Há 84 anos do início dos Processos de Moscou
Em agosto de 1936, começaram os Processos de Moscou, uma falsificação judicial em grande escala. Com ela, o stalinismo massacrou a velha guarda bolchevique e limpou o aparato estatal da URSS de todos os remanescentes daqueles que fizeram a revolução russa. Um acontecimento histórico de consequências dramáticas a partir do qual a maioria do socialismo revolucionário não tirou as conclusões necessárias.
Por Roberto Saenz
“Como o assassinato dos ‘líderes’ deixaria o poder nas mãos de pessoas que, através de uma série de retratações, perderam toda a confiança em si mesmas, haviam se degradado, pisoteado e privado de qualquer possibilidade de desempenhar um papel político importante? (Leon Trotsky, “Zinoviev e Kamenev”, 31/12/1936).
Uma das maiores interrogações dos expurgos stalinistas é a razão pela qual alguns dos mais importantes ex-líderes bolcheviques, revolucionários que, como Trotsky disse, eram pessoas “profunda, total e abnegadamente devotados à causa do socialismo“, curtidos por mil batalhas, confessaram crimes terríveis que nunca cometeram (mas que, nas condições da época, a maioria acreditou). [1]
Enorme quantidade de obras históricas e literárias tem abordado o tema, um dos mais impactantes da contra-revolução stalinista. Se, de qualquer modo, essas abjurações ainda existem como um fato desconcertante, isso se deve à sua natureza extraordinária: a redução da flor e nata dos dirigentes da Revolução Russa a semelhante ignomínia, a confissão de crimes horrendos, a acusação contra seus companheiros de luta, delação: uma humilhação sem igual, uma descida ao inferno.
Um exemplo entre muitos é o de Yuri Piatakov, ex-líder da Oposição de Esquerda, especialista em economia industrial, que capitulou com Preobrajensky na virada industrializante de Stalin. Em 27 de julho de 1936, escreveu a seguinte nota: “A proposta de expulsar Sokolnikov como membro candidato do CC, bem como do VKP (B), por manter laços estreitos com o grupo terrorista dos trotskistas e zinovievistas, tem minha total aprovação” (Getty e Naumov, idem., p. 231). Piatakov assinará esta “sentença de morte” de Sokolnikov (outro ex-oposicionista) apenas quinze dias antes de ser expulso do partido…
Como tal grau de degradação política e moral pode ser explicado, é o que pretendemos abordar neste texto.
Os julgamentos de Moscou
Expliquemos muito sucintamente o que foram os julgamentos de Moscou. Foi uma série de três grandes julgamentos realizados na cidade de Moscou (com a participação da imprensa nacional e internacional), nos quais foi levada ao banco dos réus uma parte fundamental dos antigos líderes da época da revolução.
O primeiro julgamento foi realizado em agosto de 1936, o segundo em janeiro de 1937 e o último em março de 1938. Durante esse período, outros julgamentos sumaríssimos que não eram públicos foram realizados: a acusação e subsequente assassinato do general Tujachevsky e de um parte fundamental do estado maior do Exército Vermelho, bem como julgamentos de menor envergadura afetando dezenas de milhares de funcionários de hierarquia secundária.
Nos julgamentos de Moscou, compareceram ex-dirigentes da estatura de Zinoviev, Kamenev, Smirnov, Piatakov, Radek, Bukharin, Rikov, Krestinsky, Christian Rakovsky, etc. todos eles membros de algumas das antigas oposições (esquerda, direita e unificada que haviam capitulado anteriormente e principais líderes da antiga guarda bolchevique que liderou a revolução.
Todos eles, com poucas e honrosas exceções, fizeram confissões públicas monstruosas. Facilitaram a tarefa do tribunal, que se baseou quase exclusivamente em suas confissões, e nas contribuições de personagens obscuros misturados entre os acusados para operar como acusadores dos líderes caídos em desgraça [2].
Deve-se ressaltar, no entanto, que havia membros da velha guarda que salvaram o que restava de sua honra por não se prestar ao jogo da confissão: nos vem a memória o caso de Evgueni Preobrajensky, que não compareceu e foi secretamente fuzilado.
