Dando continuidade ao informe internacional da Conferência da Corrente Socialismo ou Barbárie [1], um dos elementos mais significativos desta nova etapa mundial é a crise que se expressa nos regimes democráticos burgueses, uma crise cuja expressão mais característica pode ser apontada em torno de três aspectos: a) os elementos de crescente decomposição social que o capitalismo arrasta, b) o crescimento universal de formações de extrema-direita que chegam até ao governo (com fundamento no ponto a); c) a crescente fragmentação exibida pelas forças políticas tradicionais (o sistema partidário tradicional tende a entrar em colapso e o que emerge é um “arco-íris” de formações políticas, em muitos casos com pouca ancoragem orgânica).[2] 

ROBERTO SÁENZ 

“Pela primeira vez, a população urbana na Terra será mais numerosa do que a população rural. De fato, dada a imprecisão dos censos no Terceiro Mundo, essa transição sem precedentes pode já ter ocorrido (…) Em 1950, havia 86 cidades no mundo com mais de 1 milhão de habitantes; hoje são 400, e em 2015 serão pelo menos 550. De fato, as cidades absorverão quase dois terços da explosão populacional global desde 1950 e hoje o crescimento é de 1 milhão de bebês e migrantes por semana. A força de trabalho urbana mundial mais do que dobrou desde 1980, e a população urbana atual é de 3,2 bilhões de pessoas. Quanto ao campo, em todo o mundo, atingirá sua população máxima e começará a encolher em 2020. Como resultado, as cidades serão responsáveis por quase todo o crescimento populacional mundial, com um pico de cerca de 10 bilhões de pessoas previsto para ocorrer em 2050” (Mike Davis, Planeta Favela) 

1- O esvaziamento dos regimes democrático-burgueses 

Há anos se forma a crise do centro burguês – uma crise crescente de uma força que é mais coerente, mais “racional” que as formações que a transbordam pela extrema direita marcada pelo “irracionalismo”; uma dinâmica geral caracterizada por uma bipolaridade assimétrica: expressões à direita, mas também à esquerda (sociais e políticas). Por exemplo: veja hoje, no final desta nota, as marchas em Paris contra Macron e, da mesma forma, as marchas históricas que continuam ocorrendo em Londres pela Palestina, entre muitas outras manifestações da bipolaridade que caracteriza a conjuntura internacional. 

Os elementos de polarização geopolítica e as guerras entre Estados e irregulares, por assim dizer (a “guerra” em Gaza é irregular porque opõe um dos exércitos mais bem equipados do mundo contra as forças guerrilheiras do Hamas) e os elementos cada vez mais dramáticos da polarização  socioeconômica  (a divisão entre ricos e pobres, para simplificá-lo por enquanto), traduzem-se no plano político numa crise dos regimes tradicionais da democracia burguesa que veem solapada a sua base de apoio social. Regimes que são classicamente de relativa estabilidade e hoje estão experimentando um esvaziamento em direção a formas de Estado bonapartistas ou semibonartistas.[3] 

Sobre os elementos de polarização socioeconômica que estão por trás do “esvaziamento” das formas democráticas burguesas, queremos desenvolver alguns aspectos gerais que nos parecem de extrema importância. A base material dessa circunstância é que o capitalismo voraz desse novo cenário mundial não tem limites em suas formas de exploração: a extrema precariedade do trabalho, as formas de trabalho sob algoritmos, a criação de um imenso exército industrial de reserva e um imenso proletariado lumpem, a estratificação social permitida até mesmo em cidades de primeiro mundo como Los Angeles. O uso de mão de obra imigrante sem direitos (como cidadãos de segunda ou terceira classe ou nem mesmo isso), o avanço generalizado contra os sindicatos (além do movimento de contra sindicalização), etc., expressam a busca consciente por uma classe trabalhadora não apenas mais explorada, mas qualitativamente mais subjugada.[4] 

Esse avanço capitalista neoliberal vem acontecendo há 40 anos e continua inabalável (exceto em países como os EUA e o Reino Unido, onde está em curso um processo de recomposição das potencialidades históricas dos trabalhadores, além das conquistas operárias históricas que subsistem na França e na Argentina, entre outros países, e o aumento geral do nível de salários na China e todos os tipos de contrapesos que veremos a seguir – os freios e contrapesos na análise são fundamentais para a apreciação da situação mundial).[5] 

