A transcrição da entrevista com o professor Ewald Vasilyevich Ilyenkhov vai tratar do tema do talento e se essa é ou não uma característica inata da humanidade. O professor e filósofo soviético apresenta a sua hipótese de que o talento é algo que pode se desenvolver em todo e qualquer ser humano, desde que este cresça em uma sociedade e um sistema educacional que o permita desenvolver o pensamento, a percepção para a beleza e uma bússola moral interna – e como só uma sociedade comunista permitiria que tal sistema educacional fosse desenvolvido. Em última instância, será discutido o direito ao pleno desenvolvimento das capacidades humanas e como certas concepções equivocadas, provenientes do senso comum que se desenvolve na sociedade capitalista (invertida ou fetichizada), podem impedir que isso aconteça: a realização do “ser social” do qual falava Marx. 

Redação

«Luces de Alatau», 15 de novembro de 1977

[…] Hoje conversamos com o professor Ewald Vasilyevich Ilyenkov, conhecido filósofo soviético, sobre o problema da criatividade e da formação de habilidades.

Évald Vasilyevich, o comunismo implica relações sociais adequadas à natureza criativa e universal do homem, circunstâncias sociais sob as quais todos se realizam sua personalidade através do trabalho criativo. Mas o trabalho criativo exige talento. Será que todo mundo pode ter talento?

Há teorias segundo as quais apenas cinco ou seis por cento das pessoas no mundo “nascidas sob o sol” têm talento real. O restante é uma massa cinzenta e sem rosto, cujo destino é um emprego mecânico e igualmente cinzento. Não há nada do que reclamar. Não é difícil perceber que toda essa “lógica” sustenta a existência da desigualdade social, a estrutura social estabelecida na qual a maioria das pessoas se contenta em ganhar dinheiro suficiente para um pedaço de pão e um teto sobre a cabeça, sem pensar em “coisas mais elevadas”, como criatividade ou autorrealização. Aqueles que têm tempo para pensar sobre isso estão entre os “escolhidos”.

Essa desculpa para a desigualdade social é supostamente apoiada pelas evidências científicas da estatística, da genética e da fisiologia da atividade nervosa superior e se torna uma superstição de tipo científico, que permeia a consciência das pessoas comuns, que acreditam firmemente no talento inato.

 

Mas há certas inclinações…

Ninguém diz que não existem inclinações naturais. Mas a que elas se resumem? À presença de boa saúde física, um cérebro normal, um organismo normal. No entanto, as tentativas de encontrar inclinações especiais… uma pessoa é predeterminada por seu cérebro, se diz, por exemplo, para ser músico; outra, a ser filósofo; e a terceira, a ser costureira ou dona de casa. Lamento dizer que essa é uma hipótese duvidosa e já arcaica, que realmente interfere em nosso trabalho de educação e criação. Um professor preguiçoso atribui, na maioria das vezes, seus pecados e inépcias à incapacidade natural.

Uma pessoa a quem a sociedade atribuiu a tarefa de ensinar matemática e pensamento matemático a seus alunos se considera inadequada e começa a reclamar que, de fato, seus alunos são naturalmente desajeitados.

Não existem pessoas naturalmente incapazes. Todos podem dominar o pensamento matemático, a arte e a filosofia. Por exemplo, a capacidade de andar sobre duas pernas. Essa maneira de se movimentar não é natural e é até biologicamente prejudicial. Se uma criança for deixada sozinha, ela nunca ficará de pé por conta própria. Toda mãe sabe que a criança precisa ser ensinada a andar sobre duas pernas, assim como, mais tarde, a falar, a ler. Todas as habilidades especialmente humanas, desde a postura ereta até o ápice do pensamento, são dominadas no decorrer da vida – não são inatas.

 

E, no entanto, é difícil concordar totalmente com essa posição, abandonar a visão padrão das habilidades inatas.

É difícil porque o processo de formação da personalidade começa, podemos dizer, desde o primeiro dia de nascimento. Em Leningrado, antes da guerra, foi aberto o chamado Laboratório de Desenvolvimento Normal. Muitos bebês órfãos abandonados por suas mães foram criados lá. Naquela época, o chefe do laboratório só recebia recém-nascidos, achando que, após três semanas, a pessoa já estava formada, o que significaria que era preciso refazê-la – o que é cem vezes mais difícil.

A pessoa entra na vida imediatamente como um ponto em que bilhões de fatores interligados se juntam, o que acontece na maioria das vezes de forma espontânea, de acordo com os estereótipos estabelecidos em uma determinada cultura. Até agora, o ensino de habilidades foi deixado ao acaso e não se desenvolveu de fato em todos, exceto por alguma feliz coincidência. Muitas vezes nem sabemos de onde vem essa habilidade e, portanto, não somos capazes de cultivar essas habilidades de propósito.

