Apresentação
Inés Zeta é fundadora do movimento de mulheres Las Rojas, na Argentina. Esse texto escrito por ela há mais de dez anos é epocal, pois traz as perspectivas estratégicas para a luta feminista. Assim, a sua leitura se faz necessária para entender as tarefas do feminismo socialista no Brasil de Bolsonaro em meio à pandemia de covid-19, que traz à tona todas as contradições de um governo autoritário, do regime econômico ultraliberal e da decadente sociedade capitalista. 
Nesse momento da luta de classes, cada vez mais acirrada, que estamos presenciando em nível mundial, especialmente no Brasil com a luta por vacinas para todos, por auxílio emergencial já e pelo impeachment de Bolsonaro, se faz necessária uma leitura que combine o importante papel que as mulheres têm na luta contra esse governo neofascista, associada a uma retrospectiva histórica sobre a importância das mulheres e do seu levante em momentos decisivos da luta de classes. 
Esse é um texto que demonstra historicamente que a luta feminista é correlata à luta da classe operária contra o capitalismo e que em muitos casos, desde as lutas operárias do século XIX, o movimento de mulheres se antecipa ao conjunto da classe trabalhadora. Desta forma, as lutas das trabalhadoras acabaram por serem co-fundadoras, em seus primeiros momentos, de critérios fundamentais para a luta de classes e para a emancipação socialista que, em suma, é o critério da independência de classe.
No século XX com a primeira guerra mundial, e parte das sufragistas apoiando a guerra Inter imperialista, abre-se uma grande cisão de classes no movimento feminista que perdura até hoje. No entanto, as mulheres tiveram papel protagonista em todas as revoluções, vitoriosas ou não, socialistas ou de independência nacional, do século XX. 
As suas lutas nas ruas de forma independente continuam sendo, obviamente, fundamentais para a superação do patriarcado, como os movimentos “ele não”, “nenhuma a menos”, “me too” e a enorme vitória obtida pelo movimento feminista argentino com a legalização do aborto, mas também em conjunto a outros processos de lutas massivos e radicalizados como a rebelião da juventude chilena e a rebelião antirracista protagonizada pelo movimento estadunidense “vidas negras importam”. Demonstrando assim de forma incontornável que o feminismo tem nas ruas o elemento fundamental das grandes conquistas políticas e teóricas. 
O mais recente protagonismo do movimento de mulheres não reafirma apenas o importante papel das mulheres na luta de classes de forma geral, mas também a necessidade da sua aliança com os oprimidos e explorados, e com um programa anticapitalista para que se possa continuar avançando na luta antipatriarcal.
Esses são ensinamentos que vem das socialistas revolucionárias desde o século XIX e que nos movimentos atuais das mulheres vem sendo reafirmados e ganhado novos contornos e desdobramentos que devem ser incorporados. Se sem a teoria revolucionária não há movimento revolucionário, também é verdade que é com os movimentos mais avançados das oprimidas e exploradas aprendemos as lições mais importantes deste século, lições que devem ser incorporadas no cabedal teórico e político da luta socialista.

Redação

Patriarcado, Luta de Mulheres e Luta de Classes

Breve história da luta feminista e sua relação com o socialismo e o movimento operário*

INÉS ZETA

Toda a história do feminismo tem sido marcada pelo impulso da luta política feminina nas ruas, rebeliões, guerras e revoluções, assim como por derrotas, acompanhando os altos e baixos da luta de classes em geral. O ritmo da luta de classes é dado pelo confronto entre burguesia e proletariado, com suas variações na relação de forças entre estas duas classes, mas também em tempos de avanço burguês, a burguesia descarrega sobre a família, e consequentemente sobre as mulheres, toda a brutalidade da qual é capaz. Ao mesmo tempo, a energia liberada nas conquistas do proletariado permite uma situação melhor para as mulheres. Por outro lado, as mulheres constituem um setor que, ao adotar o programa revolucionário, é capaz de questionar o patriarcado, um dos pilares da estrutura social capitalista. Este fato é desconhecido ou diretamente ignorado pelo feminismo acadêmico, que sempre apresenta os avanços e contratempos do movimento feminino como fatos isolados.

Desde a chegada da burguesia ao poder, com o processo de conformação do capitalismo, podemos considerar quatro grandes etapas históricas da luta da mulher por sua emancipação. Faremos um esboço breve destas etapas, uma vez que elas estão além do escopo deste artigo.