Se, como afirma Marx, a fronteira entre trabalho necessário e trabalho excedente é deslocada para um lado ou para o outro dependendo da luta de classes (Marx era muito menos “economicista” do que as interpretações vulgares em uso – na verdade, ele não era economicista[6], essa relação de forças que dependeu no século passado da forma mais extrema da luta de classes, a revolução social, foi claramente modificada nas últimas décadas em detrimento dos explorados e oprimidos. A Revolução Russa, os cataclismos da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, as revoluções anticapitalistas do pós-guerra, etc., impuseram limites revolucionários e/ou reformistas à exploração capitalista em praticamente todo o mundo.[7] Na Europa Ocidental sob a forma de conquistas sociais, nos EUA sob a forma de consumismo, e na América do Sul mais no estilo “europeu”, prevaleceram formas de estado de bem-estar social e/ou nacionalismos burgueses (e também, repetimos, no mundo árabe e na Índia), formas que fizeram concessões às massas nas décadas do pós-guerra. Conquistas que foram sistematicamente retiradas a partir da contra-ofensiva neoliberal com a derrota da ascensão dos anos 70 e a queda do Muro de Berlim.[8] 

A “era das rebeliões populares” que vivemos de forma díspar nos últimos 20 anos não foi suficiente para modificar essa dinâmica estrutural. Algumas conquistas apreciáveis, mas transitórias, foram alcançadas na América Latina em alguns países na primeira década do século (especialmente em países como Bolívia, Argentina e Venezuela, onde houve rebeliões populares). E, no entanto, elas estão sendo desmanteladas neste período reacionário (o responsável por isso na Venezuela é o próprio Nicolás Maduro, um país devastado por não ter tomado medidas anticapitalistas)[9], na Argentina as concessões pós Argentinazo do kirchnerismo eram epidérmicas e Milei as está demolindo e, na Bolívia, em torno do negócio do gás é onde as coisas parecem ter sido mais profundas, embora não tenhamos uma caracterização séria do país no último período. (Não conseguimos colocar os pés naquele país a partir de nossa corrente. Fizemos um grande esforço “físico” e de elaboração na Bolívia e, em certa medida, também em Honduras e no Paraguai, mas sem sucesso).[10] 

Mesmo em países com governos de colaboração de classes como os de Lula e do PT em seus dois primeiros mandatos (que foram erguidos preventivamente para evitar uma rebelião popular e não como um subproduto dela – ou seja, em condições de estabilidade), tratava-se principalmente de assistência social e de uma espécie de reformismo sem reformas (ou com contrarreformas realizadas de forma mais gradual).[11] A partir de 2013/14, houve um giro reacionário no Brasil  que levou anos depois (2015/2016) ao impeachment de Dilma Rousseff e aos governos de Temer e Bolsonaro, que deram uma guinada radical pelas contrarreformas “de um golpe só”, contrarreformas que de nenhum modo surpreendentemente o novo mandato de Lula e sua Frente Ampla vem se recusando a reverter (algo que é uma vergonha política justificar): “Mesmo no Brasil, um país incomparavelmente mais complexo [do que a Venezuela], se os governos liderados pelo PT tivessem anulado as privatizações, por exemplo, ou se tivessem feito uma reforma tributária que penalizasse a burguesia com impostos sobre a riqueza ou herança, podemos prever possíveis represálias [sic]. No mínimo, o governo de Dilma Rousseff foi vítima de mobilizações reacionárias, e o impeachment foi aprovado pelo Congresso Nacional sob o falso pretexto legal das ‘bicicletas financeiras’ (Arcary, “Dez anos de ‘inverno’ reacionário”). O que é isso senão uma justificativa incondicional do curso absolutamente conciliatório do governo da Frente Ampla? Onde está a luta de classes em tal esquema que é pura e simplesmente o apoio incondicional a um governo de conciliação de classes, do qual, aliás, suas fileiras estão integradas através da Frente Ampla à qual o PSOL se juntou? Mais uma vez, nos deparamos com as clássicas desculpas oportunistas do “excepcionalismo histórico” ou “o bicho-papão da extrema direita” para suspender a aplicação dos princípios mais elementares do marxismo revolucionário. Tudo se justifica dizendo que a esquerda supostamente “subestimou a ferocidade contrarrevolucionária do inimigo de classe” (Arcary, idem), o que também é um exagero. (Governos de extrema direita são um perigo contínuo, isso é absolutamente real. Mas também é verdade que eles são de menor grau de perigo – pelo menos, até agora – do que o fascismo dos anos 80 e que exagerar sua força presta um desserviço à tarefa de enfrentá-los nas ruas e não apenas institucionalmente).[12] 

