Com essa nota queremos traçar um primeiro panorama inicial da situação política pós-eleições, uma definição do governo Lula e os desafios políticos centrais do movimento de massas e da esquerda socialista. A eleição presidencial de outubro foi responsável por colocar uma nova situação política nacional. Em que pese que outros elementos da realidade ainda não tenham se alterado de forma significativa, como a situação econômica e a luta de massas nas ruas, esse processo foi um fato político que transcende à conjuntura anterior e coloca uma situação transicional que pode evoluir – ou não – para uma mudança cabal de correlação de forças.

ANTONIO SOLER*

As eleições de outubro de 2022 foram as mais polarizadas e tiveram os resultados mais apertados desde o processo de redemocratização nos anos 80. Nunca antes tivemos uma conjuntura eleitoral em que setores da classe dominante jogaram tanto peso social, político e institucional para eleger um presidente. Além do peso patronal, o governo utilizou de vários instrumentos institucionais e não-institucionais para impor sua vitória.[1]

Apesar disso, Lula venceu o segundo turno das eleições, o que significou uma enorme vitória dos setores mais explorados e oprimidos. Lula obteve 50,90% (60.345.999) e Bolsonaro 49,10% (58.206.354) dos votos válidos, uma diferença de apenas 1,80% (2.139.945). Do ponto de vista do peso social destes votos, segundo pesquisa do IPEC no dia 29/10, um dia antes das eleições, entre os que ganham até 1 salário-mínimo Lula chegava a 62% de intenções de voto e Bolsonaro a 30%, o mesmo fenômeno se via entre os de menor escolaridade (58% a 35%) e entre os negros (54% a 36%).Tudo isso apesar da política da frente ampla que, praticamente, não falou – e nem poderia pelo seu caráter de conciliação de classes – diretamente às necessidades políticas, sociais e econômicas da classe trabalhadora. Esses dados indicam, por via própria, um processo de politização de amplos setores feito a partir da experiência existencial com o governo Bolsonaro.

Politização que se fez nas condições mais difíceis, sem o apoio do comando da campanha de Lula ou de um processo de mobilização de rua que permitisse uma totalização da consciência popular, ocorreu de forma espontânea e tem enorme importância política no próximo período da luta de classes. Obviamente que ao não ser acompanhada de um programa e ações políticas de rua, autônomas e democraticamente constituídas, não poderiam gerar um impulso capaz ainda de criar um movimento que coloque uma situação totalmente distinta, mas abriu espaço para que possamos superar definitivamente a situação reacionária que vivemos durantes os últimos anos.

Conciliação de classes com intenções normalizadoras

O terceiro governo Lula será uma coalizão normalizadora de conciliação de classes e terá em sua composição representantes de todas as oligarquias políticas do país (reacionários de toda espécie, inclusive, por bolsonaristas).

Esse não é um governo burguês de conciliação de classes idêntico ao que foi o primeiro e segundo mandato de Lula, mas um governo burguês que conta com uma ampla base de partidos que têm representação no Congresso, da esquerda (da ordem) à extrema direita.[2] Dentro de uma razão fisiológica, Lula e seu entorno negociam cargos com o objetivo de formar uma base parlamentar que lhe permita, de antemão, uma ampla maioria no Congresso para que possa aprovar Projetos de Lei e projetos de Emendas Constitucionais, mas apesar de toda conciliação, não terá de antemão votos suficientes para passar os seus projetos no Congresso sem  antes negociar mais cargos e verbas.

O Ministério de Lula e sua base no Congresso Nacional reafirmam o caráter de governo burguês e se colocam a tarefa utópica de normalizar o funcionamento das instituições. O problema é que, apesar de extremamente limitadas do ponto de vista econômico e político, as condições dos primeiros mandatos de Lula não estão mais presentes na realidade. A garantia de direitos nunca foram efetivos para a ampla maioria da população devido ao caráter de país dependente, desigual e opressivo do Brasil.[3] Além disso, o pacto social de 1988 e a sua respectiva Constituição não existem mais e vivemos uma crise mundial que combina inflação e desaceleração.

A impossibilidade de efetivação do golpismo pré e pós eleições não pode se confundir com uma visão de que o neofascismo no Brasil tenha ficado nas páginas da história. Ao contrário, essa é uma força política que mantém envergadura, forte bancada no Congresso, governos estaduais, base em setores da burguesia, apoio de setores de massas e uma figura de carisma de massas que mantém grande capacidade de mobilização popular. Isso faz com que o bolsonarismo se configure como a força política que fará oposição direta ao governo Lula pela extrema direita e terá peso fundamental na correlação de forças nessa nova situação política (já indicamos acima que temos uma mudança parcial da correlação de forças após a derrota eleitoral de Bolsonaro) em que vivemos.

