O PSOL precisa de uma tática eleitoral independente do lulismo

Um diálogo com os companheiros da Resistência sobre sua linha política para as eleições de 2020

ANTONIO SOLER

Queremos nessa nota dialogar com os companheiros da Resistência a respeito do editorial “As eleições municipais e a política do PSOL” [1], publicado em 5/09/19. Colocamos um diálogo polêmico com os companheiros da Resistência e aos demais que estão tendendo para a mesma tática eleitoral apresentada no texto em questão, pois as táticas eleitorais são fundamentais para a construção do PSOL. O diálogo entre os socialistas revolucionários deve ser fraterno e franco ao mesmo tempo. Não podemos entre nós sermos deletérios nos debates ou condescendentes, de outra forma, seria um exercício fratricida ou diplomático que não serviria ao objetivo principal: avançar de forma comum sobre a compreensão da realidade política e sobre as tarefas que dessa emanam para aqueles que pretendem contribuir para a transformação radical da realidade.

Recuperar a democracia partidária e o programa socialista

Em primeiro lugar, precisamos fazer um apontamento metodológico ao texto dos companheiros. Nele afirmam que a questão programática e de tática eleitoral não pode ficar restrita no interior do partido, assim “devemos organizar em cada cidade, especialmente nas capitais, seminários abertos de programa” e precisamos “envolver os movimentos sociais, movimentos de combate às opressões (mulheres, negros, LGBTs), sindicalistas, intelectuais e demais setores(…)”[2]

O problema com esse método de debate é que o partido, sua base e sua direção precisam estabelecer um patamar programático básico antes de enfrentar essa discussão com os demais partidos e movimentos sociais. Não abrir a discussão na base sobre o programa eleitoral e táticas antes de debater com os demais setores, por mais que não seja a intenção expressa pelos companheiros, só levará a discussões e decisões burocráticas, ao esvaziamento do debate interno e ao torpor da sua base militante, que verá as decisões programáticas e táticas serem resolvidas às suas costas.

Assim, é preciso abrir, em primeiro lugar, o mais amplo debate interno. De outra forma, a democracia partidária ficará totalmente comprometida, processo que normalmente leva a caminhos sem volta, vide a experiência de total burocratização do PT no final da década de 1980. Devemos fazer um amplo discussão sobre programa para fora do partido, com os movimentos sociais, outras agremiações dentro do nosso campo, ativistas e intelectuais independentes, mas esse tem que ser precedido do debate interno.

Em relação ao programa, o texto afirma que as eleições tem como objetivo “apresentar o programa e as propostas anticapitalistas e socialistas para um setor mais amplo da sociedade e, ao mesmo tempo, a possibilidade de eleger lideranças com a tarefa de serem a voz dos explorados e oprimidos no parlamento, bem como um ponto de apoio para as lutas sociais e democráticas”, e que precisamos “apresentar propostas concretas aos graves problemas enfrentados pela maioria da população nas cidades brasileiras, em temas como: educação, saúde, geração de empregos, segurança pública, moradia, saneamento, entre outros.”[3]

Para além das definições genéricas compartilhadas entre os socialistas revolucionários de que as eleições servem para apresentar o nosso programa para camadas mais amplas da população, para apoiar as lutas mais importantes e parar eleger cargos parlamentares e cargos executivos que representem os explorados e oprimidos, precisamos dar contornos mais concretos para cada um desses referenciais. Do contrário, fazermos apenas um “juramento à bandeira” que serve apenas para encobrir uma linha política oportunista ou sectária para as eleições.

Não queremos aqui apresentar uma lista interminável de pontos programáticos, mas sim que precisamos no programa eleitoral nos distanciar tanto de uma elaboração oportunista quanto da sectária. As “propostas concretas” que pedem os companheiros não podem repetir os problemas do programa de 2018, pois verificamos a ausência total de saídas anticapitalistas para os problemas mais sentidos do povo trabalhador, como, por exemplo, a suspensão do pagamento da dívida pública, a reforma urbana ou a organização do poder público a partir da mobilização popular.

Temos que evitar o sectarismo, que não dialoga com as necessidades imediatas dos trabalhadores e oprimidos, tal como a necessidade de lutar contra os ataques aos direitos democráticos. Mas, a maior ameaça para a independência do lulismo hoje vem do oportunismo que rebaixa o programa para que esse se torne palatável a agremiações como o PT.