Em suma, uma primeira avaliação é necessária: em um mundo sem revoluções sociais, as conquistas socioeconômicas da classe operária retrocedem sem nenhum fim à vista. Outra coisa são as conquistas democráticas e de gênero, cujas dinâmicas têm sido mais contraditórias, expressando a bipolaridade da luta de classes que também marca esse período, mesmo que estejam sendo atacadas pela extrema direita. 

E, no entanto, e em todo caso, e como expressão dos traços característicos deste novo século XXI e desta nova etapa, a profundidade da polarização social não tem precedentes há cem anos (pelo menos nos países mais importantes do Ocidente) e este é o principal fator material do esvaziamento da democracia dos ricos que está se espalhando urbi et orbi. 

2- Decomposição social e regimes iliberais 

Os fenômenos são variados e específicos: elementos marcados por crescente decomposição social em grandes porções do planeta com a criação de um lumpemproletariado de dimensões colossais caracterizado por todos os tipos de elementos de extrema degradação social (basta olhar para o contexto de vários dos filmes da Netflix produzidos em várias partes do mundo para entender o que estamos afirmando!).[13] A isso podemos acrescentar os elementos da estratificação social pura e simples. Não se trata mais apenas de diferenciações de classe, mas de uma estratificação expressa em fenômenos em pleno desenvolvimento como a gentrificação das cidades, o fato de famílias trabalhadoras e/ou pobres viverem em verdadeiros “guetos do século 21”, bairros privados com arame farpado eletrificado, famílias burguesas que vão às compras em helicópteros (como em São Paulo),  e fenômenos que não expressam mais as diferenciações de classe simplesmente, mas um abismo social: “95% do aumento final da população da humanidade [2050, então começaria um declínio, R.S.] ocorrerá nas áreas urbanas dos países em desenvolvimento, cuja população dobrará para quase 4 bilhões de pessoas na próxima geração. De fato, a população urbana combinada da China, Índia e Brasil [São Paulo é povoada por vários moradores de rua que impactam, RS].[14] Já é quase igual ao da Europa e da América do Norte. 

Além disso, a escala e a velocidade da urbanização do terceiro mundo superam completamente as da Europa vitoriana. Londres, em 1910, era sete vezes maior do que em 1800, mas Daca (Bangladesh), Kinshasa (Congo) e Lagos (Nigéria), hoje, são cerca de quarenta vezes maiores do que eram em 1950. E a China, que está se urbanizando a uma taxa sem precedentes na história da humanidade, adicionou mais moradores urbanos na década de 1980 do que toda a Europa (incluindo a Rússia) em todo o século XIX” (Mike Davis, idem). 

Mike Davis explica no livro que estamos citando que a característica das “supercidades”, ou seja, das megacidades é, justamente, o número de habitantes que excedem em muito os serviços essenciais que os podem prover. E, repetimos, não há filmes neste mundo globalizado que não sejam ambientados nessas megalópoles com os elementos de “submundo” que elas implicam. Basta pensar em seu tamanho para nos dar uma ideia da multiplicidade da crise social que está por trás do esvaziamento das formas de democracia burguesa e do surgimento de demagogos, bonapartismos e formas iliberais de governo. 