Crie um sistema pedagógico organizado de forma inteligente e você não terá que justificar sua própria negligência por incapacidade natural. No mesmo laboratório em Leningrado, houve uma cerimônia de graduação aos três anos de idade. As crianças mostraram o quanto são inteligentes.

 

Somos todos igualmente capazes, por exemplo, de compor música? Todos podem se tornar Beethoven?

Em minha opinião, é ridículo procurar o motivo que levou Beethoven a ser Beethoven em algum dispositivo anatômico-fisiológico especial. Porque, por mais que os fisiologistas tentem descobrir essas características que fazem de uma pessoa um músico e de outra um matemático, eles não chegam a nenhuma conclusão, apenas estabelecem uma pequena diferença no ritmo das reações nervosas.

Esse é o caso do ouvido absoluto. Para o músico, esse conceito não tem nenhum significado especial. Nem Tchaikovsky nem Wagner tinham ouvido absoluto. Wagner – sem dúvida um grande músico – tinha uma memória musical bastante ruim, como ele mesmo disse. Ele não conseguia se lembrar nem reproduzir trechos de suas próprias óperas. Mas todos os vietnamitas têm o ouvido perfeito, no qual o tom e os agudos desempenham um papel muito importante em um idioma. Se uma criança não desenvolver a capacidade de distinguir o tom desde o início, ela não entenderá seu idioma nativo.

Para um grande músico, é muito mais importante ter uma atitude moral, uma atitude moral em relação ao mundo e às pessoas. Isso afeta muito mais o resultado, se a pessoa se tornará um grande músico ou apenas um artesão da música.

Veja o caso de Alyosha Panov. Sim, aquele garoto moscovita que, com facilidade, com alegria, pode escolher qualquer peça ouvida – sinfônica, variada, vocal – sobre a qual ele mesmo compõe e improvisa livre e facilmente. Um fenômeno único que beira o milagroso. Suas profundas habilidades musicais não se baseiam nas peculiaridades de seu ouvido, mas no significado pessoal da música para Alyosha. Seu pai conseguiu, como se pode ver, transformar a música na linguagem mais compreensível para se counicar com as pessoas que ele ama, com ele e, principalmente, com o pai dele.

A escola de música central está interessada nas habilidades fenomenais de Alyosha. O melhor professor é escolhido. Eles começam a ensiná-lo o que ele está acostumado: técnica de teclado. Mas a criança não está interessada. A técnica é algo secundário e acidental para ele. Ele mesmo inventa a técnica. Ele tem uma mão pequena. Não consegue tocar uma oitava ou uma terceira. Ele usará o cotovelo ou jogará o braço rapidamente enquanto aumenta sua percepção. O professor luta e luta, mas não consegue fazer nada com ele. Não faz sentido dotar Alyosha com essa técnica ainda, ele a adquirirá mais tarde. É verdade que o destino de Alyosha para o futuro está em aberto, é desconhecido. Se não entendermos o que e como ensiná-lo, aos doze anos de idade suas habilidades podem estagnar e nenhum músico se formará dentro dele.

 

O que você acha da experiência da Escola de Matemática de Novosibirsk, onde crianças superdotadas são reunidas?

Sou muito cético com relação a todo esse trabalho. Trata-se de concentrar-se no que, de alguma forma, aconteceu por acidente, em vez de moldar as habilidades de alguém. Há necessidade de um ambiente de especialização precoce? A experiência de Novosibirsk, até onde sei, não funcionou. Depois de 5 a 6 anos, essas escolas estavam no mesmo nível, no nível geral.

O experimento de Zagorsky, que teve um impacto mundial, finalmente me convenceu de que as habilidades e o talento podem ser desenvolvidos em todos. Com certeza você conhece a essência do experimento, que permite rastrear os principais estágios da formação da personalidade humana, da consciência, da autoconsciência, da vontade, da estrutura emocional e dos princípios morais, como em um filme em câmera lenta. Há mais de dez anos, crianças cegas e surdocegas estão crescendo em um orfanato em Zagorsk. Não, essa não é apenas uma solução humanística para um problema estritamente defectológico. O experimento é importante, volto a enfatizar, para compreender a formação da personalidade humana em geral. Biologicamente, são as mesmas crianças, mas sua psique é consciente e deliberadamente baseada no conceito marxista de homem, moldado e esculpido por um mestre.

