medida em que as mesmas massas enxergam a política na forma deformada da política parlamentar e que, além disso, a burguesia trabalha para que a política seja vista dessa maneira: de maneira institucionalizada.

Este é um fato do qual se deve partir, goste-se ou não. A renúncia às condições reais da luta, inclusive das condições parlamentares da própria luta revolucionária, é um infantilismo que não resiste à menor análise e um tiro no pé da organização revolucionária que se recusa a realizar uma atividade eleitoral (e parlamentar) sistemática.

Aqui entra o problema de usar a bancada parlamentar para conduzir uma “ação legislativa positiva”. Rosa Luxemburgo via as eleições parlamentares como uma oportunidade para um forte desenvolvimento da propaganda socialista e para afirmar a influência socialista entre as massas. Mas ela não insistia apenas na agitação: a tarefa dos socialistas no parlamento era também participar do trabalho legislativo positivo, sempre que possível, com resultados práticos. Uma tarefa que ela considerava se tornaria cada vez mais difícil – não mais fácil, paradoxalmente – com o fortalecimento do partido no parlamento.[15] Mas ela não pregou nenhum sectarismo: onde resultados positivos pudessem ser obtidos com esse trabalho, eles deveriam ser realizados sem qualquer sectarismo.

4. O problema do poder

Como já assinalamos, o problema estratégico por excelência é o problema do poder. Mas não se trata de uma problemática que se resolvera tão simplesmente na tradição do marxismo: havia que se determinar a forma do poder do proletariado.

4.1 A ditadura do proletariado

Na vida de Marx e Engels, vivendo a experiência da Comuna de Paris, se chegou “a forma finalmente descoberta da ditadura do proletariado”, ou seja, do poder do proletariado. Com o passar do tempo, a adaptação da socialdemocracia ao parlamentarismo burguês e uma ideia evolucionista da chegada do socialismo, Rosa Luxemburgo se posicionou contra essa adaptação e recuperou a ideia da greve política de massa, tomada à primeira vista, do arsenal do anarquismo, mas, na realidade, da experiência histórica da própria classe trabalhadora e das greves de massa que começaram a ocorrer entre o final do século XIX e início do século XX na Bélgica em torno do sufrágio universal e, acima de tudo, a experiência da primeira Revolução Russa, a Revolução de 1905: “A violência é e se mantém como última razão inclusive para a classe trabalhadora, a lei suprema da luta de classes, sempre presente, às vezes latente, às vezes ativamente. E quando tentamos revolucionar as cabeças por meios parlamentares (…) fazemos isso sem perder de vista que a revolução será finalmente necessária para mover não apenas a mente, mas também a mão ”(citado em Frolich: 85).

No entanto, como observamos acima, em sua luta contra o aparato morto da social democracia, Rosa tendia a perder a ciência e a arte da insurreição como o momento subjetivo mais alto da luta de classes: a organização da tomada do poder pela parte do partido revolucionário. O poder nunca cairá no colo da classe trabalhadora: você tem que lutar por isso diante das pressões passivas e fatalistas enfrentadas por todas as partes (como Trotsky apontou) quando o problema do ataque ao poder começa a ser imediatamente, praticamente levantado.

É verdade que, no caso da Comuna, os eventos se desenvolveram espontaneamente; foi o próprio fato do abandono de Paris pela burguesia francesa (aterrorizada pelo avanço do exército alemão de Bismark) que deixou “entregue” o poder ao proletariado da cidade. Houve outros eventos de “fuga” da burguesia do poder, como Hungria e Baviera em 1919, e que deram origem a governos “soviéticos” efêmeros. Mas, em qualquer caso, são situações excepcionais que apenas confirmam a regra: nenhuma classe dominante abandona suas posições de privilégio pacificamente .

A própria Comuna foi um exemplo disso. Uma coisa era o poder burguês deixar a cidade … outra, muito diferente, que os trabalhadores se dispusessem a tomá-lo. Ante a “ruptura de classes” que este evento radical significava, a guerra franco-prussiana foi suspensa e o exército alemão permitiu que o governo francês recuperasse a sangue e fogo a cidade; as hostilidades foram interrompidas para que o exército inimigo pudesse se dedicar à “grande obra” de colocar as coisas em seu lugar: seja a burguesia francesa ou alemã, da no mesmo, é a burguesia que detém o poder, não o proletariado Assim, a queda da Comuna foi seguida pelo banho de sangue de 30.000 membros da comunidade; uma lição histórica da burguesia para com a classe trabalhadora que ensinou que, quando se trata da luta pelo poder e da sua manutenção, uma vez tomada, a ingenuidade é mortal: vigem as leis da guerra civil, as leis do terror mais implacável de uma classe sobre a outra. Como disse Trotsky, na guerra civil todos os laços de solidariedade entre as classes são violentamente anulados [16].

Não outra coisa ensinava Engels: “Somente após oito dias de luta os últimos defensores da Comuna sucumbiram nas alturas de Belleville e Menilmontant; e então aquele massacre de homens, mulheres e crianças desarmados atingiu seu apogeu, tendo feito estragos ao longo de toda a semana em uma escala ascendente. Os rifles de recarga não matavam rápido o suficiente, e metralhadoras começaram a correr para matar os derrotados às centenas. O Muro dos Comuneros do cemitério de Père Lachaise, onde o último assassinato em massa foi consumado, ainda está de pé hoje, testemunho mudo mas eloquente do frenesi que a classe dominante é capaz de chegar quando o proletariado se atreve a reivindicar seus direitos. [17] (Introdução de F. Engels à Guerra Civil na França, 1891, em Obras Escolhidas de Marx e Engels, volume II: 111).

Lição número um, então: o poder deve ser tomado conscientemente e defendido com unhas e dentes se não se quiser ser submetido a um banho de sangue pela burguesia, que caracterizou todas as contrarrevoluções que ocorreram ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora ameaçava o poder burguês e não pode tomá-lo. Ou quando tomando-o, deixou escapar: veja-se a experiência da guerra civil espanhola e as execuções de Franco após sua derrota; o caso da Alemanha nazista e o banho de sangue dispensado aos comunistas e socialdemocratas após sua capitulação histórica em 1933; ou Noske, os Freikorps e a socialdemocracia alemã em janeiro de 1919, com o assassinato de Rosa e Liebknecht, e a lista poderia continuar até o infinito. O poder deve ser tomado e, uma vez alcançado, aferrar-se firmemente a ele, assim como os bolcheviques que lutaram por três anos sangrentos para consolidar a ditadura do proletariado.

Mas ainda com as lições de outubro na mão, o problema do poder continuou a apresentar complexidades. o poder e a ditadura do proletariado podiam levar a inúmeras experiências caracterizadas por várias nuances e/ou circunstâncias históricas concretas. A história seguiu adiante e foi colocando diferentes tipos de combinações sociais e políticas a serem interpretadas em sua relação com a perspectiva da ditadura do proletariado. Dessa experiência surgiu o debate sobre o governo dos trabalhadores contido no ponto X da “Resolução sobre as táticas da Internacional Comunista” em seu IV Congresso, e que deu origem a um debate complexo.

4.2 Os distintos tipos de “governos dos trabalhadores” na experiência revolucionária

Um critério central de princípios, talvez o principal dos socialistas revolucionários, é que não participamos de nenhum governo burguês. Um debate histórico a esse respeito foi o de Rosa Luxemburgo, baseado na experiência de Millerand na França no final do século XIX, que terminou no mais profundo dos fiascos. Como foi dito, Rosa insistia que os socialistas revolucionários somos um partido de oposição em relação à ordem burguesa e que, ao contrário da participação no parlamento (em suma, um espaço de discursos), assumir cargos executivos nacionais liquida nossa independência política de classe, tornando-nos responsáveis pela gestão governamental. Lembremos que Engels salientou que o governo burguês nada mais é do que a junta que gerencia os assuntos comuns da burguesia, e deveria ser evidente que os revolucionários não podemos administrar os assuntos de nosso inimigo de classe.

No entanto, voltando ao presente, verifica-se que a possibilidade de Syriza chegar ao governo na Grécia recolocou o debate sobre os “governos dos trabalhadores” em bases parlamentares que haviam sido debatidos na época do IV Congresso da Internacional Comunista, e que resultou em uma resolução bastante confusa. [18]

Syriza não é uma formação socialdemocrata clássica, tornadas hoje partidos social-liberais inteiramente burgueses e uma parte orgânica do mecanismo de alternância das democracias imperialistas. O Syriza tem origem no ramo eurocomunista do antigo stalinismo grego, uma formação eleitoral reformista de esquerda que, além disso, insiste na sua profissão de fé no euro. Já abordamos esse debate em outra ocasião. No entanto, sendo uma formação reformista não tradicional, está despertando ilusões não apenas entre as massas gregas, mas no trotskismo europeu e, mais (ver artigo sobre a Grécia nesta edição), de que uma vez no governo, pela necessidade das coisas, acabe  “rompendo com o capitalismo”

De qualquer forma, se coloca um debate central: que posição adotar no caso de o Syriza chegar efetivamente ao governo. É aqui que a questão do governo dos trabalhadores reaparece. A resolução que apontamos foi um dos trabalhos mais confusos dos quatro primeiros congressos da Terceira Internacional, liderados por Lênin e Trotsky. Bensaïd ressalta que essa abordagem ilustrou a “ambiguidade não resolvida” de algumas das fórmulas nascidas nos primeiros congressos da internacional, para além de que a partir desse equívoco deixaram escapar uma interpretação oportunista.[19] Chris Harman, do SWP inglês, afirmou o mesmo, embora sua interpretação tenha sido inversa em um texto do final dos anos 70, onde insistia que as “fórmulas políticas” que emitimos os revolucionários devem passar pela experiência concreta e que a formulação do “governo dos trabalhadores” sobre base parlamentar “como uma transição para uma possível ditadura do proletariado não passou no teste da experiência histórica do século XX, onde isso nunca aconteceu” (C. Harman e T. Potter, “O governo dos trabalhadores”).

