A seguir, faremos uma espécie de “atualização” de um ensaio escrito em novembro de 2022, “O Brasil depois de Bolsonaro. Notas sobre uma “sociologia política“, sobre uma série de traços “sociológicos” do Brasil, um ensaio que não teve – e não tem – uma pretensão de sistematicidade, mas, basicamente, de dar a conhecer algo “intuitivamente” – analisando – uma série de traços que caracterizam a formação social e a dinâmica política do gigante latino-americano. Tendo estado no Brasil recentemente, não quis deixar passar esta visita sem me referir às impressões geradas nesta passagem sobre o contraste deste ensaio feito anos atrás, como um enriquecimento, embora sem alterar nada da substância do texto original. Assim, faremos uma atualização da bibliografia da nota original, bem como uma espécie de pós-escrito com as novidades políticas e uma série de ajustes no texto, que, dessa forma, será transformado em certa medida em um ensaio “original”.
ROBERTO SÁENZ (São Paulo, Buenos Aires, novembro de 2022/junho de 2025)
Nos dias 31 de março e 1º de abril, os entregadores de plataformas realizaram uma nova greve nacional: o “Breque dos APPs” (Breque é uma forma coloquial de se referir a uma greve no Brasil). Tal como em 2020, 2021, 2022 e 2023 (…) majoritariamente motociclistas, mas também ciclistas (…), voltaram a sair à rua para exigir melhores condições de trabalho (…) foi a maior greve que a categoria de entregadores realizou no país (…) “uma das principais forças organizadas da classe trabalhadora brasileira””
(“Um ataque histórico”, Renato Assad, 04/12/25, Esquerda Web)
Raúl Zavaleta Mercado, o grande sociólogo boliviano da segunda metade do século passado, afirmava uma questão simples, mas profunda: que as sociedades se mostram abertamente quando ocorrem os grandes eventos da luta de classes. E a recente eleição no Brasil [estamos nos referindo às eleições de outubro de 2022, onde Lula venceu Bolsonaro no segundo turno por apenas 1%] foi um daqueles grandes eventos que nos permitem ainda apreciar intuitivamente algumas de suas tendências, de suas grandes “linhas de tensão”.[1]
Assim, a seguir, interessa-nos desenvolver algumas notas do que poderíamos chamar de uma espécie de “sociologia política” do Brasil contemporâneo. Isso é uma tentativa de explicar, dar algumas pinceladas para entender os desenvolvimentos políticos e sociais naquele país; compreendê-los mais profundamente.
Essa tarefa agora é, de certa forma, “facilitada” pela derrota eleitoral histórica de Bolsonaro. [Na realidade, a derrota eleitoral de Bolsonaro foi muito importante, mas, não “histórica” pelo que este ensaio aponta, porque a extrema direita veio ao Brasil para ficar, independentemente de o candidato do espaço para as eleições presidenciais de 2026 ser Bolsonaro ou Tarcisio de Freitas, atual governador do Estado de São Paulo, um pouco mais “moderado”, mas igualmente de extrema direita.] Uma derrota eleitoral em 2022 que, embora não tenha resolvido o fato de que o país ainda estava dividido em dois, pelo menos mostrou que há, como no resto do mundo, tendências e contratendências; que no Brasil há reservas de combatividade diante do avanço reacionário – embora essas reservas tenham sido ativadas em grande parte apesar da campanha de Lula e Alckmin, e não graças a ela[2].
As relações de forças não estão resolvidas, nem a passagem para um regime abertamente bonapartista pode ser indolor [o atual regime político de Lula 3 é uma espécie de “semiparlamentarismo” onde o que se vê é Lula e o PT sendo reféns do Centrão por sua recusa categórica em chamar à mobilização popular].
Isso se viu claramente nos últimos dias [bloqueios de rodoviasno no final de outubro e início de novembro de 2022] onde simpatizantes bolsonaristas foram às ruas exigindo intervenção militar e ignorando o triunfo eleitoral de Lula mas, ao mesmo tempo, o clima social começou a esquentar com torcidas de futebol, bairros populares e setores de trabalhadores saindo para romper os bloqueios dos fascistas. Mesmo que, como sempre, Lula e o PT tenham pedido “calma”, se os bloqueios se prolongassem, o caldeirão social do Brasil poderia explodir em mil pedaços. Não é fácil, quando se abre, fechar a caixa de Pandora de uma nação com 212,6 milhões de habitantes, um país popular por excelência que possui camadas geológicas de relações de forças não comprovadas (ou seja, o oposto de um “conjunto vazio” como se poderia acreditar de forma impressionista – a ideia de que Bolsonaro foi – e é – “todo-poderoso”, que “a desmoralização não tinha – e não tem – limites” e coisas assim).
O próprio Bolsonaro foi – e é – um subproduto do esvaziamento “reformista” do PT e da CUT (essas organizações pararam, entre outras coisas, de organizar setores populares muito grandes que passaram a ser arregimentados pelas igrejas pentecostais[3]). E, no entanto, sua derrota eleitoral no segundo turno [em 2022] desencadeou uma justa celebração popular e cria – criou, a priori – as condições para construir uma oposição à esquerda ao futuro governo Lula; para avaliar a medida das coisas – as relações de forças saldadas – em um contexto que, obviamente, não faltará elementos de instabilidade [um contexto de instabilidade que certamente estará presente novamente, paradoxalmente, à medida que se aproximam as eleições presidenciais do próximo ano e as mesmas encruzilhadas não resolvidas pelo pusilânime governo Lula são colocadas sobre a mesa: a não derrota da extrema direita, um governo que se dedicou a continuar retirando conquistas dos explorados e oprimidos sem fazer nenhuma concessão além de “comer democracia”].[4]
Nesse contexto, no quadro em que se mostrou que há reservas no gigante latino-americano (como uma simples prova para ver os torcedores do Corinthians avisando que romperiam os bloqueios [em 2022] se não conseguessem chegar ao estádio), as pinceladas de uma antropologia política brasileira que pretendemos apresentar certamente serão um pouco mais equilibradas do que outros textos que circularam nos últimos anos destacando, apenas, o fenômeno Bolsonaro. Trata-se de um esforço para apreender tanto as fragilidades quanto as potencialidades do movimento de massas no Brasil como base analítica, justamente, dos pontos de apoio para a construção de uma oposição de esquerda ao novo governo de conciliação de classes (que, simultaneamente, estará nas ruas diante de qualquer novo golpe bonapartista[5]).
1- Gigantismo
A primeira coisa para entender o Brasil “sociologicamente” é apreciar o gigantismo do país. Por extensão, é o quinto maior país do mundo, atrás da Rússia, Canadá, Estados Unidos e China. O Brasil tem uma enorme diversidade regional, bem como muita diversidade “étnica”, por assim dizer. Todas as “cores” e regiões são misturadas, dando um ar cosmopolita a algumas de suas cidades (só conhecemos São Paulo com certos escopos, e, em muito menor grau, Porto Alegre, Brasília e Bahia onde ficamos apenas alguns dias em cada caso). Negros, brancos, nortistas, japoneses, mulheres, homens, pessoas LGBTI, etc., fazem do Brasil uma mistura, uma “riqueza de cores” que tanto mostra suas potencialidades humanas, quanto sua diversidade é explorada de forma burguesa e reacionária para gerar divisões e falsas oposições (falsos fetiches). “Camadas geológicas” de pobreza e injustiça social de tal magnitude que autores como Antunes chegam a compará-lo com a Índia[6].
A pobreza e a desigualdade na distribuição da riqueza são dramáticas; um tema característico da sociologia brasileira (a estratificação social que denota o país é incomparável, por exemplo, com a Argentina, cuja estrutura de classes é muito mais “simplificada”).[7] Na Avenida Paulista, centro político e comercial de São Paulo, convivem belos edifícios com uma riqueza e modernidade invejáveis que podem ser facilmente comparadas à Quinta Avenida de Nova York, juntamente com restos humanos reais jogados nas ruas aos quais ninguém presta atenção[8]…
No Brasil, a migração interna ainda é imensa. Isso também resulta em uma enorme massa de “população flutuante” que ainda não é absorvida na produção e que pode ser vista nas cidades. (O número de sem-teto deve estar entre os mais altos da média internacional[9].) Os dados de emprego estão entre os menos confiáveis do mundo, multiplicados por ter dado à “intermitência laboral” (contratos intermitentes sem pagamento quando a pessoa está desempregada) o status de “pessoa empregada”, desaparecendo o desemprego das estatísticas (Antunes, idem).
O gigantismo do país e a força de sua burguesia, a monumentalidade dos prédios nos centros institucionais e financeiros, convivem com a monumentalidade de um movimento de massas que se poderia dizer ainda jovem: um gigante social majoritariamente “adormecido” (a força de trabalho assalariada no Brasil chega a 100 milhões de almas). Uma população que parece cultural e politicamente muito jovem, alegre, com baixo nível de alfabetização, com uma mistura de atitudes calorosas, solidariedade e também com a continuidade das “reverências” que vêm da escravidão… Ou seja, uma gratidão forçada, não gratuita. O legado dramático da escravidão não é fácil e não é bem compreendido fora do Brasil – ou dos Estados Unidos, por exemplo, dos quais temos menos percepção[10] – . Deve ser entendido como extremamente diferente do legado da opressão da população nativa nos países andinos, por exemplo. Enquanto a população nativa subjugada pelo conquistador manteve, no entanto, formas de organização comunal, relações de solidariedade e dignidade – mesmo esmagadas pelo opressor colonial – deve-se entender que a escravidão foi caracterizada – ela se caracteriza até mesmo em suas formas modernas, como os campos de concentração na Segunda Guerra Mundial – por romper e/ou impedir qualquer vínculo de solidariedade; A condição de escravo inibe até mesmo a formação da família. E esse é um fato que tem deixado um enorme legado no Brasil, promovendo até mesmo a falsa e paternalista narrativa de que o “povo brasileiro é um povo pacífico”… mas não ligada ao bom tratamento solidário que se sente ao entrar em qualquer “padaria” (invariavelmente frequentada por trabalhadores de origem proletária, especialmente na cozinha), por exemplo, mas a uma forma de dar como certa uma submissão que não é tal…[11]
[Arcary aponta que a visão egoísta de um país com um “povo dócil e intensamente emocional” foi promovida por Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Hollanda , 1936. Um trabalho que teria exercido influência mesmo dentro da esquerda, mas que tinha suas nuances: apontou a prevalência por um longo período de elementos de estratificação social. “A mobilidade social no Brasil agrário era muito lenta. O Brasil era uma sociedade muito desigual e rígida, quase baseada no estado. Estado porque os critérios de classe e raça se cruzaram, forjando um sistema híbrido de classe e casta que congelou a mobilidade” (“Brasil, nação “interrompida””, idem)].
