Mulher e revolução

A CEM ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA

Mulher e revolução: políticas do Partido Bolchevique no poder acerca da emancipação feminina (1917-1930)

NOELIA AUGUSTINA FERRARIO

PAULA GERPE FERRESSINI CAROLINA

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo dar conta dos alcances e limites da Revolução Russa em matéria das medidas e práticas para a emancipação das mulheres, tendo em conta o período de 1917 até 1930, momento em que se consuma a contrarrevolução estalinista. Para desenvolver este objetivo começaremos recuperando algumas ideias em torno da situação das mulheres na época pré-revolucionária na Rússia para, depois, expor as ideias bolcheviques sobre a opressão das mulheres e as políticas para sua emancipação e, por último, expor como se colocaram em prática ditas políticas e os problemas que implicaram levá-las adiante através de departamentos como o Zhenotdel.

Introdução

O centenário da Revolução Russa chama a fazer um balanço e tirar conclusões sobre diferentes aspectos da mesma. Este fato marca um dos momentos mais relevantes na história política contemporânea ao abrir um processo no qual as relações de poder hierárquicas estabelecidas foram desafiadas e trocadas por relações mais horizontais, baseadas em uma participação ampla.

Tendo presente este marco nos propomos aportar algumas ideias para analisar a Revolução Russa através de um sujeito que, em geral, tem sido relegado pela historiografia dominante: as mulheres. Um aspecto pouco estudado, mas muito relevante na sociedade atual é a situação das mulheres e as políticas implementadas para a emancipação das mesmas. Em um momento histórico no qual a emancipação feminina forma parte da agenda a nível mundial se torna altamente relevante analisar o caso russo, estudando seus alcances e seus limites, sendo dito processo um dos quais mais longe levou as reivindicações femininas.

Começaremos examinando a formação da família patriarcal na Rússia previa à revolução, para depois extrair as mudanças que a mesma gerou na vida das mulheres a partir da análise do organismo criado pelo Partido Bolchevique – uma vez no poder – para tratar especificamente a situação das mulheres, do Zhenotdel(1), para expor após os alcances e limites do dito organismo.

A situação da mulher na Rússia antes da revolução

A situação da Rússia antes da revolução bolchevique era profundamente mente contraditória: enquanto 80% da população vivia no campo e sobrevivia sobre a base da agricultura – com técnicas atrasadas que não haviam superado a rotação trienal – (Broue, 1962:1) o país se apresentava como um paraíso para os capitais estrangeiros que controlavam quase todas as atividades industriais.

Quase a totalidade da população camponesa se mantinha beirando a fome permanentemente e devia trabalhar tanto as terras dos nobres como as das fábricas para poder alimentar-se. Assim é que o número exato de operários é difícil de precisar, posto que a maioria rotacionava entre o trabalho no campo (na época da colheita) e na fábrica (nos tempos mortos da agricultura). Ainda assim a maioria dos operários estavam concentrados em poucas fábricas, propriedade de estrangeiros, nas quais desenvolviam longuíssimas jornadas de trabalho por salários que não davam para a subsistência.

A situação das mulheres camponesas era ainda pior. O campesinato russo estava organizado em comunidades (mir), dentro das quais funcionavam unidades familiares (dvor). As mulheres tinham um papel secundário nos lares e nas comunidades, ficando submissas ao chefe da família que podia ser seu pai ou seu esposo dependendo do caso. Já que não existia a propriedade individual na comunidade e que as mulheres não tinham nem voz nem voto dentro da mesma, sua posição era extremamente precária por depender da vontade dos homens para se manter dentro daquela. As mulheres constituam boa parte da mão de obra utilizada nas parcelas familiares, porções de terra que, com o advento das grandes concentrações de terra na mão da nascente burguesia, deviam competir com as grandes produções agrícolas. Quanto à sua remuneração, as mulheres deviam trabalhar extensíssimas jornadas para se igualar ao homem em seu salário, e ainda assim só conseguiam remunerações mais modestas (Lenin, 1975: 25). Estas condições, mais o desenvolvimento da indústria moderna, permitiram (obrigaram) a algumas mulheres sair à vida pública e posicionar-se por fora do âmbito familiar.

