Após 15 anos de lançamento do Manifesto “É necessária uma nova corrente internacional”, da corrente internacional Socialismo ou Barbárie, algumas partes do texto, evidentemente, envelheceram, no entanto, suas perspectivas estratégicas seguem mais atuais do que nunca. Assim, recomendamos aos jovens militantes, colaboradores e simpatizantes da corrente essa leitura, pois a consideramos fundamental para construir hoje os balizamentos políticos-teóricos para a ação militante socialista revolucionária.

A Redação

É necessária uma nova corrente internacional

Para lutar pela recomposição do marxismo revolucionário

I

Com a queda do Muro de Berlim, as transformações do capitalismo, conhecidas sob o nome impreciso «Globalização», e as lutas políticas e sociais do início do século XXI, abriu-se um novo ciclo histórico da luta de classes mundial, que também forma um novo ciclo na experiência das correntes de vanguarda e revolucionárias (e na grande maioria do movimento trotskista).

Assim, no presente ciclo, abriu-se um processo de recomposição do movimento operário e dos movimentos sociais e, portanto, dos revolucionários.

II

Falamos de novo ciclo histórico porque as coordenadas da luta de classes mundial mudaram em relação à primeira e segunda metade do século XX.

Acreditamos que nos últimos cem anos podemos identificar três ciclos históricos mundiais da luta de classes:

1) A partir da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a Revolução Russa de 1917 até o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45).

2) Do segundo pós-guerra até a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética (1989-1991).

3) O ciclo atual, a partir da queda do Muro de Berlim, o avanço da mundialização do capital e os processos contínuos de luta e resistência.

III

Esse novo ciclo vem se configurando em torno de coordenadas políticas, sociais e econômicas diferentes daquelas que caracterizaram a primeira e a segunda metade do século XX.

Geralmente, na atualidade, a irrupção dos movimentos de luta é combinada com fortes elementos de democracia de base. Mas, no geral, esses movimentos ainda são híbridos do ponto de vista de classe e estão marcados pela continuidade de uma crise de subjetividade e da alternativa socialista ao capitalismo. Essas características e problemas têm a ver principalmente com as consequências contraditórias herdadas dos processos políticos, econômicos e sociais do século XX após a queda do Muro de Berlim.

Por um lado, o colapso do “socialismo” fraudulento e burocrático alimentou, entre as massas e em setores importantes da vanguarda, a falsa ideia do “fracasso do socialismo” ou, pelo menos, a impossibilidade de ultrapassar os limites do capitalismo no atual período histórico.

Essa crise da alternativa socialista ao capitalismo continua a influenciar negativamente em vários sentidos. Ela explica o paradoxo de que, numa fase em que o capitalismo não pode e não quer conceder concessões importantes (especialmente nos países da periferia), existem, no entanto, fortes correntes reformistas, novas e antigas. E, diante dos desastres sociais, as várias variantes do “antineoliberalismo” são bem-sucedidas em vender a fábula do “outro capitalismo” melhor e mais humano.

Essa crise da alternativa socialista tem influenciado fortemente para conter e setorizar as lutas em geral e tratar que não se aprofundem em um sentido de classe e anticapitalista e, principalmente, impedir que as grandes rebeliões que marcaram o início do século XXI, transformem-se em autênticas revoluções; isto é, que adquiram uma dinâmica conscientemente operária e socialista de luta pelo poder.

IV

O correlato social desses problemas políticos é o caráter socialmente “híbrido” e confuso de muitos desses movimentos, lutas e rebeliões, porque ainda não é a classe trabalhadora (especialmente aquela que está empregada) que está no centro desses processos.

O capitalismo globalizado tem ampliado como nunca o sistema de trabalho assalariado em escala mundial. Mas, gera, simultaneamente, uma classe trabalhadora mais heterogênea e fragmentada, junto com grandes setores de desempregados e/ou excluídos. Ao mesmo tempo, essas transformações estruturais foram combinadas com a crise ideológica e política dos movimentos operários herdados do século passado e com a passagem total de suas burocracias para o campo do capitalismo, que acabou se consumando após a queda do Muro.