As relações políticas geradas pelo gigantismo brasileiro são paradoxais. O Brasil é um país federal com muitas capitais. Não é um país politicamente centralizado como a Argentina ou a França; seu símile são os Estados Unidos. Para piorar a situação, a classe dominante teve a inteligência estratégica de mudar a capital do país para Brasília, uma cidade inventada – artificial – com nada além de pessoal administrativo e, além disso, monumental também[12]. Logicamente, sendo – grosso modo – a décima maior economia do mundo em PIB (algo em torno de dois trilhões de dólares), se pode – embora à custa de cortes permanentes nos gastos públicos, a era do neoliberalismo dixit – financiar essa obra monumental, bem como sustentar tal aparelho administrativo (não é um fato menor que a campanha de Lula tenha adiantado e sugerido que durante seu terceiro mandato promoverá uma contrarreforma administrativa, ou seja, demissões e redução das condições de trabalho e salário do funcionalismo público).
Mesmo definições de décadas atrás podem permanecer válidas a esse respeito: “Visto de uma perspectiva regional, o progresso econômico não é homogêneo nem necessariamente tende à homogeneização da economia nacional. E menos ainda não é visível a tendência de harmonizar os índices de desenvolvimento. As disparidades regionais nos permitem entender melhor o surgimento e a sustentação de lideranças ‘estatais’ bem marcadas [algo que ainda está presente hoje de certa forma] (…) É verdade que essa tabela indica avanços e regressões (…) se observarmos melhor as tendências (…) verificamos uma predominância progressiva de um centro sobre os outros. A predominância de São Paulo sobre os estados do país é evidente (…) A transformação da região Centro-Sul (centrada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) no núcleo dominante da economia nacional” (Ianni; 1988; 38/9). É claro que desde que este texto foi escrito, em 1988, muitas coisas mudaram no Brasil, mas alguns de seus traços gerais parecem ser mantidos.
Soler não diz nada muito diferente: “(…) Já na década de 1940 ocorreu um processo de urbanização acelerada. Este é o período de formação do nosso ‘fordismo tardio’, constituído pela urbanização acelerada e caótica e pelo enorme fluxo migratório (…) O jovem proletariado migrante, muitas vezes da construção civil, demonstra uma grande capacidade de adaptação social, articulação sindical e compreensão política. O proletariado fabril, então, a partir da década de 1950, começou a desenvolver suas primeiras experiências de “auto-organização sindical”. Essa organização popular foi responsável pela onda de greves que assolou São Paulo [no final dos anos 1970]” (Soler; 2015; 13[13]).
Aparentemente, e como nos Estados Unidos, o gigantismo do país conspira, em certa medida, contra a mobilização social de massas, além do fato de que a chave política para a desmobilização nos últimos longos anos é que o PT e a CUT se dedicaram, sistematicamente e por toda uma geração, a “acorrentar” a mobilização popular, perdendo, no processo, capilaridade social, que pode ser vista pelo lugar conquistado, em seu lugar, pelas igrejas pentecostais, questão à qual voltaremos (bem como, também, que essa perda de capilaridade não tem sido, como acabamos de ver, absoluta, para além do fato de que a reação massiva de alegria à derrota de Bolsonaro tem sido majoritariamente espontânea[14]).
Aqui, então, temos a oposição entre países gigantes e países mais centralizados. A França e a Argentina, por exemplo, não se caracterizam pelo gigantismo populacional, mas porque Paris e Buenos Aires têm o monopólio absoluto da política em seus respectivos países. São países políticos por excelência, onde todos os problemas são levantados para o nível nacional muito rapidamente.
Em contraste, poderíamos dizer que os Estados Unidos e o Brasil não são exatamente “países políticos”, mas as pessoas não são idiotas: acabamos de assistir a uma massiva celebração popular pela derrota eleitoral de Bolsonaro que demonstra, repetimos, que há reservas de combatividade no país[15]!
E, no entanto, a luta de classes tem sua astúcia. Quando um motorista farto dos bloqueios fascistas atropelou 10 provocadores bolsonaristas à sua frente, Bolsonaro imediatamente foi às redes para pedir que os bloqueios fossem suspensos o quanto antes; se o Brasil pegasse fogo, era toda a classe capitalista, de qualquer tipo, que ia perder… Então, no dia 30 de outubro, tivemos uma derrota eleitoral histórica do bolsonarismo ratificada nos dias seguintes nas ruas, o que é mais importante do que o fato de que, obviamente, o bolsonarismo não acabou.[16]
2 – Modernização truncada
O segundo vetor é em que ponto o Brasil está em seu desenvolvimento. Por causa do tamanho do país, seu território e extensão, sua população, os vários centros políticos e econômicos do país e a acumulação de capital, e sua industrialização nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o Brasil foi considerado um país “subimperialista”. A realidade posterior colocou as coisas em seu lugar: mostra que o Brasil não seguiu o padrão de uma Coreia do Sul, por exemplo. É um grande país dependente onde sua força relativa se expressa no peso de algumas de suas multinacionais no mundo, sua condição dominante no Mercosul, as relações de dependência estabelecidas com vários países africanos, etc., mas que, mesmo assim, é multiplicada por sua relativa desindustrialização nas últimas décadas e pelo crescimento do agronegócio. Ainda é um país dependente, mas gigantesco[18].
A questão da modernização do Brasil atravessou os debates de seus sociólogos por várias gerações. Florestan Fernandes e vários outros falaram desse processo de modernização como uma “revolução burguesa” em obras clássicas como A Revolução Burguesa no Brasil: “Florestan (…) aponta para a relevância estrutural fundamental da preeminência de uma estrutura social de latifúndios e não de classes (…) A sociedade de classes e a revolução burguesa que ela lidera foram realizadas de forma precária, dependentes de compromissos com o passado persistente e da valorização das estruturas de referência do antigo regime (…) A escravidão gerou uma estrutura social vigorosa, produziu instituições duradouras e engendrou mentalidades que persistem de alguma forma até hoje” (2006; 19/20).
Desde a primeira edição desta obra (1975) é evidente que várias décadas se passaram, especialmente o levante dos trabalhadores modernos das décadas de 1970 e 1980. E, no entanto, os elementos da estratificação social, o cruzamento de classes e latifúndios do Brasil antigo, ainda estão de alguma forma presentes na psicologia social.
As várias etapas modernizadoras que advêm do movimento abolicionista, movimentos artísticos como o Antropofágico (anos 20 do século passado), a dinâmica industrializante a partir de 1930, a reafirmação desse movimento industrializante no segundo pós-guerra, a criação da própria Brasília no início da década de 1960, o surgimento de uma imensa e nova classe trabalhadora na década de 70, o fluxo migratório nordestino para o sul modernizador do país, o impacto de megalópoles como a própria São Paulo, etc., têm evidentemente sido movimentos modernizadores, embora ao mesmo tempo desiguais e em muitos aspectos inibidos: “Dado o seu caráter único, o subdesenvolvimento não pode ser concebido como um simples elo na cadeia do desenvolvimento nem como uma evolução truncada. Não é mais do que uma produção de dependência (…) introduzindo novos elementos na construção da especificidade da forma brasileira de subdesenvolvimento (…) uma forma específica de modernização conservadora, ou de revolução produtiva sem revolução burguesa (…) A extensa ditadura militar entre 1964 e 1984 claramente continuou com o “jeito prussiano”. Ou seja, uma repressão política muito forte, mão de ferro sobre os sindicatos, coerção estatal no mais alto grau, maior presença de empresas estatais (…), abertura ao capital estrangeiro, industrialização em ‘marcha forçada’ (…) e nenhum esforço explícito para liquidar o patrimonialismo (…)” (Francisco de Oliveira; 2009; 137/143).
De Oliveira acrescenta algumas características da formação econômica e social brasileira contemporânea: a) altamente urbanizada, b) com pouca força de trabalho e população no campo, c) com forte presença do agronegócio, d) um setor da “segunda revolução industrial” (acrescentamos, em recuo dada a relativa desindustrialização das últimas duas décadas), e) avanço hesitante, afirma o autor da terceira revolução industrial (talvez menos hesitante do que Há 20 anos, quando foi escrito o ensaio que estamos citando), f) uma estrutura diversificada de serviços, g) estratos de renda muito alta e, no outro extremo, uma estrutura primitiva diretamente ligada ao consumo dos estratos pobres, h) um sistema financeiro que, devido à financeirização e ao aumento da dívida interna e externa, representa uma grande proporção do PIB, cerca de 10% do PIB. Por fim, aponta para uma participação fraca e decrescente no PEA do trabalho rural e de uma força de trabalho industrial que atingiu seu pico na década de 1970 e depois começou a declinar enquanto há uma explosão contínua de trabalho precário na área de serviços. Logicamente, o debate sobre a formação social brasileira é muito extenso e é impossível abordá-lo nesta “nota”. Dou apenas algumas “pinceladas” a serviço dessa “sociologia” da atualidade do país.
Diante desse contraditório movimento modernizador, o crescimento do agronegócio promovido desde a primeira presidência de Lula e, no campo cultural e outros, a regressão bolsonarista, significaram uma evidente desaceleração da modernização (mais do que uma desaceleração, um recuo porque todas as motivações ideológicas do bolsonarismo são uma regressão em relação às conquistas da própria Revolução Francesa, por assim dizer, da própria revolução burguesa no campo cultural). Um pouco como Florestan apontou na obra que estamos citando, a “revolução burguesa” brasileira não poderia ser outra coisa senão um “movimento” inconseqüente e de certa forma truncado, inibido, além do fato de ter dado origem, simultaneamente, a um país monumental: “O Brasil moderno foi proposto contra o Brasil arcaico. Mas, ao mesmo tempo, questionava-se o dualismo e tudo se direcionava para uma interpretação do desenvolvimento do país como desigual e combinado, ideia, aliás, subjacente a este trabalho, que reflete a influência do trotskismo na formação política de Florestan Fernandes” (Florestan Fernandes; 2006; 17).
Por sua vez, o sociólogo Octavio Ianni apresenta para o Brasil uma tese semelhante à de Milcíades Peña em relação à Argentina e que reflete esse caráter desigual e combinado ou a combinação de processos de progresso e regressão: ele aponta que a indústria surgiu do capital gerado no antigo setor agrícola do país: “(…) Direta ou indiretamente, o capital agrícola está na base dos primeiros esforços de industrialização. Em suma, na esfera estrutural, o capital agrícola é a base do capital industrial” (1988; 33).
Soler, por sua vez, aponta algo semelhante: “O Brasil passa por intensa industrialização e urbanização ao longo de um período de 40 anos. A industrialização, a formação de um Estado moderno e a urbanização estão transformando rapidamente a fisionomia de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro (…) O crescimento ou a industrialização não são fatores que por si só atenuam a pobreza ou a desigualdade, mas podem, por outro lado, até ser fatores que as acentuam, como observa Celso Furtado. O acentuado subdesenvolvimento e as desigualdades regionais do Brasil, longe de serem uma etapa necessária para o pleno desenvolvimento capitalista, refletem o lugar [dependente] do Brasil na divisão internacional do trabalho e os interesses das classes dominantes locais” (Soler; 2015; 12).