A Terceira em seu período revolucionário teve outras resoluções limitadas, confusas ou superadas por eventos históricos. É o caso das Teses do Oriente, por exemplo, que colocavam abertamente uma orientação etapista para países semicoloniais ou coloniais, e sempre foram usadas para cobrir desvios oportunistas na ação política da esquerda nesses países.

Se, no caso dessas teses, sua limitação veio do fato de que a luta de classes não havia se desenvolvido suficientemente (o próprio Trotsky as corrigirá a partir da experiência da segunda revolução chinesa no final dos anos 20, que serviu para generalizar a teoria da revolução permanente para o mundo inteiro), acreditamos que algo semelhante acontece com a tese do governo operário: muitas vezes foi usada como cobertura para desvios oportunistas na ausência da condição central da dita tese, ou seja, a existência de um poder revolucionário cuja força gravitacional fosse atuante e palpável, como foi o caso dos bolcheviques no início dos anos 20.

A tese tratava de diferentes formas de governo de partidos considerados operários:

a) Descartava, como contra os princípios, a participação nos “governos operários-liberais” (do tipo trabalhista em um estado burguês estável); por exemplo, o caso hoje do PT brasileiro.

b) Também descartava “governos socialdemocratas” sobre uma base de estabilidade burguesa e parlamentar.

c) Ao mesmo tempo, estabeleceu, logicamente, o tipo de “governo dos trabalhadores” por excelência, que nada mais era do que a ditadura do proletariado encabeçada pelo partido revolucionário.

d) Mais dois tipos de “governos dos trabalhadores” que exigiam consideração foram observados. Uma se referia aos “governos operários e camponeses”, os governos de organizações reformistas, mas apoiados por instituições de duplo poder dos trabalhadores. É o caso dos mencheviques e dos revolucionários socialistas na Rússia em meados de 1917. Lênin faz lhes faz a colocação de que “tomem o poder” e que, nesse caso, os bolcheviques serão uma oposição política “leal”, não insurrecional (porque para todos os efeitos práticos, o poder já estaria tomado pelos representantes reformistas da classe trabalhadora).

Um caso semelhante, embora não seja idêntico, é o exemplo da Comuna de Paris. Era uma frente única das tendências socialistas da época, mas onde os internacionalistas de Marx quase não tinham peso; isto é, um poder operário sem um partido revolucionário.

e) Finalmente, houve uma espécie de proposta de governo dos trabalhadores, “governo de socialistas e comunistas”, que foi levantada como admissível em bases parlamentares como expressão culminante da tática da frente única. Trotsky na época apoiava uma combinação deste tipo. Ele fez o mesmo em pleno andamento da revolução alemã como um possível ponto de apoio auxiliar para melhor organizar a insurreição. No caso da França (1922), ele falara de “um governo operário que poderia resultar de um debut parlamentar da revolução“.

Esse tipo de governo é o aspecto mais controverso da resolução, além do fato de que a fórmula “governo operário e camponês” também foi usada oportunisticamente no segundo período do pós-guerra em relação às direções burocráticas que romperam com o capitalismo, mas não apoiado por organizações de democracia dos explorados e oprimidos, mas com base em partidos-exército caracterizados pela ausência de toda democracia. Por meio dessa formulação, uma parte fundamental do trotskismo apoiou esses governos, mesmo renunciando não apenas à independência política, mas à própria ideia de construir o partido nessas circunstâncias, como foi o caso do mandelismo na Nicarágua no início dos anos 80, onde, além disso,   nem sequer se expropriara o capitalismo.

De qualquer forma, essa não é a principal preocupação que nos move aqui. O que emerge disso é o ensinamento de que não há nada que evite que os revolucionários se apoiem nas circunstâncias históricas determinadas, na análise concreta da situação concreta. Os formulismos do dogma não podem ser um antídoto para evitar desvios oportunistas ou sectários. A análise sempre remete a entidades concretas que devem ser apreciadas concretamente, o resto é dogmatismo ou bruxaria.

4.3 O caso do “governo dos trabalhadores” sobre bases parlamentares

Voltando ao nosso ponto, há dois aspectos a serem observados em relação ao problema do governo dos trabalhadores sobre bases parlamentares e de coalizão entre reformistas e revolucionários. Um é o das características excepcionais do momento em que essa variante tática foi pensada, onde na fronteira com a Alemanha estava o poder bolchevique, com todo o seu peso gravitacional. O outro, o significado histórico que esse tipo de formulações teve ao longo do século XX, que deram origem a todo tipo de ações oportunistas ou expectativas que desarmaram os revolucionários.

Quanto à primeira condição, é difícil pensar nesta tese do IV Congresso sem correlacioná-la com a intensidade histórica da luta de classes do momento, com a Revolução Russa como um poder vivo e atuante efetivo sobre a realidade, especialmente a europeia. É certo que, para o Quarto Congresso, e por ocasião da discussão sobre a tese da frente única, a situação havia se tornado defensiva; O primeiro impulso ao poder criado pelo impacto imediato da revolução havia passado, e o que estava colocado de maneira imediata era a luta pelas massas. Mas fazer uma abstração do peso específico do poder bolchevique e da importância desse fator objetivo na formulação das próprias teses, adotadas por um verdadeiro partido da revolução socialista internacional, é puro doutrinarismo que apenas consegue repetir a suposta validade das resoluções em um contexto que não tem nada a ver com quando eles foram formulados.

Em segundo lugar, há a experiência da Saxônia e da Turíngia na revolução alemã, em outubro de 1923. A liderança centrista de Brandler (que negava a existência de condições para o assalto ao poder), uma vez incorporada aos governos socialdemocratas de esquerda nessas duas regiões, se subordinou a eles quando o governo central enviou tropas do exército de Berlim para “garantir a ordem”. Se negou assim, categoricamente, a assumir qualquer posição ativa diante dessa ação provocadora, revertendo o plano insurrecional que vinha preparando há muito tempo. Diante da recusa dos “socialdemocratas da esquerda” em enfrentar a ofensiva do governo central, o PC desconvocou a insurreição que estava chamando e, sem disparar um tiro, a revolução morreu (houve uma insurreição heroica em Hamburgo, mas foi isolada e derrotada em alguns dias ante o passo a trás da direção do PC). [20]

Assim, a primeira experiência de um “governo operário da coalizão social-democrata-comunista”, que terá como primeira tarefa (como dizia a resolução da Internacional) “armar o proletariado”, morreu antes do nascimento; e não mais se verificou no século XX. O que sim, se verificou foi outra coisa: as mil e uma vezes que a fórmula do “governo dos trabalhadores” foi usada para justificar cursos oportunistas de adaptação a governos reformistas em bases parlamentares, ou mesmo para entrar nesses governos burgueses.

Isso não significa ser sectário ou decretar antecipadamente um curso dos eventos históricos. Mas um dos principais ensinamentos de princípios do movimento socialista desde Marx é a independência política do proletariado; a organização separada da classe trabalhadora no plano político; a rejeição de princípio da entrada em todo governo burguês, mesmo que seja um governo reformista. Se esse governo reformista tomasse medidas progressivas e fosse atacado pela burguesia, seríamos os primeiros a defendê-las. Se não tomasse tais medidas, mas também se visse afetado por uma tentativa de golpe da direita, também. E se as condições históricas variassem e o marxismo revolucionário voltasse a tomar o poder em algum país, em qualquer caso, retornaríamos ao assunto analisando a situação concreta. [21]

Mas, por enquanto, a realidade é que essa fórmula tem sido usada para escamotear desvios oportunistas contra os quais temos que nos proteger. Os socialistas revolucionários não participam de nenhum governo reformista de bases parlamentares; nós o defendemos em caso de ataque da burguesia, mas nunca lhe damos apoio político, não é o nosso governo. Em vez disso, trabalhamos para desloca-lo à esquerda e abrir o caminho para a verdadeira ditadura do proletariado.

Como digressão, apontemos que o PTS da Argentina se lançou a uma reflexão unilateral acerca da posição de Trotsky sobre “governos operários”. O PTS parece confundir duas coisas. Uma é o fato de que Trotsky insistira em que o balanço da derrota da revolução alemã de 1923 foi produto do que o Partido Comunista Alemão não estava à altura das circunstâncias; a liderança encabeçada por Brandler (sob os auspícios de Zinoviev, na época à frente da IC), não tenha girado a tempo de preparar a tomada do poder. O PTS confunde isso com o debate mais específico sobre as táticas complexas do governo dos trabalhadores na Saxônia e na Turíngia na época, que Trotsky ainda assim considerava explicitamente como uma “questão menor” em relação aos problemas da revolução como tal. Para o PTS, parece que não é assim: consagra a isso o centro de sua “reflexão estratégica”, o que é errado e perigoso, uma vez que pode abrir caminho a todos os tipos de desvios oportunistas: “É impossível entender Trotsky como revolucionário sem entender como ele concebeu a possibilidade de ‘governos operários ou ‘governos de operários e camponeses’ como fontes para promover a preparação ou o desenvolvimento triunfante da guerra civil (…). Sem partir de seu pensamento vivo, não se pode entender a importância da concepção de Trotsky que viu que ‘o governo operário’, como consigna anti-burguesa e anticapitalista, pode ser um caminho régio para a ditadura do proletariado e não apenas sua denominação popular” (“Trotsky e Gramsci: debates estratégicos sobre a revolução no Ocidente”, Emilio Albamonte e Matías Maiello).