No entanto, é um fato que o capitalismo continua estruturalmente fundamentado na exploração da classe trabalhadora assalariada, a qual continua a ser a única fonte de mais-valia. E é também um fato que, ao mesmo tempo em que destrói ramos completos da economia (e mesmo países inteiros) e gera o tremendo fenômeno do desemprego em massa, o desenvolvimento contraditório das forças produtivas gera outros grandes batalhões da mesma classe trabalhadora (como é o caso da China, Índia e etc.), bem como a criação de novos ramos de produção em tantos países. Esses batalhões são o componente fundamental da nova classe trabalhadora que explode no início do século XXI, que terá que assumir a tarefa de alcançar a unidade das filas operárias através de uma estratégia de unidade de classe que permita, ao mesmo tempo, disputar a hegemonia sobre o resto dos setores explorados e oprimidos.

V

Essa mudança histórica também trouxe consequências amplamente positivas que, com certo atraso, hoje começam a desdobrar-se. As lutas e movimentos trazem fortes impulsos para a democracia a partir de baixo e a rejeição das tutelas burocráticas que enquadram os processos do século passado.

A falência do estalinismo como um aparato mundial deixou o terreno qualitativamente mais claro para o marxismo revolucionário. Hoje, embora não constitua partidos com influência de massas e seu peso esteja essencialmente na vanguarda, o marxismo revolucionário deixou de ser marginal, no sentido do que era quando trabalhadores e movimentos sociais eram cercados por muralhas burocráticas quase impenetráveis.

Todas essas mudanças e fatores, lutas sociais e experiências políticas, aliadas à necessidade de enfrentar um capitalismo que engendra situações cada vez mais insuportáveis, geram em muitos países processos de recomposição dentro da classe trabalhadora e das massas populares dos movimentos operários e sociais, que inicialmente se manifestam, acima de tudo, como processos na vanguarda.

VI

Esse processo de recomposição também relançou o debate estratégico no campo da vanguarda. Ele colocou novamente as seguintes questões na mesa: o debate sobre reforma ou revolução; o problema do poder dos trabalhadores; o da centralidade da classe trabalhadora na transformação social e suas relações com outros setores explorados e oprimidos; o da construção de partidos e/ou movimentos e suas relações mútuas; o problema da hegemonia; o equilíbrio das revoluções do século XX e etc.

Esse problema teórico-político e a estratégia revolucionária volta a desenvolver-se no seio da vanguarda ante a necessidade de dar respostas em uma situação em que, por um lado, muitas das questões clássicas da estratégia revolucionária são colocadas de volta na mesa, e, por outro lado, isso ocorre em um contexto e condições que exigem uma renovação e atualização do marxismo revolucionário para o século XXI.

VII

Nas condições deste novo ciclo histórico, estamos em um momento preparatório e/ou transitório da luta de classes internacional, cuja característica fundamental é justamente o início desses processos de recomposição, marcados por fenômenos “híbridos” em seu caráter de classe, mas que constituem um progresso político, especialmente na linha de frente. Isto assume formas muito diferentes e desiguais nos países e regiões, e está intimamente relacionado com as lutas e/ou experiências políticas das massas e da vanguarda.

Esses processos de luta e resistência tiveram como principais pontos de referência os movimentos chamados de “alter-mundistas” ou “anti-globalização” (com centro de gravidade na Europa), depois dos movimentos contra a guerra nessas mesmas regiões e, na América Latina, rebeliões como as do Equador, Argentina e Bolívia e vários “movimentos sociais” e de trabalhadores, que pode-se dizer constituem as “primeiras revoluções” do século XXI.

Embora de maneira muito desigual, verificou-se uma intervenção militante e um peso das correntes marxistas revolucionárias na vanguarda desses processos europeus e latino-americanos.

Na Europa, um exemplo tem sido o papel desempenhado pelo SWP do Reino Unido na formação do movimento anti-guerra. Na América Latina, o principal exemplo talvez seja o peso do trotskismo na vanguarda do “Argentinazo”, especialmente entre os movimentos de desempregados (“piqueteiros”), assim como no movimento de fábricas recuperadas. E, ultimamente, nos núcleos de oposição antiburocrática em setores de trabalhadores ocupados, cuja experiência mais importante hoje é aquela incorporada pelo Corpo de Delegados do Metrô e o impulso da campanha pela jornada de 6 horas. Mesmo em um país como o Brasil, onde ainda não houve rebeliões como as mencionadas, nem um grande aumento das lutas operárias e populares, diferentes correntes do trotskismo têm uma importância fundamental nos processos de recomposição política e sindical que se iniciaram à esquerda do PT e da CUT. Na Venezuela, onde se desenrola a experiência peculiar de reeditar o nacionalismo burguês nas condições da globalização capitalista, quase todos os marxistas revolucionários, como o resto da esquerda, foram politicamente subordinados a Chávez. Nesse contexto, a nível sindical, dirigentes operários que reivindicam a tradição do trotskismo têm desempenhado um papel fundamental na formação de um nova central sindical.