Aqui deve ser lembrado que a ditadura militar brasileira teve um papel contraditório em relação ao desenvolvimento industrializante do país. Ao contrário da ditadura argentina, neoliberal e desindustrializante tout court, a ditadura brasileira internacionalizou o setor industrial (algo já iniciado sob o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960, muito semelhante ao de Frondizi na Argentina na mesma época[19]), entregou a indústria às multinacionais, mas não foi desindustrializante.
A monumentalidade de certas cidades, de certas obras arquitetônicas, o número de centros político-econômicos do país, o moderno sistema de metrô de São Paulo, a própria Brasília e mil e um dados que necessariamente nos escapam porque não conhecemos o resto do país, falam de uma certa tendência modernizadora décadas atrás. Sabe-se também, mas agora esquecido, que o Brasil cresceu a uma média muito alta por várias décadas, embora hoje, repetimos, apenas as memórias permaneçam (o Brasil está crescendo hoje no nível medíocre da maioria das economias do mundo).
O Brasil é uma meca financeira e do agronegócio. Durante décadas teve – e continua tendo – taxas de juros em dólares muito altas, o que significa um enorme “fluxo” de saída de receitas em moeda estrangeira (este é um dos legados dos dois primeiros governos de Lula). Também é verdade que acumula reservas de cerca de 400.000 milhões de dólares, algo que não é insignificante. Também é visto como muito dinâmico em termos de construção imobiliária, embora não seja o caso em termos de infraestrutura, que é a chave para as condições gerais de multiplicação da acumulação de capital, e, claro, vem do gasto público (mas no Brasil o teto de gastos prevaleceu desde Temer, embora seja violado a cada passo[20]).
No entanto, não parece que as tendências modernizadoras ainda estejam se desenvolvendo; em vez disso, o que parece dominar é uma tendência à estagnação de um piso alto para a média latino-americana (nenhum país se assemelha ao Brasil na América Latina com exceção do México, embora a posição dominante do Brasil na região seja mais categórica [21]).
As tendências retrógradas são bastante evidentes em várias áreas: a) pelo menos desde os primeiros governos Lula, se não antes, houve uma virada para o agronegócio e a financeirização econômica que continuou a se desenvolver posteriormente, b) nas últimas décadas houve um dramático processo de precarização do trabalho somado a uma relativa desindustrialização que atingiu os núcleos mais concentrados do proletariado, somado a uma certa deslocalização industrial interna para regiões com menor tradição de luta, c) o atraso em termos de infraestrutura em relação ao que é o país é visível no Brasil. Esse atraso em termos de aeroportos, portos, rodovias, etc., é uma questão bem conhecida, devido, entre outros motivos e como já apontamos, ao mecanismo de economia de gastos públicos imposto pelo FMI e à lógica neoliberal, d) o bolsonarismo, o crescimento das igrejas pentecostais, as fake news, o aumento generalizado da ignorância através do avanço das próprias igrejas, também são um fator óbvio de retrocesso. etc.
Ou seja, parece que tanto as antigas quanto as novas regressões contemporâneas impuseram um freio à dinâmica modernizadora que ainda é desigual se apreciada ou era apreciada nas décadas passadas no Brasil, e que mantém sua monumentalidade em uma série de aspectos, mas que não escondem o fato de que essa desigualdade e que os elementos de extremo atraso aumentaram nas últimas décadas no Brasil [22].
Embora o termo seja exagerado, a definição de Antunes de que o último período, em oposição à desigual “revolução burguesa” de que falava Florestan Fernandes, poderia ser caracterizado – exageradamente, repetimos – como uma contrarrevolução burguesa preventiva que diz respeito ao termo, é verdade, mais ao terreno político do que a qualquer outra coisa, mas que na realidade tem por trás de si todos os retrocessos em matéria econômico-social que temos apontado e que vão em uma direção diferente da modernização.
Antunes aponta que na década de 90 o país viveu um processo de “desertificação neoliberal” onde o setor produtivo estatal foi parcialmente privatizado, a legislação trabalhista foi gradualmente desmontada, o setor financeiro do capital aumentou sua hegemonia, todas tendências que foram mantidas sob a gestão do PT e reforçadas sob Temer e Bolsonaro. O reformismo que defendia a reforma agrária, urbana e industrial em sentido progressista, e que se expressou majoritariamente sob o governo de João Goulart, em 1961/4, praticamente desapareceu do cenário brasileiro e quando o PT chegou ao poder pela primeira vez em 2003, apenas continuou com as tendências neoliberais ou social-liberais que já vinham do governo de Fernando Henrique Cardoso[23].
Conversando com um quadro de nossa corrente no Brasil, perguntei-lhe justamente que sentimento o país gerava na população (dado que sua monumentalidade impressiona quem vem de fora do país, especialmente no meu caso que venho da Argentina) e ele me respondeu claramente: “decadência”. O que coincide, exatamente, com o diagnóstico que estamos transmitindo diante das análises sociológicas ou antropológicas do Brasil que podem ser vistas entre os analistas[24]
“(…) um tipo particular de capitalismo (…) dependente, cuja origem agrária acabou por se metamorfosear, no final do século XIX e início do século XX, numa burguesia industrial subordinada a um centro monopolista e imperialista (Estados Unidos e Europa). Um capitalismo economicamente integrado externamente e socialmente desintegrado internamente” (Antunes; 2022; 63[25]). (Uma caracterização semelhante à apontada na época por Milcíades Peña, que caracterizou nitidamente a Argentina como um “país de fãs”, isto é, integrado externamente e desintegrado internamente.)
Arcary explica as mesmas tendências. Sublinha o abrandamento do crescimento médio anual desde 1980, de taxas de cerca de 7% ao ano para menos de 3% hoje, quando nessa altura o país era uma espécie de “milagre” internacional e caminhava para a mediocridade atual. Ele acrescenta que entre 2014/24 o país viveu uma década de estagnação, um contraste brutal, pois apontamos em várias partes deste artigo como há quatro décadas o Brasil parecia estar prestes a se tornar um “milagre econômico do tipo sul-coreano”. O marxista brasileiro fala de “uma terrível lentidão do crescimento histórico, que não parece muito encorajadora porque é estrutural, não cíclica” (Brasil: Dez Teses Insolentes sobre a Decadência Nacional”, Sem Permissão, 14/07/24).
3 – Estados Unidos e Brasil: uma simbiose rara
Uma terceira característica da “antropologia política” é como o Brasil está em uma espécie de “espelho” político e cultural com os Estados Unidos. Os Estados Unidos continuam sendo a potência imperialista mais importante (militarmente, nem falar, a guerra na Ucrânia prova isso mais uma vez); Brasil é um grande país dependente com características, eventualmente, de uma potência regional (o velho e controverso conceito de subimperialismo é grande demais para isso). De qualquer forma, apesar da diferença qualitativa estrutural, uma diferença acentuada pela primarização econômica brasileira e pela financeirização das últimas décadas, em questões políticas e culturais há enormes laços entre Brasil e Estados Unidos.
O peso da igreja evangélica, a capilaridade do neoliberalismo – uma espécie de “neoliberalismo social” e não apenas econômico – a cultura negra resistente como contratendência, um elemento progressista que é transferido do país do norte para o Brasil em termos de Hip Hop e competições entre gangues nos bairros populares, os fenômenos de Trump e Bolsonaro, etc., são características progressivas e regressivas que paradoxalmente se assemelham a ambos os países.
Logicamente, a escravidão dos afro-americanos aproxima os dois países, embora pareça que a opressão das pessoas de cor nos Estados Unidos continua a ter, de certa forma, um elemento “nacional”, enquanto no Brasil é, sim, um fenômeno dramático de estratificação social, dado que o Brasil não é um país imperialista. Não tem esse tipo de “espessura” – é caracterizada por outro tipo de espessura social marcada mais diretamente pela pobreza[26].
Os laços do Brasil com os Estados Unidos remontam pelo menos à Segunda Guerra. O Brasil foi o único país latino-americano que declarou guerra à Alemanha nazista por volta de 1943 e acrescentou tropas – embora reduzidas – ao combate. Posteriormente, os laços continuaram a se fortalecer e não é por acaso que o elemento anti-imperialista nunca fez parte da ideologia do PT nem há indícios que faça parte da consciência popular, como na Argentina, por exemplo (após a dominação portuguesa, o Brasil passou em algum momento do século XIX para a órbita inglesa e após a Segunda Guerra Mundial permaneceu até hoje sob a dependência dos EUA, algo que, como acabamos de apontar, é até expresso culturalmente).[27]
Por outro lado, outro exemplo é a reação à morte da Rainha Elizabeth II da Grã-Bretanha: na Argentina ela causou alegria como parte do repúdio ao imperialismo britânico e da memória da Guerra das Malvinas; no Brasil, durante o dia, sua morte foi lamentada na mídia e em várias instituições públicas, como o edifício FIESPI (é a federação empresarial industrial mais importante do país com sede em São Paulo) que foi estampado com a bandeira inglesa…
Muitos aspectos da cultura popular ianque estão instalados na cultura popular do Brasil (por exemplo, a celebração do Halloween, entre tantas outras) e não parece haver nenhuma resistência a ela – o que, por si só, não tem nada de errado, já que ao contrário das versões populistas, os Estados Unidos também são uma sociedade de classes onde muitos aspectos de sua cultura popular. Obviamente, eles são progressivos (por exemplo, o Hip Hop, ou orgulho negro).
Mas, logicamente, também é verdade que parte da simbiose cultural e política com o gigante do norte tem aspectos regressivos, como a crescente influência nas últimas décadas das igrejas evangélicas, o desenvolvimento do terraplanismo e do negacionismo ecológico e pandêmico, as teorias da conspiração, o império quase total de notícias falsas, etc.
Uma explicação para isso também é a simetria da monumentalidade de ambos os países. É como se houvesse uma relação “físico-geográfica” no continente americano, entre os dois gigantes que se olham e se comparam para além dos aspectos estruturais apontados, sendo o mais profundo o passado escravocrata – em ambos os países a escravidão foi abolida tardiamente: nos Estados Unidos, com a guerra civil de 1861/5; no Brasil, sob o peso de um crescente movimento abolicionista dos setores burgueses esclarecidos, porém sem nenhuma guerra: como que um gesto final da coroa em 1889.
“A escravidão não foi apenas um fenômeno colonial. Nos Estados Unidos e no Brasil, as duas maiores nações americanas que vivenciaram esse fenômeno, a escravidão subsistiu, por muitos anos, no final do regime colonial. No século XIX, época de maior desenvolvimento da escravidão americana, a sociedade escravista limitou-se ao Novo e ao Velho Sul dos Estados Unidos e teve que conviver com a produção capitalista, agressiva e expansionista do Oriente, até ser definitiva e militarmente destruída por esta última. (…)
(…) No Brasil, até a abolição, as práticas sociais e econômicas escravistas se desenvolveram em todo o Império e a escravidão era a relação social dominante na produção. Foi em nosso país que o trabalho escravo produziu a maior variedade de mercadorias coloniais – açúcar, ouro, pedras preciosas, cacau, café, arroz, couro, charque, etc. O Brasil foi a nação escravista que recebeu o maior número de africanos escravizados: aproximadamente 38% do tráfico internacional de escravos, ou seja, cerca de 5 milhões de homens e mulheres. O Brasil foi uma das primeiras nações do Novo Mundo a conhecer a escravidão e foi a última a aboli-la. Em todas as Américas, além das determinações regionais, havia apenas um modo de produção colonial escravista, e foi no Brasil que ele atingiu seu maior grau de desenvolvimento” (Maestri; 1988; 14/19).