Uma primeira etapa que vai da Revolução Francesa à Comuna de Paris, na qual encontramos as pioneiras do feminismo, como a escritora inglesa Mary Wollstonecraft que escreveu a “Vindicação dos Direitos da Mulher”, onde ela explicou que as mulheres estão em condição de inferioridade na sociedade devido à educação sexista que recebem, identificando a socialização como a origem do atraso da mulher e questionando a suposta origem natural da diferença sexual. Podemos também mencionar Olympia de Gouges, uma camponesa analfabeta na época da Revolução Francesa que emigrou para Paris e se juntou aos revolucionários, tornou-se escritora e depois de escrever os “Direitos das mulheres e dos cidadãos”, foi guilhotinada em 1793.

Mais tarde, no período das primeiras revoluções verdadeiramente operárias em meados do século XIX, Flora Tristan se destacou. Ela fundou o Sindicato dos Trabalhadores e dedicou sua vida à militância revolucionária, organizando mulheres e homens trabalhadores às portas de oficinas e fábricas, imprimindo seu panfleto “O Sindicato dos Trabalhadores” e realizando comícios. Mesmo antes do aparecimento do Manifesto Comunista de Marx e Engels, Flora salientou que “a emancipação dos trabalhadores será o trabalho dos próprios trabalhadores e a emancipação das mulheres será o trabalho das mulheres”.

Ao mesmo tempo, a Convenção Seneca Falls (Nova Iorque) foi realizada nos Estados Unidos, organizada pelas mulheres que fundaram o chamado movimento sufragista. Este movimento percorreu diferentes cidades daquele país e da Europa, organizando as mulheres para o direito de voto, para o direito ao divórcio e para conquistar condições de igualdade. Caracterizou-se por seus manifestos, mobilizações e boicotes de eventos eleitorais, muitos dos quais terminaram com as mulheres presas.

Outro grande exemplo foi dado pelas mulheres da Comuna de Paris (1871). Alguns deles, como Louise Michel, deram vida ao “Clube dos Amigos da Revolução”. Michel liderou um batalhão de mulheres, que foi abatido junto com as outras comunas. Ela conseguiu escapar, mas foi presa e depois deportada para a Nova Caledônia (Oceania). Ela foi a primeira a hastear a bandeira negra, que viria a se tornar o símbolo do anarquismo. Ao retornar a Paris, ela foi aclamada pelo povo e continuou seu trabalho militante pela emancipação dos trabalhadores e das mulheres, passando grande parte de sua vida na prisão.

Todo este período foi caracterizado pela revolução burguesa, com a ascensão definitiva da burguesia ao poder e, mais tarde, com as revoltas incipientes dos trabalhadores, quando pela primeira vez a classe trabalhadora começou a tomar consciência de sua condição de explorada. Através deste longo processo, as mulheres não só estiveram presentes nas rebeliões, revoluções e revoltas populares, mas também lutaram por seus próprios direitos. Neste período, o movimento feminino concentrou-se em denunciar a inferioridade em relação aos homens e em alcançar conquistas formais de igualdade. A batalha ideológica concentrou-se em demonstrar a origem não natural da opressão, em questionar o status de segunda classe das mulheres e, no caso dos socialistas e anarquistas, em organizar as trabalhadoras para se juntarem aos movimentos de insurreição.

O segundo grande ciclo que marcamos é o da Revolução e da Contra-Revolução do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O movimento sufragista e o movimento socialista de mulheres convergiram na luta pelos direitos democráticos, para obter conquistas formais, mas diferiram no sentido de que as socialistas também faziam parte das organizações que lutaram pela revolução operária. Devemos mencionar a notável militante da social-democracia alemã Clara Zetkin, que organizou a primeira seção feminina da Internacional Comunista e publicou o jornal “Igualdade”, que chegou a uma tiragem de 100.000 exemplares. Em 1910 a Conferência Internacional da Mulher Socialista, reunida em Copenhague, proclamou o dia 8 de março como Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, na proposta da Zetkin. Na Argentina podemos mencionar a grande atividade das mulheres socialistas, comunistas e anarquistas, das quais temos o jornal “La Voz de la Mujer. Ni Dios ni Patron, ni Marido”, publicado em 1896 e 1897 em vários idiomas pelas trabalhadoras que enfrentaram os patrões e padres.