E o que foi dito acima sem falar em outros fenômenos dessa crise econômico-social que estão por trás do esvaziamento desses regimes, como a redistribuição regressiva de renda: o surgimento de supermilionários de extrema-direita como Musk, que ocupam o espaço público com decisões e iniciativas da ordem privada, como a posse arbitrária da rede X,  a conquista do espaço, etc. (que é um fenômeno novo, ou seja, a privatização da natureza em toda a sua extensão, mesmo extraterrestre), em um polo e a extrema pobreza no outro. 

A grande maioria da humanidade vive hoje sob o – mais extremo – reino da necessidade que se conhece desde o segundo período do pós-guerra. Assim, por exemplo, em Honduras as maras (os grupos, geralmente de religião evangélica, que controlam as rotas de drogas, grupos aonde se pode entrar, mas dos quais não se pode sair sem uma bala na nuca), têm influência de massa sobre os jovens; as caravanas ou circuitos internacionais de imigração em que outra parcela da humanidade busca a salvação, e a  resposta exclusivista  da extrema direita a esses fenômenos sociais dolorosos e extremos que despertam o egoísmo e o ressentimento entre os setores das classes médias em retrocesso. (Socialmente, dois caminhos podem ser alcançados, dependendo do caráter e das condições da luta de classes: solidariedade e ajuda mútua, bem como consciência de classe versus o darwinismo social de cada um por si, da guerra dos pobres contra os pobres.) 

Em suma: uma “infraestrutura”, ou melhor, um “submundo social” onde a vida não é vida e que atualiza – em outro contexto – definições como as de Franz Fanon em sua obra clássica Os Condenados da Terra. Ele o fez para explicar – justificar, promover – a “violência absoluta” de muitos dos movimentos de luta no que, na época, era chamado de “terceiro mundo”. Circunstâncias que hoje se espalharam universalmente e que citamos como metáfora para o “mundo social” de hoje (já falamos do drama em Gaza na primeira parte deste ensaio): “A cidade do colonizado (…) a cidade negra, a ‘medina’ ou o bairro árabe (…) é um lugar de má reputação, povoado por homens de má reputação, lá você nasce em qualquer lugar, de qualquer maneira. Você morre em qualquer lugar, de qualquer coisa. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns sobre os outros, os casebres uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta por pão, carne, sapatos, carvão, luz (…) não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se estabelecer no lugar do colono” (Fanon; 1963; 34).[15]

Este é o pano de fundo social e metafórico de várias questões que temos vindo a discutir no presente, mas que abordamos do ponto de vista do polo e do bipolo, ou seja, sem subestimar ou sobrestimar o giro à direita e o crescimento de formações de extrema-direita em todo o mundo (é significativo que uma situação social como a dos países coloniais no pós-guerra tenha levado à esquerda, enquanto hoje leva a formações islâmicas ou ao crescimento da extrema direita). 

Dentro do fenômeno generalizado do crescimento da extrema direita, queremos nos concentrar em um elemento relativamente novo: o surgimento de governos iliberais. Os governos liberais são governos burgueses clássicos, que combinam o neoliberalismo e a democracia burguesa de forma instável e, além disso, coexistem com algumas das profundas “revoluções democráticas” que foram vividas nas últimas décadas (como o desenvolvimento universal do movimento de mulheres e LGBT).[16] 

Governos iliberais são aqueles que questionam as conquistas da revolução burguesa [17]. Eles questionam as formas republicanas com democracia burguesa, a separação de poderes, a liberdade de imprensa, as liberdades democráticas, o direito de greve e protesto social, a sindicalização da classe trabalhadora, etc. (veja as últimas declarações de Musk contra os sindicatos), gerando – tendendo a gerar – poderes executivos autocráticos. Eles questionam conquistas como o direito ao aborto e ao casamento igualitário (a Suprema Corte dos EUA tem uma enorme maioria conservadora que é a favor desses direitos). E, logicamente, e como uma questão importante, eles rejeitam os imigrantes como a causa de todos os males (além da islamofobia). Em um mundo em crise, que não se recuperou totalmente da crise de 2008, as paixões são exploradas contra aqueles que são diferentes (outra cor, outra língua, outra religião), como aqueles que vêm para tirar nossos empregos ou questionar nossas tradições. À riqueza do multicultural se lhe opõe o exclusivismo provinciano.[18] 