De 1807 a 1835, na Bahia e principalmente em Salvador, as massas escravizadas – influenciadas pelos movimentos sociais africanos, pela vitória dos escravos no Haiti e pela crise do regime colonial – foram protagonistas de uma impressionante série de movimentos insurrecionais. O que aconteceu no Brasil, após um complexo processo de embates políticos e sociais, com o abandono em massa das grandes plantações de café pelos cativos, provocou o fim da escravidão entre o final de 1887 e o início de 1888.
E, como era de se esperar, a luta contra a segregação racial também estabelece paralelos entre os dois países. Na década de 30 do século passado, dois Congressos Afro-Brasileiros ocorreram. E também nessa década foi criada a Frente Negra, uma organização política que reuniu muitos intelectuais e artistas negros, em várias partes do Brasil. A década de 30 foi marcada, sobretudo, pela mobilização de grande parte da intelectualidade para enfrentar as ofensivas segregacionistas promovidas pelas elites brasileiras, que tentavam culpar a população negra pelo atraso do país.
Por sua vez, a Bahia foi e continua sendo uma importante referência das relações raciais vivenciadas no Brasil. Uma Baía que, revelada por Jorge Amado em Jubiabá, mostrou ao mundo um bom exemplo de convivência entre pessoas de diferentes raças e cores, sem conflitos explicitamente violentos. Na década de 1970, o cientista político Donald Pierson afirmou que “Se quisermos encontrar no Brasil uma ‘porta’ pela qual pudéssemos entrar e examinar in situ a ‘situação racial’ brasileira, nenhuma seria mais adequada do que o antigo porto da Bahia” (Imagens da cidade da Bahia).
É claro que esse legado da escravidão não apenas estabelece traços comuns paradoxais entre Brasil e Estados Unidos, mas não deixaria de ter consequências na formação da moderna classe trabalhadora assalariada brasileira.
4 – Brasília, praça e palácio
Uma característica particular do Brasil é o peso de suas instituições: as “pétreas” e as da democracia burguesa. Desde o início, o regime democrático burguês no Brasil sempre foi – desde seu relançamento pós-ditadura em 1985/89 – mais reacionário do que na Argentina, por exemplo. As Forças Armadas, longe de estarem desacreditadas, pelo contrário, sempre mantiveram uma certa tutela sobre o regime, expressa de forma mais aberta no governo Bolsonaro, ao qual deram o vice-presidente, vários ministros, etc. Além disso, a polícia rodoviária e outras forças policiais têm grande peso no regime e no funcionamento institucional: o Rio de Janeiro está mais ou menos militarizado há anos, a violência policial cotidiana é bárbara e brutal e o sistema prisional, outra semelhança com os Estados Unidos, tem uma proporção desproporcional para os padrões internacionais de presos e presos negros. Além do fato de que as condições de detenção são a barbárie em sua forma mais pura [28]…
Mas, somando-se ao que foi mencionado acima, existem outros elementos de enorme importância. Como já apontamos, a burguesia teve a sabedoria estratégica de mudar a capital do país para uma cidade administrativa artificial, Brasília, distanciando-se das pressões sociais diretas de baixo (Antunes fala de uma institucionalidade completamente separada do cotidiano das massas). Em geral, as instituições estão muito distantes das massas, atuando nas alturas “galácticas” de costas para qualquer escrutínio público que não seja as notícias na TV e nas redes sociais, de notícias falsas que vêm e vão. E, o que é mais importante, com metade dos deputados e senadores que são membros do Centrão, um bloco “fisiológico” que se move por interesses “sem ideologia alguma”, com propinas diretas como no caso do Mensalão ou favores para as regiões que representam, e que, logicamente, assim que se soube que Lula ganhou a eleição, passaram sem uma solução de continuidade de ser a base governamental de Bolsonaro, para se candidatar a trabalhar com o novo governo de Lula e Alckmin… [para agora se distanciar dele novamente e especular sobre um provável triunfo de Tarcísio de Freitas nas próximas eleições presidenciais].[29]
A justiça também faz uma arbitragem desproporcional, como pôde ser visto no caso Lava Jato, de modo que todos os poderes querem fazer ou fazem algum tipo de arbitragem desproporcional acima dos demais poderes e, logicamente, das massas: as Forças Armadas AA, o judiciário, o próprio Congresso Nacional, etc., com a imagem, especialmente no caso de Lula, de que ele é “refém” de nãoseioquê como justificativa para não reverter nenhuma das contrarreformas de Temer e Bolsonaro (é a desculpa que vem sendo confirmada ao longo dos anos desse terceiro mandato).[30]
Todos esses são elementos de bonapartização ou semi-bonapartização do regime “democrático burguês” que são constitutivos dele. Como contrapeso institucional, há a Constituição de 1988, embora não tenhamos conhecimento para saber quanto dela resta…
Característico desse regime é que, pelo menos desde o Fora Collor!, o PT jogou o “pacto social” e sob a presidência de Lula e Dilma até 2013 nenhuma mosca voou no país [31]. Sabe-se que Lula assumiu o cargo em 2003 como uma operação preventiva para que não ocorresse uma rebelião popular no Brasil como as da Argentina, fato este que reforçou os mecanismos bonapartistas do regime que, logicamente, deu um salto de qualidade desde a manobra parlamentar – ou golpe – contra Dilma: “Durante uma década a política saiu das ruas e foi transferida para o interior das instituições (…) O lulismo, o PT, a CUT e outros tiveram um papel decisivo no recuo da consciência de classe, que foi amplamente construído nas décadas anteriores” (Soler; 2015; 9/10).
Soler acrescenta que as lutas do final dos anos 1970 perdem seu radicalismo quando o PT passou, com armas e bagagens, e até hoje, para a defesa da democracia burguesa como um “valor universal” (“democracia versus ditadura” foi um dos leitmotivs da recente campanha de Lula, e embora, de fato, a eventualidade de uma mudança de regime estivesse em jogo, o ângulo democrático não é usado para ir além de uma perspectiva anticapitalista, mas, ao contrário, para colocá-la como um objetivo em si mesmo).
A característica desse regime é que a pressão diária das massas sobre ele é muito mediada: não é uma dialética de praça-palácio como pode ser visto na Argentina ou na França, mas algo mais no estilo dos Estados Unidos, onde a pressão das massas aparece apenas esporadicamente – talvez, muito esporadicamente, embora apareça, como acabamos de ver, contra os piquetes bolsonaristas.
De qualquer forma, o regime não deixou de ser democrático burguês com elementos de bonapartismo, não um semi-bonapartismo ou um bonapartismo puro e simples: Bolsonaro tinha essa intenção e certamente ainda a tem, mas não conseguiu fechar o regime sob sua presidência, e por hora esse objetivo se afastou[32]. Uma questão que mostra que o que tutelou as eleições, assim com os acontecimentos da luta de classes direta que a cercaram, não tutelou apenas outro governo burguês, mas a eventualidade de uma mudança de regime político com a ameaça às liberdades democráticas e à organização dos trabalhadores, o movimento estudantil, negro, de mulheres e LGBTI, etc., uma razão a mais que exemplifica o crime político cometido pelos grupos abstencionistas.
Voltando a um ângulo de análise “geográfico-político”, podemos apontar que a localização e o caráter de Brasília nos fazem buscar uma distância sideral entre a praça e o palácio. Surpreendentemente – ou nem tanto – algo semelhante acontece com Washington D.C., porque, se não fosse a capital, não teria a importância de centros sociopolíticos de enorme importância como Nova York, Chicago, Los Angeles, etc., cidades de muito mais capilaridade social. E de qualquer forma, o caso do Brasil é muito pior, não só por ser uma cidade muito mais artificial, mas também por estar mais distante dos centros do que a capital norte-americana.
Até mesmo sua esplanada é uma provocação a qualquer protagonismo das massas: é tão enorme, tão monumental, que é óbvio que a arquitetura que a caracteriza pretende exaltar as próprias instituições (presidência, parlamento, etc.) e diminuir qualquer indício de protagonismo das próprias massas.
Pode-se perguntar qual é a base de uma “democracia”. Um socialista revolucionário, ou apenas um democrata liberal à moda antiga, diria “o povo”, ou algo assim. Mas não: para os planejadores de Brasília, a “democracia” ou talvez a abstração da República (que na realidade vem de res publica, isto é, coisa pública), vem de instituições nas quais as massas, os elementos da democracia direta, etc., não têm valor...
5 – A deterioração do tecido social
No que diz respeito ao tecido social das classes – sobretudo, da classe trabalhadora – houve um movimento contraditório nas últimas décadas, ou seja, do progresso ao retrocesso, embora devamos ter cuidado para não exagerar as coisas – para não tornar visíveis algumas tendências e invisibilizar outras que atuam como um contrapeso a elas[33].
É evidente que a perda de capilaridade do PT e da CUT deu origem ao surgimento do bolsonarismo e do peso das igrejas evangélicas. Isso ocorre em dois níveis. Por um lado, a desindustrialização do país: a redução do tamanho das fábricas que nos anos 80 eram de massa, como as “montadoras”, as fábricas de automóveis (que empregavam até 60.000 trabalhadores sob o mesmo teto), a precarização do trabalho, etc., forneceram a “infraestrutura” para um eventual retrocesso qualitativo na anterior consciência de classe, pelo menos reformista, expressa na palavra de ordem que caracterizou a primeira campanha presidencial de Lula: “trabalhador vota em trabalhador”. No terreno pavimentado desse enfraquecimento estrutural, que, de qualquer forma, é relativo e não absoluto (a classe trabalhadora brasileira continua sendo um gigante social, veremos), avançaram outros tipos de identidades e quadros, claramente regressivos[34]. Com a capilaridade dos sindicatos e do PT recuando, talvez, a ponto de “desaparecer”, e com a precarização do trabalho em ascensão, em paralelo temos a emergência em massa do “capitalismo pentecostal” e da ideologia do empreendedorismo [35].
É significativo que a Igreja Católica, mais tradicional que a Igreja evangélica no Brasil, outrora marcada pela Teologia da Libertação e hoje pela virada reacionária para a Igreja carismática, tenha cedido imenso terreno às igrejas evangélicas, que são, certamente, muitas das que ocupam o quadro organizativo dos bairros populares (em competição, no entanto, com outras instituições).