Mas a Primeira Guerra Mundial dividiu as águas, não apenas dentro do movimento socialista da época, mas também entre as organizações de mulheres. Enquanto as sufragistas burguesas se mantinham em silêncio diante da guerra ou abertamente ao lado do nacionalismo, adotando posições de apoio às burguesias em guerra, as socialistas se declararam a favor do internacionalismo proletário, rejeitando a guerra imperialista e chamando a classe trabalhadora a se unir contra os patrões de todos os países. A Internacional de Mulheres se declarou contra a guerra já em 1904, e na Conferência de Paz Socialista da Basiléia (Suíça) de 1912 Clara Zetkin fez um lendário discurso antiguerra. As feministas burguesas se alinharam com suas “nações” e adotaram posições reacionárias de apoio a seus países na guerra. Por sua vez, a grande Rosa Luxemburgo, que passou mais da metade de sua vida na prisão e foi assassinada pela contra-revolução alemã, foi um exemplo de classismo, ao se enfrentar com nada menos do que com o poderoso aparato do Partido Social Democrata Alemão na famosa votação sobre os créditos de guerra. Enquanto o Partido se posicionou claramente ao lado da burguesia alemã, saltando no abismo da conciliação de classes, os Spartakistas, com Rosa e Karl Liebnek à frente, permaneceram íntegros em sua posição de confronto com a guerra inter-burguesa.

Extraordinário foi o papel das mulheres na Revolução Russa, com suas destacadas dirigentes como Alexandra Kollontai, que foram capazes de organizar reuniões sob as piores condições de repressão czarista. As trabalhadoras foram, segundo Leon Trotsky em sua “História da Revolução Russa”, as que deram o pontapé inicial da revolução de fevereiro de 1917. “23 de fevereiro foi o Dia Internacional da Mulher”. Os elementos social-democratas pretendiam celebrá-lo da maneira tradicional: com assembléias, discursos, manifestações, etc. Não passou pela cabeça de ninguém que o Dia da Mulher pudesse se tornar o primeiro dia da revolução. Nenhuma organização convocou uma greve nesse dia. (…) É evidente, então, que a Revolução de Fevereiro começou por baixo, superando a resistência das próprias organizações revolucionárias; com a particularidade de que esta iniciativa espontânea foi tomada pela parte mais oprimida e autoconsciente do proletariado: as trabalhadoras têxteis. (…) As manifestações de mulheres que incluíam apenas trabalhadoras foram em massa à Duma municipal pedindo pão. Era como pedir o impossível. Em diferentes partes da cidade, faixas vermelhas foram desfraldadas, cujas legendas testemunharam que os trabalhadores queriam pão, mas não queriam autocracia ou guerra. O Dia da Mulher passou com sucesso, com entusiasmo e sem vítimas. A noite já havia caído e ninguém ainda podia adivinhar o que estava nas entranhas deste dia que havia terminado.”

LEGENDA: As mobilizações de mulheres trabalhadoras que iniciaram a Revolução Russa

As conquistas que a Revolução de Outubro trouxe para as mulheres soviéticas foram tão abrangentes que superaram a imaginação até mesmo das feministas mais aguerridas. Todas as desigualdades formais foram varridas de uma só vez, ganhando o direito ao divórcio, o direito ao aborto, a proteção de crianças órfãs, o direito de ocupar cargos políticos, e assim por diante. Mas mais do que isso, a Revolução estava preocupada em combater as questões materiais e culturais que compõem a opressão da mulher. Por um lado, o programa de restaurantes, lavanderias e creches foi desenvolvido para aliviar o trabalho doméstico, iniciando na prática o programa de socialização das tarefas da vida cotidiana, transferindo-as para a esfera da produção social. Por outro lado, todos os tipos de iniciativas foram tomadas para elevar o nível cultural e fornecer ferramentas para a auto-emancipação das mulheres.

Essas vitórias foram varridas pela contra-revolução estalinista, o coveiro da revolução bolchevique. Em 1931, Stalin lançou uma série de decretos com o objetivo de trancar as mulheres de volta ao lar, retirando-as das fábricas e dos postos de comando no Estado, com base numa suposta abundância que teria trazido a “felicidade socialista”. Assim, o direito ao aborto e outros direitos que haviam sido conquistados foram proibidos, além de perseguir os homossexuais.