Fora do estado-maior dos bolcheviques, os julgamentos serviram como um chamado de atenção nas próprias fileiras stalinistas. Stalin não esqueceria que no “Congresso dos vencedores” de 1934, havia se expressado um forte mal-estar, sendo sua votação bem reduzida que a de Kirov, um representante mais “moderado” do aparato que era o favorito do partido naquele momento (Kirov foi morto no final do mesmo ano em um evento obscuro que serviria como desculpa para Stalin lançar a onda de terror que culminaria nos Grandes Expurgos).
O Ministério Público foi chefiado pelo ex-menchevique Andrei Vyshinsky, um jurista e depois diplomata stalinista, que – paradoxos da história, se existem – reconquistaria o prestígio integrando o tribunal de Nuremberg, que julgou a hierarquia nazista no final da Segunda Guerra Mundial. Um personagem sinistro que, baseado em confissões, iria cumprir um dos papéis principais no show de horror que foram os julgamentos pedindo em sua alegação final do primeiro julgamento “a pena de morte para cada um desses cães que ficaram loucos” … (recordemos que ele estava falando sobre dois dos maiores líderes do partido bolchevique em sua época de ouro: Zinoviev e Kamenev).
Para além dos julgamentos de Moscou, cerca de 700.000 pessoas foram mortas durante os expurgos, sem mencionar os milhões que passaram por campos de trabalhos forçados. O velho partido revolucionário, o mais importante da história até hoje, havia morrido, outro tomara o seu lugar: o partido da burocracia [3].
Um processo de destruição da personalidade
Para entender como os grandes revolucionários conseguiram chegar a tais extremos de ignomínia, devemos partir do processo de destruição de sua personalidade que viveram os membros da velha guarda a partir de suas abjurações.
Trotsky salientava que a comparação com os jacobinos não era pertinente: haviam sido tirados diretamente do campo de batalha para serem levados à forca, não sofreram dez anos de desgaste brutal como a velha guarda: “Qual era a situação de Zinoviev e Kamenev ante a GPU e o tribunal? Por dez anos foram envoltos em uma nuvem de calúnias (…) Por dez anos estiveram suspensos entre a vida e a morte, primeiro no sentido político, depois no sentido moral e, finalmente, no sentido físico. Existem outros exemplos de trabalhos tão sistemáticos, refinados e diabólicos na história destinados a quebrar a coluna vertebral, os nervos e o espírito? Tanto Zinoviev quanto Kamenev possuíam caráter mais que suficiente para os tempos tranquilos. Mas, as tremendas convulsões sociais e políticas do nosso tempo exigiam uma firmeza incomum para esses homens cuja capacidade os colocara na vanguarda da revolução. A disparidade entre sua capacidade e sua vontade teve conseqüências trágicas” (“Zinoviev e Kamenev ”, 31/12/36).
Derrotada a Oposição Conjunta (formada entre a Oposição de Esquerda e a liderada por Zinoviev e Kamenev), somada à crise da Oposição de Esquerda pelo giro “esquerdista” de Stalin (1928), muitos oposicionistas que haviam sido excluídos do partido pediram sua readmissão a condição da burocracia: que renunciaram publicamente às suas posições.
Trotsky caracterizaria assim aos que se ajoelharam como “mortos políticos”: a renúncia de suas próprias convicções significava abandonar sua própria razão de ser como militantes, uma descida ao inferno do qual não haveria retorno. A propósito, vamos salientar que o marxismo revolucionário rejeita o método burocrático da autocrítica: recusa-se a exigir que qualquer militante renuncie a suas posições. Claro que você pode mudar de ideia, qualquer um pode “autocriticar-se”. Mas isso deve ocorrer livremente.
A burocracia procurava outra coisa: quebrar a personalidade dos oposicionistas, desmoralizá-los, desacreditá-los diante do partido e da nação: “No banco dos acusados estavam sentados homens quebrados, esmagados e acabados. Antes de matá-los fisicamente, Stalin os quebrou e os matou moralmente” (Leon Sedov afirma em seu Livro Vermelho sobre os Julgamentos de Moscou).
Se capitularam, isso se deveu a uma combinação de elementos, tais como, a expulsão do partido em que haviam investido seus melhores anos, a separação de suas famílias, o desterro, bem como um elemento eminentemente político: deixar-se impactar (de maneira impressionista) pelo desenvolvimento de eventos, especialmente pela marcha da coletivização e industrialização stalinista.