Em outras palavras, não existem apenas tensões entre os de cima e os de baixo. A burguesia também está – de certa forma, acima de tudo a “burguesia política” e a mídia tradicional – dividida em torno da democracia burguesa e do cosmopolitismo versus nativismo.[19] Isto leva-nos – brevemente – à questão dos movimentos populacionais e ao papel desempenhado hoje pela imigração, produto da catástrofe e da barbárie. Há milhões de pessoas que escapam da catástrofe na América Central, África e Oriente Médio, tratadas como escravos.[20] Na Argentina há pouco racismo e Milei ainda não compreendeu completamente essa clivagem (na época um importante senador peronista tentou retomá-la hoje, na Câmara dos Deputados – Miguel Angel Pichetto), mas é como algo que está instalado no país: “o paraguaio ou boliviano que vem tirar o cargo do argentino“.[21] 

Semanas atrás, houve grandes tumultos na Grã-Bretanha por causa do assassinato de três meninas que estavam em uma atividade de dança, e um garoto de 17 anos entrou e as esfaqueou. Eles imediatamente saíram dizendo que era um imigrante; mais tarde, soube-se que o menino é natural da Inglaterra, embora seus pais sejam de Ruanda. A extrema direita se revoltou em muitas cidades; então começaram a surgir mobilizações contra a extrema direita vindas das próprias comunidades afetadas, muito progressistas. 

Como apontamos na primeira parte deste texto, os governos iliberais também promovem um confronto entre a razão e a irracionalidade. Eles apelam para o ressentimento social; Eles usam as redes sociais para distribuir notícias falsas repetidamente e contam com o mais baixo senso comum. Como apontamos em nosso texto anterior, obras como  O Assalto à Razão, de George Lukács, são valiosas neste , que, embora expresse uma certa confiança positivista acrítica no progresso (a obra não tem uma visão multilinear da história, mas o contrário), aborda com erudição a tradição do pensamento filosófico irracional da filosofia alemã, uma questão que serve para iluminar aspectos do presente sobre esses governos: “(…) Schelling representa um marcado recuo reacionário da filosofia clássica alemã. Ele também tentou, dentro de suas limitações idealistas, desvendar, econômica, histórica e socialmente, a objetividade da prática humana. O papel decisivo que a espécie humana desempenha na filosofia de Hegel [na história, R.S.]” (Lukács; 1968; 153).[22] 

Há uma questão do atual estágio e conjuntura que tem sua profundidade: os setores mais atrasados não puderam se expressar na vida política porque sabiam que eram – são – “politicamente incorretos”. Mas nas redes, por causa do anonimato, eles o fazem. E a extrema direita explora isso: os mais atrasados, os mais ressentidos. 

Logicamente, como apontamos acima, tudo isso tem uma base material na estreiteza da economia mundial. Os artigos que falam sobre o avanço de Marie Le Pen na França, por exemplo, expressam que sua base social é a pequena burguesia em declínio com reflexos defensivos do que pode perder. E uma das coisas que mais atacam, como já dissemos, é a assistência social, como acontece na Argentina com os movimentos de desempregados; consideram que os imigrantes, os “ladrões”, os “violadores”, a “casta”, recebem dinheiro que lhes deveria ser dado: “A ênfase dada à Grande Recessão [na obra deste autor, R.S.] não deriva de um determinismo económico simplista (…) Para além de seus efeitos materiais imediatos, os acontecimentos de quase 15 anos atrás inauguraram um momento histórico em que a intensificação de algumas das tendências mais deletérias do neoliberalismo coincidiu com uma crise de legitimidade deste e, por extensão, do sistema de partidos políticos que permanecia incapaz de questioná-lo. É essa conjuntura mais ampla que serve para explicar por que, em todo o mundo, a política na última década tendeu a extremos” (Rodrigo Nunes; 2022; 11). 

Em suma: a contradição entre governos e iliberais e regimes que ainda são clássicos da democracia burguesa é mais um elemento de instabilidade internacional nesta conjuntura mundial reacionária atravessada por todo tipo de crises e bipolarizações – assimétricas – na luta de classes e conflitos entre Estados. Na próxima nota, nos dedicaremos a isso. 