As mulheres da Guerra Civil Espanhola (1936) merecem um capítulo à parte. Elas desobedeceram à liderança estalinista que queria confiná-las à enfermaria e à cozinha, e deram exemplos inauditos de coragem ao empunhar espingardas na frente de batalha contra o franquismo, lado a lado com seus camaradas anarquistas e socialistas.

Esta etapa é flagrantemente silenciada na literatura feminista oficial, que apenas menciona o aparecimento de Simone de Beauvoir, como uma luminária solitária em um período sombrio. No entanto, argumentamos que foi um período caracterizado pela grande participação das mulheres em processos extraordinários de luta da classe trabalhadora.

Em terceiro lugar, houve a crescente maré de luta social e política nas décadas de 1960 e 1970, marcada pelo movimento anti-Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana, os movimentos anti-coloniais no Terceiro Mundo, o Maio Francês, o Cordobazo e o Tlatelolco, para mencionar os mais proeminentes. Como conseqüência da luta do movimento feminista, a legalização do aborto foi alcançada em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos entre 1960 e 1980. Mais uma vez, os debates dentro do movimento feminista caracterizaram os movimentos de luta. Uma seção importante do feminismo, como a famosa Juliet Mitchell, manteve a tese de que o movimento socialista omitiu a questão da emancipação da mulher porque estava “apenas” preocupado com a revolução proletária.

Mary Alice Waters, militante do Socialists Workers Party dos Estados Unidos, expôs solidamente os debates e as linhas divisórias dentro do movimento feminista da época que, digamos de passagem, constituem a linha divisória ideológica e política que percorre todo o movimento feminista até os dias de hoje. Citamos longamente Waters porque consideramos suas palavras de grande valor:

“Devo começar por afirmar o que considero ser a generalização mais importante a ser extraída da história do marxismo revolucionário em relação à luta contra a opressão da mulher. É isto: desde o início do movimento marxista até os dias de hoje, por quase 125 anos, os marxistas revolucionários têm travado uma luta implacável dentro do movimento da classe trabalhadora para determinar uma atitude revolucionária em relação à luta pela libertação da mulher. Eles lutaram para colocá-la em uma base histórica e material, e para educar toda a vanguarda para compreender a importância das lutas das mulheres pela plena igualdade e pela libertação da antiga degradação da escravidão doméstica. Esta luta sempre foi uma das linhas divisórias entre as correntes reformistas e revolucionárias da classe trabalhadora, entre aqueles comprometidos com uma perspectiva de luta de classes e aqueles que seguem a linha classista-colaboracionista. A opressão das mulheres e como lutar contra ela tem sido uma pedra de toque em cada ponto de conversão na história do movimento revolucionário. Nossos predecessores ideológicos e políticos, os revolucionários marxistas, tanto homens quanto mulheres, lutaram contra todos aqueles que se recusaram a inscrever a libertação das mulheres na bandeira do socialismo, ou aqueles que a apoiaram em palavras, mas se recusaram a lutar por ela na prática”.

Enquanto o chamado feminismo burguês manteve a luta pela emancipação da mulher e as lutas dos trabalhadores em esferas distintas, as feministas socialistas apontaram a estreita ligação entre a luta pela libertação da mulher e a luta da classe trabalhadora para mudar a sociedade em suas raízes. Por sua vez, o feminismo burguês cunhou a chamada teoria do teto de vidro. De acordo com esta metáfora, a sociedade impõe um limite cultural ao desenvolvimento da mulher, pelo qual é negado às mulheres o acesso a cargos importantes em instituições sociais e agências estatais. Uma fiel representante desta corrente foi Betty Friedan, que publicou “A Mística da Feminilidade” em 1963, onde ela explica que a luta das mulheres é concebida em termos de obtenção de igualdade. Neste ponto, a luta pela “igualdade” não apresentou nenhum questionamento sobre o funcionamento do próprio capitalismo. Friedan enfatizou a importância da luta pela reestruturação da paridade doméstica e familiar, econômica e trabalhista e a igualdade de acesso aos mais altos cargos em empresas, parlamentos e governos. Ou seja, tratar-se-ia da conquista da igualdade formal e da redistribuição de tarefas dentro do lar, o que não questiona em absoluto as bases materiais da opressão da mulher, pois não questiona o pilar sobre o qual se sustenta o patriarcado, que é a resolução de maneira privada das questões da vida cotidiana e, portanto, um dos pilares do sistema capitalista.

