Por Martin Camacho
Depois de quase 15 dias em que o primeiro presidente indígena, Evo Morales, renunciou ao governo e covardemente deixou o país sem contribuir com a organização da resistência contra o golpe, a crise e a polarização política na Bolívia continuam. A Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade a lei para convocar novas eleições gerais e excluir o ex-presidente exilado no México da próxima disputa eleitoral. A decisão foi apoiada pelos parlamentares do Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Morales e que é a maioria na Câmara dos Deputados e no Senado.
Uma série de negociações foram realizadas entre o MAS e o atual governo golpista, enquanto as forças armadas dispararam contra o povo de El Alto, que exigiam o fim do golpe de Estado. Os protestos foram severamente reprimidos pelo exército, deixando aproximadamente 34 mortos e várias pessoas gravemente feridas. Esse cenário deixa clara a traição do partido de Evo ao povo boliviano. O MAS preferiu reconhecer e concordar com o governo golpista de Jeanine Áñez, ignorando a população enfurecida pela violência e pela onda racista que tomou conta do país nos últimos dias.
A resistência camponesa, indígena, trabalhadora e plebeia
Desde que Evo Morales deixou o país em um avião mexicano que buscou ele em Chapare, área de cultivo de coca e com forte apoio do ex-presidente, uma resistência foi organizada em várias partes do país, mas sem a coordenação que poderia dar a volta ao golpe.
Igualmente, a população entrou em uma rebelião que colocou o governo golpista em evidência, para o que estava indo; não apenas uma transferência rápida e simples, convocando imediatamente as eleições, mas um novo projeto de país, racista e xenófobo, reacionário, eliminando todos os elementos do passado e impondo uma virada brutal à direita.
É por isso que a rebelião se eleva bravamente diante do exército. Os massacres não esperam até que os elementos de segurança sejam ultrapassados por uma imensidão de manifestantes. Os casos de Sacaba no Trópico de Cochabamba e em Senkata, nos arredores de El Alto, foram os mais numerosos em mortes, mas não foram os únicos.
Os plantadores de coca das 6 Federações do Trópico de Chapare se dirigiam a Cochabamba para fazer um “cabildo” (assembleia popular) na praça principal, em 14 de setembro, mas encontraram um contingente de policiais e militares que cortaram a passagem. Na quinta-feira, 14 de novembro, a marcha já estava na ponte Huayllani, no quilômetro 10 da Avenida Villazón, em Sacaba. Nesse dia, houve confrontos com a polícia que não permitiram a marcha continuar, forças de segurança não tiveram um só feridos, negando as declarações do governo de plantão. Por outro lado, em La Paz houve também a repressão por parte da polícia em a mobilização pedindo a renúncia de Áñez.
Na sexta-feira 15/11, a marcha na região de Cochabamba faz uma nova tentativa de ultrapassar o contingente policial-militar e, por duas horas de luta, no final da tarde, é que o massacre ocorre quando os militares se sentem desbordados. O governo tentou se esconder com milhares de mentiras. O saldo desses confrontos foi de 9 pessoas mortas e 115 feridas, muitas delas com balas e cerca de 200 presos. Entre as mentiras do governo, foi dito que os manifestantes estavam “armados” e que as mortes foram causadas “pelos próprios manifestantes”. Coisa inacreditável, mas na Bolívia essas notícias tiveram todo o apoio da imprensa que poderíamos classificar como golpistas e provavelmente financiadas por organizações estrangeiras.
Em um tempo, as forças armadas estavam cercadas, estavam em uma ponte e os manifestantes estavam nas duas extremidades. Entre os militares havia tanques blindados, helicópteros e aviões de combate, além de um forte contingente entre policiais e militares armados; tudo isso para não deixar a marcha chegar a La Paz. Resgatamos a coragem e o poder do confronto, porque depois de um dia trágico velando os mortos, à noite se saiu em marcha com os corpos pela cidade. O clima era de rebeldia e não derrota. Isso mostra que no dia seguinte eles tentaram chegar ao centro da cidade de Cochabamba, enquanto a repressão continuava.
Outra resistência foi vista na cidade de El Alto, que marchou vários dias seguidos até a cidade do governo, a cerca de 8 quilômetros de distância e com o grito de “agora sim guerra civil” colocou a rebelião contra o golpe em um patamar diferenciado do resto da América Latina; fiz frente a onda de direita que é vivida em La Paz, impactando os setores populares e foi um emblema das jornadas de novembro. A resistência ao golpe exigiu a demissão de Áñez. Enquanto milhares tomaram o centro de La Paz com wipalas na mão, um símbolo de resistência, depois de serem queimados por soldados golpistas na Plaza Murillo.
Outra medida de força foram os bloqueios nas estradas, a falta de comida, gasolina e gás foi sentida na cidade. Outro local de resistência foi a planta de repartição de Senkata, distribuidora de hidrocarbonetos e gás, localizada nos arredores da cidade de El Alto. Milhares de moradores de regiões próximas se juntaram ao cerco que deixou La Paz por mais de cinco dias sem gasolina. Semelhante a 2003, a distribuidora foi um ponto de resistência ao golpe, que terminou com a queda de González Sánchez de Losada.