Nada disso pode servir como justificativa de um curso que somente Trotsky teve a honra de não seguir (como, também, a geração jovem da Oposição de Esquerda, em cujas fileiras praticamente não houver capitulações). Colocamos isso como uma explicação das razões que pressionaram a velha guarda, que acabou curvando-se diante dos fatos consumados: “Agora quero falar de mim mesmo, das razões que levaram a arrepender-me (…) Por três meses permaneci trancado em minhas negativas. Depois iniciei o caminho da confissão. Por quê? A razão é que, durante a minha prisão, revi todo o meu passado. No momento em que alguém se pergunta: “Se morres, em nome do que você vai morrer?”, um abismo escuro e profundo aparece de repente e com surpreendente clareza. Não havia nada pelo qual valesse a pena morrer se eu pretendia fazê-lo sem confessar meus erros. Pelo contrário, todos os fatos positivos que resplandeciam na União Soviética tomavam diferentes proporções em minha consciência. Foi isso, definitivamente, que me desarmou, o que me forçou a dobrar meus joelhos diante do Partido e diante do país ”(Nicolai Bukharin, “Última Declaração nos Processos de Moscou”, março de 1938). [4]
“Um crime contra a História” [5]
Os grandes expurgos configuram um salto qualitativo na dinâmica da capitulação. Não se tratava mais de conservar a participação no partido: tratava-se de salvar a própria vida. E se a própria vida já estava “julgada”, pelo menos se tentaria proteger os membros da família [6].
De qualquer modo, as coisas não foram tão “simples”: os níveis de humilhação a que se chegou expressavam tal desmoronamento moral, que devia haver explicações adicionais.
Uma primeira razão tem a ver com o “fetichismo de Estado” que muitos dos acusados acabaram professando: a impossibilidade de pensar sobre sua existência fora da URSS. “Dado seu status especial, sua lealdade ao partido e à revolução, e a situação política, aparentemente, Bukharin tinha pouco a escolher. Pouco depois, fazendo uma óbvia alusão à sua situação pessoal, ele citou as palavras de Engels sobre o dilema que Goethe enfrentara: ‘existir em um ambiente que necessariamente desprezava e, ainda assim, estar acorrentado a ele como o único em que ele poderia funcionar. ”(Stephen F. Cohen, Bukharin e a Revolução Bolchevique, Século XXI Editores, p. 504).
É isso o que comentou Boris Nikolaievski, arquivista e historiador marxista menchevique cunhado de Rikov, que se encontrou várias vezes com Bukharin em Paris, quando viajou pela última vez para a Europa (março e abril de 1936). O ex-chefe da Oposição da Direita disse-lhe que sabia perfeitamente bem que sua vida estava em perigo: “ele tinha o necrológio de sua morte em mente“, dirá Nikolaievsky: “Mas então, por que ele voltava? ‘Como eu não posso voltar? Para me tornar um exilado? Não, eu não poderia viver como você, como um exilado. Não, aconteça o que acontecer’ ”(Cohen, idem., P. 530).
Não pensar em escapar ao seu “destino” só podia expressar um apego dramático com o Estado soviético burocratizado: “Era clara sua indignada hostilidade à política brutal de Stalin: ele sentia pena pelo campesinato sitiado por ‘razões humanitárias’ e via projetos industriais excessivos, caros, ‘como monstros gananciosos que devoravam tudo, privando as grandes massas de itens de consumo’. Mas, ao mesmo tempo, reteve a fé na revolução e no partido, vendo-se assim vinculado, psicológica e politicamente, ao sistema ”(Cohen, idem, p. 505).
Assim se sacrificaria no altar de um aparato (o “Estado Soviético”) que dizia que “representar” os interesses da classe trabalhadora, mas que já não o fazia realmente: pelo contrário, nada mais era do que um instrumento substituto da mesma. Se lhe outorgava, assim, lealdade a um fetiche: morrer por uma causa que não era a da classe trabalhadora, mas seu oposto: um aparato contrarrevolucionário que se levantou contra ela [7]!
Houve um segundo problema que incidiu nas confissões: a ideia de que seus comportamentos haviam ficado na “calçada da frente” dos acontecimentos: haviam cometido um “crime contra a história”. Tratava-se de uma “dupla consciência” (como já mencionamos acima): se por um lado consideravam-se inocentes, por outro haviam se equivocado: eram “culpados” por terem permanecido no “lado errado”: “Segundo uma fórmula muito conhecida, qualquer opositor dos bolcheviques [deveria se dizer do stalinismo, RS] era objetivamente e por definição contrário à revolução, ao socialismo e, por extensão, ao bem-estar humano, independentemente de quais fossem as intenções subjetivas dessa pessoa ” (Arch Getty e Oleg Naumov, “A lógica do terror”, idem., Pp. 41).