De outra parte, a base estratégico-conceitual da política de Lula é totalmente anacrônica, oportunista e neoliberal, pois vai governar com a burguesia para tentar normalizar o seu domínio político e a sua exploração, enquanto se tenta garantir algum crescimento econômico e políticas de compensação social – daí a tendência do Lula 3 ser muito mais como liberal-social do que social-liberal, como foram os governos petistas anteriores.[4] Mas a realidade não é a da primeira década de 2000, temos um cenário mundial extremamente polarizado politicamente, guerra, crise sistêmica e, no Brasil, uma polarização política com a extrema direita que está no centro da nova situação.

Apostar na combatividade da classe trabalhadora

Em que pese que o movimento de massas no Brasil enfrenta um longo refluxo, durante todo governo Bolsonaro ocorreu uma série de ações de vanguarda contra o governo e suas políticas ultraliberais, golpistas e genocidas. Estas lutas não puderam transcender à lutas massivas e radicalizadas que pudessem impor o impeachment, dentre outros fatores, pelo papel desmobilizador da direção lulista (PT) e de seus satélites, como o PCdoB e o PSOL, do movimento de massas.

Para fazer um recorte a partir da eleição presidencial, é importante notar que existem importantes reservas de combatividade que se expressaram indiretamente através do voto contra Bolsonaro em outubro passado. Comecemos relatando os bloqueios das rodovias logo após anunciado o resultado eleitoral em 30 de outubro, que foram enfrentados por operários, populares e torcidas organizadas espontaneamente.[5]

Esse movimento de enfrentamento nas ruas com o neofascismo apenas não se estendeu e acabou gerando enfrentamentos físicos mais duros e explosivos porque Bolsonaro apelou para que os seus seguidores deixassem os bloqueios e porque a direção lulista desautorizou qualquer enfrentamento direto contra o bolsonarismo. E não podemos deixar de notar que essa política de desautorização do enfrentamento ao neofascismo pela ação direta das massas acabou dando espaço para que o bolsonarismo se atrevesse a colocar em prática o espetáculo de golpismo farsesco no dia 8 de janeiro.

No dia seguinte ao 8 de janeiro, a farsa golpista gerou uma rejeição maciça que desencadeou a mobilização popular em várias cidades do Brasil no dia 9 de janeiro, demonstrando mais uma vez que temos potencial de combatividade popular, juvenil e proletária. Ação de rua que está em sintonia com um sentimento popular majoritariamente anti autoritário, o que foi comprovado não apenas nas ruas, mas também na pesquisa Datafolha realizada em dezembro de 2022; nesta, 75% dos entrevistados foram contrários aos atos antidemocráticos bolsonaristas que não aceitaram o resultado da eleição presidencial.

A inflação, o desemprego, a precarização e a derrota eleitoral de Bolsonaro são elementos que impulsionam a luta. Processo que pode estar sendo apontado na luta dos entregadores por aplicativo logo no começo desse governo e por outras. Nesse sentido, desde a base da organização dos entregadores foi marcado um ato nacional para o dia 25 de janeiro que tinha como um dos eixos a regulamentação do trabalho dos entregadores por aplicativo. Como é parte da prática de todo governo de conciliação de classes, e o lulismo é mestre nisso, ao invés de apoiar a mobilização, o Ministério do Trabalho do governo Lula fez gestões para que o ato fosse desmobilizado, o que infelizmente contou com o apoio de algumas lideranças dos entregadores, que tiveram a política de desmarcar o ato sem consulta à base.

No entanto, um setor da liderança dos entregadores, do qual fazemos parte, corretamente manteve o ato no dia 25 de janeiro porque compreenderam que não existe contradição nenhuma em negociar e mobilizar. Muito ao contrário, só podemos obter mais conquistas quando não descolamos a negociação da mobilização direta e aplicamos na prática a democracia de base. Manter o ato do dia 25 foi, assim, um grande acerto, pois essa linha empalmou a necessidade – e vontade – de luta diante das terríveis condições de trabalho; enfim, foi acerto político que tem se refletido concretamente nessa nova onda de mobilizações.

Por último, mas não menos importante, temos movimentos mais moleculares da classe trabalhadora nesse começo de ano que valem a pena serem destacados. Este é o caso da luta dos metroviários de Belo Horizonte contra a privatização do Metrô, dos trabalhadores da Anvibras de Limeira por estabilidade no emprego e dos operários da MRV de Campinas pelo PLR. Estas são lutas isoladas mas que apontam o potencial de combatividade da classe e dos oprimidos que precisa ser desenvolvido, conectado e nacionalizado, a esquerda socialista tem um papel fundamental no apoio a estas tarefas.

