Realizaremos no próximo dia 15 de dezembro a I Conferência de Socialismo ou Barbárie – Tendência do PSOL (SoB-Brasil), cujo tema é
UM MUNDO EM CRISE: CONJUNTURA E AÇÃO POLÍTICA
Até essa data divulgaremos documentos e formas de participação dos companheiros que travam a luta política socialista em geral e que nos acompanham em nossas lutas e discussões políticas, em particular.
Hoje e nos próximos dias publicaremos os documentos constantes do Caderno I – Política Revolucionária: Tendências e Contratendências, cujos textos são:
1 – UM MUNDO EM CRISE
2 – O BRASIL DE BOLSONARO NO CONTEXTO INTERNACIONAL
3 – O CARÁTER DO GOVERNO BOLSONARO
O Brasil de Bolsonaro no contexto internacional1
Roberto Sáenz – 21/10/2018 (TRANSCRIÇÃO DE PALESTRA REALIZADA NO BRASIL)
“O partido revolucionário começa com uma idéia, um programa dirigido contra o aparato mais poderoso da sociedade de classes. Não são os quadros que criam a ideia, mas a ideia que cria os quadros. O medo do poder dos aparatos é uma das características típicas do oportunismo próprio da burocracia stalinista. A crítica marxista é mais forte que qualquer aparato”(Leon Trotsky,”O único caminho”, 6 de outubro de 1932).
Vou tratar de levantar algumas definições. Mais do que uma palestra, também estou interessado em ouvi-los. Vou dizer algumas coisas sobre Bolsonaro. Vou tentar colocá-lo no contexto internacional. E ouví-los me ajuda porque é um fenômeno de impacto global. E, então, devemos ouvir o que os companheiros e as companheiras dizem para construir uma interpretação.
Então, vou estabelecer 4 ou 5 definições no informe, para tratar de contextualizar.
1. Um exercício de contextualização
O primeiro elemento da contextualização é que o mundo é muito grande. O Brasil é grande, mas não é o mundo todo. O mundo é maior que o Brasil. Este é um tipo de “ensino de parâmetros”. De perspectivas. Para não se deixar levar pelos problemas do Brasil. O Brasil é grande. Mas o mundo é maior. O mundo é muito rico, muito diversificado: convivem tendências contraditórias2.
Evidente que é impossível em uma introdução dar conta de todas. Mas eu enfatizo isso porque é importante ter sempre essa visão global. Claro: nem tirar o peso do perigo que Bolsonaro representa; nem ficar impressionado como se a única tendência atuante fosse uma espécie de “bolsonarismo global”.
Sem dúvida, o triunfo de Bolsonaro significa um giro à extrema direita no Brasil. E também um impacto pela direita na região da América Latina. Um impacto que tende a subsumir a região como um todo em um “ciclo direitista continental”.3
No entanto, seria um erro perder de vista o fato de que dentro do giro direitista na atual situação mundial coexistem tendências contraditórias: tendências “Bolsonaristas” e contra-tendências progressivas.
Algumas muito interessantes, muito ricas, como o movimento internacional de mulheres, o ascenso da juventude, as novas gerações militantes, as expressões político-eleitorais à “esquerda” das dominantes; contra-tendências que são pontos de apoio para a ação: para contrapormos aos “Bolsonaros” que emergem no mundo (Trump, Putin, Erdogan, Salvini, Duterte, etc.4).
O mundo tem muita diversidade, muita riqueza. A primeira tarefa é contextualizar os acontecimentos no Brasil, neste momento particular, que é obviamente difícil, dentro do quadro mais geral.
2. O contexto social da ascensão de Bolsonaro
O segundo elemento que quero transmitir ,é que o contexto internacional é o de um mundo em crise. Um mundo que tende a instabilidade. Existem dois fenômenos que vou identificar em termos gerais, que têm sua tradução no Brasil.
O primeiro é que a economia mundial está passando por uma profunda crise desde 2008. Uma crise que não se encerrou completamente e que hoje encontra os países emergentes entrando em uma renovada crise da dívida: Argentina, Turquia, inclusive o Brasil, apesar dos seus 350.000 milhões de dólares de reservas
Estamos em 2018, e dez anos após o início da crise, seus efeitos ainda estão presentes. Não é uma crise catastrófica como a da década de 1930, que afundou o PIB e o comércio mundial em 40%.
No entanto, a crise econômica que está arrastando o mundo é a mais séria desde aquela crise (o que não é pouco).