Como em Cochabamba, o governo mobilizou as forças armadas. Mas antes coloco o decreto 4078 para isentar qualquer julgamento por “ordem de salvaguarda”. Com esta carta branca, as Forças Armadas estavam se preparando para cercar a planta e possibilitar a saída de cisternas em direção à cidade de La Paz. Como era temido, foi ao sangue e fogo, soldados sem piedade disparam contra a população desarmada. Na terça-feira 19, a operação foi organizada para retirar as cisternas para abastecer a cidade e impedir que ela desabasse. Após a partida dos caminhões, ocorrem confrontos; por um lado, pedras e paus e, por outro lado, balas. Mas a resistência continua; como visto no dia seguinte, os caminhões não saem porque a população permaneceu mobilizada. Foi realizado um “cabildo” com milhares de moradores ratificando para continuar com o bloqueio de estradas e a planta de Senkata. O chefe da Defesa do governo interino, Luis Fernando López, disse na terça-feira em uma entrevista coletiva que, apesar das baixas civis “nenhum projétil foi disparado pelas as Forças Armadas”. O governo justifica da maneira mais mentirosa as 9 mortes e mais de 30 feridos nos eventos de Senkata.
Ante a massacre brutal, a população marchou na quinta-feira (21) para a cidade de La Paz com a intenção de demonstrar que os mortos eram produto da repressão do Estado a imprensa golpista anunciava. Essa marcha deixou a área de Senkata e alcançou o obelisco na cidade de La Paz, quando foi reprimida por policiais, querendo traspassar o cerco da polícia com caixões. Se pode ver uma atitude desumana de ade parte da polícia frente as famílias das vítimas, sendo tratadas como terroristas. Tudo isso aparentemente não teve muito impacto na bancada do MAS, quando acabou negociando com o golpismo um ou outro acordo que certamente lhes dará pouco e nada.
Por outro lado, a presidenta governa por decreto e doa US $ 4,8 milhões para equipamentos militares às forças armadas. O governo se está instalado da pior maneira, com um setor da sociedade que apóia essas ações. Parece que o “masismo” no parlamento tem uma visão distorcida do que está acontecendo na Bolívia …
Outra das medidas que o governo golpista tomou rapidamente é restabelecer um embaixador nos Estados Unidos, o governo designou Wàalter Serrate como oficial no país do norte. As relações no nível das embaixadas foram interrompidas em 2008. Neste ano, a DEA (Administração de Controle de Drogas) e a USAID (Agência para o Desenvolvimento dos Estados Unidos) também foram expulsas. Hoje eles certamente estão trabalhando novamente no país como parte de uma política governamental internacional de abordagem clara ao imperialismo ianque.
A formação de um Bolsonaro boliviano
Na segunda-feira, 25 de novembro, uma “lei de garantia” ou “lei de pacificação” foi concluída para impedir a perseguição de líderes. Muitos dos funcionários foram perseguidos para pedir demissão ou até membros da família foram ameaçados. A questão é que eles estão negociando com um governo que já definiu todos os dirigentes da oposição como “terroristas”, de Evo Morales ao último secretário. Parece que os únicos que não entenderam o caráter do governo são alguns parlamentares do MAS. “Este acordo é redirecionar não apenas o país, mas também as estruturas orgânicas que o povo boliviano possui, por meio da organização que é a Central Obreira Boliviana”, disse o secretário executivo da COB Juan Carlos Huarachi. O COB em si, que não moveu um dedo contra o golpe, pactua com o golpe, a traição não tem limites e os efeitos disso virão, um revés para todo o movimento trabalhista nacional.
Mas não foi apenas o COB responsável pelo pacto. Também estiveram líderes da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), da Confederação Nacional de Mulheres Camponesas Originais da Bolívia-Bartolina Sisa, da Confederação de Comunidades Interculturais da Bolívia (CSCIB), da Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano. (CIDOB) e o Conselho Nacional de Ayllus e Markas del Qullasuyu (Conamaq). Ou seja, todo um pacto pelas costas daqueles mobilizados onde o governo ainda não deu um centímetro de confiança a essas organizações que venderam os mortos. «Temos de nos olhar como iguais. Faremos todos os esforços para que os bolivianos nunca mais os enfrentemos”, disse o ministro do Governo Murillo, quando há menos de 24 horas ele disse que eram todos terroristas. É difícil acreditar em como um pacto com esse ministro genocida pode ser válido …
Essa atitude é muito típica dos governos burgueses que se associam para estabelecer a “ordem”, esquecendo os mortos e repassando todos os problemas colocados pelas mobilizações. Mas o que é vivido hoje na Bolívia sai da normalidade, é difícil superar o acordo e o reconhecimento do golpe de trabalhadores, organizações indígenas e camponesas. A queima do wipala foi o gatilho para milhares de indígenas e camponeses saírem às ruas para defender seus direitos. Mas os líderes traiçoeiros do Congresso e os sindicatos acabaram negociando a saída de novas eleições em 120 dias. Claramente, as conquistas democráticas obtidas em 13 anos com o governo do líder indígena estão em perigo e podem em breve ser derrotadas pela direita fascista.