É dramático que a maneira a-histórica e doutrinária de abordar os problemas que caracterizam o PTS lhes faça desconhecer que, na experiência real do século XX, essas fórmulas de “governos dos trabalhadores” em bases parlamentares tenham introduzido a maior confusão nas fileiras dos revolucionários: Em vez de servir como um “caminho régio” para a ditadura do proletariado, foram usados para capitular às mais diversas expressões do poder burguês e burocrático.

De qualquer forma, mesmo admitindo a possibilidade dessa “tática” sob condições muito específicas, daí a transformar essa hipótese de trabalho na medida para “entender o tamanho de Trotsky como revolucionário”, realmente há um caminho longo demais.

4.4 O debate sobre um eventual governo do Syriza

Voltemos à possibilidade de um governo do Syriza na Grécia. Como expressão máxima das expectativas que está abrindo e da aplicação confusa da fórmula do governo dos trabalhadores, temos um artigo da Inprecor, a atual revista da corrente mandelista, assinada por seu principal líder hoje, François Sabado: “Outra hipótese deve ser levantada: uma feroz resistência do povo grego e do Syriza que resulte em um governo anti-austeridade. É claro que esse governo estará “em disputa” entre as forças que exercerão as pressões das classes dominantes e as demais, de um movimento dos de baixo, mas que existem no Syriza, inclusive à esquerda de seus setores de direção. Não devemos esquecer que “em circunstâncias excepcionais – crise, crise econômica, guerras – as forças políticas da esquerda podem ir além do que pensavam inicialmente” (Trotsky no Programa de Transição, 1938).” E depois acrescenta-se que “o papel dos revolucionários não é denunciar o Syriza em antecipação às possíveis traições de amanhã. Pelo contrário, é contra as políticas de austeridade e fazer todo o possível para reforçar a dimensão anticapitalista de seu combate (…). Uma derrota do Syriza também será a nossa derrota” (F. Sabado,“ Quelques remarques sur la question du gouvernement”, Inprecor 592/3, abril de 2013).

Vejamos os dois problemas que essas citações colocam. O primeiro é a própria definição de “governo em disputa”, que esteve no centro do oportunismo diante de governos como Chávez ou Lula na última década. No caso do segundo, nada mais era do que uma maquiagem para apoiar (e até integrar) um governo nem mesmo “reformista”, mas neoliberal  ou social-liberal burguês.

O caso de Chávez é mais complexo. Seu governo, uma espécie de nacionalismo burguês do século XXI, deu origem a algumas concessões às massas e teve um curso de independência política do imperialismo. Diante dos ianques e das tentativas de golpe em curso contra Maduro hoje, é de princípio defendê-lo, mas uma coisa muito diferente é o apoio político – e muito mais a integração ao governo, ou ao partido do governo, o PSUV, que foi a orientação de muitos “Trotskistas” – para um governo que nunca foi além dos limites do capitalismo. Pelo contrário, manteve a propriedade privada como um todo, além de certas nacionalizações, e atuou sistematicamente contra a classe trabalhadora e, em geral, contra a organização independente dos explorados e oprimidos, contra as possíveis formas de poder alternativo ao estatal.

Todos esses anos, no entanto, ouvimos falar da “Revolução Bolivariana”, de que Chávez estava se “armando para quebrar a burguesia” … E em que tudo isso derivou: em um capitalismo de estado em crise terminal. Uma crise que tem todas as perspectivas de acabar mal, à direita, entre outras coisas, porque quase toda a esquerda foi cooptada pelo bonapartismo chavista (e alguns grupos muito pequenos têm tanta confusão que estão em acordos ou frentes únicas com os setores esquálidos).

Deixando de lado essa categoria de “governos disputados” (que dá a ideia de que eles careciam de caráter de classe ou que isso seria débil), está a ideia de que o Syriza poderia ir além dos limites do capitalismo, um passo que nem Chávez ousou dar.

Mas aqui temos que recorrer novamente a análises concretas. Nós nos perguntamos: em que bases sociais e organizacionais um governo do Syriza romperia com o capitalismo? É verdade ou não que há juramentado defender o euro e que capitulou à campanha de que os gregos, agora, com base nessa moeda, são finalmente “europeus”? É verdade que o Syriza é uma formação basicamente territorial e parlamentar, com laços orgânicos muito fracos dentro da classe trabalhadora organizada para apoiar-se nela? E o exército grego, que nada tem a ver com o “bolivariano” da Venezuela e faz parte do dispositivo da OTAN?

Se tudo isso é assim, não vemos bases reais para um curso de ruptura anticapitalista. Esses pontos de apoio, historicamente, foram dois. Um, o clássico, vinculado às perspectivas da revolução proletária, da mobilização independente da classe trabalhadora, de suas organizações de poder, do partido revolucionário, como foi a experiência entre guerras. Dois, as formações burocráticas não capitalistas chinesas, iugoslavas, vietnamitas e cubanas (com seus partidos comunistas e guerrilhas), que se não se apoiaram no proletariado ou na organização democrática do campesinato e das massas empobrecidas, o faziam no aparato stalinista de Moscou e uma administração bonapartista das classes pobres.

Na ausência dessas duas condições, não vemos sobre o que o Syriza possa se apoiar além da administração parlamentar em circunstâncias de aguda crise econômica, apontando para uma renegociação com a União Europeia que certamente será marcada por uma série de contradições, mas que finalmente virá a algum tipo de arranjo (e capitulação).

Isso nos leva à posição dos revolucionários frente a um governo Syriza. Obviamente, de um ponto de vista objetivo, isso seria visto como um “triunfo” e um executivo “próprio” das massas. De qualquer forma, seria sem dúvida um avanço na experiência da classe trabalhadora grega. Mas de maneira alguma seria nosso governo, um governo dos trabalhadores. Muito menos que sua derrota seria uma derrota dos socialistas revolucionários, a menos que eles apoiassem, ou até integrassem, em vez de construir uma alternativa revolucionária pela esquerda para esse governo, na perspectiva do poder da classe trabalhadora na base de construir seus próprios organismos. Caso contrário, o processo em seu conjunto levará a uma derrota subproduto da traição das lutas e expectativas das massas pelo governo reformista.

Somente se não fizermos isso, a derrota de um governo do Syriza será “nossa derrota”. Pode haver uma derrota do processo político grego em geral, porque não se conseguirá mover os reformistas pela esquerda (por razões de imaturidade dos fatores subjetivos ou o que for). Mas isso aconteceria por razões objetivas, não por ter tido uma política de capitulação.

Os revolucionários não apoiaremos um governo Syriza; vamos defendê-lo caso você tenha confrontos reais com a União Europeia ou tome medidas realmente progressistas, mas manteremos nossa independência política mais intransigente, trabalhando para abrir um caminho revolucionário que o supere pela esquerda.

4.5 O governo operário e a prefeitura

 “A participação dos sindicatos na administração da indústria nacionalizada pode ser comparada à dos socialistas nos governos municipais, onde às vezes conquistam a maioria e são forçados a liderar uma importante economia urbana, enquanto a burguesia continua a dominar o Estado e permanece em vigor as leis burguesas da propriedade. No município, os reformistas se adaptam passivamente ao regime burguês. No mesmo campo, os revolucionários fazem tudo o que podem no interesse dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, os ensinam a cada passo que, sem a conquista do poder do Estado, a política municipal é impotente” (León Trotsky, “La indústria nacionalizada y la administracion del trabajo”, Writings, volume X).

Cabe lembrarmos que existem posições executivas admissíveis na tradição revolucionária sobre bases parlamentares. Essas são as prefeituras: embora tenham responsabilidades executivas, é geográfica e territorialmente limitada e passível de explicar que não se tem a responsabilidade o conjunto.

As experiências revolucionárias municipais podem então ser um grande ponto de apoio ao desenvolvimento de uma política revolucionária. Mas também representam perigos sérios, que não devem ser abordados com base na renúncia covarde dos desafios impostos pela luta de classes, senão de maneira revolucionária.

A conquista de uma prefeitura tem um impacto nacional porque é um triunfo de uma força revolucionária considerada até então como minoria; é obviamente uma alavanca formidável abrir caminho a uma influência cada vez mais ampla entre as massas e construir o partido.

Mas, a partir desse triunfo, levanta-se como abordar a “gestão municipal”. Aqui acontece o mesmo que vimos em relação ao parlamentarismo, mas de maneira aguda, uma vez que no parlamento não há gerência executiva e no município sim, o que aumenta as responsabilidades.

Como realizar, então, uma política municipal revolucionária? O principal critério nunca pode ser o de “gerenciamento”. Muitas experiências ocorreram nos últimos anos de “prefeituras reformistas”, “orçamentos participativos” etc., que nada mais foram do que o processo de cooptação pelo poder central (veja o caso da Democracia Socialista, ex-integrante do mandelismo, na prefeitura de Porto Alegre, Brasil, sua gestão “participativa” do orçamento e sua brutal adaptação e integração ao governo do PT [22]).