O cenário não é catastrófico. Inclusive, formalmente, admitiu uma “recuperação”. Nós não vivemos uma depressão econômica global, guerras mundiais, revoluções sociais. O contexto internacional é mais “mediado”.
No entanto, é uma crise prolongada ao longo do tempo, com “efeito retardado”; efeito retardado que acabou impactando no Brasil: uma crise econômica que é um dos fatores que explicam a ascensão de Bolsonaro; uma de suas condições materiais.
A queda nos preços das matérias-primas atingiu duramente o Brasil, assim como a desaceleração do crescimento da China. O Brasil experimentou uma queda do PIB da ordem de 6 ou 7% nos anos de 2015 e 2016 e só “recuperou” anemicamente depois. Alguns analistas identificam a crise econômica no Brasil como “a mais séria dos últimos 50 anos”.
Essa situação de mediocridade, de “anemia econômica”, contrasta fortemente com o vigoroso crescimento dos anos 60 e 70, quando se falava de um “milagre econômico” no gigante latino-americano (com taxas de até 9% ou mais, de crescimento anual do PIB).
Isso explica a nostalgia das classes médias com a ditadura militar que dominou esses anos; uma ditadura industrialista ao contrário do caráter neoliberal da ditadura argentina.
O Brasil também cresceu sob o segundo mandato de Lula, embora a taxas mais baixas, e em outras bases sociais paradoxalmente mais regressivas: um crescimento baseado no agronegócio, nas finanças, na privatização e na desindustrialização (relativa) do país.
Na primeira década do novo século chegou-se a falar da formação de uma “nova classe média”, o que evidentemente era um efeito bastante conjuntural, epidérmico e estatístico do que estrutural.
Assim, chegamos aos últimos anos caracterizados pela mediocridade em termos de crescimento. O país assimilou a mediocridade internacional. Isso teve um impacto de classe significativo: grandes porções das classes médias giraram bruscamente à direita, em defesa de suas posições adquiridas; uma parte considerável da classe trabalhadora se cansou das promessas não cumpridas do PT.
O impacto adverso entre os trabalhadores ocorreu, sobretudo, entre a base social histórica do PT: os setores proletários mais concentrados do sul do país, as franjas mais industrializadas. São os setores mais orgânicos da classe trabalhadora que se afastaram do PT; o que não é um fato menor.
Deve-se levar em conta que, desde as eleições presidenciais de 2006, o PT conquistou uma nova base social no norte do país; uma base social de trabalhadores pobres, que historicamente foi a base da direita conservadora brasileira, e que se voltou para o PT a partir dos planos sociais do lulismo.
O PT mudou sua base social dos setores mais concentrados dos trabalhadores para os mais pobres: do sul para o norte do país; um enfraquecimento estrutural.
Em qualquer caso, o outro grande fato sócio-político que ocorreu na política brasileira, um subproduto do impacto da crise econômica, é o giro à direita egoísta das classes média e média alta; das mobilizações de direita contra Dilma Rousseff em 2015 e 2016, se revoltaram abertamente contra o PT: compraram a campanha “anticorrupção”; sairam às ruas tomando aos trabalhadores como seus “inimigos sociais”.
Econômica e socialmente, o Brasil se parece com o mundo, às tendências que dominam a atual conjuntura. Sendo um país tão grande, tem tendências a “assimilar-se” ao mundo; tem mais a ver com uma lógica de “compartimentos estanques”, como ocorre na Argentina.
Um país, além de tudo, extremamente desigual, onde os extremos da riqueza e da pobreza são aflitivos; onde as classes sociais são muito mais estratificadas; onde a maldita herança do sistema escravista ainda está presente (isto em relação ao tratamento dos trabalhadores, às tradições de submissão aos poderosos).
O conceito de “estratificação” é importante para entender que não se trata da simples relação capital-trabalho: a relação entre brancos e negros, sulistas e nordestinos, população nativa e migrantes europeus em um país onde a escravidão prevaleceu até o final do século XIX. , configura um cenário social muito mais complexo, mais “estamental” do que a estrutura social quase europeia dos países do Cone Sul da América Latina (Argentina, Chila e Uruguai).
Em resumo: um país em que o nível cultural é “atrasado”; ainda marcado pelo analfabetismo entre os grandes setores5. Elementos que fazem do Brasil uma espécie de “caldeirão social”, onde as tendências polarizantes são processadas de forma muito forte, até violenta: um país de contrastes inauditos.