Se, contudo, o capitalismo fomentou em sua primeira etapa a dissolução dos vínculos familiares da população urbana para integrar às mulheres e crianças massivamente no mercado de trabalho, depois se serviu daqueles e converteu à família patriarcal em um de seus pilares. Este tipo de família era solidária com a ideia de manter a mão de obra barata, posto que o lugar que se considerava natural para as mulheres era a casa, sendo o homem a cabeça da família e quem devia prover o dinheiro. Se entendia que o salário feminino era meramente complementar no melhor dos casos e, por isso, as mulheres percebiam salários menores ainda que cumprindo jornadas maiores de trabalho. Por sua vez as mulheres que ingressaram no mercado laboral seguiam tendo a carga de levar adiante os trabalhos domésticos, o qual livrava a burguesia de investir em refeitórios, berçários, lavanderias, etc…

Com a incorporação das mulheres como mão de obra pouco qualificada (e, portanto, mais barata), os salários em geral tenderam a baixar aumentando a competição (entre os sexos) no interior do movimento operário. Ao lado disso os burgueses se serviram dos laços patriarcais para impedir que essas mulheres se desliguem por completo de suas atividades domésticas, a família patriarcal assegurava ao capitalismo toda uma série de atividades nas quais nem o Estado nem a burguesia devia intervir. As mulheres viviam, nas palavras de Lenin, uma situação de “escravidão doméstica”.

Diferentemente das mulheres da burguesia – cuja função era garantir a descendência para perpetuar a herança familiar – as mulheres trabalhadoras cumpriam com uma função reprodutora da força de trabalho e de sua manutenção. Não contavam com o luxo das primeiras, como serviços externos de lavanderia, limpeza, cozinha ou espaço para a criação dos filhos. Estas mulheres se convertiam elas mesmas nas serviçais das primeiras, ou se incorporavam ao trabalho produtivo recebendo as piores pagas, para depois cumprir (como serviçais uma vez mais) com as tarefas domésticas.

A situação das mulheres russas foi abordada, em sua época, desde dois posicionamentos. O primeiro era sustentado pelas mulheres burguesas (autodenominadas feministas), as quais desenvolviam distintas políticas assistencialistas que não punham em questionamento nem o papel reprodutor da mulher (associado à criação dos filhos), nem seu papel na família (nem a esta como uma instituição operária sirva para as mulheres). O feminismo burguês buscava, principalmente, conquistar certos direitos como o voto, a propriedade privada e o acesso à herança. Em outras palavras, buscava outorgar direitos que beneficiavam somente às mulheres da classe dominante (para converter-se, elas também, em exploradoras), enquanto se asseguravam que aquelas exploradas o sigam sendo.

Desde uma perspectiva oposta, os socialistas identificaram o papel central da família na opressão das mulheres marcando sua relação com o capitalismo. Ainda que a opressão das mulheres seja anterior ao capitalismo, sob este sistema obteve uma forma específica. É por isto que colocaram como eixo de sua política a luta de classes ao lado do desenvolvimento da luta   específica para a liberação feminina. Em consonância com isto último, os bolcheviques criaram uma ferramenta específica para traçar o caminho pela emancipação da mulher e sua inclusão na vida política da nação, o Zhenotdel.

A conquista do poder na Rússia, e os eventos que em 1917 levaram à mesma, mudaram por completo e de forma radical a vida de sua população. A classe operária e os setores populares irromperam na vida pública por meio dos sovietes, expropriaram a seus antigos patrões – para pôr-se eles mesmos à frente das suas fábricas – e participaram ativamente da construção de uma nova ordem social. Tudo isto levou a transformações profundas, não só nas condições da vida material dos explorados e oprimidos, senão também em sua subjetividade. Tal como expressava o trabalhador citado por John Reed em Os dez dias que abalaram o mundo, eles passaram de não ter nada a ser donos coletivos de tudo o que aquela nação tinha para oferecer; de não poder tomar nem as decisões mais básicas em seus postos de trabalho a decidir junto com seus companheiros como dirigir a nação.    

O velho operário brandia o panfleto em uma mão e com a outra apontava, num gesto de alegria, a capital que brilhava ao longe.  – És minha!- exclamou, com o rosto radiante – Agora sim! Minha Petrogrado!. (Reed, 1967: 373).

