Publicamos o quinto artigo da SÉRIE PARTIDO, Como adquirir ofício construtivo?, escrito por Roberto Sáenz. Neste texto da nossa série dedicada à construção partidária, o desafio da formação de novos quadros políticos, o que é evidentemente decisivo para se vencer cada etapa construtiva, passa pela escola incontornável da luta de classes, pela formação político-teórica, que não pode prescindir de forma alguma da leitura crítica dos jornais e dos clássicos do marxismo revolucionário, e pela seguida prática individual e coletiva entre diferentes gerações militantes para que se possa formar uma nova tradição construtiva revolucionária a partir da experiência do passado. Sem a experiência das novas gerações militantes, apoiadas na das velhas gerações e na reflexão crítica e criativa, não se pode encontrar os caminhos para a construção de verdadeiros partidos que deem conta das imensas tarefas estratégicas da revolução socialista do século XXI. 

Redação

Como adquirir ofício construtivo?

ROBERTO SÁENZ

(…) Vladimir herdou de seu pai a capacidade de se misturar facilmente com pessoas de diferentes categorias sociais, de diferentes níveis. Sem se irritar, sem violência, muitas vezes sem objetivos preconcebidos, ele sabia, em virtude de uma curiosidade irreprimível e de uma intuição quase infalível, como extrair de cada possível interlocutor o que precisava. É por isso que ele ouvia com tanta alegria enquanto os outros estavam entediados e ninguém ao seu redor adivinhava que, por trás de sua tagarelice, havia uma grande quantidade de trabalho subconsciente: as impressões eram coletadas e selecionadas, os buracos da memória eram preenchidos com material factual de valor inestimável, pequenos fatos serviam para verificar grandes generalizações. Assim, as divisórias entre os livros e a vida desapareceram e Vladimir, já naquela época, começou a usar o marxismo como um carpinteiro usa uma serra e um machado” (Leon Trotsky, “Lênin”).

A escola da luta de classes

A primeira coisa a se destacar é que, quando se trata de formação militante, não há escola melhor do que aquela que vem da luta da classe trabalhadora. Somos organizações revolucionárias em um período em que, embora uma nova geração operária esteja surgindo, a maior parte da “máquina partidária” é composta por jovens estudantes. É verdade que as organizações com maior acúmulo histórico têm mais vasos comunicantes com o “mundo operário”, bem como um certo número de companheiros estruturados laboralmente e mais velhos, o que lhes dá uma maior experiência global.

Também é verdade que a luta de classes das últimas décadas não foi tão radicalizada quanto a dos anos 1970, embora tenha havido uma recuperação das experiências de luta a partir dos anos 2000: bloqueios de estradas, ocupações de fábricas, retomadas de sindicatos, assembleias populares, movimentos piqueteiros militantes, confrontos com a polícia e repressão.

Todas essas experiências, colocando em primeiro lugar a luta cotidiana da classe operária industrial, são uma escola de imensa riqueza: o melhor que a militância pode receber, especialmente quando é jovem e vem do meio estudantil.

Dito isso, o outro plano decisivo na formação de militantes é o teórico e político. A educação política parece ser mais difícil para as novas gerações do que para as gerações anteriores. Muitos companheiros acham a política “abstrata”, ao contrário dos mais velhos que estavam acostumados a ler jornais, por exemplo. Era até comum que o jornal (não o Olé) estivesse em todos os locais de trabalho nas grandes fábricas, o que ainda é o caso entre a geração mais velha de operários.

Essa “complicada arte de ler jornais”, como Trotsky a chamou, nestes tempos de apropriação “epidérmica” da realidade por meio da mídia eletrônica e da falta de qualquer “consciência histórica” nas novas gerações, é uma tarefa árdua a ser enfrentada, superando o tipo de “cretinismo político-topográfico” que é característico das novas gerações.

O complexo problema da formação teórico marxista é um desdobramento do que foi dito acima, mas com sua própria especificidade. Há uma série de obstáculos a serem enfrentados aqui. Se for uma questão de companheiros universitários, a maneira pós-moderna e fragmentária de pensar e raciocinar que a universidade inocula diariamente deve ser superada, bem como seu desprezo aberto pelo marxismo clássico e revolucionário em nome do “novismo” (o último apelo da moda intelectual), na maioria das vezes uma maneira rebaixada de pensar que não contribui em nada, mas confunde muito.

Essa tarefa também se torna mais difícil porque o nível de leitura das novas gerações é mais baixo do que o das gerações anteriores; o ensino médio e universitário não incentiva o estudo de clássicos literários ou de qualquer outro tipo, e na universidade não há livros para ler: apenas fotocópias, fotocópias e mais fotocópias.

Dedicar-se ao estudo teórico, que tem um aspecto indesculpável de esforço individual (as escolas do partido são muito importantes, mas não resolvem o problema), é algo que devemos incentivar incansavelmente entre a nova militância do partido. 

Em suma: esse “ataque concêntrico teórico, político e prático” (como dizia o velho Engels) é um aspecto que, em sua globalidade, visa à formação militante.

