Abaixo o PL 504: O preconceito em nome das crianças

A usual canalhice conservadora maquiada de boas intenções

Projeto de lei 504/2020, proposto na ALESP por uma deputada estadual, planeja dar um severo golpe à representatividade LGBTQIA+ na publicidade em nome das ‘criancinhas’ que, diferentemente da deputada reacionária, já nasceram nesse milênio e absolutamente não merecem lidar com os preconceitos de uma adulta que está a serviço de credos desumanizadores.

FELIPE THOMAZ, gay integrante do SoB

Se você tem alguma simpatia aos LGBTQIA+, preste bastante atenção na sandice que eu escreverei agora. A partir de amanhã, quinta-feira 22, pode ser lei estadual paulista que nenhum gay, lésbica, transexual ou qualquer outro membro desses segmentos minoritários da sociedade SEQUER APAREÇA em uma publicidade, se ela for considerada minimamente infantil. Parece um absurdo a qualquer cidadão integrado ao seu tempo e aos avanços sociais cogitar tamanho retrocesso conservador, já que estamos quase na metade da segunda década do século 21, mas é isso mesmo que você leu.

De autoria da onerosa deputada Marta Costa do PSD, e escrevo onerosa porque o projeto faz questão de ir na contramão ao que já reiterou o STF sobre a homofobia em junho do ano retrasado, equiparando homofobia aos crimes de racismo. Na ocasião e com palavras do então relator vossa excelência Celso de Mello nesse mesmo julgamento

“A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República”

Parece que alguém que nem tem alcance federal de seus poderes quer gastar o nosso suado dinheiro público, ao invés de por exemplo, uma mera sugestão: adiantar ainda mais a Butantanvac e imunizar efetivamente a população com vacinas – já que estamos perdendo até para alguns países mais pobres do mundo em porcentagem da população vacinada. Mas isso é secundário, importante mesmo é fazer questão de gastar dinheiro publico censurando LGBT em anúncio.

A bobagem é composta de três artigos, os dois primeiros são os piores. A saber e transcrito na integra, porque é sempre importante perceber que a deputada conta com todo um gabinete e inúmeros recursos para propor essa pataquada, ou seja, possivelmente isso custa no mínimo uns R$100mil mensais do bolso do contribuinte paulista.

Propõe a deputada:

Artigo 1º – É vedado em todo o território do Estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças.

Artigo 2º – As infrações ao disposto no artigo primeiro desta Lei serão, a princípio, multa e o fechamento do estabelecimento que atuar na divulgação até a devida adequação ao que dispõe esta lei.

O que na prática acarreta naquilo que já foi escrito. Pode estilhaçar a representatividade LGBT, as famílias que nós criamos e das quais fazemos parte, além de inviabilizar transexualidade na adolescência, um tabu existente e retrógrado.

Feito qualquer coisa conservadora, a lógica é muito velha. Teme-se que as crianças sejam estimuladas a serem LGBTQIA+ pela propaganda. Não acontece assim. Nunca aconteceu. A orientação sexual de uma pessoa não pode ser determinada por mera publicidade. O cientista Simon LeVay jé demonstrou que a zona cerebral INAH3 é de duas a três vezes menor em um indivíduo homoafetivo. Isso é biológico. Assim como é comprovado que gêmeos idênticos univitelinos tem propensão a ter a mesma orientação sexual. Entenda, mais de 50% dos gêmeos univitelinos compartilham orientação sexual similar.

É biológico, mas não é meramente biológico. Fatores culturais também importam e aí sempre me espanta a possibilidade de proporem projetos de lei como esse e não serem contra o machismo por exemplo. É o machismo que culturalmente faz com que criancinhas brinquem entre si, especialmente os meninos, chamando um ao outro de gay pejorativamente. Eles fazem isso porque os adultos fazem, o cotidiano machista é latente na sociedade brasileira, o menino só mimetiza o comportamento machista do homem. Logo, se houver um filho gay na parada, a culpa pode ser até do machismo nosso de cada dia. Ele achou graça na piada que o pai fez. A família que lide com isso. De preferência conosco na luta dos movimentos sociais. Contra o machismo sempre.

Para piorar o despautério gerado pelo projeto de lei e indo além da criança consumindo publicidade. Se uma família LGBTQIA+ for retratada em um comercial, como fica? Foram anos de evolução e avanços sociais primeiro para peitar de frente o cotidiano heteronormativo e ter a consciência de que não se possui uma doença e ser LGBT não é doença alguma. Depois foram outros longos anos para que pudéssemos ter direito ao casamento homoafetivo legal. Ainda pior foi referente a adoção de menores por casais homossexuais. Tais casais que até hoje sofrem na fila de adoção e são modelo e referência em casos de adoção tardia. Essas famílias não podem aparecer em publicidade alguma? Ué? Para o mundo que eu quero descer. Vi um monte de comercial de margarina com uma família feliz onde o homem beijava a mulher. Sinto informar a deputada, mas nunca virei hetero por isso. Uma pena, só para ela no caso.

Indo além, porque falar de LGBT e especialmente o a letra T cisma em ser de tabu, ao invés de ser humana e Transsexual de fato. Trago verdades: transexualidade na adolescência e na infância existem. Analise a situação complexa. As famílias que possuem uma criança ou um adolescente transgênero, um infanto que se considera uma mulher em um corpo masculino ou o contrário. Essas famílias necessitam de acompanhamento médico e psicológico. O Hospital das Clínicas é referência e possui núcleos dedicados a atender publicamente essa situação. Isso precisa ser de conhecimento da sociedade.

Convém frisar que ninguém aqui é a favor da propaganda infantil desenfreada. Sabe-se lá quanta porcaria e quanto McLanche feliz nossas crianças consumiram e engordaram por isso só porque o hamburguer vinha com brinde ou a Coca-cola vinha com um ioiô brilhante. Existem ONGs da virada do milênio belíssimas que combatem o abuso na publicidade infantil como é o caso do Instituto Alana. Mas combater o abuso na publicidade infantil não significa censurar a situação de uma família que procura resolver a não conformidade de gênero de um adolescente. Isso não é benfeitoria, é só censura e não há nada de nobre nisso.

Para finalizar e ser bastante repetitivo, como esses reacionários adoram ser. A cada novo avanço social histórico sempre evocam as criancinhas. A Marcha Pela Família com Deus pela Liberdade pré-ditadura foi a mesma coisa. Não cansam de projetar em criancinhas seus próprios dilemas, preconceitos, hipocrisias e perversões de adultos.

O que as criancinhas vão achar dos LGBT nas propagandas?

Respondendo a possível pergunta. Elas vão achar exatamente o que acharam do absurdo que era o casamento interracial há sessenta anos. Ou acharão exatamente o que achariam de ter a mãe trabalhando e com o sufrágio universal podendo votar e ter direitos. Ou acharão exatamente o que acharam do governo – entre muitas aspas comunistão – de João Goulart pré-ditadura.

Elas não acharão nada. O preconceito e o atraso é todo de quem faz perguntas estúpidas. Não delas.

Abaixo o PL 504!