Mas há outra alternativa de uma política municipal revolucionária. Seu critério é o mesmo para todo o resto: o cargo municipal é um ponto de apoio secundário para desencadear uma grande mobilização de massas contra o poder burguês central e estadual. A ideia é que esse poder “sufoque” à municipalidade que não deseja que suas medidas progressivas transcendam como exemplo para o estado e para o país e que, se os trabalhadores e moradores não se mobilizam, a administração não poderá ser levada adiante.

Insistimos: uma abordagem de pura “gestão” seria criminosa. Não existe outro gerenciamento realmente possível em um município isolado que não seja o de administrar a miséria; para não mencionar o problema praticamente irresolúvel do que fazer com a guarda municipal, como avançar em sua dissolução com uma mobilização popular pela autodefesa e segurança dos bairros pelos próprios vizinhos.

Há outro caso que nos encaminha para parte da discussão anterior, que se referia ao próprio governo central, ainda que na experiência da revolução alemã a proposta de “governo operário” tenha sido limitada a dois governos de coalizão estadual. Descartado o problema do governo central, é o caso dos governos provinciais ou estaduais não de coalizão com os reformistas, mas com os revolucionários.

Se trata, sob todas as luzes, de um caso fronteiriço, um enigma que não pode ser resolvido, exceto com base em uma aguda luta de classes. Um governo municipal, e mais ainda um regional, em condições de estabilidade burguesa, só pode resultar em uma administração reformista e, portanto, capitalista. De qualquer forma, é possível assumir, demonstrar o cerco do governo central e orientar para que esse governo seja um ponto de apoio para desencadear uma grande mobilização operária e popular contra o governo central, enquanto houver condições de não cair no reformismo; depois, devemos renunciar.

Isso nos remete às condições de “anormalidade”. Uma espécie de “reformismo revolucionário” como o proposto para a ação parlamentar, no caso do executivo, seria ainda pior. Se o “reformismo revolucionário” divide a luta diária e a perspectiva do poder, no caso de uma situação excepcionalmente revolucionária, rica e dinâmica de ascensão operária o governo local pode ser um ponto de apoio excepcional para desenvolver uma mobilização revolucionária e construir os organismos de poder na luta contra a asfixia do poder central.

4.6 A transformação da luta de classes em guerra civil

“Segundo a magnífica expressão do teórico militar Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. Esta definição também se aplica totalmente à guerra civil. A luta física é apenas um dos “”outros meios”  da luta política. É impossível se opor, porque é impossível parar a luta política quando é transformada, pela força de seu desenvolvimento interno, em luta física. O dever de um partido revolucionário é prever a inevitabilidade da transformação da política em conflito armado declarado e preparar-se com todo as suas forças para esse momento, assim como se preparam as classes dominantes para ele ” (Leon Trotsky, Aonde vai a França?).

À medida que uma situação revolucionária se aprofunda, vai se apresentando o problema do armamento do proletariado. Toda a situação clama para os trabalhadores começarem a se armar à medida que a luta de classes se torna mais direta; se desarmado, não há como combater, questão que deve ser, ao mesmo tempo, uma campanha do partido revolucionário: a necessidade do armamento do proletariado.

Se na experiência histórica das últimas décadas não houve de forma contundente experiências de armamento popular – exceto no mundo árabe, embora a base do processo não seja de classe -, é inevitável que o problema surja na medida em que a situação radicalizar e a democracia burguesa se veja esmagada.

De uma maneira um tanto simbólica, o movimento piqueteiro na Argentina levantou o problema de certa autodefesa e de certo armamento com paus (ou barricadas e pedras na revolta de outubro de 2003 em El Alto, Bolívia). Mas a natureza rudimentar dessas experiências mostra até que ponto ainda estamos longe de um cenário de verdadeira radicalização na luta de classes.

No entanto, inscrito na mesma lógica dos eventos, de uma luta de classes que chega ao seu fim lógico, está o problema de sua transformação em guerra civil (ou com elementos de guerra civil) e o problema do armamento. Também surgirá na medida em que os partidos revolucionários crescerem e a burguesia começar a se preocupar conosco (quando, em vez de nos convidar, eles nos estigmatizem na TV) devido ao peso real, orgânico e não apenas eleitoral, que comecemos a adquirir entre setores amplos da classe trabalhadora e das massas. [23]

A passagem da luta de classes para a guerra civil ocorre quando a luta de classes se converte em um confronto físico entre as classes. A luta de classes geralmente se desenvolve e adquire elementos de luta direta, isto é, extraparlamentar, por meio de greves, mobilizações, bloqueios de estradas, piquetes, ocupações de fábricas e assim por diante. No entanto, isso não significa que o confronto físico seja alcançado. Pode haver repressão por parte do governo e do Estado a tal ação e resposta dos grevistas na forma de autodefesa, coquetéis molotov e similares, mas nesse estágio ainda não estamos em uma situação de guerra civil. Os elementos da mediação institucional ainda funcionam; a própria luta refere-se, em resumo, aos métodos clássicos da luta sob a democracia burguesa: a realização de novas mobilizações, a intervenção de advogados, a denúncia nas câmaras parlamentares e assim por diante.

Mas isso fica em um lugar totalmente subordinado quando se trata de uma guerra civil: nesse caso, o que está em jogo é a existência física dos contendores, a própria vida está em jogo. É o exemplo que damos à repressão da Comuna de Paris. Por isso, Marx chamou o panfleto que escreveu sobre essa experiência A Guerra Civil na França.

No entanto, e ao mesmo tempo, dadas as condições da luta de classes no século XX, fica claro que a repressão da Comuna foi quase uma brincadeira de criança em relação às vítimas que ocorreram no momento da guerra civil após outubro de 1917 na Rússia, ou a guerra civil na Espanha nos anos 30, ou a invasão contrarrevolucionária do exército nazista sobre a URSS em junho de 1941.

Essa transformação da luta de classes em guerra civil, ou mesmo a passagem para uma luta de classes mais direta, levanta todos os problemas de autodefesa, do armamento do proletariado. A burguesia está armada (na realidade, está sempre armada) e pretende reivindicar seu monopólio da força pelo Estado. Mais ainda: arma e permite administrar grupos “irregulares”, cuja tarefa é afugentar a vanguarda dos trabalhadores ou mesmo destruir todas as “instituições da democracia operária no seio do capitalismo”, a principal característica do fascismo, segundo Trotsky. Quando os fascistas moem a pau aos diferentes núcleos e organizações dos trabalhadores todos os dias, o que faz a vanguarda dos trabalhadores e depois toda a classe? É evidente que ela deve se armar até os dentes, formar suas milícias, seus grupos de autodefesa e devolver dez vezes mais cada golpe dos fascistas, cada golpe da repressão. Somente assim a confiança em suas próprias forças pode ser aumentada e a confiança na classe trabalhadora do resto das classes oprimidas e parte das classes médias. [24]

Essa experiência ocorreu no período entre guerras. Na Itália e na Alemanha, para dar os exemplos mais extremos, parte dos ex-combatentes foram afiliados nos grupos de extrema-direita chamados “corpos francos”, que mais tarde nutriram as fileiras dos grupos fascistas e nazistas. Mas, ao mesmo tempo, por exemplo, na experiência italiana, constituiu-se os Arditi del Popolo, que no início dos anos 20 agrupavam os setores de massa de ex-combatentes sob um programa majoritariamente esquerdista (eram uma defecção dos direitistas  Arditi, ex-combatentes que formariam fileiras no fascismo). Para além de que o Partido Comunista Italiano não sabia como se relacionar com esse fenômeno ultra progressivo (tinha uma abordagem sectária), ele existia e, se tivesse uma orientação correta, talvez o processo de fascistização tivesse contornos diferentes. [25]

Este é apenas um exemplo do processo mais amplo de transformar a luta de classes em guerra civil. Leon Trotsky, em seus escritos da década de 1930, por exemplo na França, insistia na necessidade absoluta de promover a autodefesa e o armamento do proletariado, de devolver cada golpe fascista de maneira redobrada, sem confiar, sequer por um momento, na polícia do Estado. (orientação socialdemocrata), unida por mil laços com as formações fascistas. Algo semelhante acontece hoje com o caso de Alba Dorada e a polícia e o exército grego.

4.7 O partido e a insurreição. A complexa mecânica da luta pelo poder

Finalmente, temos o problema do poder e da insurreição. Como discutimos em Ciência e Arte da Política Revolucionária, a tomada do poder é o “momento consciente” por excelência da luta de classes, em que o subjetivo e o objetivo se fundem em um, sempre com base em determinadas condições.

Deve haver uma organização, um partido que se coloque conscientemente essa tarefa, política e praticamente. O poder não cai no colo da classe trabalhadora: deve tomar-se a partir de um plano científico para esse fim, organizado por um centro executor com o máximo cuidado. Por isso, em outubro, Lênin insistiu que o partido organizasse a tomada do poder antes mesmo que se reunisse o II Congresso dos Sovietes, e que o encarregado prático da tomada do poder deveria ser o partido bolchevique. A tomada do poder (amadurecida por todo o conjunto de circunstâncias históricas e políticas) não se referia a um problema de “legalidade” (quem manda tomada do poder), mas a uma questão eminentemente prática: qual centro organizador a leva a acabo. [26]

Há também a determinação da avaliação das circunstâncias. Assim, Lênin falava de ciência e arte da insurreição, porque os elementos de análise da situação deveriam ser adicionados à intuição de que as circunstâncias estavam maduras, para que a vanguarda que toma o poder arraste à maioria (ao conjunto do país). Ou, como disse Trotsky, alcançar pelo menos a “neutralidade amigável” dessa maioria e a oposição ativa de apenas uma minoria.