Não temos clareza sobre o fenômeno petista no nordeste brasileiro, onde Lula acaba de ganhar quase 70% dos votos[36]. Mas, diferentemente da Argentina, onde os setores de trabalhadores desempregados estão majoritariamente organizados em movimentos, temos a impressão de que os planos sociais no Brasil são atribuídos individualmente. E é evidente que além do MTST (Movimento dos Sem Teto, liderado pelo reformista Guilherme Boulos) e do MST (Movimento Sem Terra, transformado hoje em uma grande empresa cooperativa que exporta arroz orgânico na América Latina), a circunstância de assistência estatal sem organização independente ou pelo menos “própria”, desarma esses setores das massas. Deixa-os indefesos diante das representações religiosas do mundo, o que é, aliás, um retrocesso em relação às conquistas da modernidade, justamente da revolução burguesa, como a separação entre Igreja e Estado que o bolsonarismo ameaçou – e continua ameaçando – fundir-se novamente…
O empreendedorismo é o outro lado dessa moeda. É como o “tipo ideal” do neoliberalismo, o “agente” do livre mercado na medida em que na lei da selva do mercado o “empresário” que vende principalmente “bugigangas” “se afirma” diante do mundo com algum tipo de “ideologia do mérito do subdesenvolvimento”: o mérito da sobrevivência e a luta de todos contra todos em meio à miséria geral [37].
Logicamente, isso faz parte do tecido social, pelo menos na última etapa do país. É claro que não se trata apenas dos sectores mais pobres. A “burguesia comum”, a pequena burguesia e a “base” da burguesia, são a base social de Bolsonaro. Há uma continuidade nos perfis “anticomunistas” e “anticorrupção” dessa camada social reacionária, como pode ser visto no livro de três décadas atrás que estamos citando por Octavio Ianni: “(…) foi uma ampla campanha de opinião pública, voltada especialmente para a classe média, que preparou as populações urbanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, etc., para aceitar de antemão o colapso do governo de João Goular [o golpe de 1964] (…) uma operação político-militar organizada para combater o ‘comunismo e a corrupção’ (…) A ‘marcha da família, de Deus, pela liberdade’, que precedeu e preparou a opinião pública para o golpe, foi realizada antes (…)” (Ianni; 1988; 116). Qualquer semelhança com Bolsonaro não é coincidência: “A mais universal dessas matrizes discursivas, o combate à corrupção, ilustra o papel que o ultraliberalismo e o anticomunismo desempenham na amarração discursiva das diferentes variantes do bolsonarismo. A corrupção sempre operou no imaginário brasileiro como uma espécie de meta-problema, uma causa mágica que, uma vez eliminada, resolveria todos os males do país. Nessa narrativa, o peso das limitações estruturais e das diferenças de orientação política são totalmente desconsiderados em favor de uma visão voluntarista e individualista da política” (Nunes; 2022; 34). E o autor acrescenta: “(…) a maior conquista do bolsonarismo é ter conseguido convergir em torno de uma única figura: o ‘bom cidadão’ (Nunes; idem; 37).[38]
Mas, por outro lado, o problema é que nos últimos anos esse fenômeno foi absolutizado e o outro se tornou invisível, o que ressurgiu até distorcido nos comícios de Lula no nordeste durante a campanha eleitoral, na Avenida Paulista no sábado, 29 de outubro e domingo, 30 de outubro, nos bairros populares que saíram para quebrar os piquetes reacionários no dia seguinte ao segundo turno. no Corinthians e em outros torcedores antifascistas que fizeram o mesmo, na ação de setores de trabalhadores que saíram espontaneamente, etc.
Ou seja: tem que haver algum grau de consciência de classe e/ou popular para que entre os dois primeiros salários mínimos, entre as mulheres e a população negra, na juventude, a maior parte dos votos tenha ido para Lula e não para Bolsonaro, mesmo com tudo reduzido e leve e no terreno do adversário que foi a campanha de Lula (e não só Lula, de Lula e Alckmin nem mais, nem menos!).
Esse ressurgimento no limite de uma campanha eleitoral que, se não fosse por ela, o lulismo a afundaria, nos diz algo sobre as relações de forças no Brasil e seu quadro sociopolítico. Ele nos diz que há reservas mesmo que a situação desde 2016 seja reacionária e agora possa estar começando a mudar (certamente e até certo ponto, está se invertendo [39]).
Ocorre que o medo em pânico de Bolsonaro de que o país explodisse depois que um motorista antibolsonarista atropelou um piquete reacionário também nos fala, como Zavaleta Mercado, do Brasil profundo, de um país com 212 milhões de almas, nem mais, nem menos. Um país que, logicamente, não é um “todo vazio”, mas uma totalidade de estratificações de estratos e classes sociais que, como em uma “panela de pressão”, e embora não tenha um centro político social claro com o PT e a CUT praticando a desmobilização social há décadas, poderia explodir em qualquer “pequeno pavio”: acontece que as massas são sempre maiores do que qualquer aparato (uma lição que nunca deve ser esquecida!).
A insatisfação das esperanças por parte de Lula e do PT, as mil e uma traições e capitulações, o “Luliña é paz e amor”, o “ele confiou na justiça” quando sua prisão, etc., a continuidade dos planos do neoliberalismo[40], etc., desmoralizaram a base social do PT e do Cutista. Mas, ao mesmo tempo, é evidente que houve uma reação contra Bolsonaro refletindo que permanecia, resta, reservas de classe e consciência popular; que havia e há um setor que soube diferenciar os “reformistas” dos neofascistas.
No mesmo sentido, foi lindo como na Avenida Paulista na noite de domingo, 30 de outubro (2022), foram cantadas metade mais uma das músicas contra Bolsonaro e não só a favor de Lula, principalmente a que diz: “Está na hora de Jair, ficar bêbado”, ou seja, de Bolsonaro ir. Uma questão que, evidentemente, reflete algo das relações de forças mesmo no terreno distorcido da consciência, para não mencionar a ruptura popular dos piquetes reacionários dois ou três dias após a votação e que criou um ar de potencial “guerra civil” que assustou a burguesia como um todo.
Aqui algo significativo e reiterado do comportamento do PT (Andrés Singer) aconteceu novamente: Gleisi Hoffman e o PT em massa chamando para “não sair às ruas” por nada no mundo. Ser responsável por advertir o MTST que ameaçou pagar com ir quebrar um corte, com Boulos imediatamente recuando da chamada… E, no entanto, as ações de massas foram espontâneas e com uma dinâmica social que, se a burguesia não parasse, poderia levar a uma eclosão revolucionária no Brasil. Sim senhor: aos elementos da guerra civil! Porque em um país com 212 milhões de almas, polarizado como nunca antes, onde os bloqueios se espalham massivamente por 400 pontos de sua geografia (embora concentrados nos territórios mais bolsonaristas), em todo caso está cheio de cidades, etc., que queriam passar, ir trabalhar ou o que quer que seja e instantaneamente surgiu uma fratura social que pode terminar em um confronto entre vizinhos que é a raiz da guerra civil: Todas as relações de solidariedade acabaram e passamos para os “bifes”!
Essa eventualidade é o que finalmente parou Bolsonaro: obrigou-o a sair desesperadamente para pedir à sua base social que saísse das estradas! O que também é importante para aquelas análises que dizem sim, “Lula ganhou, mas Bolsonaro ganhou muitos votos” e blá, blá, blá (uma análise de raiz chorosa). É verdade que Bolsonaro obteve muitos votos e que continua sendo uma força reacionária das massas. Isso está além do fato de que Bolsonaro não é Trump, entre outras coisas porque ele não tem seu próprio partido e porque o Brasil não é os Estados Unidos… Mas também é verdade que ele recebeu um tapa na cara de tais proporções que não só não pôde ignorar o resultado eleitoral, mas teve que dar o show dos piquetes porque o país estava indo para um transbordamento eventualmente revolucionário (uma dinâmica foi aberta que poderia sair do controle da burguesia) … 5- O equilíbrio de forças (ou a luta contra o impressionismo[41])
O ponto anterior deixa outra lição: a luta contra o impressionismo. O país é tão grande, tão insondável, que é fácil cair em análises unilaterais. Há autores brasileiros que dizem que na esquerda brasileira há sempre um falso debate entre “otimistas” e “pessimistas” (Arcary). E é impressionante porque, embora o debate entre as duas “tendências de análise” seja comum na esquerda, ele não parece ocorrer com a acuidade que se vê no Brasil.
Nem é preciso dizer até certo ponto: o Brasil tem dimensões tais que é difícil, senão impossível, englobá-lo em sua totalidade; não unilateralizar. Aqui podemos ver um elemento de método: é improvável estimar todas as tendências. Mas há elementos metodológicos no marxismo que nos permitem entender que, quando se trata de dimensões tão grandes, há uma infinidade de tendências e contratendências em jogo (ou seja, elas permitem uma compensação metodológica para análises). Nenhum país, muito menos o Brasil, é um “continente vazio”: as contradições de classe são tão grandes, as sensibilidades que a exploração e a opressão capitalistas oprimem são tão dramáticas, que, de alguma forma, na medida em que, em última análise, a existência determina a consciência, mesmo que a consciência seja tão inundada de “mercearia mental” como é hoje no Brasil, De uma forma ou de outra, haverá uma reação. Ou seja, aquele elemento que nos escapa para se afirmar: como apontamos com Antunes no início desta nota, porque é difícil imaginar uma sociedade que possa ser destruída de forma ilimitada. E na mesma linha, o cientista político marxista francês, Antoine Artous, aponta que o totalitarismo é inconcebível enquanto houver formas associativas na sociedade civil [42].
Na análise da luta de classes há sempre graus (gradações). Por exemplo: uma coisa é um regime democrático burguês, outra é um regime semi-bonapartista, bonapartista, uma ditadura ou um regime puramente fascista. Todas elas são etapas da luta de classes (certas relações de forças). E para passar de um grau para outro, por assim dizer, é impossível que ocorra fora de um teste de forças vivas. Porque é a luta de classes que dá a medida das coisas; o “micrômetro” que mede a espessura das coisas. O fato de que, para certas mudanças no regime político, a intervenção da própria luta se torna inevitável; A luta de classes é chamada (certas mudanças não podem ocorrer no “frio”; pelo menos a priori[43]).
O impressionismo é caracterizado por aumentar a força do inimigo e diminuir a sua própria, assim como o facilismo faz o oposto: é incapaz de ver os inimigos e sua implantação.
Ambas as unilateralidades são desarmantes do outro lado, mas, logicamente, o que estava na mesa na última etapa no Brasil era o impressionismo, isso na medida em que Bolsonaro parecia todo-poderoso (e essa determinação ainda está na mesa em parte pela força das coisas, em parte como uma desculpa para as forças oportunistas que vão se refugiar na subsistência do bolsonarismo capitularem ao novo governo de Lula e Alckmin, integrar suas fileiras ou o que quer que seja [44]).
