“Os homens [a humanidade] fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” (Karl Marx, 18 de Brumário de Luis Bonaparte)
Pedro Cintra
Na manhã da última quarta-feira, 8 de janeiro do novo ano de 2025, o governo federal de Lula-Alckmin promoveu uma cerimônia em memória dos dois anos da intentona bolsonarista de golpe. Com o slogan “Democracia fortalecida”, o evento reuniu figuras do alto escalão da república como ministros do STF além dos chefes das Forças Armadas. Apesar disso, foi notável a ausência de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respectivamente presidentes da Câmara e do Senado Federal.
Na ocasião, ainda foram reinauguradas obras e artigos restaurados do acervo da Presidência da República que haviam sido depredados durante a ação bolsonarista, entre eles, um relógio do século XVII presenteado a Dom João VI e uma pintura de Di Cavalcanti. Tudo de volta para o seu devido lugar.
Do lado de fora do palácio, na Praça dos Três Poderes, movimentos sociais e a esquerda da ordem se reduziram a promover um simbólico “grande abraço pela democracia”. Longos são os braços da frente ampla para abraçar tudo e todos, desde o mais podre do Centrão até certos setores da extrema direita.
“Ainda estamos aqui” reafirmou Lula em vários momentos de seu discurso. A referência é clara, o longa-metragem brasileiro que entoa com a figura histórica de Eunice Paiva, interpretada brilhantemente por Fernanda Torres, o grito contra o esquecimento e a ditadura militar. Esbanjando cinismo, a “luta contra a extrema direita e o golpismo” que Lula declama em seu discurso não dobra a esquina, logo se choca com a sua prática historicamente conciliadora e burguesa.
Na estratégia de conciliação de classes lulista e de seus satélites como PSOL e PCdoB, o combate à anistia e a defesa dos desaparecidos, dos mortos, dos direitos dos povos indígenas, lutas que Eunice travou com uma força ímpar, são mera moeda de troca em nome da governabilidade com a burguesia. À luz das atenções, o filme de um Brasil presidido por uma ampla coalizão de tentativa de estabilização do regime. Um país que carece de romper com ciclo histórico de anistia, de enfrentar e punir a fundo os golpismos do presente e do passado.
A prisão de Braga Netto e a descoberta do plano golpista chamado “Punhal Verde e Amarelo”, colocaram Bolsonaro, seu clã e as Forças Armadas em maus lençóis após um resultado importante do ultrarreacionarismo nas eleições municipais. Só com o aval de Paulo Gonet, o processo segue para julgamento do STF que em nada garante que punirá duramente Bolsonaro e seus comparsas. No que depender da institucionalidade burguesa, do lulismo e seu governo, tudo se resolverá por cima nesse processo e o entulho da ditadura empresarial-militar como o artigo 142 da Constituição, as polícias e tribunais militares seguirão intactos e operando em nosso país.
Estabilidade em tempos instáveis
Para manter seu pacto de classe, Lula e seu governo liberal-social não avançam um centímetro para enfrentar a extrema direita e punir os golpistas, ao contrário, faz alianças com o partido de Bolsonaro no Congresso e aposta todas as suas cartas no mesmo judiciário burguês que o prendeu em abril de 2018.
Em seu cálculo, as ruas e a ação política das massas não são nada, a não ser para convocar atos ultra protocolares como foi o do dia 10 de dezembro para fazer jogo de cena em um momento em que a experiência política da vanguarda com o lulismo atravessa um momento chave.
Em nome de uma degradada governabilidade, o Lula 3 trabalha para tentar normalizar o regime e ser o grande fiador da estabilidade democrático-burguesa para manter a ordem política do país, a ordem dos capitalistas. Trabalhar pela estabilização nada mais é que uma ilusão da miséria do possível em uma etapa histórica cada vez mais permeada pela instabilidade por todos os lados. Mesmo o velho presidencialismo de coalizão já não é mais o mesmo, vem sofrendo uma grande erosão frente a hipertrofia do Poder Legislativo – hegemonizado pelo ultrarreacionarismo -, a ampliação de suas atribuições e sua capacidade de barganha com emendas secretas e impositivas.
O próprio matiz político do país se alterou profundamente, deslocou-se à direita sobretudo após a ofensiva reacionária e com o surgimento de um movimento de extrema direita com forte capacidade de mobilização social e disputa ideológica, diga-se de passagem, maior que o do chamado campo progressista.
Tentando se provar o “genro ideal” para a classe dominante, Lula aplicou um duro pacote fiscal que ataca direitos sociais fundamentais como o BPC e limitou o crescimento do salário mínimo, agora fixado em R$1.518, para caber nos limites impostos pelo arcabouço fiscal. Mesmo a proposta de mudança no imposto de renda – um ativo reivindicado pela ala esquerda do governo – que isenta os que ganham até 5 salários mínimos e taxa timidamente os mais ricos, muito dificilmente será aprovada no Congresso. Tratou-se de uma cortina de fumaça “progressista” para encobrir o ajuste fiscal, uma manobra de Lula para preservar seu cínico alterego público de “salvador dos mais pobres e defensor dos direitos” enquanto seu governo é um feroz condutor da agenda de ataques da classe dominante.
