Apresentamos o ensaio Notas sobre a oposição bolchevique-leninista na URSS, de Roberto Sáenz, escrito por ocasião do 100º aniversário do surgimento da Oposição de Esquerda na URSS. Esse ensaio não é apenas uma homenagem aos heroicos revolucionários que se opuseram ao processo de burocratização da Revolução Russa, mas também parte de uma ampla reflexão sobre as lições teóricas e estratégicas deixadas pelas revoluções do século XX. Reflexão essa realizada ao longo de décadas pela corrente Socialismo ou Barbárie e que está sendo plasmada na obra Marxismo e transição socialista. Tomo I: Estado, poder e burocracia, do mesmo autor, que trata dos aspectos políticos da revolução e transição ao socialismo; os aspectos econômicos da transição serão tratados no Tomo II que já está em processo de escrita.

É uma homenagem não apenas aos grandes dirigentes da revolução e da Oposição de Esquerda, como Leon Trotsky e Christian Rakovsky, mas a uma série de quadros intermediários, de base, operários e estudantes que estiveram à frente da Revolução de Outubro e, depois, da luta contra o Termidor stalinista. Dos cerca de 30 mil oposicionistas em geral que foram perseguidos, isolados, enviados para os campos de concentração e executados, certamente os da Oposição de Esquerda e os trotskistas foram os mais valentes na defesa do legado da Revolução de 1917, ou seja, na tomada do poder pela classe operária e sua vanguarda, dos organismos de democracia proletária e da defesa da democrática e militante luta de tendências no interior do partido revolucionário. 

Em meio ao processo e tateando para entender o novo fenômeno histórico que foi a burocratização da revolução proletária, essa espetacular – pela sua clareza, resistência e bravura – coluna de quadros resistiu ao isolamento internacional da Revolução Russa após uma série de derrotas históricas, a começar pela derrota da Revolução Alemã na primeira metade da década de 20, ao cansaço da classe operária e de sua vanguarda e ao atraso histórico da formação socioeconômica da Rússia.

Essa resistência foi realizada porque, em que pese as dificuldades de orientação em meio à contrarrevolução, para a qual não se tinha teoria (Marx, Engels, Lênin e Trotsky elaboraram a teoria da revolução e não da contrarrevolução), existia uma profunda compreensão – um axioma central da revolução socialista descoberto por Marx e defendido como central por todos os revolucionários autênticos – de que sem auto-atividade política da classe operária através de seus organismos não se pode criar as condições político-econômicas-sociais para transitar ao socialismo. Por essa razão, mesmo com o aparente giro à esquerda do stalinismo no final dos anos 20 (a coletivização forçada no campo e industrialização acelerada serviu de justificação para a capitulação de importantes dirigentes como Karl Radek e Ievguêni Preobrajenski), a coluna vertebral da Oposição de Esquerda não capitulou ao stalinismo, pois esse processo de coletivização foi realizado através da mais profunda opressão e exploração sobre os camponeses pobres e sobre a classe operária, que a essa altura já estava totalmente apartada do poder político. Assim, foi em defesa da democracia partidária, dos organismos de poder político e da democracia de base da classe operária – o fio de prata que não poderia ser rompido – que a Oposição de Esquerda deu a vida, deixando nesse gesto heroico uma série de lições estratégicas que Sáenz busca resgatar nesse e em outros ensaios. O que faz resgatando toda uma tradição de escritos e experiências feitas pelo conjunto da Oposição de Esquerda, pelas elaborações de Trotsky, que dedicou parte significativa da sua vida à revolução socialista e outra parte para combater o processo de burocratização.