Em quarto lugar, com a queda do Muro de Berlim e o chamado socialismo real, abriu-se uma etapa de profunda reação, onde foi imposto o “fim da história”, das grandes narrativas, das ideologias e dos sujeitos. As teorias pós-modernas assumiram que o capitalismo havia conseguido demonstrar sua absoluta superioridade como um sistema que, embora problemático, seria o único capaz de organizar a sociedade humana. As versões de esquerda das teorias pós-modernas são pós-marxismo e pós-feminismo.

A irrupção dos movimentos sociais junto com o movimento anti-globalização e as rebeliões populares na América Latina puseram em questão todo o falatório sobre o fim da história. Na Argentina, a incorporação de milhares de mulheres dos movimentos de trabalhadores desempregados deu nova vida aos Encontros Nacionais de Mulheres, que haviam sido reduzidos a fóruns de opinião.

A enorme crise capitalista global que começou em 2008, com a reedição dos golpes na América Latina (Honduras), dará novos capítulos na luta das mulheres. A lenta mas obstinada recomposição do movimento operário certamente trará exemplos emocionantes e heróicos da capacidade de resistência e luta dos trabalhadores. Neste contexto, também o movimento feminino, embora ainda muito atrasado em sua recomposição, produziu uma nova camada de jovens lutadoras, ainda muito atomizadas e desorganizadas, mas vamos vê-las travar grandes batalhas. É nisso que estamos apostando.

O Feminismo politicamente correto

O feminismo nas décadas de 60 e 70 do século XX foi novamente atravessado pelos debates entre as correntes que questionavam o papel atribuído às mulheres, mas não questionavam o status quo capitalista, e aquelas que empunhavam a luta socialista.

A teoria feminista, com seus debates e suas diferentes correntes internas, foi alimentada pela luta viva das mulheres. Com cada novo impulso e cada nova conquista, o movimento passou da luta política para a teoria. Os teóricos acadêmicos, por sua vez, eram ativistas proeminentes dos direitos das mulheres, socialistas, anarquistas, ativistas antiguerra, sindicalistas e um longo etc. As mulheres que lutavam nas ruas também eram teóricas, numa tradição que só foi quebrada nos anos 1980.

Nos anos 80 do século XX e com a queda do chamado socialismo real, ocorreu uma mudança muito significativa na relação entre a teoria feminista e o movimento pela luta das mulheres e pelos direitos dos gays e lésbicas. Como já dissemos, o fim da história e das grandes narrativas trouxe consigo a crise dos velhos movimentos, e o feminismo não foi exceção.

Herdeiras do feminismo do clássico status quo capitalista, elas são as feministas institucionais de hoje. O feminismo da igualdade tinha cunhado a teoria do “teto de vidro”, que não questiona o sistema capitalista e segundo a qual existe um certo limite invisível, mas real, que impede que as mulheres estejam em pé de igualdade com os homens. Varrer esse limite ampliaria os direitos das mulheres na sociedade, acabando com o patriarcado, já que nesta posição o patriarcado é definido como a distribuição desigual do poder entre homens e mulheres. A luta feminista seria orientada para a conquista de posições de poder dentro do esquema capitalista. O objetivo seria que mais mulheres se tornassem presidentes, deputadas, juízes e gerentes de grandes empresas multinacionais. Estas posições foram e são profundamente capitalistas e não vêem nenhuma ligação entre a luta das mulheres e a luta dos oprimidos e explorados.

As versões mais atuais desta corrente propõem a radicalização da democracia como um objetivo. Amelia Valcárcel diz: “No que diz respeito às sociedades políticas dentro da mesma estrutura de globalização, é evidente que as oportunidades e liberdades das mulheres aumentam quando as liberdades gerais são garantidas e um Estado previdente garante mínimos adequados. O feminismo, que é na origem um democratismo, depende do fortalecimento das democracias para atingir seus objetivos. Embora em situações extremas a participação ativa de algumas mulheres em conflitos civis pareça fazê-las avançar posições, a verdade é que estas só se consolidam em situações livres e estáveis”.