A mediocridade econômica do Brasil reflete o mundo. O mundo está em uma espécie de mediocridade econômica sem fim (há até mesmo uma conversa sobre uma recessão no próximo ano); uma “anemia econômica” que se traduz entre trabalhadores, mulheres e jovens, na falta de perspectivas, em uma sensação de “nenhum progresso”.
Essa situação não tem uma projeção mecânica à esquerda: as tendências políticas de uma crise social configuram uma complexidade. A economia nunca é traduzida em política mecanicamente : nem para um lado nem para o outro. Tudo depende das condições preexistentes da luta de classes em que impacte a crise (Trotsky).
Hoje está claro que a crise está se traduzindo em uma conjuntura de direita. No caso do Brasil, a extrema direita.
Uma conjuntura em que os discursos populistas de lançar a culpa dos males aos que estão do lado, aos de baixo: a parte reacionária das classes médias culpando aos trabalhadores; aos “comunistas”; às mulheres; às minorias sexuais; aos negros … Esse é o discurso de ódio que vem da boca de Bolsonaro: reproduz um traço característico da extrema direita e do fascismo tradicional.
Isto se combina com outro elemento que se quer “superestrutural”: está em curso uma crise de autoridade e/ou de hegemonia internacional: quem manda no mundo?.
A relação conflituosa entre os Estados Unidos e a China é hoje um parâmetro central da situação mundial. E um fato central da eleição de Bolsonaro a esse respeito é que o líder neofascista viria reafirmar a lealdade histórica do Brasil aos Estados Unidos. Suas simpatias por Trump são evidentes, assim como suas tendências para “se mimetizar” com ele.
Esta vontade, no entanto, não exclui contradições. Porque a China é o primeiro mercado de exportação brasileiro. E, ademais, não é tão simples a aplicação dos gestos “protecionistas” de Trump à região (os “Estados Unidos – ou o Brasil, na versão Bolsonaro – primeiro”), por exemplo em relação ao Mercosul: Paulo Guedes afirmou que “o Mercorsul não seria uma prioridade” e logo teve que desdizer-se.
3. Giro à extrema direita e radicalização
Um terceiro elemento mundial se expressa no Brasil: a tendência de polarizar as disputas. Como posso esplicar para que seja entendido? Por exemplo, aqui no Brasil existem muitas famílias divididas pelo voto para Bolsonaro. Famílias que lutam: pais com seus irmãos, filhas com suas mães, de tudo.
Cada um vê o outro e fica horrorizado … “Você votou em Bolsonaro? Um fascista! Como pode ser que meu irmão seja fascista?” Ou: “meu irmão é um petista, um corrupto, que horror! Como você pode apoiar um ex-presidente que está na prisão por roubar“.
Essa situação de polarização política e social que existe no Brasil é um dado mundial. Nos EUA há polarização: há o “Trump” e o “anti / Trump”. Na França, há também uma polarização entre os setores “progressistas”, com “ideias de esquerda”, e a Frente Nacional de Marine Le Pen, uma facção herdeira do fascismo.
E essa polarização combinada com a crise econômica e a crise hegemônica nos instala em um mundo com tendências a uma luta de classes mais profunda e mais radicalizada.
Uma polarização que de maneira dominante se expressa hoje à direita, mas que implica “rebotes” à esquerda: o conceito de “bipolaridade direita e esquerda” que colocamos em nosso documento mundial.
A polarização nos instala em um mundo menos estável. Para colocar de outra forma: em um mundo menos light. Fenômenos que saem da institucionalidade, ou da pura política expressa no voto. Que questionam a institucionalidade pela direita, mas também pela esquerda: a reiterada coteja entre a Praça e o Palácio na Argentina (entre a ação direta e a institucionalidade).
O mundo tem elementos de instabilidade em sua raiz. Em suas bases constitutivas: na economia, na geopolítica, na luta de classes. Elementos que são politicamente traduzidos em novos fenômenos: como o Brasil de Bolsonaro, que aparece como um fenômeno extremo.
Se houvesse um segundo turno entre Haddad e Alckmin (candidato presidencial do PSDB, que só alcançou 6% dos votos no primeiro turno, mas que pode ser equiparado a Macri), não escapava da normalidade. Mas uma segunda rodada com Bolsonaro triunfante, foge da normalidade.