O lulismo e seus asseclas continuaram a tentar garantir que nada saia dos canais institucionais. A estratégia política da conciliação de classes – do governo, dos partidos e dos movimentos que o integram – sempre leva a derrotas, basta ver a história política recente do Brasil. Assim, temos enormes desafios políticos e organizativos pela frente para mudar a correlação de forças e passar a ofensiva contra o bolsonarismo, a classe dominante e, também, o atual governo de conciliação de classes. Certamente que isso não significa deixar um segundo sequer de organizar a luta contra o bolsonarismo e a classe dominante e de exigir e denunciar o governo pelo seu sentido, composição, função e políticas.

Refundar a esquerda socialista no Brasil

Indo para o final deste texto, queremos fazer alguns apontamentos sobre a política da esquerda socialista. No último período, ao entrar na chapa Lula-Alckmin e participar do governo, alguns setores da esquerda que se dizem revolucionários, como o PSOL, por exemplo, tiveram a sua linha de independência de classes totalmente ultrapassada.

A justificativa que dão setores da ex-esquerda socialista – infelizmente não podem mais ser considerados como revolucionários a partir da traição política que já operaram – é de que era necessário participar da chapa Lula-Alckmin e, agora, do governo, porque o neofascismo bolsonarista irá o atacar, desestabilizar e tentar derrubar não tem o menor fundamento estratégico. A história da luta de classes tem como lição central que a única forma de resistir de maneira efetiva e eficiente aos ataques reacionários é a partir de uma política, organização e luta independente dos trabalhadores e dos oprimidos.

Uma coisa foi, diante do perigo para os direitos democráticos dos trabalhadores e dos oprimidos, que significava a reeleição do neofascista Bolsonaro, chamar o voto crítico em Lula no segundo turno, da forma como fizemos nós do Socialismo ou Barbárie (SoB). Um chamado que fizemos sem abandonar a independência política da chapa Lula-Alckmin, do PT e dos setores da burguesia que fazem parte desta coalizão de classes. Isso permitiu desenvolver táticas de exigência e denúncia de acordo com as necessidades materiais, de organização e políticas da nossa classe, ou seja, de acordo com a estratégia de mobilização permanente dos trabalhadores, condição decisiva para enfrentar de fato o neofascismo.

Outra coisa totalmente diferente foi o que fez PSOL e outras organizações que entraram na chapa de conciliação de classes e, agora, estão no governo. Apoiar as políticas, participar ou ter expectativas nesse tipo de governo apenas leva à desmobilização, perda de protagonismo e referência para o conjunto das massas, o que evidentemente favorece o neofascismo que é uma força parlamentar e extraparlamentar. Desta forma, não construir uma oposição de esquerda independente ao governo e à altura dos desafios é uma estratégia política que não pode se chamar  de  outra forma: é traidora. E que apenas servirá para o avanço da burguesia, da direita e da extrema direita, o que significará repetir o desastre da linha petista diante do impeachment de Dilma e da prisão de Lula.

Essa ultrapassagem da linha de independência de classe em todos os níveis (estratégica, tática e organizativa) do PSOL e de suas correntes de esquerda é outro elemento novedoso da situação política, pois abre um processo de reorganização da esquerda. A sua dimensão, ritmos e alcance ainda não estão definidos porque depende da luta de classes, da experiência com Lula e todos os demais desdobramentos, mas a questão da reorganização da esquerda no Brasil está concretamente posta.

Para enfrentar essa batalha pela reconstrução da esquerda socialista, que apenas se inicia, será necessário combater todo sectarismo e oportunismo. Passa, do ponto de vista do movimento, pela necessidade de articulação sindical, popular e estudantil com todos os setores independentes e, do ponto de vista partidário, pelo processo de abertura da discussão de uma aglutinação dos revolucionárias através de um processo de frente política de esquerda e pela construção de uma frente única revolucionária.

Uma política independente diante de um governo burguês de conciliação de classes é uma necessidade primordial, uma questão de vida ou morte para a luta dos trabalhadores e oprimidos. Como parte disso, não se pode cair no sectarismo e nem no oportunismo, temos que desenvolver uma linha política independente que tenha como balizamento constante nunca descuidar da luta para prender Bolsonaro e o conjunto das tarefas democráticas que temos pela frente e que o golpismo farsesco deixou ainda mais claro.