A invasão do Iraque deu origem, por um lado, a um grande movimento antiguerra, principalmente na Europa e nos EUA, e, por outro lado, a uma rebelião nacional contra a ocupação imperialista. Como dissemos, o trotskismo também desempenhou um papel importante na vanguarda do movimento antiguerra, embora não na resistência iraquiana. Por várias razões, desde o século passado, o marxismo revolucionário nunca conseguiu acumulação mínima nos países árabes daquela região.

Mas, para além dessa importante desigualdade, o fato é que as correntes marxistas revolucionárias de hoje têm uma posição que não é a da marginalidade em que, geralmente, estiveram durante a maior parte do século XX.

Estamos, então, em um novo terreno mais favorável. Mas, ao mesmo tempo, isso representa crescentes responsabilidades políticas e maiores exigências.

VIII

As grandes mudanças desse novo ciclo histórico e os processos de recomposição que se apresentam nos movimentos de trabalhadores e sociais também colocaram o começo e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma recomposição do marxismo revolucionário.

Trata-se também da abertura de um novo ciclo nas correntes revolucionárias. É o que explica os elementos de crises e rupturas, de busca e de reagrupamento das correntes, que vêm acontecendo.

Por um lado, as diferenças que marcaram essas divisões hoje podem ser reexaminadas sob uma nova luz. Por outro lado, a luta de classes neste novo ciclo também gera novos problemas teóricos, políticos e programáticos, que apontam para limites diferentes daqueles configurados no período pós-guerra.

Esse processo de recomposição do marxismo revolucionário não é, no entanto, rápido ou fácil. Apresenta uma variedade de dificuldades e obstáculos.

Há, por exemplo, no campo aqueles que veem uma recomposição como possível e necessária, mas aí, as dificuldades vão desde uma concepção de recomposição que quer estabelecer relações diplomáticas entre as correntes, até a existência de setores que, numa deriva oportunista, apagam as fronteiras políticas e de classe com um “antineoliberalismo” que somente postula outro capitalismo mais humano

Não menos são os problemas que surgem entre organizações sectárias, com força em algum país e com pequenos grupos afins em outras latitudes, que se consideram os “únicos marxistas revolucionários” do planeta e caracterizam o resto como “centristas” mais ou menos degenerados, ou diretamente, contrarrevolucionários. Mas, é claro que o problema da recomposição do marxismo revolucionário não pode ser reduzido ao simples expediente do crescimento numérico de uma “Internacional” e à desqualificação das outras correntes. Esse caminho não pode conduzir a nenhum lado.

No entanto, apesar de suas dificuldades, o processo está aberto e há condições para levá-lo adiante, especialmente se o desenvolvimento da luta de classes influenciar positivamente. Pensamos que isso obriga (em cada caso) a fazer “a análise concreta da situação concreta”, isto é, proceder metodologicamente através da análise de cada corrente que se reivindica socialista revolucionária, bem como precisar o significado geral de sua evolução. Porque grandes eventos da luta de classes podem influenciá-las (ou parte delas) para modificá-las em um sentido progressivo (ou regressivo).

Acreditamos também que um processo genuíno de recomposição não pode ser “eurocêntrico” (ou mais especificamente, anglo-francês), senão que, pelo contrário, deve ser uma confluência das diferentes regiões do mundo onde o marxismo revolucionário tem um peso objetivo na vanguarda, como é o caso, além da Europa, do Cone Sul da América Latina, especialmente.

IX

Por todas estas razões, para lutar e intervir neste processo de recomposição do marxismo revolucionário, cremos necessária a constituição de uma nova corrente internacional

Neste sentido, a constituição de uma corrente baseada em militantes da Argentina, Brasil, Costa Rica, Honduras, Espanha e França também tem o objetivo de contribuir para a recomposição internacional de nossas experiências em três processos de importância para os revolucionários do século XXI: o Argentinazo de dezembro de 2001, a rebelião de outubro de 2003 na Bolívia e o reagrupamento político e sindical da vanguarda brasileira após o fim da “era PT”.