Além do resgate moral da figura de Rakovsky por Pierre Broué, em seu Comunistas contra Stalin e outros escritos, é trazido à tona os seminais e geniais artigos de Rakovsky sobre o processo de burocratização da revolução. Esse alto dirigente da Revolução Russa, que é pouquíssimo valorizado no interior do movimento revolucionário, apoiado nas análises de Engels e Marx e na experiência da Revolução Francesa foi o primeiro a identificar o novo fenômeno político, a nova categoria política. Analisou como na ditadura do proletariado as diferenças de funções podem levar a diferenças político-estruturais e à formação de uma nova categoria – “Os perigos profissionais do poder” -, ou seja, a formação da burocracia como “classe política”, além disso, a cristalização dessa diferença sócio-política – “Declaração dante do  XVI Congresso do Partido Comunista da URSS” – pode levar à transição de um Estado operário com deformações burocráticas (Lênin) a um Estado burocrático com restos proletários (Rakovsky) se a democracia como método – a auto atividade das massas – não fosse restabelecida no partido, nos sindicatos e nos locais de trabalho.

Deixamos o leitor com o ensaio Notas sobre a oposição bolchevique-leninista na URSS,  que, além de ser um emocionante resgate da bravura política de uma espetacular geração de militante de alto nível moral, político e teórico, é um resgate fundamental de elementos para reelaborar a teoria e as estratégias da revolução-transição socialista para o século XXI.  

Redação Esquerda Web

Notas sobre a oposição bolchevique-leninista na URSS

Por ocasião do 100º aniversário do nascimento da Oposição de Esquerda (1923/4)

Por Roberto Sáenz

“Não me sinto ‘cansado’, mas estou ciente de que devemos nos armar com paciência por um longo tempo, por todo um período histórico. Não se trata hoje de lutar pelo poder, mas de preparar os instrumentos ideológicos e a organização para lutar pelo poder em vista de um novo ascenso da revolução. Não sei quando esse ascenso virá.” (Trotsky em declarações a Kamenev, Broué: 2003: 76 [3])

Em virtude das condições políticas internacionais [1] que estamos vivendo, de reabertura da época de crise, guerras, revoluções, reação e barbárie, surgiu a ideia de publicarmos esta palestra editada há anos [2] (na verdade, trata-se de uma série de notas e não de um texto sistemático), a fim de transmitir elementos de balanço e lições que são atuais para as revoluções socialistas que estão no porvir. A propósito, é claro, essas notas são colocadas no contexto da publicação eletrônica – e em breve em papel, em vários idiomas – do nosso primeiro volume Marxismo e a transição socialista. Tomo I: Estado, poder e burocracia.[4]

1- Uma das batalhas mais heroicas do século XX

Neste texto, vamos nos dedicar tanto à experiência de Trotsky quanto a das companheiras e companheiros, em sua maioria jovens, que o acompanharam em sua luta e que eram membros do que veio a ser chamado na Rússia de “bolcheviques leninistas”. [5] Aos membros da Oposição de Esquerda, à companheira de Trotsky, Natalia Sedova, ao restante de sua família, seus filhos assassinados (dos dois filhos de Trotsky, apenas Leon Sedov era militante; o outro filho era um matemático a-político que, de qualquer forma, o stalinismo fez desaparecer durante os expurgos), bem como a todos camaradas da juventude bolchevique-leninista que lutaram nos campos de concentração da antiga URSS contra o stalinismo e contra o capitalismo. [6]

A luta de classes é assim, tem momentos de alegria e momentos difíceis, mas de tudo devemos tirar ensinamentos e lições para o futuro.[7] É por isso que este texto tem esse caráter de homenagem a todos aqueles jovens bolcheviques-leninistas e também aos operários, camponeses e camponeses, que primeiro dirigiram a revolução e depois enfrentaram sua burocratização: a contrarrevolução política e social stalinista.[8] 

Gostaria de começar apontando quatro questões que são importantes para mim sobre a oposição de esquerda. O século XX é caracterizado pelas maiores experiências revolucionárias e contrarrevolucionárias da história humana até os dias de hoje. Ele está repleto de lições estratégicas. Um conhecido historiador britânico neostalinista, Eric Hobsbawm (você o vê em todas as faculdades de ciências sociais), chamou esse século, com razão, de “o século dos extremos”. E foi exatamente assim, porque o século passado foi o século em que o patamar da legalidade se desmoronou e em que a revolução e a contrarrevolução burguesa e burocrática se enfrentaram.[9] 