A tomada do poder e a vida cotidiana

A revolução russa se propôs desde o começo abordar a problemática da opressão das mulheres. O Partido Bolchevique no poder tomou uma série de medidas destinadas a melhorar sua condição dentro da sociedade. Como produto disso, sua vida cotidiana mudou profundamente em alguns aspectos. A legalização do divórcio permitiu a muitas mulheres, junto com o ingresso ao trabalho, escapar de relações opressivas ou, simplesmente, terminar uniões com as quais não estavam satisfeitas. A justiça se preocupou em defender estas mulheres, fundamentalmente quando haviam filhos envolvidos, garantindo os direitos destes e uma manutenção por parte do pai. Isto se mantinha também para as uniões de fato já que outra medida aprovada foi o reconhecimento dos filhos ilegítimos, ao ponto de que, em vários casos onde era difícil estabelecer a paternidade entre vários homens, a justiça estabeleceu a figura de paternidade coletiva, repartindo a responsabilidade econômica entre todos.

A facilidade para se conseguir o divórcio, no entanto, se tornou problemática por conta das altas taxas de desemprego feminino e da pobreza generalizada. As mulheres não podiam sustentar a si mesmas nem a seus filhos e o acesso a anticoncepcionais era quase nulo na maioria do território russo. Assim, as mulheres ficavam grávidas durante uniões que muitas vezes eram muito breves (frequentemente até à dita gravidez), sem condições de se sustentar e nem ao filho. Aos homens sucedia ter, ao longo dos anos, várias esposas, mas seus salários escassos não eram suficientes para pagar a manutenção de várias famílias.

Frequentemente a justiça teve que enfrentar a complexa situação de fixar uma manutenção que não dava para tirar da fome à família abandonada, mas que, por uto lado, implicava no ingresso da família atual na pobreza. É por isto que se começou a levar uma discussão na sociedade russa com respeito à questão da desproteção das mulheres frente ao abandono masculino, discussão que surgiu por ocasião da redação do novo código familiar de 1926. No mesmo se aprovaram um conjunto de medidas que facilitavam ainda mais os trâmites do divórcio, em concordância com a linha que colocava que o Estado se imiscuiria cada vez menos na sociedade, por outro lado, no entanto, se formalizaram uma série de medidas que iam no sentido da proteger as mulheres no divórcio, como o reconhecimento da propriedade privada prévia à união conjugal, para que estas pudessem conservar seu patrimônio (ou dotes, nas províncias em que se mantinha esta prática) e dos bens adquiridos, para que pudessem ter acesso à parte do patrimônio conseguido durante a união.

Junto a estas problemáticas de tipo social, existiam outras mais especificament6e políticas. Quando triunfou a revolução de outubro e o Partido Bolchevique tomou as rendas do país, este se encontrou com um grande dilema: para que a revolução seja completa e efetivamente liberar a todos os explorados e oprimidos ela devia incluir as mulheres que era mais da metade da população.

Mas, como incluir na vida política a um setor que, produto de seu isolamento e do atraso que tanto elas como toda a sociedade sofriam, cria que a vida pública não era o seu lugar? Esta foi a pergunta que deu origem ao trabalho do Zhenotdel, ferramenta do Partido Bolchevique orientada ao trabalho específico com a população feminina. Leni colocou a necessidade desta seção com os seguintes termos:

O partido deve contar com organismos – grupos de trabalho, comissões, comitês, seções ou como venham a ser denominados – cuja tarefa principal consiste em despertar as amplas massas femininas, vinculá-las com o partido e mantê-las sob a influência deste. Par isso, naturalmente, é necessário que desenvolvamos plenamente um trabalho                   sistemático com estas massas femininas. Devemos educar as mulheres que tenhamos conseguido tirar da passividade, devemos recrutá-las e formá-las para a luta proletária de classe sob a direção do Partido Comunista, Não só me refiro às proletárias que trabalham na fábrica ou se afanam no lar, senão também às camponesas. Às mulheres de distintas camadas da pequena burguesia. Elas também são vítimas do capitalismo e desde a guerra o são mais do que nunca. Psicologia apolítica, não social, atrasada, destas massas femininas; estreiteza do campo de sua atividade, todo o seu modo de vida: tais são os fatos. Não prestar atenção a isto seria inconcebível, completamente inconcebível. Necessitamos nossos próprios organismos para trabalhar entre elas, necessitamos métodos especiais de agitação e formas especiais de organização (….) (Lenin, 1975: 75-76)