Posicionamo-nos em um ponto de vista que combina duas determinações nos campos teórico, político e programático. Por um lado, recuperar os elementos clássicos da tradição revolucionária, principalmente do leninismo e do trotskismo. Por outro lado, promover a necessária renovação e reformulação do marxismo revolucionário a partir das experiências da luta de classes do século XX e das transformações deste novo período histórico.

Como principais pontos do perfil desta nova corrente internacional, propomos os que desenvolvemos abaixo.

X

Socialismo ou barbárie capitalista

O sistema capitalista mundial entrou numa fase histórica cada vez mais degenerativa. No atual sistema socieconômico, o desenvolvimento das forças produtivas tende a tornar-se o seu oposto, em forças destrutivas que estão cada vez mais ameaçando a sobrevivência da humanidade e, até mesmo, da própria natureza, embora, ao mesmo tempo, tenda a criar, em certos países e ramos de produção, a nova classe trabalhadora que pode ser a coveira desse sistema cada vez mais bárbaro.

O socialismo é a única alternativa possível à crescente barbárie capitalista que a tudo ameaça destruir. Afirmamos que a única saída para a humanidade é a derrubada de toda a ordem social existente, para iniciar a transição para um novo sistema mundial, um sistema socialista, sem exploradores ou explorados.

Mas aqui nos deparamos com um problema sério. Como já assinalamos, a burocratização das grandes revoluções do século XX, em primeiro lugar a da revolução russa, e finalmente o desastroso colapso da antiga URSS e a conversão da burocracia da China ao capitalismo foram celebrados pela burguesia como o fracasso histórico do socialismo, mas também impactou a consciência das massas. Milhões de trabalhadores e explorados consideraram a falência do falso “socialismo” dos burocratas stalinistas como a impossibilidade de se estabelecer outro sistema social que não o capitalismo.

Esse fenômeno, que temos definimos como a “crise da alternativa socialista ao capitalismo“, é o mais sério problema ideológico e político que enfrentamos e marca todos os processos revolucionários, movimentos sociais e as grandes lutas do presente. Aumentam o descontentamento, a crítica e, especialmente, as lutas que enfrentam o capitalismo. Mas a maioria ainda não tem claro um projeto alternativo para substituí-lo. Lhes é difícil enxergar para além do horizonte do capitalismo.

No entanto, contraditoriamente, o colapso de falsas caricaturas burocráticas, de um lado, e as calamidades do capitalismo e as lutas contra eles, por outro, finalmente abriram a possibilidade de reconstruir uma autêntica perspectiva socialista, de relançar a luta pelo socialismo. Aprendendo com as duras lições do século XX, há cada vez melhores condições para lutar pela democracia direta, a partir de baixo, dos trabalhadores e das massas, por sua autodeterminação e auto-organização através de suas organizações, programas e partidos. Assim, o relançamento da luta pelo socialismo se coloca como o oposto das repugnantes caricaturas burocráticos que frustraram as revoluções do século XX. Ou seja, retomar a luta pelo socialismo como uma construção livre, consciente e autodeterminada dos trabalhadores e das massas populares.

XI

Revolução ou reformismo sem reformas

Rejeitamos categoricamente a falsidade de que o atual capitalismo “selvagem” e “neoliberal” pode ser reformado, e que “outro capitalismo”, mais “humano” e “civilizado” seria possível. Com base nisso, pensamos que as correntes marxistas revolucionárias devemos delimitar-nos com absoluta clareza de todas as correntes políticas e/ou intelectuais que se denominam “antineoliberais”, mas não anticapitalistas ou, muito menos, socialistas. Uma coisa é a eventual unidade de ação para pontos específicos – dívida do Terceiro Mundo, oposição à guerra imperialista e etc. -, outra, a adaptação permanente a eles e seu discurso de que “outro mundo é possível”, supondo que outro capitalismo seja possível.

Como já assinalamos, o fim do falso “socialismo” burocrático na antiga URSS foi usado pela burguesia mundial para convencer milhões de trabalhadores de que não é possível ir além do capitalismo. Essa crise da alternativa socialista ao capitalismo tem sido explorada pelas correntes reformistas, que se dizem “antineoliberais” e prometem um capitalismo “humanizado”. Esta é a ideologia e programa dos líderes do Fórum Social Mundial, que se apresentam como “antiliberais”, mas nunca como anticapitalistas.