E se o segundo turno tivesse sido entre Bolsonaro e Boulos, os dois termos da equação teriam sido “extraordinários”6. Atenção que para além do “moderado” de sua campanha, Boulos é identificado com movimentos sociais.
É muito identificado com as ocupações de terra. E atenção que Bolsonaro reafirmou seu compromisso inabalável com a defesa da propriedade privada ameaçando prender líderes sociais! Isto é para nós vermos como as coisas podem ser polarizadas neste campo. Se um candidato como Boulos tivesse um voto como Haddad, obviamente significaria radicalização pela esquerda.
Mas isso não é o que aconteceu. Porque Boulos não esta lá, quem esta lá é Haddad. Um professor, um moderado do PT, algo completamente diferente; infelizmente O elemento radicalizado veio, como em outras partes do mundo, da extrema direita: não de um “reformismo amestrado” como o do PT.
Este elemento de polarização das coisas é um fato mundial. O Brasil é um país enorme. Um país que sempre expressou mais diretamente do que a Argentina, tendências internacionais (especialmente as tendências dominantes nos EUA).
É uma potência regional: uma “sub-metrópole” caracterizada por uma combinação de atraso e imenso desenvolvimento. Um contraste dramático entre pobreza e riqueza. E por ser um país enorme, tende a refletir o mundo mais diretamente7.
O giro à direita neste contexto de polarização nos coloca em uma situação mundial e regional de instabilidade econômica, hegemônica e política. Uma situação de instabilidade onde, atenção, não se pode perder de vista ou minimizar que os acontecimento tenham começado à direita; inclusive pela extrema direita, como é o caso de Bolsonaro no Brasil.
A ruptura do “equilíbrio democrático burguês normal” que potencialmente significa este giro à direita internacional e regional, somado às tendências agregadas da crise econômica e hegemônica, é provável que nos leve a um mundo e a uma região mais convulsionada do que aquela em que vivemos, nas últimas décadas: um “giro convulsivo” que começa à direita.
Possivelmente companheiros e companheiras mais jovens não têm essa experiência; não viveram esse mundo. As pessoas mais velhas sim, embora também dependa da idade delas. Porque desde a década de 1980 até o presente, com a democracia burguesa, a situação política foi bastante “normal”.
Para os jovens, talvez, a coisa seja entendida no sentido de que a história está se reabrindo. Não há fim da história; a história se reabre. E se reabre com eventos anormais, atípicos.
Quando tudo é uma espécie de “normalidade permanente”, as coisas aparecem como “a-históricas”: não há marcos, não há clivagens, não há “momentos heterogêneos” que fechem o tempo: o tempo é igual, “homogêneo”.
Mas quando a história é reaberta com eventos que contrastam com a “normalidade”, há um marco, uma data, uma clivagem. Ah!, a história reapareceu!, se nota a história! Isso é verdade mesmo que essa reabertura da história no Brasil venha pela extrema direita; o que obviamente não é uma questão menor.
Vamos entrar num momento em que “a história retorna”. É claro que às vezes ele retorna do lado que não gostamos, como neste caso. Mas é um momento que, em qualquer caso, “toca o alarme” para toda uma nova geração que vai se comprometer e com a qual devemos construir nossas organizações, nossos grupos e partidos.
4. Conjuntura ou ciclo dereitista?
A história retorna com Bolsonaro. Seria muito melhor que voltasse pela esquerda; mas a realidade é como é. Não recomeça de maneira revolucionária: recomeça pela extrema direita “Bolsonarista”.
Mas estabelece “um critério histórico”: há um retorno da história porque retornam importantes eventos sociopolíticos. Essa é a primeira coisa.
A segunda é que em quase todas as regiões do mundo existem tendências contrastantes. Uma é a dominante; a outra é contra-tendência: não têm o mesmo peso específico, obviamente.
A tendência dominante é à direita. Esse é o dominante. Sem dúvida. E uma mudança dominante para a direita que tem outra característica: é persistente. Tem vários anos; não é mediado..
É mais: o triunfo de Bolsonaro acaba de repintar a América Latina à direita. Tem o peso específico para que a situação reacionária que se iniciou após 2015/2016 acabe decantando-se em um ciclo reacionário mais global.
Macri na Argentina, Temer em Brasil e agora a “aperto” que significa Bolsonaro, Ivan Duque na Colômbia, Piñeira no Chile, a eleição corre à direita no Peru, Equador, a enorme crise do Madurismo na Venezuela (de onde os acontecimentos mais recentes não podem descartar um golpe de estado ou alguma aventura militar de fora).