A caracterização do governo Bolsonaro

A política eleitoral é o resultado de uma dada combinação entre princípios, estratégias, programa e determinadas táticas que respondam à conjuntura. Conjuntura essa que é marcada, dentre outros fatores, pela composição social e política do governo de plantão. Nesse sentido, caracterizar da forma mais precisa possível – por mais que ainda tenhamos apenas 9 meses de governo e todos os seus contornos ainda não estejam claros – qual é a natureza desse governo é decisivo, pois, em grande medida, é dessa caracterização que se desdobra nossa política eleitoral.

Logo em seu início, ao comentar que as movimentações táticas dos partidos para as eleições de 2020 já começaram, o editorial dos companheiros afirma que essa movimentação está sendo feita tanto pelos que “apoiam o governo neofascista de Bolsonaro, como os que se colocam na oposição”.[4]

Pela importância que tem a caracterização do governo para estruturar o conjunto da linha política eleitoral, queremos apontar uma diferença com a caracterização feita pelos companheiros da Resistência de que esse governo já seria de um governo neofascista. Antes de tudo, queremos chamar atenção para o fato de que, apesar do distanciamento histórico do conceito de fascismo, estamos em outro contexto que não é o do início do século XX e tudo o que significou, mas o neofascismo mantém um elemento central do fascismo, que é ser um inimigo mortal da classe e da democracia operária.

Que Bolsonaro seja um neofascista categórico, um perigo para todos os direitos dos trabalhadores e dos oprimidos e principalmente para os direitos democráticos, um inimigo mortal da esquerda, do socialismo e dos trabalhadores, do movimento social, das mulheres, dos negros e dos homossexuais, por isso precisa ser derrotado nas ruas para que não avance mais, não há a menor dúvida. Outra coisa bem diferente é a caracterizar o conjunto do governo ou o do regime como neofascista.

Uma coisa é Bolsonaro (presidente neofascista), outra é o governo (combinação política ultrarreacionária) como um todo e, ainda, outra é o regime (democrático burguês sendo atacado). Os companheiros não afirmam que já houve uma mudança do regime político, mas afirmar que vivemos sob um governo “neofascista” coloca uma série de problema para a análise e para a política, pois amalgama os dois primeiros elementos e distorce a linha política.

Em primeiro lugar, em relação à análise, um governo neofacista (ultradireita) não pode coexistir com um regime democrático, mesmo que ameaçado, como é o caso do nosso. Na verdade, a imposição direta de um governo desse tipo já seria resultado de uma derrota mais profunda sobre a classe trabalhadora, de um golpe sobre as instituições democráticas do estado burguês ou de novas manobras reacionárias que possibilitem o aprofundamento do poder presidencial à revelia do congresso ou do judiciário.

Para isso, teríamos que ter uma correlação de forças muito mais desfavorável, uma situação de praticamente de terra arrasada da luta de classes, nenhuma resistência dos de baixo, o apoio de setores importantes da classe dominante para um fechamento significativo do regime… Não parece que é isso que demonstra as ondas de indignação com o governo que temos assistido nesse ano desde o Carnaval.

Esse governo tem basicamente três núcleos distintos: militares de alta patente, intelectuais liberais e ultraliberais e uma mistura ultrarreacionária da velha aristocracia política, neopentecostais e neofascistas. Três núcleos que disputam a hegemonia do governo que ora predomina um setor, ora outro, mas ainda não está claro qual setor irá predominar.

Essa combinação tem sido eficiente até o momento para fazer as contrarreformas econômicas, mesmo sofrendo mediações, avançarem, como é o caso da “reforma” da Previdência Social. Isso porque os discursos e medidas reacionárias cotidiana de Bolsonaro, ao abrir várias frentes de ataques, criam um ambiente político dispersivo para a oposição, para os movimentos sociais e para a esquerda. O que favorece, logicamente, o avanço das contrarreformas. 

Mas dizer que esse é um governo neofascista não considera os seus núcleos políticos, as mediações que estão postas no seu interior, a correlação de forças e, consequentemente, quais tarefas estão postas para essa conjuntura e para as eleições de 2020. Obviamente que o governo pode se constituir diretamente como neofascista se ocorrer uma mudança interna da correlação de forças e o núcleo neofascista se impor totalmente sobre os demais, mas isso está por se confirmar, ou não.  