Como não podemos desconsiderar a grande expectativa que têm as massas nesse governo, é preciso uma política que dialogue com as suas necessidades e consciência. Essa política, evidentemente, passa por uma combinação muito específica de exigência e denúncia. Para não cair no sectarismo não podemos desconsiderar que a extrema direita não foi derrotada nas ruas, e que ela precisa ser enfrentada permanentemente em unidade de ação com independência de classes com todos que queiram derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo nas ruas. Por outra parte, para não ir ao oportunismo, não podemos fazer como algumas correntes que ao exigir do governo, o faz de forma superestrutural; ou seja, devemos ter como baliza a mobilização, fator fundamental para contribuir  com o avanço da ação  e consciência política.

Para ficar aqui apenas no campo das reivindicações democráticas, ao mesmo tempo em que temos que exigir que Lula e seu governo ajam para prender Bolsonaro e todos golpistas, temos que denunciar que nada será resolvido prendendo apenas os peixes pequenos que participaram do 8 de janeiro, criando uma Guarda Nacional ao estilo do Império ou realizando uma pontual reforma nas forças armadas.

Além da luta para revogar todas as contrarreformas dos governos anteriores, pelo salário mínimo do DIEESE, por direitos trabalhistas para todos trabalhadores, pelo fim da polícia militar, pelo revisão da lei da anistia aos torturadores e assassinos da ditadura militar e por uma profunda reforma democrática nas forças militares, pensamos que uma mudança substancial na correlação de forças política passa por organizar de forma independente uma ampla campanha pela extradição e prisão de Bolsonaro. Certamente que não podemos desconsiderar o conjunto de reivindicação que estão postas, mas a extradição e prisão de Bolsonaro a partir da luta direta do movimento de massas impactará de forma qualitativa a conjuntura política nacional, fazendo que as condições para uma mudança cabal de relação de forças sejam dadas.

Para concluir, esse conjunto de fatores nos coloca em uma nova situação e uma mudança parcial da correlação de forças entre as classes. Assim, temos como desafio central, para que essa mudança seja completa, derrotar o bolsonarismo nas ruas. Tarefa essa que não se faz com apoio político a nenhum governo burguês, mas sim pela organização e luta independente das massas nas ruas. Estratégia para a qual deve se jogar a esquerda socialista, não à capitulação política e orgânica ao novo governo, como faz o PSOL e outras organizações. Daí a necessidade premente de refundar a esquerda socialista em nosso país sob bases estratégicas revolucionárias.

*Com a colaboração de Marcos Vieira.

[1] Tivemos milhares de denúncias de assédio político da patronal e de pastores evangélicos para obrigar os trabalhadores e fiéis a votarem em Bolsonaro, ao menos 3 assassinatos diretamente políticos ligados à disputa nacional e uma máquina de fake news que inundaram as redes sociais

[2] Essa composição é bem mais ampla do que foi a frente eleitoral, do total de 23 partidos que existem no país, 8 farão parte do governo.

[3] Além da ofensiva ultra reacionária da burguesia destes últimos anos, a origem desse desequilíbrio institucional também se deve à orientação conservadora – para dizer o mínimo – do lulismo diante de junho de 2013, uma parte importante da energia contestadora foi sequestrada pela direita e, depois, pelo bolsonarismo, fazendo com que o questionamento da ordem ficasse na mão da extrema-direita. Enquanto isso, a esquerda, majoritariamente dirigida pelo lulismo no governo e fora dele, se colocou no campo da manutenção do status quo da institucionalidade política, fez gestões contra os interesses das massas, perdeu sua conexão com as ruas e acabou sendo desalojado do poder. Como reflexo de Junho de 2013 e todo o desdobramento posterior, devido a não resolução da crise política e social de forma a favorecer as amplas massas – mesmo com a importante derrota eleitoral de Bolsonaro.

[4] Políticas que, aliás, já fracassaram, pois diante de qualquer crise econômica séria – como a de 2008 – são desmobilizadas para que novas ondas de ajustes e contrarreformas entrem em cena.

[5] Moradores de São Mateus (ES), operários da BrasFelsm, torcedores da Gaviões da Fiel, da Mancha Verde e da Galoucura Atlético-MG enfrentam o golpismo neofascista diretamente nos bloqueios colocando para correr a covarde movimentação nas estradas, enquanto isso, a Polícia Rodoviária Federal confraternizava com os bloqueios golpistas. Depois do apelo de Bolsonaro para que as estradas fossem desbloqueadas, lentamente essa movimentação com o apoio de setores da burguesia e dos militares passou a ocupar a frente dos cartéis.