Bibliografia: 

Valerio Arcary, Dez anos de ‘inverno’ reaccionario, esquerda on line, 08/08/24. 

Mike Davis, Planeta favela, Boitempo, Brasil, 2006. 

Frantz Fanon, Los condenados de la tierra, Fondo de Cultura Económica, México, 1963. 

George Lukács, El asalto a la razón, Grijalbo, España, 1968.  

Rodrigo Nunes, Do transe a vertigen. Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo en transicao, Editora Ubu, São Paulo, 2022. 

Notas: 

[1] Este texto terá uma terceira parte que aparecerá no suplemento do próximo domingo. 

[2] Este último aspecto é fundamental para o novo cenário político. São formações (sejam de centro-esquerda ou extrema-direita) sem ancoragem orgânica, pura “espuma” eleitoral, baseadas na maioria dos casos no uso de redes sociais e várias formas de “inorganicidade”. Fenômenos que pouco têm a ver com a inserção orgânica de suas organizações além do apoio institucional que alcançam por meio da via eleitoral. Entre sucessos eleitorais e representação institucional por cima e representação orgânica na sociedade civil por baixo, a tesoura não para de se abrir (esse padrão se expressa tanto nas formações da extrema direita quanto na esquerda em formações como podemos na Espanha, Syriza à época na Grécia ou mesmo a FITU na esquerda cada vez mais esvaziada organicamente e mais adaptada às regras do jogo do regime). 

[3] Os elementos ou formas bonapartistas variam em cada caso específico e, pelo menos nos países da Europa Ocidental e nos mais importantes do continente americano, é mais fácil para as formas bonapartistas se expressarem nos governos (Trump, Bolsonaro, Milei, etc.) do que no nível do regime político. Transferir as características bonapartistas desses tipos de governos para o regime político como tal está se mostrando difícil. Em alguns casos, porque a correlação de forças não funciona e em outros porque a burguesia não está disposta a ir tão longe (prefere permanecer dentro do quadro de certos freios e contrapesos em questões institucionais e “liberdade de imprensa”). 

Outra história é o que acontece fora dessas regiões, onde tirando o Japão, a Austrália, a Coréia do Sul (talvez, um regime que tem o controle eletrônico do povo mais desenvolvido no mundo) e outros países que nos escapam no momento, os regimes bonapartistas puros e simples estão na ordem do dia, mesmo que mantenham formalmente a mecânica eleitoral.  

O que acontece na China e no Sudeste Asiático é que são países que, em geral, não passaram pela revolução burguesa, exceto, de forma distorcida, o Japão com a “revolução Meiji”. Países onde a “massa” é una e indiferenciada. As pessoas, em sua individualidade, valem pouco ou nada, e isso dá origem ao bonapartismo como um regime “natural” (Roland Lew apontou isso em relação à China, assim como o historiador John King Fairbank do ponto de vista liberal burguês). 

[4] Mais uma vez, as relações de exploração e opressão vão muito além das visões economicistas: a burguesia não quer apenas explorar a classe operária, quer subjugá-la e, até certo ponto, “lumpenizá-la“. 

[5] Um conceito de Michael Husson que usamos em vários textos, mas que se encaixa perfeitamente nessa caracterização do capitalismo de hoje, é que ele se assemelha mais do que nunca ao capitalismo “em seu estado puro”, ou seja, com menos travas do que no pós-guerra, à operação internacional da lei do valor. O contraste com as elaborações da década de 1970 por sociólogos renomados como Clauss Offe, que afirmava que a lei do valor não se aplicava mais nos Estados capitalistas (ou seja, nas relações econômicas dentro dos Estados capitalistas) é interessante. Sua tese era que a lei do valor estava em recuo… 

[6] Bensaid sublinha os elementos não econômicos inscritos em O Capital em obras como A Discordância dos Tempos e outras, indo contra o economicismo em uso até mesmo em sua própria corrente. Mandel era erudito, mas tinha fortes traços sociológicos e economicistas em sua elaboração teórica (“Mandel segundo Stutje, Bensaid y Moreno“, web esquerda). 