O exemplo máximo desse novo reformismo é o PT de Lula. Mas, com Lula presidente, o palavreado “antiliberal” acabou. O Brasil é um teste de alcance global, onde o reformismo “antineoliberal” tem demonstrado ser uma fraude. Sob as ordens do FMI e da burguesia brasileira, o PT administra fielmente o capitalismo neoliberal e selvagem. Não realizou nenhuma reforma em benefício dos trabalhadores, que estão cada vez pior e, pelo contrário, aprofundou seu curso antioperário. É o “reformismo sem reformas”, porque hoje o capitalismo não está em posição de fazer concessões importantes, para além de algumas esmolas para atenuar a fome … e as reivindicações dos famintos.

Uma das piores consequências dessa capitulação ao (falso) reformismo “antineoliberal” é que uma corrente do trotskismo – a democracia socialista – participa com um ministro do governo Lula. Esta traição inqualificável deverá ser “varrida para debaixo do tapete” pelos líderes da SU da Quarta Internacional e da LCR francesa. Repudiar categoricamente o “ministerialismo” como uma traição parece-nos uma condição essencial para a recomposição internacional do marxismo revolucionário.

XII

 “Democracia” dos ricos ou o poder para os trabalhadores

Com o dogma de que não se pode ir além do capitalismo, a ideia de que não pode haver um regime político superior à “democracia” (burguesa) também foi infundida nesse novo ciclo histórico. Mas depois de mais de duas décadas dessa falsa “democracia” na América Latina, as massas trabalhadoras e os pobres estamos piores do que nunca. E até nos mesmos países imperialistas da Europa, EUA e Japão, a “democracia” dos ricos serviu apenas para cortar as conquistas históricas da classe trabalhadora. A conclusão é que as massas trabalhadoras não podem melhorar sua situação, muito menos alcançar uma mudança social radical, se não tomam e exercem o poder através de suas organizações, partidos e programas.

Uma longa experiência – ratificada mais uma vez pela enganação de Lula no Brasil – destaca os mecanismos fraudulentos da “democracia” dos ricos, que nos países latino-americanos é também uma “democracia” colonial onde os que governam são, em primeiro lugar, o FMI, as multinacionais e a embaixada dos EUA.

Somente tomando e exercendo o poder, através de suas organizações de massas democráticas e seus partidos, os trabalhadores poderão impor as medidas anticapitalistas essenciais para satisfazer suas necessidades. Por essa razão, em todos os processos de luta e, especialmente, nos revolucionários, nossa preocupação fundamental é que as massas desenvolvam seus próprios organismos de luta, independentes do estado burguês, de onde poderão erigir um poder próprio.

Pelas mesmas razões, também nos distinguimos contundentemente do chamado “autonomismo”. Essas tendências da moda na Europa e na América Latina, embora tendam a se apresentar como revolucionárias e às vezes encabeçam lutas importantes, argumentam que é possível “mudar o mundo sem tomar o poder” (e sem construir partidos revolucionários da classe trabalhadora). Como saída, propõem construir, à margem da sociedade capitalista e de seus estados, espécies de “ilhas” ou “micro sociedades”, onde a exploração e a opressão seriam supostamente superadas e que, sob essas condições, acabam sendo novas áreas de administração da miséria. O zapatismo mexicano é um dos protótipos mundiais desta corrente.

Rejeitamos a utopia reacionária de que se possa “mudar o mundo” enquanto a propriedade das principais fábricas e terras e o poder político do Estado são deixados para o grande capital. Com Lênin, afirmamos: “fora do poder, tudo é ilusão”.

XIII

Estamos na linha de frente das lutas contra o imperialismo e a recolonização da América Latina, mas propomos a total independência de movimentos nacionalistas como o de Chávez

Uma parte fundamental do curso degenerativo e destrutivo do capitalismo mundial é a catástrofe econômica e social da periferia, onde 85% da humanidade vive. A América Latina compartilha desse desastre. Para melhor exportar sua crise, o imperialismo quer aprofundar a submissão semicolonial dos países latino-americanos. Não é mais suficiente para o FMI, multinacionais e embaixadas de países imperialistas, especialmente os EUA, agir como tantas outras superpotências. Agora, com a ALCA, os EUA pretendem dar um salto qualitativo na colonização.