A revolução é um evento “popular”, uma ação da maioria em benefício da maioria. E de uma maioria que é uma “ampla maioria social”, como Lênin disse. No entanto, sob estas condições, é uma vanguarda a que conscientemente se coloca a tarefa prática de tomada do poder, vanguarda que deve ser organizada pelo partido. É uma mecânica complexa, uma dialética entre a classe trabalhadora, seus organismos, sua vanguarda e o partido revolucionário. Essa dialética não admite nenhum mecanismo, e os bolcheviques passaram a entendê-la melhor do que ninguém. Rosa Luxemburgo não chegou a entender isso, exceto em um estágio muito tardio da revolução alemã.

Portanto, sem partido não há tomada do poder; se ocorre sem partido, sua conservação será praticamente impossível. Uma lição que a Revolução Russa trouxe à tona e à qual se lhe pode agregar, a partir da experiência do segundo período do pós-guerra, de que não se trata de qualquer poder, não se trata de que um aparato que fale em “nome” das massas, mas não seja uma expressão direta de suas lutas e necessidades, assuma o poder. O poder deve ser tomado pela classe trabalhadora sobre a base de suas próprias instituições democráticas, sob a liderança do partido revolucionário.

5. Problemas estratégicos em matéria de construção partidária

“Na experiência histórica que conhecemos mais de perto, a do velho MAS – que havia ‘resolvido’ as relações de forças no seio da esquerda – em poucos anos alcançou seu espaço de ação para além da vanguarda. Mas a tremenda contradição foi quando começou a roçar no peronismo: entrou em uma espiral de crise que o levou à dissolução. Teve um projeto errado para dar o salto para influenciar setores amplos das massas: um projeto basicamente eleitoralista de área geográfica, em vez de um projeto orgânico-estrutural-de trabalho. Esse desvio oportunista na questão da organização – junto com um conjunto de outras razões – o liquidou ”(Roberto Sáenz, ”Lênin no século XXI”).

A seguir, abordaremos alguns dos problemas estratégicos da construção de nossos partidos: sua construção orgânica em oposição a uma mera construção “eleitoralista”, sua “engorda” e não seu crescimento estrutural. Também para o caráter politicamente de vanguarda que deve sempre manter, mesmo quando se lança para uma influência mais ampla entre as massas, tomando o cuidado de não se diluir no atraso político que inevitavelmente arrasta os setores mais amplos das massas. Por fim, o caráter do partido revolucionário como partido de combate, no sentido de sempre ser, em última instância, um instrumento a serviço da luta de classes.

5.1 A construção orgânica de nossos partidos

Preocupa-nos levantar primeiro o problema da tradução dos votos e cargos obtidos em influência orgânica. Aqui nos vem à mente uma reflexão de Trotsky sobre as relações entre o Partido Socialista e o Partido Comunista no início dos anos 1920 na França. O peso militante do PS era relativamente pequeno; no entanto, eleitoralmente manteve grande força e, além disso, expressou certas correlações políticas, refletindo um núcleo da classe trabalhadora que não estava radicalizado. A burocracia stalinista, à frente da Terceira Internacional, tendia a afirmar que os socialistas eram “nada” e que, como o PC tinha muitos mais militantes, atingir a maioria da classe trabalhadora era algo que inevitavelmente ocorreria. Trotsky pensava o contrário, colocando sobre a mesa a complexidade dos problemas da hegemonia política: “Se levarmos em conta que o Partido Comunista tem 130.000 membros, enquanto os Socialistas são 30.000, então o enorme sucesso do comunismo na França é evidente. Mas se colocarmos esses números em relação à força numérica da própria classe trabalhadora, à existência de sindicatos reformistas e tendências anticomunistas nos sindicatos revolucionários, então a questão da hegemonia do Partido Comunista no movimento operário se nos representa como uma questão complexa que está longe de ser resolvida por nossa preponderância numérica sobre os dissidentes (socialistas) ”(Leon Trotsky, “Introdução aos Cinco Anos da Internacional Comunista”).

Juntamente com a questão da hegemonia, surge o problema da construção de nossos partidos. Os problemas de sua construção orgânica, estrutural e territorial estão colocados aqui. Ou seja: a que pressões político-sociais está sujeito principalmente, se ao trabalho orgânico ou ao popular territorial, que são de natureza muito diferente.

Certamente, qualquer partido que pretenda influenciar setores mais amplos é inevitável que tenha um desenvolvimento e inserção territorial crescente. Mas isso deve ter um certo equilíbrio: o centro deve ser a construção orgânica no local de trabalho, para arrastar desde aí o elemento do bairro. Este não é um dogma doutrinário: é uma análise materialista de a quais pressões pretendemos submeter a partido.

Existe uma correlação: o peso territorial excessivo segue uma orientação puramente eleitoral. As eleições desenvolvem, como dissemos, suas próprias necessidades. A participação eleitoral tem leis próprias; não se pode participar das eleições sem fazer campanha, sob pena do infantilismo pequeno-burguês. Mas, outra coisa é ordenar toda a atividade do partido e inclusive sua estrutura interna em torno do que mais produz em matéria eleitoral, o território. Esse atalho é um caminho para o desastre que já foi percorrido por outras formações do trotskismo; um câncer que vive agora, por exemplo, o NPA francês.

Depois, há a questão da proletarização dos colegas no movimento operário. O PO da Argentina se vangloria de que “não precisa fazê-lo” porque, pelo peso eleitoral alcançado, “resolve o problema de sua relação com a vanguarda dos trabalhadores” desde cima e desde fora “politicamente“. Obviamente, o peso político mais objetivo que um partido alcança facilita suas relações, impacto e capacidade de tração entre setores mais amplos; entre eles a vanguarda dos trabalhadores. Mas acreditar que, nas atuais condições históricas, onde o movimento operário não é socialista, a questão se poderia ser resolver de maneira tão epidérmica é enganar-se a si próprio e enganar a militância. Não se pode entender por que hoje o maior partido do trotskismo argentino não pode estruturar companheiros jovens nos locais de trabalho, aproveitando o peso político maior para ganhar setores independentes da vanguarda dos trabalhadores.

Aqui subsiste um problema ligado ao baixo grau de politização das novas gerações. Isso não será resolvido da noite para o dia, nem depende de um ou dois fatores, mas de um conjunto de condições objetivas. Portanto, os quadros politicamente treinados que entram na fábrica podem ser qualitativos para ganhar uma grande fração dos trabalhadores em cada local de trabalho, algo que não será alcançado sem essa orientação. A teorização da construção epidérmica do partido pode ter pernas muito curtas.

5.2 Como não quebrar o pescoço no salto às massas [27] 

Em nosso texto “Lenin no século XXI“, nos referimos aos problemas complexos do salto do partido de vanguarda para a influência de massas. Assinalávamos que a perspectiva deveria ser a da passagem não a de ser “um partido de massas”, senão que em Lênin a concepção era de que o partido de vanguarda deveria adquirir influência entre os setores mais amplos das massas, mas sem perder esse caráter organizacional que deve sempre representar politicamente os setores mais avançados da classe trabalhadora; isto é, de organização de vanguarda.

Na ideia do “partido de massas”, pode-se perder de vista o fato de que, no seio da classe trabalhadora, inevitavelmente, setores avançados e atrasados coexistem no que diz respeito à sua consciência, razão pela qual, se o partido se transformasse, suave e plenamente, em um “partido de massas”, se colocaria o perigo de deixar de ser revolucionário. Mesmo na transição para o socialismo, sob a ditadura do proletariado, o partido deve evitar diluir politicamente os setores mais avançados da classe trabalhadora nos mais atrasados, mantendo seu caráter de organização de vanguarda (Lênin colocou o problema de organizar ” trabalhadores sem partido ”, mas como um problema amplo, não dentro do partido bolchevique).

Por essa mesma razão, o partido não deve ser confundido com o Estado proletário como tal; deve manter sua independência política e organizativa como organização, mesmo que seja o partido no poder. O objetivo é não se confundir com a classe como um todo, e muito menos diluir-se entre as outras classes exploradas e oprimidas, que até certo ponto o estado proletário também representa. [28]

Dito isso, vamos ao nosso ponto: os problemas complexos da passagem do partido de vanguarda para um com influência entre as massas e as leis internas específicas deste último.

Aqui estão várias questões. A primeira coisa a ser observada é que, na operação das leis do partido de vanguarda propriamente dito e o que se lança a uma influência mais ampla entre as massas, ocorre uma transformação, tanto em termos das leis de crescimento do partido como no que tange ao regime interno do partido. Porque se a organização de vanguarda é, em certa medida, uma espécie de “brigada de combate”, um partido que está começando a influenciar os setores das massas, obviamente deve ter uma série de critérios próprios em matéria de organização que moldam em muitos uma espécie de “inversão dialética” das leis que governam o estágio propriamente dito de vanguarda.

Isso não nega que, ao mesmo tempo, as leis do desenvolvimento desigual e combinado governem todos os estágios. Se é ruim confundir os estágios construtivos do partido, isso não significa que não haja circunstâncias em que núcleos muito pequenos cumpram um papel de grande importância, com uma projeção no campo político bem acima de suas forças organizacionais; algo que vemos e vivemos todos os dias (algo semelhante ao que Moreno havia apontado em um texto sobre a situação na Bolívia no início dos anos 80).