Tudo isso foi dado para pacificar e convocar eleições digitadas pelo golpismo, excluindo Evo Morales e García Linera, que foram votados por 47% da população. Hoje eles estão proibidos de concorrer a novas eleições. Por outro lado, o governo já designou Salvador Romero como membro do Supremo Tribunal Eleitoral, que terá a tarefa de organizar as novas eleições que deveriam ser para março e abril e se há um segundo turno, com posse em junho. Isso não significa nada de eleições rápidas, mas eles planejam eleições totalmente manobradas para colocar o candidato da extrema direita. Para isso, os líderes cívicos que lideraram as manifestações de Luis Fernando Camacho (Santa Cruz) e Marco Pumari (Potosí) já estão em campanha. Muito parecido com o que foi visto no Brasil com Lula proscrito e Bolsonaro assumindo a direita mais reacionária. Por outro lado, há Carlos Mesa, quem instigou a fraude, mas quando o golpe foi consumado, ele parou de aparecer na vida política. Talvez os novos atores mais radicalizados acabem tirando a Mesa da posição que ocupava nas eleições anteriores.
Para isso, o governo usa todas as suas influências para posicionar suas figuras, conforme anunciado pelo ex Ministro da Presidência Justiniano: “Acreditamos que ele (Camacho) deve ser candidato. Ainda (estamos convencendo-o) e ele diz que não. Eu ainda digo que, embora não sejamos um bloco, é necessário, ele tem que cumprir um papel histórico. Ele assumiu uma liderança insurgente meteórica”, insistiu. Fica claro o trabalho que o atual governo tem, posicionar uma figura ultrarreacionária para colocar a Bolívia no caminho do entreguíssimo e remover todos os direitos democráticos que os explorados e oprimidos alcançaram nos anos anteriores.
Mas as eleições ainda não têm uma data clara, são todas especulações. “Não há possibilidade técnica de organizar a eleição antes de 20 de janeiro, o prazo de 120 dias é extremamente curto, mas o corpo eleitoral está comprometido em organizar o processo eleitoral dentro do prazo”, disse o novo presidente do Supremo Tribunal Federal. Eleitoral (TSE). A isto se acrescenta um problema que terá que ser resolvido em breve, ou seja, em 22 de janeiro terminam os mandatos das eleições de 2014. Isso deixa mais incerteza, porque as autoridades não poderiam continuar governando. Ou seja: novamente as irregularidades da Constituição serão vistas. A autoproclamada presidente evitou dar declarações porque sabe que está no limite da legalidade (na verdade, como sabemos, ela já passou essa legalidade pelo golpe de estado, mas isso não nega que ela queira dar um verniz). A Assembleia Plurinacional também estaria na mesma situação de instabilidade.
Essas contradições mostram que o processo permanece aberto a novos confrontos, já que as massas ainda não foram derrotadas. Devemos ver como as traições das direções são assimiladas. Hoje, sabe-se que certos setores sociais desconhecem o acordo firmado pelo MAS, colocando como prioridade a renúncia do presidente autoproclamado.
A tendência a rebelião permanece em aberto
Como um todo, salvando casos excepcionais, a imprensa fazia parte do golpe planejado, desde a mídia instigando antes e depois da renúncia de Evo Morales. Hoje eles entrevistam os jovens pertencentes aos comitês cívicos como se fossem heróis de um ato patriótico, sempre invocando Deus e as forças armadas. Também repetindo o que o governo transmite, catalogando todos os ativistas sociais de gângsteres, traficantes de drogas ou terroristas. Eles também foram cúmplices no silêncio de muitos meios de comunicação e na expulsão de jornalistas que transmitiam de La Paz, sendo cúmplices no corte da liberdade de imprensa. Um dos últimos meios a serem expulsos foi a Telesur, que teve seu sinal interrompido a alguns dias atrás.
A população mobilizada contra o golpe viu como a mídia desinformava ou não estava presente nos locais onde ocorreram os massacres. Na marcha de quinta-feira 21, o slogan era “Prensa vendida, pare de mentir” e “ir para Senkata”. Hoje em dia, apenas a imprensa internacional era confiável e muito mais objetiva do que a imprensa nacional, que é aberta ao governo golpista.
Apesar das traições do MAS, a rebelião popular não é tão fácil de se apagar na Bolívia. Porque o governo do golpe está cheio de contradições. Eles terão que enfrentar um povo que está de pé e que pode transformar uma derrota ainda não cristalizada. Por enquanto, os plantadores de coca nos trópicos davam um quarto intermédio nas mobilizações. Mas eles não retiraram a exigência da renúncia do presidente Áñez.
Um dos contrapesos é que a América Latina vive uma efervescência de rebeliões populares que lhe proporcionam um constante conteúdo de instabilidade. Há rebeliões no Equador, Chile, Colômbia e outras formas de protestos podem ocorrer, dando oxigênio aos que enfrentam o golpe hoje. Está planejado romper as direções traidoras e construir uma alternativa política que inclua os explorados e oprimidos, os trabalhadores, os indígenas, os camponeses e as mulheres.