Neste sentido, pela combinação existente no interior do governo, pela correlação de forças com as outras instancias e pela correlação de forças entre as classes, não podemos falar em governo neofascista, mas em um governo ultrarreacionário com intenções autoritárias que pode evoluir, ou não, para um governo diretamente neofascista.

A caracterização dos companheiros, ao dar de antemão a esse governo o status de “neofascista”, acaba por conceder um espaço, uma correlação de forças, mais desfavorável do que a real, é uma “concessão” analítica que leva a uma linha política eleitoral que desarma para a situação concreta e que tem consequências nefastas sobre a construção do PSOL como alternativa independente dos patrões e da burocracia lulista.

Diferentemente da caracterização dos companheiros de que já estaríamos vivendo um governo neofascista, pensamos estarmos diante de um governo mais para protobonapartista, um governo que ao atacar em várias linhas coloca crises política permanentes, crises essas que podem levar a uma derrota mais profunda dos trabalhadores, uma derrota do tipo histórica ou não.

A correlação de forças gira à direita e estamos em uma situação semireacionária, mas é uma situação que esta carregada de importantes contradições. Portanto, coaduna com a tendência predominante à direita uma contra tendências à esquerda que pode fazer o pêndulo político voltar ao centro e a esquerda. Ou seja, existem importantes contradições na realidade que não podem ser apagadas na caracterização e, muito menos, na momento de tirar a política para a luta de classes e para as eleições.

Consideramos que essa caracterização, somada a questões mais de fundo que o conjunto do partido precisa discutir – como o balanço histórico das revoluções do século XX, alinhamento estratégico e programático e concepção de construção, temas que não podemos discutir aqui por questões de espaço e centro do debate -, acabam gerando uma linha política com combinações de táticas que comprometem a independência política do PSOL. É sobre isso que queremos tratar nas próximas linhas.

O PT é um partido da ordem

A falsa premissa de já estarmos diante de um governo neofascista acaba por alicerçar uma orientação tática que consideramos oportunista para as eleições de 2020. Ao afirmar que “embora mantenhamos importantes polêmicas políticas e programáticas com o PT e o PCdoB, elas não devem impedir a possibilidade de alianças com esses partidos que estão na oposição ao governo Bolsonaro e que têm origem e inserção real nos movimentos sociais dos trabalhadores”[5], os companheiros da Resistência cometem um equívoco de apreciação sobre a natureza sociopolítica desses dois partidos.

Continuam seu texto afirmando que “nossas candidaturas não podem admitir erros como vem fazendo os governadores do PT e do PCdoB do Nordeste, que apoiam pontos fundamentais da reforma da previdência de Paulo Guedes, nem como fizeram os deputados do PCdoB que votaram a favor da entrega da Base de Alcântara para os EUA” e que foram as alianças com a burguesia nos governos petistas que “bloquearam as mudanças estruturais que o país precisava, amarraram o PT e o PCdoB à lógica do toma-lá-dá-cá desse regime corrupto e abriram as portas ao golpe parlamentar da direita em 2016, que culminou na eleição de Bolsonaro.”[6]

Aqui temos mais dois problemas graves de apreciação que se desdobram em uma linha política eleitoral oportunista.

Em primeiro lugar, não se trata de meros “erros” táticos, mas de partidos que governam sistematicamente com e para a classe dominante. São partidos que quando estão na direção dos sindicatos, centros estudantis e movimentos de todas as ordens, invariavelmente traem, desviam ou freiam as lutas. E quando estão no poder executivo, governam para a classe dominante, destinando a maior parte do orçamento os seus interesses e negociando projetos com a burguesia e seus representantes, por um lado, e reprimindo e fechando espaço políticos para os oprimidos e explorados, por outro.

Em segundo lugar, é verdade que a aliança com a burguesia contribuiu para bloquear as mudanças estruturais durantes os governos petistas, mas também é verdade que os petistas buscaram alianças com a burguesia porque não queriam realizar mudanças estruturais. Nossas diferenças com o PT e o PCdoB não são de mera ordem política e programática. Temos diferenças “politicas” e “programáticas” com companheiros da esquerda socialista, mas com essa gente a nossa diferença é de outra ordem, é de princípios, de estratégias e de ética política.