Ou seja, o grande objetivo do feminismo é aprofundar a democracia burguesa, evitando conflitos, impedindo que as mulheres participem da luta de classes. No mínimo, este conselho é inútil, porque a virulência do sistema que não poupa golpes, como no caso de Honduras, e cuja “estabilidade” é pelo menos uma pura história de TV, torna inevitáveis os conflitos “civis”.

E acrescenta: “Da mesma forma, a presença e visibilidade das mulheres nas organizações internacionais deve ser aumentada, assim como a capacidade de ação dos próprios organismos internacionais de mulheres, sejam eles partidarizados ou fóruns gerais. As experiências em conferências, declarações e fóruns internacionais indicam a vontade de estar presente no complexo processo de globalização, assim como a capacidade de estabelecer objetivos éticos, políticos e populacionais gerais. Por outro lado, a presença do feminismo nas mesmas instituições internacionais também garante que os programas de ajuda sejam sensíveis às questões de gênero e eficazes. Em uma época em que os estados nacionais não são mais a estrutura apropriada para resolver muitos dos problemas, porque estes problemas são colocados em nível global além de sua capacidade de ação individual, contribuindo para a capacitação, melhoria e empoderamento das instituições internacionais contribui para a causa geral da liberdade da mulher.”

Com o retrocesso geral dos anos 80, o feminismo clássico refugiou-se nas universidades no calor da criação de departamentos de multiculturalidade, estudos de mulheres e estudos queer e na ausência que reinava nas ruas. Pela primeira vez, a teoria emerge de uma academia que tem pouca relação com a luta nas ruas. O feminismo clássico sofre a cooptação das referências do antigo movimento feminista pelos Estados e agências de empréstimo internacionais, através de ONGs européias e norte-americanas. A Cúpula de Pequim (1995) marca uma ruptura. A questão de gênero ou da mulher passou a fazer parte da agenda do imperialismo e dos Estados burgueses, que destinaram milhões de dólares para estudos acadêmicos e para promover programas de “desenvolvimento” para as mulheres nos países pobres. O conceito de “empoderamento” colore toda a linguagem do novo feminismo. Este é um conceito atroz, que se baseia no desespero de milhões de mulheres mergulhadas na miséria capitalista, e assume que, ao dar-lhes ferramentas para desenvolver empreendimentos produtivos insignificantes, elas sairão da pobreza. O imperialismo adotou a política de “empoderar” as mulheres pobres para apoiar um dos pilares fundamentais do capitalismo, que é a família patriarcal burguesa. Diante do desemprego em massa e da precariedade da vida, as mulheres dos setores mais pobres são as que poderiam unir a família para salvá-la da hecatombe. Desta forma, o suposto empoderamento nada mais é do que um novo elo na longa cadeia de opressão feminina. A cruzada cristã para resgatar a família tradicional de sua crise se sobrepõe aos esforços das agências de financiamento e da ideologia a serviço do capitalismo – mais uma vez. E a contribuição das chamadas feministas “institucionais” de hoje foi fundamental a este respeito. As consequências políticas foram tremendas, pois desarmaram o movimento feminino, já pequeno em todo o mundo, reduzindo-o um punhado de funcionárias públicas ocupadas em percorrer os corredores dos parlamentos, agências de crédito e escritórios imperialistas para obter subsídios e benefícios, com suas bolsas Louis Vuitton em um braço e seus ingressos para conferências internacionais, monografias e livros sobre “empoderamento” no outro. Foram eles que comemoraram quando o fascista Bush Jr. nomeou a não menos fascista Condoleezza Rice como Secretária de Estado.

Este feminismo também é caracterizado pelo sectarismo com respeito aos movimentos que lutam pelos direitos dos gays, lésbicas, travestis, etc. Muitas feministas concluem da teoria do par sexo/gênero a conclusão de que a heteronormatividade é apenas um ornamento que pode ser ignorado e que, ao contrário, ofusca a luta feminista. A batalha das lésbicas organizadas para ter suas reivindicações específicas incluídas dentro das exigências das mulheres ainda está em curso. Ou como ouvimos uma vez, a luta dos gays não é uma preocupação do movimento feminista, porque os gays são homens e fazem parte do “coletivo masculino que oprime o coletivo feminino.

* Trecho do artigo Feminismo e Teoria do Queer publicado originalmente em http://izquierdaweb.com/patriarcado-lucha-de-mujeres-y-lucha-de-clases/

Tradução: Timeni Andrade