Quatro deles acabaram de se formar no Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Moscou. Eles cresceram diante de meus olhos. Vi como os professores realizaram o milagre do nascimento da alma e da formação de talentos. Esses são fatos surpreendentes. Aqueles que estavam isolados do mundo por um muro impenetrável de surdez, que não tinham mentalidade nem autoconsciência, tornaram-se pessoas altamente cultas e talentosas, com uma visão teórica aguçada, dominaram as alturas da cultura mundial e viram o mundo ao redor com os olhos da humanidade. Sasha Suvorov escreve trabalhos científicos sobre o problema da imaginação criativa, compõe poemas e não se sai nada mal. Seryozha Sirotkin pesquisa o papel da linguagem e da fala no desenvolvimento da psique humana. Natasha Korneeva trabalha com o difícil tema da formação moral da personalidade. Yura Lerner gosta de escultura. Ela criou um retrato escultural de seu querido professor e amigo em comum Alexander Meshcheryakov, que faleceu recentemente.

 

Evald Vasilyevich, é possível dizer que o processo de formação da personalidade das crianças é um enriquecimento mútuo e o estímulo para o desenvolvimento do talento, quero dizer, entre aluno e professor?

É claro, é claro. O educador também precisa ser educado, como disse Karl Marx. Tanto Meshcheryakov quanto eu e muitos outros aprendemos muito nesse processo de treinamento de crianças surdocegas. Considero isso a maior felicidade, porque, como filósofo, trabalhar com crianças me deu infinitamente mais do que eu poderia dar a elas. Pude ler muitas coisas de Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant e Marx com novos olhos.

Em particular, com o grande problema filosófico “O que é o pensamento como uma faculdade humana?” Faça uma pergunta aparentemente tão simples a qualquer pessoa que você conheça, mesmo um acadêmico de filosofia e psicologia… e eu teria achado difícil responder antes de conhecê-los. Depois deste trabalho, estou convencido, com base nos fatos: trata-se da capacidade de um corpo humano de agir e se comportar com corpos no mundo externo de acordo com sua própria lógica. Toda criança, e não apenas a surdocega, torna-se um ser pensante quando aprende a interagir com objetos criados pelo homem para o homem: uma colher, um prato, um brinquedo, um cobertor etc. Quando assimila esse mundo e começa a se relacionar com ele, a criança se torna um ser pensante. Quando ele assimila esse mundo e começa a agir de forma humana, ele obtém o que chamamos de pensamento humano, mentalidade.

 

Você fala sobre o nascimento do talento. Mas os surdocegos, que parecem ter sido criados nas mesmas condições, desenvolveram um tipo especial de funcionamento mental, uma orientação criativa própria, não é mesmo?

Você nunca encontrará o mesmo sistema de microcondições que formam uma personalidade tanto para cegos quanto para pessoas com visão. As pessoas costumam perguntar: meus filhos são gêmeos, foram criados na mesma família e são muito diferentes. Mas o fato é que uma criança pequena, diferentemente de você e de mim, não tem discernimento para distinguir o importante do insignificante. É importante até mesmo a posição de suas camas no quarto em relação à luz do sol.

Recentemente, psicólogos da Alemanha Ocidental realizaram um experimento desse tipo: a observação de gêmeos, para os quais eles tentaram criar condições idênticas. As reações dos gêmeos às mesmas coisas eram idênticas até certo ponto. E então, de repente, houve uma forte divergência. O que está acontecendo? Acontece que, no dia anterior, uma das crianças havia recebido um carinho na cabeça e a outra, uma palmada.

 

Se o papel do acaso é tão grande, então o problema da formação de habilidades se torna ainda mais difícil.

O acidente deve ser incluído no entendimento da necessidade. As diferenças explicadas pelo acaso sempre permanecerão. Mas a formação de habilidades gerais, como a capacidade de pensar, a capacidade de compreender a beleza e de tratar as pessoas com gentileza, não depende mais do acaso, mas do sistema de educação infantil. Afinal de contas, a tarefa não é determinar no berço quais habilidades o bebê deve formar, sejam elas musicais ou filosóficas. A tarefa é transformá-lo em uma pessoa inteligente e gentil que compreenda a beleza da pessoa. O problema do desenvolvimento integral do indivíduo é o seguinte: todas essas habilidades, propriedades universais: a mente, o senso de beleza e imaginação, a bondade devem estar em todos.

A transformação comunista das relações sociais é a criação de tais condições sociais, de tal sistema de criação e educação, no qual cada criança crescerá principalmente como pessoa e não como mecânico, torneiro ou filósofo.

 

Então a universalidade e a totalidade do desenvolvimento não são entendidas como a possibilidade de mudar as formas de atividade, como o domínio de muitas especialidades?

É claro que não. Não é possível dominar todas as especializações. Mas a sociedade é obrigada a desenvolver a capacidade de pensar, de compreender a beleza e de ser gentil com as pessoas. E se uma pessoa se desenvolver de maneira holística, ela será talentosa e sua individualidade criativa florescerá. Afinal de contas, o talento não é um desvio da norma, mas, ao contrário, é o estágio mais elevado do desenvolvimento da personalidade e, nesse sentido, a norma.