Mas digamos algo sobre as leis de crescimento de um partido com maior peso entre as massas. Os multiplicadores em termos de número de militantes, inserção e escopo político e organizacional do partido em época revolucionária variam substancialmente em relação ao período em que a organização é um partido de vanguarda. Essas são outras leis que regem o salto às massas: operam leis de multiplicação geométrica e não aritmética, que é o que caracteriza o partido no estágio de vanguarda.

Ou seja, o partido de vanguarda recruta indivíduos ou, no máximo, dezenas. O partido que se volta a ter influência entre os setores das massas recruta conjuntos de companheiros: capta núcleos, grupos, organizações e/ou setores inteiros de trabalhadores ou estudantes. A esse respeito, os critérios estabelecidos por Lenin para os bolcheviques na época da revolução de 1905 são ilustrativos: levantou a necessidade de criar centenas de novas organizações partidárias e insistia que ele não o dizia em sentido figurado, mas literalmente, sob pena de ficar por trás dos acontecimentos, não apenas politicamente, mas construtivamente.

A questão dos multiplicadores é um debate que faz as leis dialéticas, em termos de construção partidária, do salto de quantidade para o de qualidade. Porque esse salto requer uma acumulação quantitativa prévia para produzir-se.

Em segundo lugar, a questão dos multiplicadores é difícil de pensar em abstrato: geralmente está ligada à busca de algum meio para produzir esse salto de qualidade. A coisa decisiva aqui é se vão ou não no sentido estratégico de construir a organização como um partido revolucionário. Para que não seja um salto para o vazio, por mais meio que exista, é necessário um acúmulo prévio em matéria de construção partidária. Existem inúmeros momentos em que essa possibilidade se apresenta ao partido. Mas se não houver um partido organizado anteriormente, é como querer tomar sopa com um garfo: não se pode aproveitar o momento de forma construtiva e as centenas ou milhares de simpatizantes potenciais escorrem como água entre os dedos. Em suma: o salto em direção às massas exige uma acumulação anterior sob pena de que, mesmo que exista um meio para dá-lo, não possa se concretizar.

Aqui opera, em terceiro lugar, a variação das leis de construção, no caso do partido que se lança a ter influência de massa, o que muitas vezes leva a dar com a cara na parede. Pode se dar caso de se ter tanto o meio como a acumulação necessária, mas o grau de politização da militância do partido de vanguarda é muito diferente, e os métodos de direção, mais “personalizados”, que caracterizam a organização de vanguarda, também são muito diferentes. Quando o partido cresce, se torna “impessoal”; tudo repousa nos quadros, no grau de educação que receberam e na capacidade de ação autônoma, dentro dos parâmetros da política geral da organização. Esta acumulação de quadros anteriores se transforma então em um elemento-chave.

Além disso, o partido transformado já, até certo ponto, em um fato objetivo, tem a tendência de desenvolver interesses próprios de maneira muito forte, o que levanta o problema de que o partido nunca deve ser pensado independentemente da luta de classes. É o perigo típico do “grande” partido: considerá-lo “um fim em si mesmo”, ter medo de arriscar, ignorar os problemas da sociedade e da classe como se o partido pudesse se construir independentemente da luta de classes (o caso extremo foi o da socialdemocracia alemã, caracterizada como um “Estado dentro do Estado”). Ou seja, um equilíbrio correto deve ser estabelecido entre a vida interna do partido e sua vida habitual, que está voltada – e não pode deixar de estar – ao serviço da luta de classes. Voltaremos a isso mais adiante.

Vejamos um quarto problema: o das “âncoras” do partido, os contrapesos que deve adquirir para que as pressões sociais que uma faixa das massas começa a exercer sobre a organização, com todos os seus elementos de atraso político, não o levem a desbarrancar.

Essas âncoras são: o grau de politização de seu núcleo partidário, sua composição social, a autoridade de sua administração, as tarefas às quais costuma se dedicar (não é a mesma coisa um cotidiano partidário voltada à intervenção nas lutas dos trabalhadores em relação a que sua atividade básica seja a eleitoral), o suporte teórico-estratégico da organização e seu caráter internacionalista. Porque, caracteristicamente e dialeticamente ligado ao anterior, existe outro problema que é absolutamente fundamental: o grau de flexibilidade do partido em termos de nutrir-se do melhor da geração jovem que entra na luta. Ou seja: o partido deve deixar para trás toda a inércia conservadora e se lançar totalmente para intervir política e construtivamente na luta de classes incrementada. É aqui que a capacidade de adaptação do partido, sua flexibilidade revolucionária, sua capacidade de se livrar de toda inércia conservadora, de qualquer estrutura que não seja capaz de se nutrir dos impulsos revolucionários da realidade.

E aqui há uma exigência a mais. Em situações de assenso da luta de classes, o partido corre o risco de ficar à reboque da situação, tanto política como organizativamente, ao invés de ser a vanguarda. Como dizia Lenin em 1905, citado por Marcel Liebman em Leninismo sob Lênin” (p. 46) : “Necessitamos aprender a ajustar-nos s este completamente novo alcance do movimento” E, segue Liebman: “Esta adaptação aos eventos significa que a distinção entre a organização e o movimento, entre a ‘rede horizontal’ e a ‘rede vertical’, e, finalmente, entre a vanguarda e a classe trabalhadora, começava a fazer-se mais tênue”. 

Isto ocorre quando há um assenso revolucionário: o partido deve abandonar toda a inércia, revolucionar-se junto com a classe. Há, até certo ponto, e como já assinalamos, uma inversão dos princípios estabelecidos acima. Mas para que esse salto não seja no vazio, o estágio de partido de vanguarda deve ter sido resolvido de maneira satisfatória. O partido só manterá seu caráter revolucionário somente se, quando se ”funde” com as massas (como Lênin assinala no “Esquerdismo …”), tenha uma espinha dorsal firme como organização revolucionária. Ai, um círculo dialético inteiro já estaria se fechando, que até agora apenas o bolchevismo conseguiu transitar satisfatoriamente, mas que certamente terá novos capítulos neste século XXI.

5.3 A degeneração da socialdemocracia alemã

 “Por trás de todas as considerações [se refere à luta de Rosa Luxemburgo. RS] sempre se descobre sua necessidade de quebrar a estrutura de autoabsorção do partido. Tal problema só poderia apresentar-se dentro de um partido como o SPD, uma organização de massa tão importante, disciplinada e legal a ponto de criar um Estado dentro do Estado ”(J.P. Nettl,“ Sobre o imperialismo”, no Desafio de Rosa Luxemburgo).

A experiência da social democracia alemã no início do século XX é de enorme valor educativo para entender alguns dos problemas que surgem da obtenção de parlamentares por parte da esquerda. Obviamente, as diferenças entre ontem e hoje são siderais, no entanto, um estudo crítico dos problemas dessa organização oferece lições universais que devem ser incluídas no debate estratégico.

A evolução do SPD (Partido Social Democrata da Alemanha) levou a várias análises a esse respeito, as mais importantes realizadas por Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky. No entanto, tomados com as devidas precauções, queremos retornar aqui aspectos da obra clássica de Robert Michels (1876-1936), “Os partidos políticos”, obra inspirada no Partido Social Democrata Alemão do qual ele era membro, embora suas simpatias fossem depois para o fascismo encarnado por Mussolini. [29]

Sua tese se referia a uma suposta “lei de ferro” que, por razões “inevitáveis”, levaria à burocratização das organizações de trabalhadores. Ele via na divisão do trabalho dentro da organização e na participação dos estratos dominantes nas instituições da democracia burguesa uma tendência “oligárquica” incontrolável que não podia fazer outra coisa senão burocratizar o partido.

Sua abordagem baseou-se  no fato de que a “massa explorada” nunca poderia ser elevada à auto emancipação: ela sempre deveria ser “dirigida” (e substituída no governo dos negócios) pois seria irremediavelmente “incompetente”. Sua visão não era apenas errada, mas reacionária até a medula: transformava em “impossibilidade técnica” (isto é, naturalizada), o que era apenas um subproduto de certos processos históricos. Além disso, estabeleceu uma tese essencialista contra o potencial de auto emancipação dos explorados e oprimidos que, alguns anos depois, foi desmentido rotundamente com a imensa gestão da Revolução Russa (sua obra data de 1911). 

Em Michels, a burocratização das organizações de trabalhadores é um produto forçoso que emerge de “invariantes” de base “técnica”. Como parte das tradições da sociologia burguesa reacionária da época (Mosca, Pareto, Weber [30]) e dos dirigentes, não menos reacionários, da escola de “psicologia de massas” (Le Bon), transforma em um a priori  um resultado de certas circunstâncias históricas: a burocratização das organizações políticas da classe trabalhadora. [31]

Com Marx, sabemos que nas sociedades de classes a divisão técnica do trabalho implica uma divisão social do trabalho, mas não precisa ser assim ao longo da história. Não há nada na “natureza humana” que impeça a humanidade de atingir os mais altos níveis de desenvolvimento, superando a divisão do trabalho, mesmo no próprio campo técnico. Ou, pelo menos, que uma nova divisão funcional se coloque em parâmetros que seriam impensáveis hoje. Pierre Naville tem indicações sugestivas sobre este assunto.