Sua orientação patronal fica ainda mais evidente com a proposta do “PL da Uberização” (PLP 12/2024), um projeto do governo federal fruto de um GT dominado pelo lobby das empresas de aplicativo. Com a criação de uma nova categoria de trabalhadores, os “autônomos com direitos”, o que faz o governo é naturalizar sob a lei condições de exploração impensáveis até anos atrás, um debate imprescindível presente no livro “Entregadores de aplicativo – a luta de um novo proletariado”. O avanço da regulamentação de jornadas de trabalho cada vez mais extenuantes certamente reservará para um futuro próximo reações da categoria de entregadores e do conjunto da classe trabalhadora. A luta pelo fim da escala 6×1 que permeou o debate público no final do ano passado foi só uma palhinha de um tema que certamente se desdobrará e trará implicações à luta.
Passado, presente e futuro
“O que não posso é não tocar a história para frente, ficar remoendo o passado” foi o que disse Lula no marco do último aniversário do golpe de 64. Além de seu caráter explicitamente traidor, o que faz covardemente o lulismo é trabalhar pelo esquecimento da luta e da memória histórica daqueles que enfrentaram e pereceram frente aos atos da ditadura burgo-militar. Implementada sob pulso firme da burguesia e do imperialismo, o golpe teve como uma de suas motivações conter na força a onda de luta operária e camponesa que vivia o Brasil naquele momento, uma “contrarrevolução preventiva” para o sociólogo Florestan Fernandes.
Esta parte do longuíssima metragem do Brasil foi retratada pelo documentário “Cabra Marcado para Morrer” (1984) que aborda a luta das ligas camponesas frente ao latifúndio e à repressão militar antes mesmo dela atingir as famílias da classe média como os Paiva após a instituição do AI-5.
Mesmo outros capítulos desta história como o ascenso da mobilização ao final da ditadura com as massivas greves operárias do ABC, um episódio que pariu Lula politicamente, são processos que longe de ultrapassados encontram na atualidade grandes resquícios. Neste mesmo episódio, sob os piquetes dos metalúrgicos, uma luta lindamente retratada pelo longa Eles Não Usam Black-Tie (1981), o lulismo já expressava sua natureza conciliadora e dirigia burocraticamente este processo o mantendo nos horizontes da luta sindical e impedindo que ele se unificasse com outras greves que percorriam o país, uma postura que impossibilitou que se tomasse corpo uma forte luta política contra a ditadura.
Tomar para si a história
Amparados do elo entre história, memória e cultura, tirar lições do passado é fundamental para compreendermos o presente e pensarmos o futuro. Este é um exercício muito importante frente à atual etapa histórica, marcada pela atualização da etapa de crises, guerras e possíveis revoluções. Este momento nos defronta a responder uma realidade onde a velha normalidade vem sendo constantemente ultrapassada pela instabilidade e pela reação orgânica dos debaixo. Tomar a história pelas nossas mãos para se apropriar conscientemente de seu horizonte nos exige, entre outras coisas, superar as velhas posições que reservam às massas a passividade do presente, a prisão ao passado e a abdicação do futuro.
A impunidade dos militares e das forças repressivas institucionalizada com a anistia não é coisa do passado. Ela perpassa a barbárie da ação das forças policiais hoje em dia como substrato de uma transição política extremamente negociada e conciliada por cima, um processo que, para além de importantes conquistas democráticas parciais, se deu sem grandes rupturas políticas com o velho regime.
Nesse sentido, a absolvição pelo Superior Tribunal Militar (STM) de 8 militares responsáveis em abril de 2019 por nada mais que o disparo de 257 tiros que mataram o músico Evaldo Rosa não é qualquer coisa. É uma expressão da impunidade que desfruta as forças repressivas, um salvo conduto à repressão como prerrogativa da ação do regime forjado após a transição.
Prender Bolsonaro e sua camarilha golpista da extrema direita, bem como avançar na luta pela dissolução dos Tribunais e Polícias Militares é uma tarefa primordial para romper com o ciclo histórico de anistia e armar o horizonte estratégico da classe trabalhadora brasileira. Esta é uma tarefa que nos exige construir bandeiras de luta com a mais ampla unidade de ação e um sistema de consignas à altura de refletir os interesses mais imediatos e históricos da nossa classe frente ao mundo em que vivemos.
O alinhamento de grandes crises estruturais do capitalismo, o avanço da destruição das condições de vida, bem como o tensionamento da extrema direita com o fracasso da conciliação de classes lulista, um processo que se reoxigena com nova vitória de Trump nos EUA, certamente nos reserva um dramático cenário no próximo período em nosso país e no mundo.
Este quadro, entretanto, é dialético, se nutre acompanhado de contra-ataques da sociedade e de um permanente sentimento de desconforto com o estado atual das coisas, aspirações que se gestam na sociedade e que transcendem a realidade que a atual ordem pode oferecer.
Esta impressão se cristaliza a nível geral mas que se forja, em especial, entre as novas gerações que fazem sua experiência em um mundo em crise. Portanto, luta contra a anistia, assim como a luta pelo fim da escala 6×1 se desenham como importantes elementos progressivos, pontos de partida para aglutinar e mobilizar os trabalhadores, as mulheres e a juventude pelas ruas.
Para levar essas lutas adiante, não se pode titubear, é preciso romper com a conciliação de classes que rifa nossas reivindicações e desarma a luta direta. Construir um polo independente de luta que enfrente a burocracia governista, unifique as bandeiras econômicas e político-democráticas e aposte na mobilização permanente pelas ruas precisa estar na ordem do dia. Dentre os inúmeros desafios que temos, este é um primeiro passo se queremos organizar uma nova geração de lutadoras e lutadores para disputar o presente e nele cravar vitórias que armem a luta dos baixo sob uma perspectiva revolucionária e socialista.