Nessa situação, o combate anti-imperialista (como a defesa do gás pelo heroico povo boliviano) assume uma importância fundamental. O não pagamento de dívidas externas, a ruptura com o FMI, a rejeição da ALCA, a expropriação de multinacionais e bancos, a oposição ao Plano Colômbia e à presença militar dos Estados Unidos são outros tantos pontos de luta.

Ao mesmo tempo, com a mesma clareza, dizemos que, para travar uma luta consistente contra o imperialismo e que vá até o fim, não podemos depositar a menor confiança nos movimentos nacionalistas burgueses ou pequeno-burgueses. A experiência latino-americana e mundial de um século desses movimentos nos diz que, mais cedo ou mais tarde, todos acabaram capitulando e se voltando contra os trabalhadores que os apoiavam.

A pressão colonizadora do imperialismo, de um lado, e a resistência das massas, de outro, gerou na Venezuela uma reedição dos movimentos nacionalistas que dominaram o cenário de muitos países do Terceiro Mundo no século XX. Mas Chávez e sua “revolução bolivariana” são uma pálida imitação deles, que não chegou a adotar medidas radicais como Cárdenas no México, Perón na Argentina, Nasser no Egito ou Velasco Alvarado no Peru. No entanto, tanto os EUA quanto a burguesia venezuelana querem se livrar dela. Nessa situação, estamos incondicionalmente com as massas trabalhadoras populares da Venezuela contra as tentativas de golpe da burguesia e do imperialismo e pela unidade de ação para derrotá-los. Mas, ao mesmo tempo, nos propomos a não depositar a menor confiança em Chávez e nos organizar de maneira completamente independente do “chavismo”.

XIV

Defendemos incondicionalmente o direito à autodeterminação dos povos originais do continente, mas não compartilhamos a ideologia ou política das chamadas correntes “indigenistas”

As atrocidades atuais do capitalismo e a dominação imperialista no continente se combinam com as atrocidades antigas, mas ainda presentes, herdadas da conquista e colonização da América. São as consequências, que seguem em vigor, do maior genocídio da história. O estágio da independência não resolveu a situação dos povos originais. Bolívia, Peru, Equador, Guatemala e etc., com uma grande população original, não apenas se tornaram estados burgueses e semicoloniais, mas também se constituíram em maior ou menor grau como estados brancos, onde sobreviveram, em diferentes graus, as normas de discriminação e até mesmo de apartheid. O capitalismo se aproveitou disso para explorar acima do “normal” aos originais, transformados em trabalhadores ou camponeses. Ao mesmo tempo, os estados exerceram fortes pressões para liquidar suas línguas, culturas e memória histórica, quando não foram massacrados diretamente, como nos EUA, na Argentina e no Brasil.

Defendemos, então, incondicionalmente, o direito à autodeterminação dos povos originários, que inclui, se assim o desejarem, o direito de constituir seu próprio estado nas regiões e países em que são maioria. Também lutamos contra todas as formas de racismo, discriminação e apartheid em todo o continente.

Para essas lutas, propomos a mais ampla unidade de ação, incluindo em primeiro lugar as correntes “indigenistas”. Mas, ao mesmo tempo, esclarecemos que não compartilhamos nem sua ideologia nem sua política geral. Essas correntes geralmente são baseadas no falso contraste de “classe ou raça”. Com essa simplificação, deixam de lado que em sua imensa maioria os nativos são trabalhadores ou camponeses, explorados como seus irmãos de outros grupos étnicos. A experiência recente da insurreição de El Alto, na Bolívia, mostrou, pelo contrário, que classe e etnia não se opunham, mas se fundiram na mesma luta, e que a própria cidade nada mais é do que uma enorme “comuna de trabalhadores”.

Mas, o nó da questão é que as justas reivindicações dos povos originais são irrealizáveis sob o atual sistema de capitalismo semicolonial. Somente como parte de um processo revolucionário que liquide esse sistema e seus estados por meio de uma nova aliança operário, nativa, camponesa e popular, as reivindicações dos originais poderão ser totalmente satisfeitas. As correntes “indigenistas”, ao separar essas demandas da luta anticapitalista global, levam-nas a um beco sem saída.