Mas não: acaba de ser provado que Bolsonaro não era todo-poderoso (ele nem foi capaz de ignorar o resultado eleitoral, embora não tenha reconhecido explicitamente Lula). E não apenas porque, além das contradições de classe, também existem contradições dentro da classe dominante. Mas porque, como apontamos, a vertigem dos eventos imediatamente após o segundo turno ameaçada com ingredientes de “guerra civil”…
Como dissemos em outro artigo (“Brasil, um cenário perigoso”), cabe aos bons marxistas revolucionários: a) identificar os perigos quando eles surgem sem subestimá-los ou ignorá-los, b) não se impressionar, apreciá-los de frente e ver os pontos de apoio para a ação – enfrentá-los[45]. Mas é muito claro que o impressionismo é uma receita ruim porque ampliar a força do inimigo, impressionar-se com ele, paralisa e não permite encontrar as “forças psíquicas” e os pontos materiais de apoio para enfrentá-los.
Por isso, essas semanas têm sido uma escola de política no Brasil. Encontrar a melhor orientação diante de uma situação difícil. E, antes de tudo, não se impressionar. Saiba que sempre há reservas; que tudo tem medida e Bolsonaro também.
Logicamente, a eleição não foi apenas um resultado eleitoral. As campanhas eleitorais são uma forma distorcida de luta de classes; elas ainda fazem parte dela. Ao mesmo tempo, são uma espécie de “fotografia”, de “estatísticas políticas” da sociedade que coloca na balança coisas de peso diferente: o material-social de uma classe social não é o mesmo que o de outra, mesmo que tudo pareça “igual” na aritmética eleitoral de uma pessoa um voto (a classe trabalhadora chamada à luta é sempre mais forte do que uma classe de pequenos proprietários agrupados por uma força neofascista, por exemplo).
Caso contrário, o facilismo desdenhoso de que o resultado eleitoral é “indiferente” também não é válido: é bastante evidente que um triunfo ou uma derrota para Bolsonaro não são a mesma coisa – não foram a mesma coisa. Ocorre que o ponto de referência que produziu sua derrota eleitoral foi um enorme ponto de apoio para impedir a escalada bonapartista de Bolsonaro. É evidente que a ferramenta eleitoral em questão era a eleição de Lula, e que ela tinha que ser apropriada (o voto é algo tático, não de princípios. Uma ruptura com os princípios é entrar em uma frente de conciliação entre as classes – “Os limites elásticos do possibilismo”, web esquerda).
Se a independência de classe for mantida, e a abordagem for politicamente crítica, isto é, independente, o voto é tático. Mas o fato de ser algo tático não significa que não seja muito importante: os grupos de esquerda que pediram a abstenção cometeram um crime político que desarmou assim como aqueles que aderiram à frente popular… O segundo fato é mais sério do que o primeiro, obviamente. Mas nada justifica educar os militantes para se transformarem em uma seita marginal que vira as costas para as verdadeiras batalhas políticas e, o que é pior, para escapar de qualquer debate com os trabalhadores de carne e osso (que se recusam e fogem – covardemente – das batalhas reais como um “rato de esgoto” [46]).
Sob os mesmos parâmetros, que significam saber ver – aprender a apreciar – o que está por trás da “fumaça” da superfície, as eleições devem ser analisadas; um resultado eleitoral. As eleições são sempre, repetimos, uma expressão distorcida das relações de classe, das relações de forças. Trazer um resultado eleitoral, tal instantâneo do estado de consciência da sociedade para as relações de forças, não é algo simples ou automático (nem para um lado nem para o outro).
O paradoxo da eleição de domingo em 30/10 no Brasil é que o equilíbrio de forças teve um primeiro teste imediato. Bolsonaro simplesmente não teve o suficiente para ignorar o resultado eleitoral (apesar de toda a sua bravata). A prova foram os piquetes bolsonaristas espalhados pelo país… mas também o fogo social que os ameaçava – e ameaçava o país – se não se levantassem.
[É verdade que, posteriormente, em 8 de janeiro de 2023, os bolsonaristas invadiram a Suprema Corte de Justiça e o Congresso em uma espécie de imitação de “golpe” da “tomada do Capitólio” de Trump em 6 de janeiro de 2021, mas embora agora esteja sendo demonstrado que foi uma verdadeira tentativa de golpe, eles não conseguiram ir mais longe. E com toda a gravidade que essa situação configurou, em todo caso, a análise desse ponto é confirmada porque a maioria das Forças Armadas considerou que era uma aventura muito perigosa para se envolver, não apenas porque a maioria da classe dominante brasileira era contra, mas também porque, além disso, teria significado um desafio às massas e às relações de forças que se configuravam para abrir uma caixa de Pandora].
Quem não vê isso, não vê nada. Quem diz “sim, Lula ganhou, mas por uma pequena diferença” está dizendo a verdade, mas é uma meia verdade. Primeiro, porque ele ganhou a presidência. Segundo, e sobretudo, porque por trás não de seu triunfo eleitoral, mas da derrota eleitoral de Bolsonaro, que não é exatamente a mesma, e da derrota dos piquetes, o que se viu foi um “resultado histórico”: o bolsonarismo veio para ficar, e não está estrategicamente derrotado, por assim dizer. Mas ele recebeu um primeiro tapa retumbante na cara em 4 anos amém (um tapa que as próprias relações de forças receberam), mostrando-se, em suma, neste primeiro grande combate, como um “Leão sem dentes” (ou com dentes menos afiados do que se pensava).
De qualquer forma, os últimos dias no Brasil foram mais uma prova de que, por trás de qualquer resultado eleitoral, a medida de todas as coisas está sempre, de uma forma ou de outra, na luta de classes (no teste das relações de forças).
E isso está ligado a mais uma questão: a experiência eleitoral burguesa é em grande parte uma experiência individual: uma pessoa, um voto. No entanto, a luta, a luta, é uma ação coletiva. E, obviamente, a força da classe trabalhadora, o que ordena tudo, por assim dizer, é a ação coletiva de nossa classe (que também acomoda as cabeças dos trabalhadores, que são bombardeadas dia e noite pela mídia e redes dominadas pelo sistema). Por isso, a ação coletiva de nossa classe vale infinitamente mais do que uma ou outra “fotografia eleitoral” (argumento que usamos não para minimizar a importância da derrota eleitoral de Bolsonaro, nada a ver com isso, mas quando alertamos sobre o alcance e também os limites de um eventual triunfo do “capitão reformado” – descartado).
E como dissemos em uma troca de ideias com nossos companheiros do SoB Brasil, este é um dos maiores crimes históricos do PT: ter inibido a ação coletiva de nossa classe (ter entorpecido seus reflexos de luta coletiva). E, no entanto, como disse Trotsky, as classes sociais são mais fortes do que qualquer aparato. Assim, quando a potencialidade de tal ação teve que se manifestar no limite (o “poder” das massas poderíamos afirmar no sentido espinosiano tony negrista); quando ninguém a chamou e o PT, desesperado, arriscou tudo para evitá-la, os setores populares começaram a se mobilizar para romper os piquetes.
Aquele motorista que levou um piquete de fascistas bolsonaristas à sua frente, uma ação que se tornou viral ao infinito, deve ter sido muito “bestial” (para nós foi muito bom; tais são as regras da guerra civil[48]), mas em sua ação ele refletiu – e, sobretudo, convocou – o que estava por vir se a provocação bolsonarista continuasse: uma explosão social de proporções bíblicas.
Portanto, nada: uma lição universal da luta de classes nestes últimos dias no Brasil. Isso está além do fato de que está claro que está chegando um governo de conciliação de classes que vai ceder em tudo e muito mais, para o qual será necessário ser uma oposição de esquerda a ele. E que, de resto, a luta com o bolsonarismo não acabou (não pode ser encerrada pelos reformistas).
6 – Post scriptum
De fato, o que apontamos na versão original desse ensaio foi demonstrado: a luta com a extrema direita não pode ser encerrada pelos reformistas.
E não apenas porque Bolsonaro ainda não foi preso após dois anos de sua tentativa, mas porque, de qualquer forma, figuras de extrema direita como Tarsicio podem substituí-lo em 2026.
A verdade é que o governo Lula 3 é um fracasso completo; que não só não reverteu as contrarreformas de Temer e Bolsonaro como as aprofundou: “Lula 3 tem menos autonomia para decidir e menos dinheiro para executar do que o que Lula 1 e 2 tinham (…) Se juntarmos as três dimensões do plano político atual – um Congresso hostil e empoderado; o mercado entre desconfiado e zangado; o mundo em recessão democrática e submetido a uma incerteza gigantesca – não é difícil concluir que as coisas são do agrado de um homem de direita. Se depender das elites locais, o país será entregue a um consórcio entre o Centro e o bolsonarismo” (“A esquerda acossada”, Fernando de Barros e Silva, Piauí, maio, n~224).
O autor deste artigo conclui, no entanto, reclamando da idade de Lula e da falta de renovação no PT. E não se trata apenas disso, embora também seja disso: ao longo de 40 anos de sua existência e especificamente desde seu primeiro mandato em 2003, Lula e o PT mais a CUT se dedicaram a conter a classe trabalhadora brasileira, a maior do continente, e a pacificar as coisas; continuando com esse curso, a extrema direita retorna, como o próprio Arcary reconhece, embora isso não seja motivo para ele e sua organização (Resistência) deixarem o movimento oportunista da frente popular!
De qualquer forma, isso é apenas uma parte do “filmi” brasileiro, como é costume dizer naquele país. Porque também é verdade que entretanto se consolidou um fenómeno com o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores como os entregadores, que expressam uma espécie de renovação do movimento operário naquele país e que intelectuais marxistas como Arcary parecem não ver: uma categoria que hoje atinge entre 1 milhão e 350.000 membros (o primeiro número é o dos trabalhadores em candidaturas, o segundo é especificado por entregadores-entregadores).[49]
Renato Assad retrata bem essa emergência: “A dimensão dessa greve também é destacada em nível internacional, pois, além do apoio de vários entregadores e motoristas em países como Estados Unidos, Argentina, Itália, Suécia, Taiwan, Filipinas, Equador e Colômbia, não há processo de organização semelhante em nenhum país. Não há movimento semelhante até hoje que se aproxime da dinâmica, peso e profundidade que se expressou por alguns anos na guerra dos entregadores do Brasil contra as empresas-plataformas” (“Uma greve histórica”).
Na realidade, o processo tem muita importância e densidade estratégica em vários países como expressão do surgimento de uma nova classe trabalhadora. Sem ir mais longe, o caso da SITRAREPA na Argentina, e o caminho para o Segundo Congresso Mundial em abril do próximo ano em Los Angeles.
Mas o que é válido é que o último avanço foi histórico (e com impacto internacional): nos dias 31 de março e 1º de abril, houve uma greve de entregadores sem precedentes que atingiu dimensões nacionais em um país-continente como o Brasil: 100 cidades em pelo menos 20 estados foram afetadas pela greve (falta de entregas e entregas)!
Logicamente, isso não muda, que a popularidade de Lula é muito baixa e que o país parece estar caminhando para uma nova guinada de pêndulo para a direita (uma oscilação de pêndulo que, talvez, possa ser interrompida com a prisão de Bolsonaro e outros golpistas!).