 

Mas sabemos que a inteligência e a moralidade geralmente se desenvolvem às custas uma da outra. Uma pessoa talentosa pode ser desonesta, sem princípios. A falta de escrúpulos e a feiura moral às vezes colocam o talento em conflito com o talento.

Sim, de fato, e há muitos exemplos. A capacidade de navegar habilmente pelas situações, extraindo o máximo de benefícios para si mesmo e atropelando impiedosamente os interesses dos outros é algo terrível. Mas o mesmo quadro triste é produzido quando um homem é bom e moral, mas teoricamente analfabeto, incapaz de oferecer sua bondade para o benefício das pessoas.

Quem é melhor, o príncipe Míchkin[1] de Dostoiévski, com uma bondade sublime, mas impotente, ou Smerdyakov[2], que levou a vida com inteligência, prudência e precisão, mas chegou a tal grau de aversão a si mesmo que acabou se enforcando? Ambos são ruins.

O desenvolvimento unilateral do homem – seja uma mente sóbria, mas imoral, ou uma bondade imprudente e impensada – traz em si um perigo.

Como educamos as pessoas para que não se tornem um cordeiro sacrificial, cuja bondade é frequentemente usada em nome do mal, ou um canalha calculista e astuto, para quem a moralidade é apenas um som vazio?

 

Mas uma pessoa calculista e imoral pode ser bem sucedida, não pode?

Exatamente. A sociedade burguesa e a cultura burguesa se baseiam nisso: alcançar o sucesso, por todos os meios, às custas do outro, às custas de sua humilhação, opressão. Esse sempre foi o caso, em todas as formações antagônicas. É isso que estamos superando.

 

Falando de desenvolvimento integral, você também mencionou a formação da capacidade de beleza, a percepção estética do mundo.

Desde o início, a educação de um jovem deve ter não apenas uma pessoa inteligente, mas também um instrutor que entenda de arte. A arte forma não apenas a capacidade de entender outras obras de arte, mas a sensibilidade humana universal, a capacidade de ver e perceber o mundo com os olhos desenvolvidos por toda a humanidade, de toda a cultura. E essa habilidade é importante em todos os campos de atividade, sem exceção.

 

Muitos estão inclinados a acreditar que é melhor ser um “físico” do que um “compositor” em nosso tempo.

Essa atitude aponta diretamente para a ideia de que a moralidade e a arte são apenas conversa. É necessário [educar] um homem calculista que não desperdice seus preciosos momentos com sentimentos vazios. Essa atitude vem de uma visão mecanicista da mente, por não entender que um intelecto realmente grande está associado a um desenvolvimento igualmente elevado do senso moral e da capacidade de perceber a verdadeira beleza. A verdadeira inteligência é sempre moral, sempre baseada em um sentimento humano genuíno.

Portanto, a afirmação de alguns intérpretes sobre as conquistas da cibernética de que é possível criar uma inteligência artificial incomensuravelmente superior às habilidades humanas é ingênua e impotente. É possível falar da capacidade dos computadores de pensar apenas em um sentido determinístico e condicional.

É importante entender que as capacidades universais – pensamento, percepção da beleza e da bondade – não estão apenas conectadas externamente, mas são profundamente definidas internamente. Se você equipar um homem com o pensamento de acordo com os cânones da lógica matemática, mas não o fizer pensar sobre a diferença entre o bem e o mal, ele terá uma mente defeituosa. O mesmo pode ser dito sobre o desenvolvimento das capacidades morais e estéticas. Somente a harmonia da razão, da bondade e da beleza cria uma pessoa inteira e completa. Isso só é possível quando o sistema de relações humanas é organizado de forma comunista. Somente aquele que, provavelmente, alcançou um padrão em seu desenvolvimento, ou seja, o estágio de talento, pode ser verdadeiramente feliz. O que é felicidade? Ampliar e alargar seus horizontes, sua comunicação com a natureza, com outras pessoas a cada minuto, a cada hora, a cada ano. Tornar o mundo mais rico e mais interessante para você…

Entramos em uma era em que as relações sociais socialistas estão sendo gradualmente transformadas em relações comunistas. Nosso amanhã começa agora, hoje. Cada um de nós pode e deve exercer o direito de escolher uma profissão e trabalhar de acordo com sua vocação. O direito à autoafirmação, à criatividade.

A entrevista foi conduzida por G. SOLOVYEVA, candidata a Ciências Filosóficas, no ano de 1997.

O texto é proveniente de um repositório gerenciado por Andrey Maidansky.

Tradução por Mariah Martins, da versão em espanhol “El derecho a la creatividad”

Referências 

[1] Protagonista da peça “O Idiota” (Nota do Tradutor)

[2] Protagonista da peça “Os Irmãos Karamazov” (Nota do Tradutor)