Também na América Central as coisas se desenvolvem pela direita: o novo governo do PAC na Costa Rica; a crise humanitária e migrante em Honduras.
Se uma eventual evolução do Brasil ou da Argentina na direção oposta poderia transformar as coisas à esquerda (Macri está passando por uma crise cambial crônica desde abril passado, e parece ter sido salvo de voar pelos ares devido ao papel estabilizador do Partido Justicialista, a burocracia sindical e os K), o triunfo de Bolsonaro pode ajudar Macri a canalizar as coisas para as eleições, consolidando o pêndulo regional para a direita.
Os únicos contrapesos regionais são os da AMLO no México (do qual é incerto saber se realizará um governo “progressista”), a Frente Amplio no Uruguai (muito tímida a propósito), Evo Morales na Bolívia (o que ele mais quer é que ninguém mais incômodo), fatores que não são suficientes para combater a dinâmica regional (a menos que o surgimento de um ascenso e/ou reviravolta dos de baixo, que não pode ser descartada, mas não é a tendência dominante hoje).
Para completar os elementos de análise, há uma questão complexa que se expressou nos últimos meses: os elementos bárbaros do capitalismo. O capitalismo tem uma crise e translada a crise para os movimentos de massa; barbariza as relações sociais.
Um caso extremo disso é o da Venezuela. Há a migração que é usada pela direita contra o chavismo na Venezuela; a América Latina está cheia de venezuelanos.
Mas há também a caravana que deixa Honduras para os Estados Unidos e questiona o regime hondurenho pela esquerda. Existem elementos da barbárie. Essa caravana é dirigida por pessoas conhecidas. Temos um grupo da corrente em Honduras, pequeno, muito sofrido, mas muito militante.
A caravana deixou a cidade onde os companheiros moram. Existem elementos de barbárie. Tudo isso dos pentecostais (com crescente influência em toda a região), também é um elemento da barbárie.
5. A difícil forja de uma conciencia anticapitalista
Por que esta crise SE expressa pela direita e não, ainda, pela esquerda? Por dois fenômenos profundos. Mais ou menos históricos. Porque isso arrasta as classes médias, mas também trabalhadores. Há trabalhadores que votam em Bolsonaro; há trabalhadores que votam em Trump. A primeira questão mais profunda, que ainda não foi resolvida, é o que chamamos de crise da alternativa socialista.
Trata-se da não identificação da classe trabalhadora com a perspectiva anticapitalista. As massas constroem sua consciência na experiência; sua consciência é forjada a partir da experiência.
Não o faz estudando, como podem ser os setores da vanguarda estudantil. Mas, na experiência das massas, consciente ou inconscientemente, pesam ainda os fracassos do “socialismo” do século XX.
O século XX foi extraordinário: deu a experiência das maiores revoluções da história da humanidade. Mas essas revoluções se perderam; se burocratizaram.
Isso significa que os trabalhadores não vêem a alternativa do socialismo. E as novas gerações têm cortados seus vínculos com a experiência histórica anterior.
Falar-les sobre socialismo é como falar-les em esperanto; algo incompreensível, fora de sua experiência: uma experiência “presentista” que se vive sem utopias.
Esse elemento de crise de alternativas torna o socialismo mais “abstrato” para os trabalhadores do que colocar o dedo na ferida dos prejulgamentos, dos preconceitos, como faz a direita.
Por causa do cotidiano, devido ao atraso, há muitos preconceitos: com as mulheres, com pessoas com sexualidade diversa, do branco com o nordestino, com o negro, com o boliviano, com o paraguaio.
Os prejulgamentos ou preconceitos são sempre falsas diferenças. São construídos com o igual; mas como tem uma cor diferente, uma sexualidade diferente, parece diferente; desloca a oposição real entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. Preconceitos são constituídos em torno de falsas oposições.
E também temos coisas mais concretas no giro à direita. Por exemplo: um governo do PT que não fez mudanças substantivas. E, para completar, se enriqueceu e se corrompeu até o pescoço no poder.
A onda da curva à direita ocorre após o fracasso da onda de centro-esquerda em todo o mundo. Estou tentando explicar por que o giro à direita. Existem problemas mais estruturais e problemas mais superficiais.
