Dois meses de Covas e a esquerda socialista como alternativa de luta para a cidade

Gabinete Paralelo pode se tornar uma ferramenta importante para intervir nas lutas e construir uma agenda anticapitalista

Pedro Cintra e Gabriel Mendes

Nesta semana, completou-se dois meses da gestão Covas à frente da Prefeitura de São Paulo. Entre atuações discretas no combate ao vírus e políticas hostis contra a população mais pobre, o prefeito abandonou em pouco tempo a imagem de moderado e tolerante que cultivou no segundo turno da eleição municipal e mostrou que é um fiel seguidor da velha cartilha tucana de como retirar direitos da população e reprimir os mais vulneráveis. 

O segundo turno do pleito eleitoral foi marcado por uma intensa disputa entre Covas, candidato à reeleição após assumir a cadeira de prefeito deixada por João Doria, e Guilherme Boulos, candidato do PSOL. É importante rememorar o tom que ambas as campanhas adotaram naquele momento. Enquanto Boulos construía sua candidatura pautada nas duras críticas à gestão tucana elitista e apresentava um projeto alternativo para a cidade nas ruas e junto da juventude e das periferias, Covas apelava ao preconceito raso contra os movimentos sociais e tentava o tempo todo colar a pecha de radical e totalitário na figura de Boulos.1 Em vários de seus pronunciamentos, o candidato do PSDB se afirmava como um representante da moderação, do respeito e da responsabilidade. A mídia tradicional paulistana, braço auxiliar do tucanato, também apelava ao fiscalismo e ao discurso austericida para afirmar que os projetos do psolista eram utópicos e que a esquerda era fiscalmente irresponsável. 

É necessário lembrar o posicionamento enfático que adotou a burguesia, exemplificado pelo editorial do Grupo Estadão “Não é hora para aventuras”, mesmo diante de sinalizações da campanha Boulos pela conciliação de interesses , exemplificadas por suas declarações como “não esperem de mim demonização da iniciativa privada” e pela manifestação de  setores empresariais que saíram em defesa de uma candidatura não “excessivamente arriscada”.2

O novo mandato de Covas já começou sem escrúpulos. Uma das primeiras ações foi a sanção de um projeto de lei, aprovado pela Câmara Municipal, que aumenta em 46% os salários do prefeito, do vice e de todos os secretários municipais. Se por um lado, a periferia da cidade sofre com o agravamento da pandemia, do desemprego e da fome, por outro lado, Bruno Covas poderá desfrutar de seu novo salário de R$35.462,00, a partir de janeiro de 2022. 

O ataque aos direitos da população, prática frequente do PSDB, se intensificou logo após a vitória eleitoral do tucano. Ainda no final de dezembro de 2020, em uma ação conjunta entre o Governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo, foi determinado o fim do passe livre do transporte para os idosos entre 60 e 65 anos. Mesmo após fortes críticas da opinião pública e atos de rua em protesto ao decreto, Dória e Covas mantiveram essa medida covarde que exclui do transporte coletivo parte significativa dos idosos da cidade que não terão condições de pagar passagem. 

Enquanto a crise sanitária e socioeconômica arrasta milhões para o desemprego, desalento, para a miséria e faz disparar o número de moradores em situação de rua, a resposta da Prefeitura de São Paulo para essa realidade é a violência e a hostilidade contra os sem-teto. No início de fevereiro, Covas ordenou a instalação de pedras pontiagudas embaixo de viadutos da capital paulista para dificultar a fixação de moradores de rua nesses lugares. O urbanismo higienista é uma das marcas do modus operandi tucano. Foi necessária a ação do padre Júlio Lancelotti de derrubar as pedras com marretadas, combinada com grande comoção nas redes sociais, para que a prefeitura voltasse atrás e retirasse as pedras.

Uma das medidas tomadas pela prefeitura de São Paulo no início deste mandato de Covas foi colocar pedras embaixo de viadutos da cidade para impedir moradores de rua de ficarem nesses lugares e expulsá-los para longe da vista da burguesia paulistana

Quando se trata de implementar políticas públicas que garantam condições de vida e alternativas que gerem emprego e renda, a prefeitura de Covas e a maioria dos vereadores do Palácio Anchieta propuseram e aprovaram um auxílio emergencial pago pela prefeitura no valor de 100 reais (o que hoje não é suficiente nem para a compra de um botijão de gás de cozinha), alegando falta de capacidade fiscal para não pagar um auxílio maior, um escárnio enquanto o prefeito em conluio com o legislativo municipal aprovam aumento dos próprios salários.

A direita liberal ou “tradicional” (leia-se aqui PSDB, DEM, PMDB…), tida como moderada por amplos setores da mídia e até mesmo por entusiastas progressistas de uma “frente ampla”, escancara o seu ódio de classe sem mediações, de uma forma que pode-se dizer que é mais escabrosa que a extrema-direita que ocupa o governo federal. A máquina propagandista de moldes fascistas de Bolsonaro busca trazer para o presidente genocida uma imagem de humilde e preocupado com os mais precarizados e impactados pelo tombo econômico, algo que os tucanos paulistas, por exemplo, mal se preocupam em fazer. Há décadas governando para os de cima, aplicam políticas anti-populares e higienistas sem disfarce, adotando um discurso de moderação e boa gestão ao longo das campanhas.