XV

Defendemos a centralidade da classe trabalhadora como um sujeito essencial para alcançar uma mudança revolucionária na sociedade

Juntamente com a campanha do “fracasso do socialismo” e ao credo na “democracia sagrada” (dos ricos), a burguesia mundial também está determinada a acabar com as lutas sociais e políticas da classe trabalhadora, em geral, e de seus setores operários, em particular. Até tenta tornar a classe trabalhadora “invisível” como uma classe produtiva fundamental, por meio do artifício do “adeus ao proletariado”.

Tomando-se de fatos verdadeiros e contraditórios – as mudanças materiais na mesma classe trabalhadora, a conversão em assalariados de amplos setores sociais, o crescimento sem precedentes do desemprego, as severas derrotas dos anos 80 e 90, com reveses na combatividade e na consciência de classe, irrupção positiva nas lutas sociais de outros setores e movimentos – eles querem nos enganar com as fábulas sobre “o fim do trabalho”, a era “pós-industrial” e uma “sociedade civil” que não seria mais dividida em classes antagônicas, mas em um arco-íris de “identidades”, “multidões” e “novos sujeitos sociais”.

Mas o mundo continua a funcionar mais do que nunca com base na exploração do trabalho pelo capital para poder valorizar-se; isto é, a extração da mais-valia dos trabalhadores pelos capitalistas. E o desenvolvimento contraditório das forças produtivas, além de destruir setores inteiros, criou ao mesmo tempo novos batalhões proletários e novos ramos de produção nos quais emerge uma nova classe trabalhadora.

As legítimas demandas setoriais – dos diferentes setores de operários e funcionários, empregados ou desempregados, até os de camponeses e povos nativos – só podem ser plenamente alcançadas em uma luta conjunta (e não setorial) contra o capitalismo e o domínio imperialista, onde se afirme uma estratégia de unidade de classe dos trabalhadores (centrada nos empregados), arrastando atrás de si e hegemonizando o restante dos setores explorados e oprimidos. Nesse sentido, a classe trabalhadora – a classe produtora por excelência – reafirma seu papel central e insubstituível. Se ela não cumprir esse papel, nenhuma “multidão” ou “sociedade civil” o fará.

XVI

Pela verdadeira ditadura do proletariado

A classe trabalhadora para levar a cabo a luta pelo fim do capitalismo e abrir o caminho para o socialismo, precisa imprescindivelmente tomar o poder. Ao período de transição entre capitalismo e socialismo corresponde o período político do poder da classe trabalhadora: a ditadura do proletariado. Que nada mais é que, como disse Lênin, uma democracia de novo tipo (para os proletários e despossuídos em geral) e uma ditadura de novo tipo (contra a burguesia e o imperialismo).

Como toda a experiência do século XX deixou bem clara, a única ditadura do proletariado possível é aquela realmente exercida pela classe trabalhadora como tal, por meio de seus organismos de poder, programas e partidos, no âmbito da mais ampla democracia dos trabalhadores.

O curso das grandes revoluções do século XX em geral e as lutas operárias e sociais colocam uma conclusão fundamental: a necessidade de incentivar e defender a autodeterminação democrática dos trabalhadores, condição sine qua non para a realização da revolução socialista e de uma autêntica transição.

Já apontamos que o relançamento do combate pelo socialismo será impossível se não for colocado como o oposto das caricaturas burocráticas que frustraram os processos revolucionários do século XX. Ou seja, o socialismo como uma construção livre e consciente dos trabalhadores.

Mas isso também é essencial para a luta diária e para as organizações atuais. Assim, em todos os movimentos e organizações de massa, sejam eles de trabalhadores ou populares, chamamos a impor-se a democracia das bases e sua livre autodeterminação. Nos sindicatos de trabalhadores ou camponeses, em organizações estudantis, de bairros e em todas as organizações de massa, lutamos pela mais ampla democracia desde baixo e pela construção de novos organismos (assembleias, comitês de greve, coordenações etc.) no calor da luta, o que inclui a revogabilidade de todas as instâncias de direção. Pelas mesmas razões, combatemos todos os aparatos burocráticos e seus métodos.

XVII

Reafirmamos a necessidade da construção do partido revolucionário dos trabalhadores e a validade dos ensinamentos de Lenin em matéria de organização

A burocratização dos processos revolucionários e do movimento operário no século XX serviu de pretexto não apenas para negar a necessidade imprescindível do partido, mas também para combater os esforços para solucionar esse grave déficit. Curiosamente, as classes dominantes, através da mídia e do meio intelectual e universitário, alimentam os preconceitos “antipolítico” e “antipartidário”. Também nessa área, o autonomismo desempenha o papel de “idiota útil” da burguesia, privando os trabalhadores e as lutas populares de qualquer perspectiva estratégica, que exige para materializar-se, de maneira essencial, a organização política da vanguarda dos trabalhadores.