Assim, em princípio, o Zhenotdel se encarregou de despertar consciência revolucionária nas mulheres russas. Este objetivo estava relacionado com uma tensão constante que atravessou o trabalho do Departamento: a tensão existente entre os problemas de gênero e de classe, assim como a busca por articular ambos aspectos.

Neste período, na Rússia, a tendência conhecida como “feminista” era (como assinalamos anteriormente) uma diretriz marcada pela burguesia. Suas reivindicações sustentavam a igualdade de direitos formais, mas não buscavam acabar com opressão de gênero e nem de classe. Neste sentido, algumas funcionárias do Zhenotdel e determinados setores do Partido Bolchevique, encabeçados por Stalin, temeram que, de dedicar-se à assistência cotidiana às mulheres, este organismo pudesse terminar abandonando a perspectiva de classe e a luta pelo socialismo em nome da luta exclusiva de gênero, o que poderia aproximar as mulheres das posições burguesas (Hayden, 1976: 152). Apesar disto, outro setor organizador do Zhenotdel, apoiadas em Lenin e outras figuras do Partido Bolchevique, compreendiam que (ainda que a luta de gênero por si não terminaria com a opressão das mulheres e nem colaboraria na construção do novo sistema) sim existia uma especificidade nesta luta e por isso promoveram o trabalho do organismo. Estas tendências se traduziram numa tensão gênero-classe que atravessou o Zhenotdel ao longo de toda a sua história.

O ponto de equilíbrio foi variando ao longo do tempo: em seus primeiros anos o Zhenotdel se dedicou notadamente ao trabalho político e à inclusão das mulheres nas tarefas de guerra e em diferentes funções (como trabalhadoras da industria pesada substituindo aos homens, enfermeiras, inspetoras de alimentos e refeitórios, etc…). Uma vez finalizada a guerra, com o triunfo vermelho, a tarefa do Zhenotdel mudou. Com a NEP se recrudesceu a situação precária das mulheres e, sem uma guerra que tencionasse a realidade social, o Zhenotdel se dedicou às campanhas orientadas aos problemas específicos da opressão de gênero tais como a prostituição. Tudo isto se viu dificultado, por sua vez, pelo profundo machismo que sofria a sociedade russa, especialmente seus setores populares, o que gerou suspeitas e hostilidades, dificultando a tarefa do organismo.

Desde um princípio o Zhenotdel teve que se enfrentar com o prejuízo de muitos companheiros e órgão partidários. Ainda que a emancipação feminina fosse parte do programa bolchevique, o já explicado atraso da população e a disparidade cultural se refletiram, também, nas seções do partido. Em termos gerais, se notava uma disparidade cultural entre cidade e campo, entre Rússia e “grã Rússia”, etc…, que se refletia nos níveis de machismo e exclusão das companheiras do âmbito político. Assim, o Zhenotdel teve que enfrentar os prejuízos, as substituições políticas, a sub-representação em congressos partidários e à falta sistemática de funcionárias que pudessem levar adiante as tarefas programadas. Das poucas mulheres que eram designadas ao Zhenotdel, a maioria manifestava a sua insatisfação por trabalhar naquela seção e o desejo de transferir-se a seções que eram consideradas de maior importância. Este conjunto de fatores dificultavam o desenvolvimento do organismo, já que as que permaneciam sofriam uma desmotivação muito grande, além das grandes dificuldades para levar adiante suas tarefas. Ainda assim o Zhenotdel desenvolveu importantes tarefas, como a organização da retaguarda da guerra civil e as campanhas de conscientização e supervisão dos alimentos durante a escassez em Volga; teve, por sua vez, certas vitórias, como o Congresso de mulheres pan-russas de 1918. [2]

O expressado até o momento ressalta a importância de se dar uma luta específica pela liberação das mulheres, já que não existe um automatismo pelo qual uma revolução por si só (para além de seu caráter socialista) acabe com a opressão de gênero. Esta luta específica foi incorporada, como vimos, ao programa político dos bolcheviques e foi a que deu origem ao Zhenotdel.