No Brasil, a onda para a direita é explicada porque não é fácil processar uma experiência à esquerda do PT. Teria que ser uma experiência revolucionária. E ainda não há condições revolucionárias no Brasil, embora possam ser geradas dialeticamente agora com o desafio de extrema-direita às massas populares que significa Bolsonaro.
O movimento do pêndulo foi tão à direita que pode recochetear radicalizando toda uma nova geração. E isso no maior e mais industrializado país da região, o que não é pouca coisa.
Uma classe operária revolucionária não é tão fácil hoje em dia. Os trabalhadores têm dificuldade em passar do mecanismo de reivindicação para uma consciência política, anticapitalista; romper o rotinismo cristalizado em suas organizações tradicionais.
Por exemplo, no Brasil, campanhas salariais (na Argentina, as paritárias). Todo ano, na mesma data: a campanha salarial. Passar da campanha salarial a reivindicar medidas revolucionárias. Passar do reformismo atrofiado do PT e de suas traições para uma consciência revolucionária e anticapitalista; não é tão fácil.
Especialmente em um mundo onde ainda não há revoluções. Porque as gerações anteriores, aqui também no Brasil e na Argentina, ainda que fosse uma revolução deformada, burocrática desde o começo, sem socialismo, viveram a Revolução Cubana. Muitos trabalhadores e estudantes se politizaram em torno da Revolução Cubana.
Então a primeira explicação do porquê há um giro à direita e não uma ruptura pela esquerda – um levante pela esquerda – diante das traições do PT, passa em certa medida porque estamos vivendo ainda em um mundo sem revoluções. Estamos num mundo onde há de tudo: rebeliões, onde se vive um começo histórico de experiência, rico, mas ainda sem revoluções, assim, simples.
Essa é uma explicação material de por que a anormalidade ainda se expressa pela direita. A expressão da “anormalidade do mundo” à esquerda requer condições que estão sendo forjadas hoje, mas ainda não podem ser vistas.
6. #EleNão
Há que se ter equilíbrio na análise. Hoje, mesmo sob Bolsonaro, podem estar se desenvolvendo as condições para um giro à esquerda. No “mundo Bolsonaro”.
Em janeiro de 2016, algo simbólico ocorreu nos Estados Unidos, o que nos ajuda a entender isso; entender que há bipolaridade à esquerda diante de um fenomeno direitista do tipo Bolsonaro; que esta é a outra tendência mundial.
Trump assumiu em 20 de janeiro de 2016. E no dia seguinte, em 21 de janeiro de 2016, houve uma enorme marcha de 1 milhão de mulheres contra Trump. Isso vai acontecer no Brasil? Não sei. Isso pode acontecer; talvez não.
Mas esse contraste entre uma coisa e outra é um fato mundial; em todas as sociedades essa polarização ocorre. Uma polarização pela direita, que se expressa à direita; uma violação da normalidade pela direita pode eventualmente gerar uma contra-tendência, uma quebra da normalidade pela esquerda.
E esses dois fenômenos fazem a totalidade da política: os dois fenômenos. Aqui o fenômeno contra o Bolsonaro, como se chama? #EleNao.
E isso, a que remete? Um fenômeno global das mulheres. Poderia ser chamado de outro modo: “Todos os proletários do mundo estão unidos”; mas não é chamado assim, esse não é o fenômeno mundial.
Ou “a nova juventude que faz o novo Maio francês” … Não é chamado assim. Chama-se #EleNao. Você sabe porque? Porque o movimento das mulheres, com toda a riqueza que possui, é hoje o veículo mais internacionalista de resistência e/ou bipolaridade pela esquerda contra esses monstros.
É um movimento de mulheres de imensa riqueza; um movimento internacional que recupera um elemento que é profundo, que une os explorados de todos os países, que vai além das fronteiras.
Poderia ser nacional, local, mas não: é um fenômeno mundial. O qual é contraditório. Se você disser apenas que é “tudo à direita” e perder de vista o fato de que existe um movimento que tem ligações mundiais que cruzam fronteiras, você entenderia de maneira unilateral o mundo.
Temos dois fenômenos concorrentes. Por enquanto, o “bolsonarismo” é mais forte. Mas você tem, simultaneamente, uma contra-tendência.
Por que esse fenômeno se dá assim e pode chegar a radicalizar as coisas? Porque quando a normalidade das coisas é quebrada, não se pode saber exatamente quais consequências terá.