O surgimento de novos movimentos sociais importantes (sejam movimentos de piqueteiros, fábricas recuperadas, correntes sindicais classistas, dos sem-terra ou dos povos originários), acaba sendo utilizado para criar a ilusão de que não faz falta o partido revolucionário. Mas o próprio desenvolvimento dessas experiências progressivas já está revelando suas limitações. Nenhuma delas, por si só, pode dar uma saída global.

A organização dos revolucionários em um partido político é essencial para que as lutas sociais e de classe não se esgotem no meramente reivindicativo e para lutar por instalar a perspectiva de combater pelo poder e, assim, alcançar mudanças na sociedade como um todo.

Da mesma forma, ratificar a necessidade do partido revolucionário contra o autonomismo e o “apolitismo” implica, simultaneamente, estabelecer relações saudáveis entre os partidos que afirmam ser revolucionários e os movimentos, sindicatos e organizações de massa. Rejeitamos como falso o dilema da construção de movimentos ou partidos, como se fossem mutuamente exclusivos. Do que se trata é da construção de movimentos, sindicatos e partidos.

Tudo isso implica, então, a ratificação dos ensinamentos de Lenin em matéria de organização, lições que, no início do século XXI, em condições de crise de subjetividade e alternativa socialista entre trabalhadores e setores populares, têm ainda mais validade e não menos do que na era histórica em que viveu o grande revolucionário russo.

XVIII

Somos pela formação de uma Internacional marxista revolucionária como meta do processo de recomposição

Não podemos prever hoje quais estágios, tempos e formas de transição assumirão o processo de recomposição do marxismo revolucionário. Isso depende tanto dos eventos da luta de classes quanto dos processos que se darão dentro das principais correntes, das organizações e da vanguarda. Mas, desde já, pensamos que o objetivo é que a recomposição do marxismo revolucionário se materialize finalmente em uma nova Internacional revolucionária.

Isso nos leva ao debate da refundação e/ou reconstrução da Quarta Internacional ou de uma nova Internacional revolucionária.

Acreditamos que ainda não é possível respondê-lo. A realidade política da vanguarda mundial e os mesmos processos de recomposição ainda não forneceram elementos para prever se a nova e necessária Internacional será a IV “refundada” ou uma nova internacional revolucionária. Isso dependerá dos processos reais que são desenvolvidos ao nível da vanguarda internacional.

Para além de todos os problemas e dificuldades, Leon Trotsky teve o imenso mérito histórico de plantar a bandeira da continuidade da tradição do socialismo revolucionário, liderando uma luta muito dura em pleno fortalecimento do estalinismo. E as correntes do trotskismo do pós-guerra, com todos os erros que podemos apontar hoje, de alguma forma deram continuidade organizada a essa tradição.

Mas esse capital e essa tradição devem estar em correspondência e em diálogo com os processos reais de decantação de setores de vanguarda em todo o mundo que estão se desenvolvendo em direção à esquerda socialista revolucionária. Portanto, acreditamos que hoje não há como recorrer a priori a uma “refundação da IV” ou à perspectiva de uma nova Internacional. Isso dependerá de como evoluir as condições de um reagrupamento real, não de seita, mas tampouco oportunista, das correntes e experiências socialistas revolucionárias.

Por um lado, não se pode perder de vista o fato de que, de 1938 até hoje, se produziram experiências e mudanças transcendentais na luta de classes mundial, que suscitaram uma série de novos problemas que não é possível se deixar dogmaticamente de lado.

Por outro lado, é claro que uma Internacional não parte do zero, mas da experiência historicamente acumulada pelo marxismo revolucionário. Ou seja, das lições programáticas e estratégicas da Primeira, Segunda e Terceira Internacionais e da síntese delineada por Trotsky na época da fundação da Quarta.

Será então entre esses dois pontos de referência que dever-se-á medir para se definir se trata-se da IV Internacional refundada ou uma nova Internacional revolucionária. No entanto, o mais importante hoje é discutir quais passos transitórios podem ser dados na perspectiva de um reagrupamento real de partidos e correntes internacionais.

01/11/2004

Tradução: José Roberto Silva