A NEP e as mulheres

Parte fundamental do programa marxista para a emancipação da mulher constou no ingresso das mesmas na força de trabalho. Isto supõe a independência e a tomada de suas próprias decisões sem estar condicionadas pelo fator econômico. No entanto, sua inclusão na força de trabalho não resolve de forma automática a opressão de gênero. O capitalismo incluiu as mulheres na produção, mas somando-lhe a exploração de classe e sua opressão de gênero. É por isso que os bolcheviques não só promoveram a inserção laboral das mulheres, senão que também propuseram a socialização completa das tarefas domésticas, liberando-as deste jugo e permitindo-lhes desenvolver sua força de trabalho em igualdade de condições: em primeiro lugar, porque isto0 assentaria as bases da independência econômica das mulheres, fundamental para deixar de depender dos laços patriarcais e, em segundo lugar, porque permitiria a politização dessas mulheres que entravam na produção, ao pô-las em contato com seus companheiros e companheiras de classe.

Com a guerra e o translado de milhões de homens para a frente de batalha as mulheres ingressaram de maneira massiva no mundo de trabalho fabril, inclusive nas industrias predominantemente masculinas tais como a metalúrgica. Isto permitiu, ao menos nas cidades, um certo avanço nas condições de vida e de consciência política das mulheres. A entrada nas fábricas, aonde se realizava trabalho político, a socialização com companheiros e companheiras de sua classe social e a mudança de suas condições de vida, colaborava com um despertar político das mulheres proletárias. Para colaborar com este despertar político se desenhou um sistema de eleição de delegadas por fábrica. Estas delegadas, além de assistir a aulas de política de diversos tipos, tinham a tarefa de supervisionar os funcionamentos da vida burocrática da localidade durante vários meses e fazer relatórios constantes sobre o que se via. Ainda que em alguns casos o machismo dos funcionários de carreira fazia com que estes tentassem deslocar às delegadas a setores de menor relevância, o certo é que para estas mulheres seu período como delegadas lhes servia como uma escola política. (Stites, 1976: 1)

Com o fim da guerra civil e a chegada da NEP a situação das mulheres mudou radicalmente. Milhões de homens voltaram da frente para ser reincorporados ao mercado de trabalho; isto, somado à política flexibilizadora da NEP, que permitiu aos encarregados de fábrica mais liberdade na hora de contratar e despedir, possibilitou a demissão massiva de mulheres para serem substituídas por homens. Estes eram, em geral, mão de obra mais barata, já que não deviam estar qualificados nem eram tão protegidos pela lei (as mulheres não podiam realizar determinadas tarefas demasiado pesadas, tinham licença maternidade, se tinham filhos não podiam executar trabalho noturno, etc…).

Esta situação somou milhões às filas de mulheres desempregadas, na maioria das vezes solteiras, divorciadas ou viúvas e com filhos como encargo, que não tinham um meio para sustentar-se nem nenhum outro tipo de renda no núcleo familiar. As opções para estas mulheres eram poucas e muitíssimas delas terminaram por recorrer à prostituição em troca de distintas formas de pagamento (que incluíam dinheiro, comida, favores) como um modo de sustento. O Zhenotdel começou a trabalhar essa problemática, realizando campanhas a favor da contratação feminina, impulsionando leis que protegiam às trabalhadoras e colaborando com as seções de saúde e higiene para levar adiante campanhas conjuntas contra a prostituição. Somado a isso, se impulsionaram campanhas que protegiam as mulheres em suas relações com os homens, como, por exemplo, a reforma de 1926 do código familiar, anteriormente mencionada.

Conclusões

No começo deste trabalho, tentamos abordar o desenvolvimento da família patriarcal e a situação das mulheres na Rússia previamente à revolução com o fim de dar conta das concepções ideológicas que se constituíram durante anos e que, depois foram reutilizadas pelo capitalismo para manter e reproduzir sua forma de exploração. Estas concepções e práticas foram as que os bolcheviques encontraram como obstáculo, tanto nas famílias russas quanto, em muitos casos, dentro de suas próprias fileiras, para acabar com a exploração e opressão das mulheres. É por este motivo que se esforçaram por desentranhar a natureza da família patriarcal com o fim de combatê-la.