A burguesia econômica, os mercados, os bancos, estão felizes com Bolsonaro. A burguesia é um esgoto: “Não ligo para o que ele diz; me importo com o que faça.”
Já existem pressões da parte dos empresários: “Bolsonaro tem que aplicar a reforma das pensões no primeiro semestre de 2019.” Para a flauta! Capaz que aconteça e é uma derrota; mas é capaz que todo o mundo se avive …
Bolsonaro, se afirma seu projeto semibonapartista, ou mesmo se avança para o pleno bonapartismo, é uma ruptura de normalidade que pode ter consequências imprevistas (algo que preocupa os setores mais sensíveis da burguesia e do imperialismo).
Porque quando tudo está normal, quando não há “ângulos”, quando mais ou menos é o discurso burgues comum e as pessoas estão “calmas”, as águas não se movem demais.
Mas quando um governo toma medidas extraordinárias, quando quebra a normalidade, gera resistências. É como se a política fosse um “movimento pendular”. Quando a política está no centro, quieta, no parlamento, tudo “acaba em pizza”.
Mas quando o movimento pendular vai muito para a direita, ricocheteia e pode voltar à esquerda … E isso não é apenas uma preocupação para nós, que temos que partir enfrentando a direita porque o movimento pendular foi à direita, e se não dermos essa batalha seria uma vergonha, superficiais, uns fracos.
É também uma preocupação para a burguesia. “Temos que ir tão longe para varrer as conquistas, as mediações: devemos ir tão longe?” Porque existe o perigo de que vá e não retorne ao ponto normal: que se vá para a extrema esquerda.
Este fenômeno não é uma ilusão da esquerda: é um fenômeno material da luta de classes.
Embora estejam obviamente ligados, o mundo das representações é uma coisa e o mundo dos fatos é outra. Isto digo porque não é preciso ter medo nem absolutizar o fato de que Bolsonaro ganhou a eleição. Trazer a eleição para o terreno real não será tão fácil.
Há muitos perigos, sem dúvida. Mas o que eu quero dizer é que no mundo existem duas tendências. Nesse contexto estrutural complexo, as tendências coexistem à direita, mas também há elementos de resposta da esquerda.
Podemos cometer dois erros simétricos: que Bolsonaro esteja lá e não vê-lo: um erro tremendo, fácilista, que tira o peso de um problema perigoso e delicado. O outro erro seria ver apenas Bolsonaro. Não vee as tendências de resistência, as contra-tendências.
Porque as duas tendências são parte do mundo; fazem parte da fotografia total. Embora iniciada por Bolsonaro, a realidade é constituída por ambas.
Então, que pergunta paradoxal se desenvolve aqui? Uma coisa paradoxal: Bolsonaro emerge, existem grandes setores anestesiados, politicamente confusos. Mas atenção! O compromisso de muitas pessoas também emerge. De pessoas que se comprometem, que dizem: “Não, isso é demais … para mim a política não me interessava, mas eu não suporto isso, quero fazer alguma coisa“.
Contradictoriamente, por conta de Bolsonaro, emerge contra a direita, à esquerda, um fenômeno de envolvimento político de todo um setor que a partir desse elemento radicalizado pela direita, começa a armar sua cabeça política.
Porque o discurso: “Não, eu não ligo, é tudo a mesma coisa“, meio pós-moderno, em um ponto, para um setor, quando a normalidade quebra, se acaba: te chama a se envolver.
7. As relacões de forças se meden na luta
A questão é que, realmente, atentem, Bolsonaro é muito perigoso, poderia dissolver o Congresso. Mas a medida exata das coisas será dada pela luta de classes. Não é o voto. A luta de classes Porque no marxismo, uma eleição é uma fotografia. É uma imagem.
Falando exageradamente, lembremos que Marx, na Ideologia Alemã, falou da ideologia como um “espelho invertido da realidade“. O giro à extrema-direita de Bolsonaro não é um espelho invertido: é um espelho distorcido (como os espelhos côncavos ou convexos onde se vê mais gordo ou mais magro).
O espelho do 29 mostrou eventualmente Bolsonaro um pouco mais “gordo” e mais “magra” a esquerda e ao movimento de massas; Na verdade, nós não sabemos: apenas a experiência dará a medida certa para as coisas.
Não é um espelho invertido. Mas certamente sim com algum grau de distorção. Invertido não porque é um perigo. É um perigo, é um problema, pode abrir caminho para as Forças Armadas. É um perigo sério. Mas a imagem que vai dar vai ser um pouco distorcida.