Por outro lado, é verdade que a dialética entre a base, os quadros e os líderes e os problemas de representação da “vontade popular” é complexa e cobre todo o período da luta pela revolução socialista e pela transição, e é o que dá substância à concepção de partido de Lênin, à criação de organismos de poder e assim por diante. Entre eles, a problemática da ditadura do proletariado.

Mas todos esses processos são historicamente determinados e não se referem a nenhuma essencialidade a priori; nada que não possa ser superado na experiência da luta de classes; sem fatalismo, sem fechamento de perspectivas históricas que dizem que “a liberdade de cada um será a condição para a liberdade de todos” (como Marx queria sob o comunismo).

No entanto, se os pressupostos teóricos de Michels estavam completamente errados, ele foi muito perspicaz na descrição dos processos em funcionamento. Queremos destacar dois aspectos. Um, Michels estava certo quando apontou como o partido socialdemocrata, à medida que crescia, acrescentava elementos de conservadorismo: “A vida do partido (…) não pode ser posta em perigo (…). O partido cede, vende abruptamente sua alma internacionalista e, impulsionado pelo instinto de autopreservação, torna-se um partido patriota ”(citado por Lipset na introdução a “Os partidos políticos”, volume I: 18). Não é que todo partido, pelo mero fato de crescer, adicione elementos de conservadorismo, suposta “lei de ferro” que nos condenaria a ser uma seita. Acontece que toda organização desenvolve, em certa medida, seus próprios interesses, que fazem a lógica de sua construção, e que devemos prestar atenção para que não se tornem um fim em si mesmos, distanciados das razões finais de sua existência: a luta pela transformação socialista da sociedade.

Vamos dar uma olhada mais de perto neste problema. O partido revolucionário é essencial para a revolução social, algo que atesta toda a experiência histórica. Também é fato que, se os revolucionários não constroem o partido, ninguém o constrói: é o menor “objetivo” que existe. Isso inclui inevitavelmente que o partido deve ter sua própria agenda e desenvolva inevitavelmente os interesses de sua própria construção.

Mas devemos estar atentos a uma derivação indesejada disso: que o partido acabe se separando da realidade, desconsiderando seus objetivos, as necessidades e lutas da classe trabalhadora, de ser uma ferramenta a serviço da luta emancipatória da os trabalhadores.

Essa perda de seus fins, ou uma compreensão mecânica de sua própria construção, como se isso pudesse ser feito entre quatro paredes, separadamente da experiência da própria classe trabalhadora, é o que pode adicionar inércias conservadoras se se perder de vista que o partido é, em suma, uma organização que luta pela transformação social.

Lênin, em sua luta contra os “homens de comitês” na revolução de 1905, não dizia outra coisa. Trotsky também quando insistiu repetidamente no perigo de que o partido estivesse por trás dos acontecimentos da luta de classes e, em vez de desempenhar um papel de liderança, seria um contrapeso conservador. Isso se tornou particularmente agudo no momento da insurreição, quando, como lei, era inevitável que elementos retardatários surgissem no partido, como já apontamos.

Em Michels (e outros autores como Nettl, biógrafo de Rosa Luxemburgo), há outra observação sugestiva sobre a social democracia alemã, quando ele aponta que ela era considerada um “Estado dentro do Estado”. Com base nas pressões objetivas do crescimento econômico e de uma vida política puramente parlamentar, essa concepção transmitiu a ideia de uma autossuficiência que levava ao conservadorismo e o distanciava do caráter de um partido de combate nas lutas da classe trabalhadora que a organização revolucionária deve ser.

A ideia do partido como um “Estado” transmite uma compreensão de totalidade, de um conjunto de relações políticas da classe trabalhadora já resolvidas no partido como tal. Se o partido é um “Estado”, uma organização “totalizada”, por que se preocupar em transformar a realidade? Qualquer intervenção na realidade, na medida em que envolve riscos, é vista como “perigosa”, problemática, prejudicial. Por que arriscar tudo se o partido já é uma “sociedade dentro da sociedade”, é “autossuficiente”? Daí para a adaptação conservadora ao parlamentarismo, havia apenas um passo, e o SPD o deu.

Em suma, as questões de estratégia dos revolucionários se colocam tanto no campo político quanto no construtivo, como acabamos de ver. Questões que ficarão cada vez mais quentes quando a esquerda revolucionária ganhar posições entre a vanguarda dos trabalhadores e mais além. Um processo que parece estar acontecendo em vários países; sem dúvida, na Argentina atual entre outros, e a serviço da qual colocamos este ensaio, em primeiro lugar, para a construção de nossa Corrente Socialismo ou Barbárie e de cada um de seus componentes.

Publicado originalmente em Revista SoB 28 – Socialismo ou Barbárie de abril 2014

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“Camino a la revolución europea”, 11 de abril de 1924, MIA.

NOTAS

[1] – Uma análise deste tipo é promovida pelo PTS da Argentina. O PO argentino nem se deu ao trabalho de estudar criticamente esses processos (pelo contrário, eles se orgulham do contrário!), Uma característica do empirismo que poderia causar um grande impacto em qualquer grande processo revolucionário. Voltaremos às duas correntes no anexo.

[2] – Outros aspectos do movimento trotskista caíram em explicações subjetivas, dando origem a desvios políticos não menos graves do que a maioria das correntes trotskistas e a rejeição da defesa incondicional da URSS promovida por Trotsky. É o caso, entre outros, de Max Schachtman, que configurou uma adaptação às teorias do “totalitarismo” em voga no segundo período imediato do pós-guerra (e novamente hoje, após a queda do Muro, no debate historiográfico), que de maneira interessada igualou a natureza do stalinismo e do nazismo, e acabou capitulando à democracia imperialista dos EUA

[3] – A esse respeito, Trotsky aponta o seguinte: “Engels finalmente alcança a estratégia, neste terreno independente, o mais alto da arte militar, que, no entanto, está relacionado, através de um complicado sistema de alavancas e correias de transmissão, com política, economia, cultura e administração ”(“ Notas de Friedrich Engels sobre a guerra de 1870-71 ”).

[4] – Sabe-se que Lênin foi muito cauteloso em relação a todas as críticas à socialdemocracia alemã até ser “despertado” pela capitulação histórica de 1914. Posicionado contra Bernstein, ele viu apenas diferenças “táticas” entre Kautsky e Luxemburgo. Por outro lado, Trotsky fez críticas análogas a Rosa, enfatizando o caráter cada vez mais conservador do partido alemão (em Resultados e Perspectivas, 1906), mas depois abordou Kautsky novamente por causa das brigas na socialdemocracia russa, e apoiou-o contra Rosa no debate sobre a greve política em massa.

[5] – Gramsci também desenvolveu um pensamento estratégico, embora mais fragmentário e distorcido devido a sua prisão e incompreensão da batalha de Trotsky contra o stalinismo. Este não era seu aspecto forte, mas o problema da importância da política na ação dos revolucionários, bem como suas observações bruscas sobre a construção do partido; poderíamos dizer que ele era o grande “filósofo político” do marxismo revolucionário.

[6] – Nahuel Moreno tentou fundar em circunstâncias objetivas a passagem da revolução democrática para uma socialista no segundo período pós-guerra, para não ter que atribuí-la à liderança burocrática, como o Mandelismo fez de maneira oportunista. Ele não parecia perceber, no entanto, que isso também permitia um tremendo desvio oportunista na corrente que ele estava construindo, porque se a realidade se tornasse socialista “objetivamente”, os problemas estratégicos eram reduzidos à sua expressão mínima.

[7] – A renúncia ao pensamento estratégico já ocorre quando se considera, superficial e impressionisticamente, que a revolução socialista estaria “fora da agenda histórica”. Isso é típico das correntes do “que não fazer”, caracterizado, precisamente, pela renúncia explícita ao pensamento estratégico, por uma prática econômica vista como um fim em si mesma.

[8] – No mesmo sentido, mas do ponto de vista do fascismo, Carl Schmitt disse que “a política também sempre contém, pelo menos como uma possibilidade, um elemento de inimizade, isto é, de confronto irreconciliável, que com a guerra civil chega ao fim ”.

[9] – É aqui que as “práticas militares” entram à medida que as correntes crescem e à medida que mais desafios surgem em termos de confrontos diretos. Práticas que se deve saber levar a cabo por serem realizadas com critérios nos quais a política é sempre a regra, mas que, no entanto, têm especificidade em termos de “técnica militar” (e não é uma questão de guerrilha aqui, mas sim de métodos de ação direta apoiada na experiência da luta histórica da classe trabalhadora: barreiras, piquetes, autodefesa, milícias etc.).

[10] – A manobra de ensacamento é um transbordamento de um exército pelos flancos que finalmente se fecha deixando o exército isolado. Se este exército estiver em condições inferiores e não puder romper o cerco, ele será aniquilado pelo oponente. Na Segunda Guerra Mundial, houve muitas batalhas de ensacamento, algumas delas históricas. O mais conhecido é o da última fase de Stalingrado (dezembro de 1942 a janeiro de 1943), quando o Exército Vermelho acaba ensacando o VI Exército de Von Paulus entrincheirado na cidade e destruindo-o.

[11] – Na Argentina, há experiência nesse sentido em relação ao movimento de mulheres e à luta pelo direito ao aborto. Durante anos, a liderança do movimento de mulheres no país aplicou a orientação de que não deveria ser massivamente mobilizada para esse direito, de modo a não ser maltratada pelo governo “progressista”; que a estrada era o lobby parlamentar nos corredores do prédio do Congresso. O resultado: o direito ao aborto ainda não foi conquistado.