A disputa por combater estas concepções também se desenvolveu no plano da consciência. Ainda que seja certo que a chegada do capitalismo adaptou a estrutura russa a suas demandas, a organização patriarcal era preexistente e contavam com lógicas que lhes eram próprias e que sustentavam há muitos séculos. Questionar estas concepções era a ponta de lança para a emancipação de mais da metade da população.

A tomada do poder colocou uma série de desafios aos bolcheviques. Tiveram que dirigir uma economia em transição de um sistema baseado no lucro capitalista aonde o mesmo não existia ou não jogava um papel preponderante. Não foi uma disputa meramente no plano econômico, deveram enfrentar os exércitos contrarrevolucionários e os ataques constantes do imperialismo. Esta transição – as “dores do parto” nas palavras de Marx – implicou momentos de aguda crise, momentos nos quais as respostas a esta crise  tiveram que ser medidas extremas. Este foi o caso da NEP, uma política que flexibilizava alguns aspectos da economia em prol de modernizar o país e colocá-lo a ponto de conseguir abastecer-se e competir com o resto do mundo. A NEP trouxe consigo uma deterioração nas propostas para a melhora das condições de vida das mulheres, condições, que por sua vez, já vinham sendo muito mais precárias que as de seus companheiros homens.

Se é certo que a Rússia bolchevique esteve longe de poder emancipar às mulheres de seu lugar de opressão de gênero (assim como esteve longe de finalizar a transição ao socialismo), previamente à burocratização estalinista os bolcheviques foram os que mais se preocupação mostraram e os que mais fizeram efetivamente neste terreno.

A inquietude pela emancipação feminina e por tirar do atraso a vida cotidiana da população era constante, tal como se pode apreciar nos escritos de Lenin e de Trotsky [3]. Esta preocupação se traduziu em uma seção específica do secretariado geral do Partido que se encarregava da questão feminina, o Zhenotdel. Desde ali se organizaram numerosíssimas campanhas, desde os circulos de costura (onde se discutiam as novas leis que protegiam as mulheres), até a organização da retaguarda da frente de batalha. Mas, não só isto, a Rússia revolucionária foi a nação que mais direitos de gênero legalizou em menor quantidade de tempo: o divórcio, o reconhecimento de filhos ilegítimos; a homossexualidade; o aborto; o concubinato; todos estes direitos concedidos no lapso de alguns poucos anos.

Assim, se bem que em muitos aspectos os revolucionários tiveram as mãos atadas pela camisa de força que a economia e a guerra contrarrevolucionária impunham, o caso russo segue sendo um exemplo valioso para ser estudado com uma perspectiva de gênero, no tanto que foi a única sociedade que, de manera expressa, se preocupou e se ocupou da liberação feminina. O período do Partido Bolchevique no poder também demonstra a potencialidade do governo dos trabalhadores em dar ferramentas de luta para a liberação da mulher.

Notas

1 Zhenotdel foi o Departamento de Mulheres Trabalhadoras e Camponesas do Partido Bolchevique. Foi fundado

em 1919 como espaço para idistribuirr políticas que melhoraram as condições materiais das mulheres e para

distribuir entre elas uma formação socialista.

2 Para ler mais sobre o tema ver: Carol Eubanks Hayden, ≪The Zhenotdel and the Bolshevik Party≫, Russian

History 3, no. 2 (1976): 150‐73; Elizabeth Woods, The Baba and the Comrade (Bloomington: Indiana University Press,

1997), Michelle Jane Patterson ≪Red ‘Teaspoons of charity’: Zhenotdel, Russian women and the Communist Party,

1919‐193≫ (Tesis doctoral, Universidad de Toronto, 2011).

3 Ver: Vladimir Ilich Lenin, La Mujer y el Progreso Social. (Argentina: POLEMICA, 1975); Leon Trotsky, Problemas de

la vida cotidiana (Valencia: Ediciones Internacionales Sedov, 2015).

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Tradução José Roberto Silva