No entanto, há vida. Não só a lacuna histórica, mas também a experiência de dois anos e meio atrás – quando o Brasil estava à beira de explodir – expressa que é impossível descartar que grandes confrontos de classes virão no médio prazo no gigante latino-americano.
Entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, essa possibilidade estava latente; foi evitado porque Lula já estava no governo e Bolsonaro recuou. Por outro lado, é verdade que a situação internacional, e também no Brasil, é reacionária.
Mas, como apontamos na versão original deste ensaio, tudo tem uma medida.
Em outra nota de nossos companheiros no Brasil, é apontado que estamos vivendo uma “dupla crise” do bolsonarismo e do lulismo e convoca uma luta em duas frentes: a demanda contra a austeridade e a democrática pela prisão de Bolsonaro.
No Brasil, a esquerda está passando por um processo lento, mas seguro, de refundação. Um processo de morte do velho e nascimento do novo: uma nova esquerda revolucionária.
E nossa jovem corrente naquele país aposta com todas as suas forças para ser um componente principal dessa recomposição política, que supere tanto a experiência de frente populista das correntes do PSOL quanto o sectarismo inveterado e doutrinário do PSTU.
Bibliografia
AAVV, Imagens da cidade da Bahia, un diálogo entre a geografía e a arte, Salvador, Bahia, 2007.
Valerio Arcary, Um reformismo quase sem reformas. Uma crítica marxista do gobernó Lula en defesa da revolucao brasileira, Editora Sundermann, Sâo Paulo, 2014.
- “¿Brasil, nação «interrompida»?”, Instituto Humanitas Unisinos, 17/05/25.
- “Impasse tático, perigo estratégico”, Brasil de Fato, 04/06/25.
- “Brasil: Dez Teses Insolentes sobre a Decadência Nacional”, Sem permissão, 14/07/24.
Renato Assad, “Contra as cordas: bolsonarismo demonstra fraqueza e elementos de desmoralizacao”, esquerda web, 18/03/25.
- “Uma greve histórica”, web esquerda, 04/12/25.
Victor Artavia, “MRT: Uma Escola de Covardia Política”, Web Left.
Renato Assad, “Um leão sem dentes”, web esquerda.
Ricarto Antunes, Capitalismo Pandémico, Boitempo, São Paulo, 2022.
Manuela Castañeira, “A derrota de Bolsonaro é um triunfo popular”, esquerda da web.
Florestan Fernandes, A revolucao burguesa no Brasil. Ensaio de interpretacao sociológica, Editora Globo, Sâo Paulo, 2006.
Celso Furtado, A Nova Dependência. Dívida Externa e Monetarismo, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982.
Octavio Ianni, O colpaso do populismo no Brasil, Civilizacao brasileira, Rio de Janeiro, 1988.
Mario José Maestri Filho, Depoimentos de escravos brasileiros, Icone editora, Sâo Paulo, 1988.
Rodrigo Nunes, Do transe a vertigem. Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transicao, Ubu editora, Sâo Paulo, 2022.
Francisco de Oliveira, O Neo-Outro Brasileiro. Os processos de modernização conservadora, de Getúlio Vargas a Lula, Siglo Veintiuno Editores, Argentina, 2009.
Roberto Sáenz, “Notas sobre Marxismo, Estado e Bonapartismo”, web esquerda.
-“Brasil, um cenário perigoso”, web esquerda.
-“Uma conjuntura ligada à dinâmica brasileira”, web esquerda.
-“O Brasil e o futuro da esquerda”, web esquerda.
-“Os limites elásticos do possibilismo”. A esquerda brasileira diante do perigo de uma capitulação histórica, esquerda da web.
Fernando de Barros e Silva, “A esquerda acossada”, Piauí, mayo 2025, n~224.
Antonio Soler, O colapso do Lulismo. Ascensão y queda de un pacto social, Coleção SoB, Guarulhos, 2015
NOTAS
[1] O uso de colchetes nesta nota é porque intercalaremos as referências da atualização de 2025 à nota escrita em 2022.
[2] Mais uma semana de campanha presidencial e Bolsonaro venceu a eleição. O fato é que a campanha eleitoral de Lula e Alckmin foi realizada, inteiramente, no terreno de Bolsonaro e não por conta própria (Lula renunciou ao direito ao aborto, fez um segundo turno quase que todo na questão da religião e só no final da campanha um deslize de Paulo Guedes apontando que o salário mínimo e as aposentadorias não seriam mais reajustados pela inflação, permitiu que Lula assumisse as bandeiras econômico-sociais).
[Esse caráter defensivo do governo Lula-Alckmin “brando com os patrões e duro com os trabalhadores” está sendo verificado neste momento, quando até mesmo seus defensores como Valério Arcário alertam que “A vitória eleitoral da Frente Ampla está se transformando em uma derrota política para a esquerda” (“Impasse tático, perigo estratégico”, Brasil de Fato, 04/06/25) e que há um certo perigo de que um realinhamento burguês em torno de uma figura como Tarcísio seja impor nas próximas eleições presidenciais].
[3] Mais adiante veremos a passagem do império da Igreja Católica para os pentecostais evangélicos.
[4] [Falamos da ideia de “alimentar a democracia” porque recentemente Lula se aproximou de uma mobilização popular, achamos que nos lembramos, em São Paulo para exigir salários e quando questionado sobre essa mobilização, Lula respondeu algo como “eles deveriam estar felizes porque pelo menos agora há democracia para exigir”…].
[5] Um camarada de nossa corrente nos disse, e ele está certo, que de certa forma é preciso “se apaixonar” pelo país para conhecê-lo logicamente do que nunca perder o contexto maior que é o mundo como um todo.
[6] Deve-se lembrar que a Índia contemporânea continua a expressar uma mistura mais ou menos informe de divisão de classes e estratificação de castas , de modo que a comparação do Brasil com a Índia não deixa de adicionar drama ao seu “raio-x social” …
[7] [“Todas as nações capitalistas, no centro e na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade vem aumentando desde a década de 1980. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade “anacrônica” (na verdade, não é apenas o capitalismo brasileiro). Por que os graus de desigualdade social foram sempre tão, desproporcionalmente, altos, em comparação com nações vizinhas, como Argentina ou Uruguai?” (“Brasil, nação ‘interrompida’?”, Instituto Humanitas Unisinos, 17/05/25). Arcary sublinha um elemento básico específico de sua formação social histórica, com o qual concordamos: o império da escravidão por 350 anos de sua história.]
[8] Às vezes é irreconhecível se há ou não uma pessoa humana atrás de tecidos ou cobertores (a miséria no Brasil é ser jogada em um fundo social que adquire a dimensão de um abismo infinito, de um verdadeiro “buraco negro” social).
[9] Octavio Ianni já falava décadas atrás do êxodo rural-urbano que caracteriza o Brasil, revelando as dimensões sociais e humanas da industrialização e urbanização no país ao que poderíamos agora acrescentar ao crescimento do agronegócio, ao desmatamento da Amazônia e à desindustrialização do Brasil (ou seja, as tendências históricas progressivas e regressivas e contratendências que marcam as “mãos e contra-mãos” do desenvolvimento brasileiro nos últimos anos). Décadas; suas clivagens contraditórias mais profundas).
[10] É impossível ter percepções de um país que não se visita há 20 anos, e menos ainda neste mundo em constante transformação, em “estado líquido”.
[11] Se Bolsonaro não se atreveu a ignorar o resultado eleitoral apesar das estreitas margens pelas quais perdeu, é porque, entre outras razões, temia uma explosão social no país. Sabei que a crença de que no Brasil não haveria reservas no movimento de massas ou de que suas relações de forças estavam acertadas era falsa: bastava apenas a ameaça do Corinthians de varrer os piquetes para ser negada…
[12] Brasília é um exemplo do fracasso das “utopias arquitetônicas” resultantes da transformação das relações sociais (utopias em voga na década de 1920 sob o impacto do modernismo, tendência extremamente progressista – voltaremos). Otto Niemeyer, um grande arquiteto brasileiro filiado ao Partido Comunista, foi o criador de Brasília, assim como de muitas outras obras brilhantes da arquitetura. Mas, além da falsa ideia de que a arquitetura poderia transformar a vida por si só, o fato é que Brasília permanece como uma obra desproporcional, abstrata, cujo gigantismo conspira contra o elemento utópico e não o contrário (qualquer mobilização popular em sua esplanada parece ser feita por “formigas” do ridiculamente imenso que é! Uma ode ao Estado brasileiro e não ao seu movimento de massas).
[13] Soler acrescenta, algo que geralmente não é destacado, que a direção sindical liderada por Lula, começou sua jornada traindo as greves metalúrgicas do final dos anos 70, recusando-se sistematicamente a unificar as greves do setor no ABC com as do resto do país.
[14] É um clássico que as massas são maiores do que qualquer aparato e que essas massas, em condições extremas, mesmo com as direções contra elas, muitas vezes irrompem na história e a viram de cabeça para baixo (Rosa Luxemburgo, dixit) mesmo contra as previsões daqueles que acreditam que as massas populares brasileiras são irremediavelmente “mansas” ou que deveriam ser tuteladas paternalistas (Lula e o PT, e por que não as correntes do PSOL – todas elas, direita e esquerda).
[15] Muita militância e intelectuais ficaram impressionados com Bolsonaro, um perigo real, mas, como qualquer perigo, sempre exige medir sua magnitude ao milímetro, nem subestimá-lo nem superestimá-lo, procurando uma maneira prática de parar sua mão.
[16] [Arcary resume sumariamente em “Brasil, nação “interrompida”??] algumas das análises da formação social do país. Primeiras obras burguesas como Evolução do Povo Brasilero, de 1923, de Oliveira Viana e Casa Grande y Senzala, de Gilberto Freire, ambos adeptos da ideia de que o povo brasileiro tinha que ser “embranquecido”, que o problema era a sua “miscigenação”. Após a já citada obra de Sérgio Buarque de Hollanda, ele acrescenta uma lista de obras marxistas: Alberto Passos Guimarães, Quatro séculos de latifúndio e Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil, ambas sobre o formato do PCB que a formação colonial brasileira teria sido “feudal”. Mais adiante cita outro intelectual originário do PCB, Caio Prado Jr. e sua tese do Brasil como uma “nação interrompida” (Caio Prado romperia com o PCB e seu esquema de “revolução em etapas” após o golpe militar de 1964, acrescentamos), e acrescenta o trabalho de Jacob Gorender, que questionou a ideia de um passado feudal para o país defendendo a tese de que o Brasil colonial teve seu próprio modo de produção, “escravista colonial”. Em seguida, acrescenta as teses de André Gunder Frank sobre a colonização capitalista direta do Brasil (e do resto da América Latina), uma tese com aspectos progressistas, mas esquemáticos, sem nuances, e as teses de Moreno, Vitale e George Novack, que, inspirados pela teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, “apreciaram a colonização como um processo mais complexo, o resultado de um amálgama entre interesses capitalistas, relações sociais escravistas e formas jurídicas feudais, uma formação social original, um híbrido histórico. A lista de Arcary não é exaustiva, mas serve para preencher “lacunas” em nossa análise.]