Diante disso, é preciso organizar as lutas por baixo e construir uma alternativa de esquerda socialista para combater os tucanos e seus aliados. Nesse sentido é importante saudar a iniciativa do PSOL em formar um Gabinete Paralelo, iniciativa que está em formação e foi lançada recentemente através de atividades que envolveram núcleos de base do partido, a bancada de vereadores e figuras como Daniel Cara e Guilherme Boulos. 

O Gabinete Paralelo atuará como uma plataforma política fundamental não só para fiscalizar as ações da prefeitura, como também para propor projetos alternativos que atuem na enfrentamento aos principais problemas sociais que a assolam a população, como o aumento significativo do desemprego, disparada da fome e da extrema pobreza, além é claro, da grave crise pandêmica. Junto da aguerrida militância do PSOL, poderá significar um marco para o debate político da cidade pela sua coragem e proposição programática à esquerda da velha dicotomia PT x PSDB que tanto já fez mal à população paulistana.

É importante buscar a organização de uma grande disposição de luta que como a que mobilizou setores da juventude e da classe trabalhadora durante o ano de 2020 entorno, principalmente, das candidaturas do PSOL que garantiram em São Paulo um segundo turno a partir de campanhas militantes, que tiveram como resultado um salto expressivo na bancada de vereadores do partido, que hoje conta com seis mandatos que podem se tornar a expressão política das mais diversas e necessária lutas e da defesa dos serviços públicos e dos trabalhadores. 

Nos primeiros dias do ano a bancada psolista se posicionou com independência e lançou Erika Hilton, primeira mulher transexual eleita da história da cidade, como candidata à presidência da casa, sendo a única candidatura que se contrapôs a reeleição de Milton Leite (DEM), vereador há pelo menos 25 anos na cidade e articulador de inúmeros ataques aos trabalhadores e retiradas de direitos, como a aprovação do SampaPrev no apagar das luzes de 2018. Nesta eleição, a candidatura do PSOL contou exclusivamente com os votos da própria bancada. Na votação, a esquerda da ordem petista não tinha como argumentar que fazia a escolha por um setor abertamente burguês para derrotar uma candidatura de apoio à extrema-direita bolsonarista, como fez na eleição da câmara federal polarizada entre Arthur Lira (PP) e Baleia Rossi (MDB). A bancada do PT mais uma vez optou por se aliar com partidos direitistas que trabalharam abertamente em favor das manobras reacionárias que retiraram o próprio PT do Palácio do Planalto em 2016 e passaram a boiada nos direitos sociais nos anos posteriores, considerando também o papel jogado pelas direções nos principais processos de luta direta. 3

Nesse sentido, é preciso demarcar uma diferenciação política e programática categórica pela construção de um pólo político de esquerda, que deverá ser marcado por um constante diálogo com as massas e com as ruas, e principalmente pela oposição à conciliação de classes com a burguesia e com os seus representantes dentro dos espaços institucionais. É preciso apostar na política do asfalto e do barro, junto da juventude, das periferias e dos trabalhadores, sem acomodações e deslumbramentos pelos carpetes e ar condicionados dos gabinetes e dos palácios.

Por isso, o PSOL pode cumprir um importante papel na oposição aos governos a serviço dos de cima. A aposta no “governo paralelo” deve servir como ponto de apoio para formular uma agenda anticapitalista que só pode ser conquistada pela mobilização permanente nas ruas. Entendemos, é claro, a situação sanitária terrível que passa o país e a impossibilidade de convocar manifestações que juntem milhares de pessoas, no entanto, isso não impede a mobilização nos locais de trabalho e de moradia e mobilizações como carreatas, panelaços, além de intervir com faixas pelas cidades. Aliás, as condições sanitárias não devem servir de pretexto para paralisia em intervenções concretas, como a defesa de greves sanitárias e paralisações em defesa da vida, por vacinação já e para todos.    

O espetacular resultado eleitoral do PSOL em 2020, somado a esta importante iniciativa do Gabinete Paralelo podem oxigenar o debate sobre a cidade e renovar discurso apontando para a necessidade de mobilização da esquerda, que ainda é hegemonizada pela conciliação petista burocrática, esta que aposta única e exclusivamente na institucionalidade para buscar aplicar medidas compensatórias diante da degradação das condições de vida das e dos trabalhadores, da juventude e de todos os explorados e oprimidos. 

Atividade presencial de lançamento do gabinete paralelo, na mesa a bancada de vereadores do PSOL, Daniel Cara e Guilherme Boulos. Dias depois foi feita uma atividade online com cerca de 100 filiados e diversas intervenções da militância dos núcleos e setoriais

1https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/no-2o-turno-covas-aposta-em-moderacao-e-tenta-fixar-imagem-de-boulos-como-radical.shtml

2https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/boulos-ganha-apoio-de-empresarios-e-investidores-veja-o-manifesto/

3https://www.cartacapital.com.br/politica/com-apoio-de-pt-e-psdb-milton-leite-dem-e-eleito-presidente-da-camara-de-sp/