[7] Na China, Vietnã e Cuba na forma de concessões às massas após revoluções anticapitalistas; no mundo árabe e na América Latina na forma de regimes nacionalistas burgueses e assim por diante (embora devamos evitar esquematismos nessa abordagem estilizada). 

[8] Lembramos aqui um exemplo pequeno, mas ilustrativo, na Bolívia de Paz Estensoro na década de 1980 (presidente tanto na fase nacionalista burguesa quanto, posteriormente, na virada neoliberal), a Lei 21.060 que liquidou a mineração e o proletariado mineiro que havia sido a vanguarda da frustrada revolução socialista de 1952… 

[9] A devastação na Venezuela é dramática. Embora defendamos a independência do país do imperialismo, achamos escandaloso o apoio ao governo bonapartista de direita de Nicolás Maduro expresso nas posições de campistas como Ignacio Ramonet e outros descendentes desse regime. 

[10] Neste período tão despolitizado e com tantos traços de barbárie social, é muito difícil se firmar em países como a Bolívia ou Honduras, para citar dois casos em que fizemos grandes esforços em uma base pouco fértil para o desenvolvimento do socialismo revolucionário hoje. A tarefa estratégica para o desenvolvimento e estabelecimento do socialismo revolucionário nesta etapa é clara: nos países centrais de cada continente; com um maior desenvolvimento capitalista relativo – ainda desigual – ou seja, as leis construtivas mais clássicas do marxismo revolucionário com a existência de um corpo estudantil massivo e relativamente politizado e de proletariado industrial. Ou seja, “leis antipopulistas” que não adorem movimentos de desempregados ou adaptação à lumpesinagem como são os casos do PO e do PTS argentino em cada caso (o campesinato não está tão na moda nos países ocidentais, embora continuem a ter muito peso na esquerda tipo PC na Índia. ” ¿A dónde va India?“, Marcelo Yunes, izquierda web). 

[11] Todo o trotskismo brasileiro, incluindo a corrente mais dinâmica até esse momento como o PSTU, nauseou e entrou em crise com os governos de Lula. Em uma dinâmica oposta à do trotskismo argentino, perderam totalmente densidade e impacto político e acabaram em divisões (especialmente a divisão entre o PSTU, muito vazio do ponto de vista militante e perdido politicamente, e a Resistência, com uma virada ultraoportunista sem fim à vista). A pressão do lulismo é o fator objetivo desse colapso político e militante, mas não explica tudo. A recusa categórica em fazer um balanço do objetivismo e do stalinismo, assim como do morenismo, os matou. E é por isso que no Brasil, mais do que na Argentina, é perceptível todo um setor de ex-quadros do PSTU, que ainda buscam um balanço do que aconteceu com sua corrente. 

Na Argentina, um fenômeno semelhante ocorreu uma década antes com a crise do velho, mas. Mas entre o Argentinazo e a construção de novas correntes como o SoB e do PTX, essa questão foi resolvida. Em nossa opinião, as correntes residuais morenistas, como o MST e a SI, valem pouco ou nada em termos estratégicos. O PO é um caso à parte, porque aproveitou a crise do antigo MAS de uma forma politicamente rudimentar para crescer, mas foi dividido ao meio e também carece de qualquer balanço (de sua própria corrente, para não mencionar do século XX). 

[12] O mantra da frente única é usado de forma oportunista no caso de autores como Arcary e da corrente em torno da Jacobin. Isso justifica qualquer tipo de tática oportunista e comportamento político covarde que se recuse a sair às ruas contra a extrema direita (a confiança nas instituições foi o caminho da derrota da social-democracia na década de 1930). 

[13] O que dizemos é “estranho”, mas é verdade: como redes de filmes e séries globalizados como a Netflix produzem nas maiores partes do mundo, elas transmitem uma série de “raios-x sociais” mesmo nos filmes mais “estúpidos” que expressam uma circunstância “social distópica” muito atual. A vida submetida ao mais extremo “reino da necessidade” pode ser vista neles, sejam eles filmes de ação, sobre o mundo do tráfico de drogas, ou o que quer que seja, filmes feitos na Índia, Ásia ou África ou o que quer que seja (o “planeta favela” com suas megalópoles cercadas por favelas de que falou Mike Davis, está mais atual do que nunca. Uma humanidade multitidinaria e multitudináriamente vivendo como “bestas”. 