Esses partidos pela composição de sua direção, programa e prática política não podem ser considerados partidos operários, mas sim, burgueses-operários, que têm uma base social popular, mas uma direção burocrática traidora que defende e aplica um programa social-liberal. Agora estão na oposição ao governo. mas não são nossos aliados políticos, são inimigos estratégicos que temos que superar para desbloquear uma saída dos trabalhadores para a crescente barbarização socioambiental em que vivemos. O PT e o PCdoB dirigirem a maior parte do movimento social e, por isso, somos obrigados a fazer unidade de ação com eles e frentes para lutar, mas outra coisa totalmente distinta é fazer frente eleitoral com eles.

O texto dos companheiros afirma que “cada vez mais, devemos expressar um novo projeto de esquerda, que supere o projeto petista de conciliação com os ricos e poderosos”. Mas contraditoriamente a esse “objetivo”, apresentam uma tática eleitoral oportunista para a atual situação que é encoberta pela esquerda através da caracterização de que estamos diante de um governo “neofascista”.

Manter a independência de classe

Indo especificamente para política eleitoral para o próximo ano, queremos apontar o que consideramos uma linha – esperamos que passageira – que leva à perda de estratégia de construir o PSOL de forma independente da burocracia lulista.

No editorial, os companheiros colocam que a tática do PSOL “deve lançar candidaturas próprias para as prefeituras, especialmente nas capitais e nas grandes e médias cidades”. Do ponto de vista tático, essa orientação é mais ou menos obvia, pois atende ao espaço que o partido vem adquirindo e o projeta para adiante, aproveitando importantes possibilidades eleitorais que estão surgindo em pequenas, médias e grandes cidades, além das que surgem em algumas metrópoles do país. Não é nela que reside o perigo da linha política apresentada pelos companheiros. 

A modo de resumo, o centro da política que se desprende das apreciações equivocadas sobre o governo, sobre a conjuntura e sobre a composição sociopolítica do PT e do PCdoB. A tática apresentada para o segundo turno das eleições nas cidades com mais de 200 mil habitantes, se o PSOL não for ao segundo turno, é formar “alianças circunstanciais mais amplas, que busquem derrotar as candidaturas de extrema direita e neofascistas” e nas cidades com menos de 200 mil habitantes, que tem apenas primeiro turno, “devemos discutir, caso a caso, a possibilidade de alianças mais amplas hegemonizadas pela esquerda, especialmente diante de riscos de vitória de candidaturas de extrema direita e seus aliados.”[7]

Como não estamos em um regime político bonapartista ou fascista que justifique uma aliança política eleitoral “circunstancial mais ampla”. Essa é uma linha política que compromete a independência da esquerda socialista e nos condena como corresponsáveis por mandatos que irão governar a serviço da classe dominante, como o PT e o PCdoB tem feito desde o final da década de 1980.

Concordamos que diante de ameaças diretas aos direitos democráticos conquistados historicamente pelos trabalhadores, particularmente em relação aos direitos de organização e luta, temos que nos posicionar claramente contra essas ameaças. Como exemplo do que consideramos uma linha correta diante de tais ameaças, no segundo turno da eleição presidencial de 2018, diante da ameaça Bolsonaro – uma ameaça direta e real ao regime – o correto foi chamar o voto anti Bolsonaro, um voto abertamente crítico e independente em Fernando Haddad que não assumia nenhum compromisso político com o seu projeto e possível governo – assim o fez, corretamente, parte da esquerda socialista.

Diante de ameaças concretas de eleição de candidatos neofascistas nas eleições municipais, a tática independente foi a empregada em outubro de 2018. Ou seja, a nossa tática deve ser chamar o voto contra qualquer candidato neofascista, um voto crítico sem nenhum compromisso com qualquer partido da ordem. Em nossa opinião, essa é a única tática nesse momento que pode resultar em um “ponto de apoio efetivo às lutas de resistência dos movimentos da classe trabalhadora, da juventude e dos oprimidos”.

Estamos em um momento em que enormes franjas de trabalhadores, da juventude e dos oprimidos estão rompendo com a velha direção do movimento (PT). Ao mesmo tempo em que precisamos ser obcecados pela unidade de ação para derrotar os ataques de Bolsonaro e da classe dominante, precisamos ser irresolutos na manutenção da nossa independência política frente ao lulismo. Só assim, nossa política, ação no movimento social e candidaturas poderão servir como alternativa tática e estratégica para os explorados e oprimidos nas lutas e nas eleições municipais de 2020.


[1] https://esquerdaonline.com.br/2019/09/05/as-eleicoes-municipais-e-a-politica-do-psol/

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Idem.

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