O espelho exato dará a luta de classes: aí veremos se a classe trabalhadora está derrotada (achamos que não, há reservas de resistência entre os explorados e os oprimidos). Vai demorar alguns meses. O espelho o darão as lutas. Pode demorar um pouco. Mas eu digo isso também porque esse trabalho, esse esforço de formação, dialético, é como para ter proporções.
Lhes digo outra coisa, que é um ensinamento. São nossos inimigos acirrados. Na luta com os inimigos, você nunca pode subestimá-los. Nunca pode que acreditar que eles são “fáceis”.
Ao mesmo tempo, temos outro requisito: não os superestime. Se você o superestima, ou se impressiona, o sujeito avança um metro e você dá a ele mais meio metro …
É claro que estimá-lo corretamente será uma experiência. Esse é também outro ensinamento que afirma o marxismo: as relações de forças, as relações entre classes, se medem na luta.
Então será uma experiência, um processo, medir as relações de forças na luta. A estimativa dessas relações de forças exatas deve ser feita na luta. E devemos tentar evitar tanto tirar os perigos que ela envolve, quanto exagerar as forças que ela possui.
É um momento especial para se envolver, para militar, construir correntes militantes e revolucionárias, na luta, na ação, também nas eleições.
Porque vai haver uma camada inteira nas universidades, no ensino, entre os trabalhadores e o movimento de mulheres, que vão se unir à luta, que vão medir a seriedade do momento: que vão se radicalizar.
E a partir daí vem toda uma reconfiguração à esquerda do PT e no seio da esquerda revolucionária. Porque mesmo nesta última há muito rotinismo, movimento inercial, acúmulo de problemas não resolvidos, total falta de balanço das revoluções do século passado, repetição de marcos analíticos superados pela experiência, dogmatismo, sectarismo e oportunismo.
O que se abre é, também, uma oportunidade histórica de se construir a corrente no Brasil; uma oportunidade para construir um cenário que começara defensivamente, mas questionando a normalidade; que colocará toda uma escola da luta de classes em um campo real.
Na ação, se compreende mais. Se encontra a medida das coisas. Se não, é tudo “filosofia”. Como ir ao “psicólogo” … Alguém vai ao psicólogo e diz: “Eu tenho um problema” … Qual é o nome dele ?: “Bolsonaro”. “Ei, não é um problema psicológico, é um problema político”: vá para a rua para lutar!
O problema não é que você vá ao “psicólogo” por causa de Bolsonaro: vá para a rua, vá lutar contra Bolsonaro; não é um problema intelectual.
Deve ser resolvido na militância, na ação; vendo o alcance na experiência real.
1Informe editado de uma palestra dada em São Paulo no domingo, 21 de outubro, uma semana antes do segundo turno no Brasil.
2Para uma apreciação da situação mundial, nos referimos ao nosso documento internacional “Um mundo marcado pelo giro à direita, a crise econômica, as tensões geopolíticas e a 'bipolaridade' social e política” (Revista Internacional Socialismo ou Barbárie n.32 / 33).
3A eventual consolidação de um ciclo regional de direita a partir do triunfo de Bolsonaro, no entanto, não perder de vista a instabilidade que tal governo significará em um colosso regional como o Brasil. Se é verdade que tende a decantar a região para a direita, também é verdade que as tendências à instabilidade podem polarizar os acontecimentos: provocar mudanças em ambos os extremos.
4Colocamos estes nomes, muito distintos entre sí, a título ilutrativo somente
5Recordemos que no Brasil não existem estruturas sindicais básicas como comissões internas. A camada social da vanguarda agrupada nos sindicatos, em geral trabalhadores qualificados, sempre chamou a sua base de trabalho como a da peonzada (os peões), isto é: com um certo ar de soberba.
6Dizemos isso apenas por razões ilustrativas, porque Boulos obteve 0,59% dos votos para a presidência. O PSOL fez melhor para os deputados nacionais e estaduais, onde fez uma escolha muito valiosa.
7Uma característica da Argentina é seu relativo “desvio” das tendências mundiais. Um país com características político-sociais específicas: com uma estrutura social e político/cultural avançada, baseada em uma infra-estrutura econômica – desenvolvimento específico das forças produtivas – relativamente fraca; não competitiva para as fileiras internacionais (daí suas recorrentes crises econômicas).