[14] Falo de São Paulo porque é uma cidade que costumo frequentar além de Paris, que chama a atenção por outras características como seu multiculturalismo (embora São Paulo também seja lindamente multicultural; só Buenos Aires é “chata” nesse sentido). 

[15] O final da citação de Fanon nos remete ao que apontamos na primeira parte deste ensaio e em muitos outros lugares dos sonhos acordados dos explorados e oprimidos. 

[16] O movimento emancipatório das mulheres tem expressão até mesmo no Irã dos aiatolás, enquanto as paradas gays e as marchas do Orgulho estão varrendo o mundo em massa. Não fazer parte desses movimentos que revolucionam as relações familiares e entre pessoas tradicionais é ser retrógrado quando se é “de esquerda” ou ultramontano quando se é ultra-direita (um dos motivos extra-econômicos mais comuns dos movimentos de extrema direita é a defesa da família). 

[17] Existem governos iliberais como Trump, Bolsonaro, Meloni ou Milei e regimes iliberais como Rússia, China, Paquistão, Índia de Modi, etc. Em todo caso, neste texto, estamos nos referindo a governos iliberais e suas tensões com formas de democracia burguesa (com os regimes democráticos burgueses). 

[18] A oposição de nativista versus cosmopolita é um clássico dos movimentos reacionários de extrema-direita. O de reacionário vem bem aqui para entender que a própria globalização encorajou um fenômeno de “multiculturalismo” em vários “núcleos” ou “nexos” do sistema capitalista mundial que, nas atuais condições de crise econômica e dificuldades sociais, exploram esses movimentos. Não é por acaso, por exemplo, que eles se queixam de todas as agências e fundos de bem-estar social considerados como uma despesa tributária para aqueles que são vistos como “alteridade” (o “outro de nós”). 

[19] Insistimos na questão da “burguesia política” e dos meios porque a burguesia tout court, econômica, não tem outro princípio senão o lucro. Como afirma um perspicaz editorialista argentino no jornal La Nación, a “burguesia comum”, apenas econômica, está interessada em medidas econômicas, no desmantelamento das conquistas econômicas e sociais, etc., não se horroriza com mais nada (é a burguesia menos “iluminista” e do nível mais baixo e cholula de que há memória histórica).  uma ideia que nosso colega Roberto Ramírez, um grande analista internacional, nos sugeriu anos atrás). 

[20] Marx insistiu que os movimentos populacionais seguiam os movimentos de acumulação de capital como uma sombra para o corpo; para as mudanças em sua “geografia”. E isso além do fato de que aqueles que emigram sempre o fazem para escapar de uma tragédia e das condições bárbaras de seu próprio país (a grande emigração irlandesa do século XIX escapou da fome naquele país; grande parte da imigração mais politizada do Brasil e da Argentina escapou da perseguição dos socialistas na Europa, e o mesmo pode ser dito das emigrações de origem judaica escapando dos guetos e expurgos). 

[21] No caso da Costa Rica, o racismo é contra os trabalhadores nicaraguenses que fogem do desastre no país de Ortega (o declínio iliberal do antigo movimento sandinista é colossal; mais parecido com as imagens do filme de Ford Coppola, Apocalypse Now, do que com a revolução de 1979). 

[22] É impressionante a semelhança de alguns dos temas do irracionalismo com a elaboração de um Althusser (isso salta aos olhos na crítica de Lukács a Schelling, esclarecendo que não estudamos esse filósofo alemão de forma independente). 

Imagem:

George Grosz. Cena de rua (Kurfürstendamm). 1925. Óleo sobre tela. 81,3 x 61,3 cm. Museu Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid. O artista e sua obra são parte da cena cultural da República de Weimar, nos anos que precederam o ascenso do nazismo ao poder.

Tradução:

José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/la-crisis-de-la-democracia-burguesa/