O ofício laboral e construtivo

Além do exposto acima, neste artigo queremos nos concentrar em um aspecto específico, mas de importância decisiva quando se trata do ” saber-fazer” da militância partidária: a aquisição do ofício militante, que tem a ver com tudo o que foi mencionado acima, mas, acima de tudo, com a experiência adquirida ao longo do tempo.

O que queremos dizer quando falamos de “ofício construtivo”? Simples: como qualquer outro ofício, refere-se à “maestria” quando se trata de realizar uma determinada tarefa. No trabalho diário do movimento operário, sabe-se que os companheiros que têm “ofício” são aqueles que têm mais experiência na execução de uma determinada tarefa. Na classe operária do século XIX, os trabalhadores com “ofício” eram aqueles que resumiam o “saber-fazer” da produção, auxiliados apenas por determinadas ferramentas.

Na segunda ou terceira revolução industrial, com a linha de montagem fordista, o “corpo da produção” deixaria de ser “orgânico” (ou seja, nas mãos do próprio ofício dos trabalhadores) e se tornaria “inorgânico”: o “sistema de máquinas” seria a espinha dorsal da produção, e o trabalhador seria reduzido a uma espécie de “adereço” para ele. Essa é a metáfora pintada em “Tempos Modernos”, de Chaplin, em que, numa brilhante representação do que significa a exploração capitalista, os trabalhadores são destituídos de todo o controle sobre o processo de produção.

No entanto, não é verdade que não existam elementos de ofício entre os trabalhadores. Se o filme de Chaplin reduz a exploração do trabalho ao absurdo (trabalhadores transformados em autômatos), qualquer companheiro sabe que seu trabalho é fundamental para o sucesso da produção em quase toda a fábrica. Seja entre os trabalhadores da manutenção, nos sistemas de controle numérico, operando qualquer máquina, no maçarico ou na solda, até mesmo na embalagem e no armazenamento, não faz diferença para os capitalistas se o trabalhador é experiente ou não. Trata-se de um oficio como é de praxe – além da antiguidade e das diferentes categorias -, não é reconhecida nos salários pagos pelos patrões.

Qual é o objetivo dessa longa digressão sobre o ofício dos operários? Nós a colocamos como uma representação do significado da experiência em geral e da construção do partido em particular. No caso dos problemas de construção do partido, obviamente não se trata de uma linha de produção, mas do ofício individual e coletivo da organização quando se trata de “fazer números”, recrutar novos militantes, trabalhar com o jornal, finanças do partido e outros aspectos da construção do partido, que não pode avançar se esse ofício maior não for coletivo entre seus membros.

Como se adquire o ofício entre os trabalhadores? Simples: executando uma determinada tarefa repetidamente, milhares de vezes. Não é apenas o caráter “repetitivo” ou mecânico de um determinado trabalho, mas o fato de que, ao passar pela mesma experiência várias vezes, tanto o trabalhador quanto a organização em geral, e o militante em particular, são educados. O ofício produtivo – como o político-construtivo – tem uma “condição material” incontornável: um aprendizado que só pode vir da experiência; e essa experiência requer, para ser tal, ter sido realizada várias vezes.

O aprendizado adquirido dessa forma significa que o militante não é mais um “iniciante” quando se trata de lidar com a tarefa em questão: ele será capaz de dominar a tarefa em sua totalidade, minimizando os fatores que poderiam levá-lo ao erro.

Ofício, imaginação realista e balanço de atividades

Junto com a experiência, há outra condição indispensável para a aquisição do ofício de militante: a reflexão consciente sobre ele. Nas organizações revolucionárias, a experiência militante não deve ser vivida como uma mera experiência “pragmática” que não dá origem a nenhuma reflexão, mas deve ser objeto de uma reflexão que coloque o partido e a militância em outro nível: um aprendizado consciente sobre sua própria prática.

O problema que existe nas organizações revolucionárias jovens é que ninguém pode ter um “ofício” em algo que não tenha praticado anteriormente; de qualquer forma, enfrentar novas circunstâncias exige uma enorme capacidade criativa – como Trotsky disse que caracterizava Lênin quando enfrentava novos problemas – que dá origem a elementos de intuição política e até mesmo de imaginação criativa. [1]

A reflexão sobre a experiência que está emergindo pode ser um fator “acelerador” na aquisição do ofício de militante, e isso tem um nome claro: fazer um balanço de suas atividades.

 

[1] “Uma das variedades mais preciosas da imaginação consiste na faculdade de descrever pessoas, coisas e fenômenos como eles realmente são, mesmo que nunca tenham sido vistos. Usando toda a experiência de vida e princípios teóricos, combinando observações, informações dispersas obtidas de improviso, elaborando-as, unindo-as em um todo, completando-as de acordo com certas leis de correspondência ainda não formuladas, e assim reconstruindo, em toda a sua realidade concreta, uma determinada fase da vida humana: esse tipo de imaginação é o que não pode faltar a um dirigente (…), especialmente em tempos de revolução. A força de Lênin reside em grande parte na força de sua imaginação realista” (Leon Trotsky, Lênin).