[17] As etapas econômicas contemporâneas do Brasil são: a) modelo agroexportador de café até 1930, b) substituição de importações de 1930 a 1964, c) desenvolvimentismo multinacional durante o governo militar e d) neoliberalismo a partir da década de 1990 (Collor de Melo até hoje).
[18] Resta saber em que categoria, por exemplo, a Índia se encontra com todo o seu enorme desenvolvimento desigual, mas talvez suas características tenham, de certa forma, muitos pontos comparáveis aos do Brasil, embora sua população seja cinco ou seis vezes maior.
[19] “Modernizar” os governos burgueses de mãos dadas com o imperialismo e as multinacionais.
[20] A chamada “PEC Kamikaze” foi uma série de ordens de gastos aprovadas pelo Congresso por Bolsonaro, além do fato de que também existem despesas secretas que ele mesmo pode realizar… Ou seja, uma operação bonapartista e discricionária no que diz respeito aos gastos que, em suma, não está claro onde começa e onde termina.
[21] O México está muito próximo dos Estados Unidos para ter uma força gravitacional semelhante à do Brasil.
[22] Grosso modo, as etapas do desenvolvimento político contemporâneo do Brasil são: a) a “República Velha”, uma etapa oligárquica que vai do final do século XIX a 1930, b) o “Estado Novo” sob as primeiras presidências ditatoriais/populistas de Getúlio Vargas e terminando em 1964, c) a ditadura militar de 1964 a 1985 (com as primeiras eleições por voto universal desde a “democratização” em 1989, e d) a “Nova República” com a Constituição de 1988 como evento fundacional, por assim dizer.
[23] Em relação ao PT, Antunes ressalta que quando chegou ao governo em 2003 o partido não era mais o mesmo. O transformismo já o havia tocado profundamente. Em primeiro lugar, no que havia sido característico em sua origem: sua origem social e popular. Uma análise semelhante é a expressa por Antonio Soler referindo-se ao transformismo como uma cooptação orgânica do PT no regime burguês. No entanto, ele ressalta que não houve uma “revolução passiva” nos governos do PT, simplesmente porque nenhuma grande transformação estrutural ocorreu mesmo de cima.
[24] Deve-se dizer que um traço característico do Brasil, em contraste com a Argentina, é que possui uma grande camada de sociólogos e cientistas políticos que produzem ensaios sobre o país dia e noite, algo ausente no atual cenário argentino.
[25] Antunes fala do Brasil como uma sociedade capitalista dependente do tipo “prussiano”, no sentido de uma industrialização tardia de origem em uma sociedade senhorial, escravista, colonial e dependente virulenta e autocrática em relação às classes populares, e servil, subordinada e dependente em relação às burguesias centrais.
[26] A questão da pobreza continua a ser extremamente densa no gigante latino-americano. Não podemos entrar em muitos detalhes aqui, mas a distribuição da riqueza é tão regressiva que é obscena: enquanto as classes altas vão às compras em helicópteros, há dezenas de milhares, senão milhões, que estão literalmente morrendo de fome (muitas pessoas pulam refeições como de costume).
[27] [Essa dependência dos EUA é o que pode explicar em parte, embora não justifique de forma alguma, o campismo da esquerda reformista brasileira que gira em torno da Rússia e, eventualmente, da China. Até Arcary agora apóia especulações como a de que a China hoje não seria “nem um estado operário nem um país capitalista”, mas seria “um estado burocrático” …
Como já o criticamos em outro lugar, essa posição é delirante e fora do contexto histórico e nada mais faz do que alimentar à sua maneira o campismo que Arcary diz rejeitar: se a China não é capitalista, por que não defendê-la contra o imperialismo ianque?
Em nossa opinião, a coisa é clara: a China é capitalismo de Estado, um imperialismo em ascensão sem nenhuma característica progressista.
No recente painel com o companheiro Henrique Carneiro em nossa casa “Rosa Luxemburgo” em São Paulo, ele se posicionou claramente contra o acampamento, neste caso em relação ao conflito na Ucrânia. Embora esse conflito seja muito complexo e haja nuances em nossas respectivas posições, ficamos impressionados com a forma como ele expressou a pressão pró-russa que se expressa na esquerda brasileira.]
[28] Já filmes clássicos como “O Beijo da Mulher Aranha” ou “Carindu” retratam o que estamos apontando: a barbárie prisional em sua forma mais pura.
[29] [“Olhando para 2026, o Centro deixa de lado a reforma ministerial do governo Lula” é o título de um artigo na Folha de São Paulo de 26/05/25. Com um claro instinto “fisiológico” (são um grupo de partidos que sempre se alinham com a maioria governista e têm o maior número de cadeiras no Congresso brasileiro), já estão se distanciando do partido governista de Lula: “De acordo com os membros do Unión Brasil, PSD, MBD, PP e Republicanos – quinteto aliado de Lula fora da esquerda – o governo perdeu o timing para transformações de impacto do ponto de vista do apoio parlamentar e da formação de uma aliança em busca de um quarto mandato (…) estimulando nos bastidores e publicamente a candidatura presidencial do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP)”.
[30] [Este é o pior governo dos três que Lula já teve, um mandato que o coloca em seus piores índices históricos de popularidade].
[31] Antunes define claramente o PT como um “partido da ordem”.
[32] Cada mudança de regime político, o conjunto de suas nuances, implica relações de diversas forças e eventos que não podem ser substanciados fora da luta de classes. Esta é a lição deixada por Trotsky quando insistiu, por exemplo, que o próprio bonapartismo era um regime de transição onde as relações de forças permaneciam abertas e podiam se inclinar para um l
[33] [No poscriptum, veremos que essa advertência de “não exagere” tem sua base quando vemos o crescimento da categoria de libertadores.]
[34] Arcary aponta que nas lutas parciais da classe trabalhadora nas últimas décadas, a classe trabalhadora sempre foi “mais radical em suas ações do que em suas reivindicações. Ele moveu montanhas, mas para reivindicar muito pouco” (Arcary; 2014; 49). O que fala de outra questão apontada por ele e com a qual concordamos, de que a classe trabalhadora brasileira continua sendo, de certa forma, uma classe trabalhadora ainda jovem marcada, também, pela inércia reacionária de um país culturalmente muito atrasado e onde o medo de represálias sempre foi muito eficaz para neutralizar a ação coletiva de um povo politicamente mal organizado (idem; 50). E, no entanto, o que temos visto nos dias de hoje é uma emergência antineofascista que, talvez, não estivesse no cálculo de muitos, mas que passou por cima dos freios que o PT tentou colocar nela.
[35] Um camarada brasileiro nos disse com perspicácia que há elementos no Brasil de hoje que se referem – logicamente, em termos muito gerais – à “ética protestante e ao espírito do capitalismo” magistralmente retratados na época por Max Weber em uma obra de mesmo nome.
[36] Andres Singer e outros sociólogos brasileiros relatam que, nas eleições de 2006, Lula mudou sua base social: o conservadorismo tradicional dos estados do nordeste do Brasil deslocou-se para o PT, ao mesmo tempo em que o PT perdeu sua base social no sudeste mais industrializado (uma tendência que continua até hoje se mantivermos o fato de que na única região que Lula impôs, e por enorme diferença, estava no nordeste).
[37] Antunes fala da ideologia do empreendedorismo como um mecanismo para esconder as relações de (exploração) assalariadas.
[38] [É impressionante como a extrema direita é realmente uma “internacional”, como Macron a definiu apropriadamente. Tendo escrito esse ensaio antes da chegada de Milei à Argentina e revisando-o para esta nova publicação, ficamos impressionados com a figura do “bom cidadão”, que é exatamente a usada pelo presidente libertário em nosso país e da qual não nos lembramos. Há toda uma literatura conservadora que justifica essa corrente, como sua crítica contundente à “justiça social” que deve ser revista].
[39] Logicamente, discordamos nesse aspecto de Valério Arcary, que acaba superestimando o bolsonarismo e substituindo as massas populares. Os perigos do fechamento do regime existiam e continuarão a existir. E, no entanto, também é verdade que houve uma reação popular que foi além das eleições e não pode ser deixada de fora da análise.
[40] Um neoliberalismo com uma pátina social que nunca chegou a um desenvolvimentismo (desenvolvimentismo).
[41] É significativo que Arcary fale em seus últimos artigos do perigo do facilismo. E é verdade, existem os dois perigos: facilismo e impressionismo. Mas depois do tapa na cara que Bolsonaro recebeu quando não pôde nem ignorar a eleição e embora o bolsonarismo tenha vindo para ficar e, sem dúvida, represente perigos no futuro, o apelo à crítica ao facilismo pode ser o recurso para uma crescente queda oportunista (é certo que o PSOL se refugiará nisso para entrar no governo burguês com armas e bagagens).
[42] Seu argumento refere-se a sociedades pré-capitalistas onde subsistiam elementos associativos ligados à comunidade rural ou a corporações artesanais dissolvidas sob o capitalismo e o império do “trabalho livre”.
[43] Embora as mudanças revolucionárias ou contrarrevolucionárias ocorram no frio, em todo caso atentas a uma mudança ocorrida anteriormente e que talvez não soubéssemos medir.
[44] Isso mostra que a análise também pode ser instrumentalizada para outros propósitos que não seu verdadeiro propósito, que é estimar objetivamente a verdadeira correlação de forças.
[45] Trotsky tinha uma metáfora ilustrativa em relação a eles quando falou de um alpinista que olhou para uma parede de montanha à distância e parecia suave, mas quando se aproximou começou a encontrar as saliências para se apoiar para conquistá-la.
[46] Esse crime foi cometido pelo grupo PTS no Brasil, MRT, que, vergonhosamente, inventou a tática do “voto nulo envergonhado”… Nos anais do marxismo revolucionário nunca se viu uma tática política tão covarde (um apelo “clandestino” ao voto…).
[47] O fato de que por trás da aritmética eleitoral há sempre as relações de forças é algo universal (o que se aplica a vários terrenos e não apenas às eleições burguesas).
[48] As regras da guerra civil não podem ser escolhidas: são olho por olho, dente por dente. A responsabilidade recaiu sobre os fascistas que bloquearam as estradas exigindo o golpe militar. (Se fosse possível, eles teriam que ser fuzilados. Ou seja: levantar as bandeiras democráticas com métodos revolucionários – que os transcendam).
[49] O camarada Ricardo Antúnez, entre outros intelectuais marxistas, é um dos pesquisadores que está na vanguarda do estudo das novas formas de exploração do trabalho em geral no mundo e dos libertadores no Brasil em particular.
Tradução: Mariah Martins e José Roberto Silva de https://izquierdaweb.com/brasil-contemporaneo-apuntes-sobre-una-sociologia-politica/
Iustração: Di Cavalcanti, Cinco moças de Guaratinguetá, 1930.