Isso fica muito claro na tremenda carta que Bukharin escreve a Stalin no final de 1937: “Por Deus, não acredite que estou te recriminando por nada, nem mesmo nas profundezas de minha consciência. Não nasci ontem. Estou perfeitamente ciente de que os grandes planos, as grandes ideias e os grandes interesses devem ter precedência sobre tudo o mais, e sei que seria mesquinho de minha parte colocar a questão de minha própria pessoa a par das tarefas universais e históricas que repousam acima de tudo, sobre teus ombros. Mas é aí que reside o meu sofrimento mais profundo e me vejo diante do mais sério e angustiante paradoxo. ”
Uma concepção determinista da história, fatal, que via realizando seus desígnios qual “História a cavalo” (como Hegel descreveria Napoleão), e contra os quais as pessoas de carne e osso não importavam, nada podia fazer: um caminho histórico que excluía uma “terceira possibilidade” e frente a qual somente Trotsky teve a incomensurável honra histórica de escapar: “Se a última palavra não está dita, o erro não é um crime, a dissidência não é uma traição” (Bensaïd, “Qui est le Juge? Pour en Finir avec le tribunal de l’Historie”, Fayard, 1999, p. 130).
O fetichismo do Estado e da História, com letra maiúscula, o considerar-se “equivocado dos eventos”, a falta de distância crítica dos fatos, foram muitos outros fatores que combinaram com os muito materiais do temor de perder a vida, o colapso físico e moral de uma década de capitulações, a preocupação com a família, etc., e que deram lugar às mais chocantes confissões já ouvidas na história.
E tudo por que: pela perda de perspectivas históricas, algo que nenhum revolucionário deve tratar de permitir que ocorra, mesmo que seja na “meia-noite do século”, como foram os anos 30 do século passado.
NOTAS:
[1] O problema da legitimação de Stalin provou ser mais complexo do que pensar que fosse simplesmente um autocrata odiado: a imensa mudança experimentada pela sociedade soviética durante a década de 1930 agiu como um fator legitimador, sem perder de vista a lógica atomizadora do domínio burocrático.
[2] Lembremos de que o método de confissão (autoincriminação obtido pela força) é um princípio que vem da Idade Média e que a justiça burguesa deixou de lado.[3] Por conseguinte, a classe trabalhadora havia sido deslocada do poder: completamente atomizada, havia ficado tão longe quanto se possa conceber de uma verdadeira ditadura proletária, que nada mais é, como assinalou Marx, que os trabalhadores organizados como classe dominante, embora a propriedade seguiria estatizada, o Estado se tornaria burocrático.
[4] Deve-se notar, no entanto, que Bukharin emitiu declarações contraditórias caracterizadas por ele mesmo como um “estranho desdobramento da consciência“. Publicamente, se reconhecerá “culpado”. Mas em sua última carta a Stalin (12/10/37, retornaremos a ela abaixo), e especialmente em sua “Carta às futuras gerações do partido” (que ele fez sua jovem esposa memorizar para que não pudesse ser destruída!), declarar-se inocente. Como Henrique Carneiro, um marxista brasileiro, afirma, ele foi talvez um dos intelectuais marxistas que sofreram de um dos maiores dramas existenciais do século passado.
[5] Esta é uma aguda definição tirada de Daniel Bensaïd, que nos permite compreender o que havia de mais profundo nas confissões (uma definição, na verdade, tirada de “El cero y el infinito” de Arthur Koestler, cujo tema é dedicado aos Grandes Expurgos e se inspirava quase seguramente em Bukharin). [6] Sabe-se que Bukharin conseguiu aprovar um acordo para que sua jovem companheira não fosse morta (embora ele tenha permanecido no Gulag por quase 20 anos!), também como para impedir que seus últimos trabalhos fossem destruídos.[7] Algo que somente Trotsky chegaria a entender, tirando todas as conclusões do caso; Bukharin lhe faria uma espécie de “tributo” em uma de suas últimas confissões quando declarou que “tinha que ser Trotsky” para não capitular…