[12] – O deputado da FIT e líder da PO da Argentina, Néstor Pitrola, disse à imprensa que estava “muito confortável no parlamento” e que “havia se preparado uma vida inteira” para exercer o posto de deputado …

[13] – Engels protestou porque publicou-se o texto mutilado de suas partes mais revolucionárias; no entanto, ele finalmente cedeu aos argumentos da administração partidária de que eles deveriam vir à tona como haviam combinado, com a justificativa de impedir que o partido fosse banido novamente

[14] – É sintomático como na Argentina a FIT educou em suas campanhas eleitorais no sentido contrário: no de que seriam os que resolveriam os problemas sob o slogan “nós, a esquerda” como antídoto para todos os problemas, de forma distanciada de uma luta de classes em regra.

[15] – Isso explica, por exemplo, casos como o do PO na Legislatura da capital Salta (província da Argentina), onde apesar de constituir a primeira minoria parlamentar, os legisladores burgueses uniram forças para evitar que  assumissem a a titularidade do cargo.

[16] – O cientista político de direita simpatizante do nazismo Carl Schmitt não disse outra coisa em sua Teoría del partisano (1962): “O partidário moderno não espera graça ou justiça do inimigo. Deu as costas à inimizade convencional, com suas guerras domesticadas, e foi para um reino de outra verdadeira inimizade, que está enredada em um círculo de terror e contraterror até a total aniquilação. ” Se trata de uma guerra de “inimizade absoluta” que não reconhece nenhum marco.

[17] – Veja nossa referência ao muro dos comuneiros de Père Lachaise em “As pegadas da história”, Roberto Sáenz, www.socialismo-o-barbarie.org. Traverso conta nas origens da violência nazista como a maioria das vítimas não morreu nos confrontos, mas foi presa, levada para campos de concentração, sumariamente julgada e baleada, sob uma desculpa desumanizante e “social darwinista” que indicava que essas “pessoas” faziam parte de elementos “perigosos e degenerados”, os “mais baixos da escala social” motivados por uma espécie de “animalidade”. Desse modo, a repressão da Comuna de Paris, bem como os eventos da Primeira Guerra Mundial, são tantos dos outros antecedentes do tipo de violência contra-revolucionária incorporada pelo nazismo.

18. No início dos anos 30, ao apontar os fundamentos programáticos da Oposição de Esquerda, Trotsky introduziria um critério metodológico de extrema importância para a questão com a qual estamos lidando aqui: “A Oposição de Esquerda se baseia nos quatro primeiros congressos da Conmintern Isso não significa que ela segue suas decisões à risca, muitas das quais tinham caráter puramente conjectural e foram contraditadas por eventos subsequentes. Mas todos os princípios essenciais (em relação ao imperialismo, o estado burguês, a democracia e o reformismo, os problemas da insurreição; a ditadura do proletariado, sobre as relações com os camponeses e nações oprimidas, o trabalho nos sindicatos, o parlamentarismo, a política das frentes únicas) permanecem, ainda hoje, como a mais alta expressão da estratégia na época da crise geral do capitalismo ”. Em Duncan Hallas, “Leon Trotsky socialista revolucionário”: 41. A citação de Trotsky é retirada de Writings 1932-33: 51-55. Observe que em sua lista Trotsky não inclui as táticas do governo dos trabalhadores.

[19] – Em “Sobre o retorno da questão político-estratégica”, no mesmo sentido oportunista em questões estratégicas, Bensaïd acrescenta o seguinte: “No mesmo ponto em que estávamos confusos ou golpeados na época [refere-se ao final dos anos 70. RS] pela adesão de Mandel à “democracia mista” com base no reexame das relações entre soviet e constituinte na Rússia. É evidente, de fato, com mais razão nos países da tradição parlamentar mais que centenária, que onde o princípio do sufrágio universal está solidamente estabelecido, um processo revolucionário não poderia ser imaginado senão como uma transferência de legitimidade que consagra a preponderância de um ‘ socialismo pela base ‘, mas em interferência com formas representativas ”. Mas, parece-nos aqui, que dois planos diferentes são erroneamente misturados: a) como as formas diretas de representação soviética podem ganhar sua primazia, em correlação com a experiência que as massas estão fazendo com as formas parlamentares de democracia burguesa e b) a O fato de haver experiências históricas que mostraram que as formas da democracia burguesa sempre foram usadas contra as formas de poder da classe trabalhadora para reabsorvê-las e liquidá-las. Veja o caso da constituinte dissolvida pelos bolcheviques no início de 1918 ou o exemplo inverso da constituinte que estabeleceu a República de Weimar na Alemanha em meados do ano seguinte e que operou, precisamente, dissolvendo as formas soviéticas emergentes no território alemão. A mudança de Mandel para a “democracia mista” foi confusa, o que é observado, mesmo, no exemplo dado por Bensaïd ao invocar essa mesma fórmula, que propõe a correção de que o mandelismo haja apoiado o apelo eleitoral sandinista às eleições de 1990, que o deixou fora do poder sem disparar um único tiro.

[20] – Às vezes se perde de vista a insistência com que Trotsky fundara no fracasso da revolução alemã de outubro de 1923, a maior derrota do proletariado de sua época, o ponto de articulação para a burocratização da URSS e a podridão da Internacional Comunista e do Partido Bolchevique.

[21] – Harman e Potter assinalam a respeito o seguinte: “O que estamos apontando não significa que, sob nenhuma circunstância, um governo operário real poderia ocorrer antes da ditadura do proletariado. No passado, houve governos de trabalhadores cuja tarefa mais elementar era armar o proletariado, no entanto, foram exceções extremas. Por exemplo, os casos da Hungria e da Baviera em 1919, onde o poder burguês praticamente entrou em colapso e o governo passou para as mãos de pessoas que se baseavam na consigna do Poder Soviético ”(“O governo dos trabalhadores”). No entanto, acrescentamos que ambas as experiências acabaram frustradas e, em ambos os casos, estava presente o poder gravitacional da Revolução Russa.

[22] – Raúl Pont, um de seus principais líderes, foi ministro da Agricultura em um governo, como o PT, onde a “reforma agrária” avançou ainda menos do que sob a administração abertamente neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, sem mencionar a fechar os olhos para assassinatos sistemáticos de sem terras por parte dos fazendeiros.

[23] – O Partido dos Trabalhadores da Argentina acredita que possui uma “audiência de milhões” porque seu dirigente é regularmente convidado para a mídia que se opõe ao governo. Mas se esse convite é uma grande oportunidade para ampliar a influência política geral dos revolucionários, seria uma cegueira criminosa perder de vista, também, o quão relativamente epidérmico que é hoje a “influência da mídia” e a importância de traduzir essa influência difusa geral em força orgânica dentro da classe.

[24] – Em um nível mais geral, Carl Schmitt, um cientista político ligado ao nazismo, mas muito agudo, disse que Napoleão tinha um respeito máximo pelo combate irregular que rezava que “com partizanos há que se lutar da mesma maneira que os partizanos”.

[25] – Veja Tom Beham The Resistible Rise of Benito Mussolini. Aparentemente, os ADP chegaram a 20.000 membros organizados em 144 células, ativas em 56 das 71 províncias da Itália. Enzo Traverso também é muito perspicaz na análise da passagem da “política parlamentar” para a guerra civil no período entre guerras.

[26] – Sabe-se que Trotsky teve um matiz tático com a orientação de Lênin, afirmando que era melhor denunciar que a guarnição de Petrogrado estava sendo retirada da cidade por Kerenski para deixar a capital da revolução à mercê do exército alemão e colocou a necessidade de um Comitê Militar Revolucionário que assumisse sua defesa Foi uma desculpa para lançar a preparação da insurreição, uma posição tática que tinha maioria no CC bolchevique. No entanto, se tratava de uma cobertura política que não mudou a substância da questão levantada por Lênin: que o partido se envolvesse imediatamente, de maneira prática, na organização da tomada do poder.

[27] – Esta seção é uma versão corrigida de um mesmo nome, parte do nosso texto “Cien anõs del ‘Que Hazer?’”, que publicamos aqui novamente porque aborda os objetivos deste ensaio.

[28] – No início dos anos 20, em relação ao chamado “debate sindical”, houve uma discussão interessante entre Lênin e Bukharin quando o primeiro definiu o caráter do estado proletário como “estado operário e camponês” e depois se corrigiu definindo que o estado dos trabalhadores na URSS era um país com deformações burocráticas. De qualquer forma, expressou todos os problemas de “representação” levantados no estado pós-revolucionário e como o partido deve evitar “se fundir” com ele.

[29] – Sua avaliação foi de que a democracia de massas era “impossível” e que uma “lei de ferro das oligarquias políticas” sempre foi imposta, inevitavelmente. Michels passou do reformismo para o culto de figuras carismáticas como Mussolini, chamadas a resolver acima dos problemas “irresolúveis” da democracia política.

[30] – Lembremos que Weber falara da “jaula de ferro” à qual as massas estavam sujeitas ao capitalismo e que tornava “organicamente” impossível que elas tomassem seu próprio destino.

[31] – Em “Los orígenes de la violencia nazi, Enzo Traverso afirma a mesma coisa que destacamos aqui: que, na base de sua brilhante análise da social-democracia alemã, Michels colocou a suposta “impossibilidade” da classe trabalhadora de se emancipar por si mesma.