Trotsky e a Oposição de Esquerda ocuparam um lugar paradoxal nessa história, pois coube a eles resumir duas grandes tarefas. Por um lado, transmitir às gerações futuras a experiência da Revolução Russa, as lições da primeira experiência histórica em que a classe operária começou a se emancipar, tomou o poder destruindo o Estado burguês e começou a erguer um semi-Estado proletário, começou a adquirir uma experiência de mando e governo, começou a responder à pergunta de Marx sobre como aqueles que não são nada podem aspirar a ser tudo, começou a abrir a perspectiva que Marx havia fundado de lutar de forma histórica, factual e concreta para pôr fim a todas as relações de exploração e opressão herdadas do capitalismo.

A Revolução Russa, como todas as revoluções socialistas, buscou emancipar todos os explorados e oprimidos, e não impor uma nova forma de exploração e opressão. Mas ela se deparou com um fenômeno inesperado e sem precedentes, que foi a burocratização da revolução. Lênin e Trotsky tiveram de lidar com esses eventos históricos originais porque a revolução em si não é tão clara quando você é o protagonista: ela apresenta desafios, questões. A Revolução Francesa foi igual nesse sentido, até mesmo suas voltas e reviravoltas foram ainda mais intrincadas do que as da Revolução Russa, embora o oposto acontecesse com a contrarrevolução stalinista, muito mais “retorcida” do que os regimes restauracionistas da velha ordem política que foram vivenciados na França no século XIX e que deram origem às revoluções de 1830, 1848 e à Comuna de Paris em 1871, que já ameaçavam superar as estruturas burguesas.[10] 

Sendo a revolução um fenômeno em desenvolvimento, é necessário saber como se orientar, orientar-se em meio a ela, imagine a dificuldade de se orientar na contrarrevolução. De acordo com o grande historiador Arno Mayer, em sua obra Las Furias, a contrarrevolução é ainda mais tortuosa e empírica do que a revolução (é claro que, em nossa concepção, a revolução socialista tem menos elementos empíricos e mais elementos conscientes do que qualquer outra revolução histórica).

Orientar-se na revolução significava, no caso da Revolução Russa, compreender que o escopo de seu desenvolvimento não eram as instituições do Estado burguês, mas as instituições de poder dual criadas pelos explorados e oprimidos: os sovietes e outras formas de poder dual. E entender que a Revolução Russa estava “apodrecendo por dentro”, que o próprio Estado operário estava começando a se deformar burocraticamente e a mudar sua natureza, não era uma questão simples. Tão complexa era que até hoje o debate sobre o caráter e a extensão dessa degeneração burocrática ainda está aberto e até mesmo retornando. Nosso trabalho Marxismo e Transição Socialista é uma tentativa de reabrir esse debate, que não foi retomado nas últimas décadas. Naqueles eventos, os da revolução e da contrarrevolução burocrática, a história estava sendo escrita de forma original (política e luta de classes como “história em ato”, Gramsci). E, nesse caso, os “roteiros” não são tão fáceis, o “mapa do caminho” não é tão claro. É por isso que os debates, a luta de tendências, porque na revolução socialista não há um “roteiro predeterminado” (obviamente há lições de experiências anteriores resumidas em nossa teoria, programa e estratégia para uma revolução autenticamente socialista).

Trotsky se viu na tarefa de transmitir as lições de todo esse processo, de formular a teoria da revolução permanente, de escrever a História da Revolução Russa, de dar conta da mecânica da revolução quando é a classe operária que é chamada a dirigir a transformação da revolução democrática em uma revolução socialista, em escala nacional e internacional. E ele também foi forçado – Trotsky e a Oposição de Esquerda – a enfrentar a burocratização.

A burocratização nasce de dois fenômenos centrais. Em primeiro lugar, por causa do isolamento da revolução, por não poder se expandir internacionalmente, o ônus de realizar as tarefas revolucionárias, juntamente com a guerra civil e após a devastação da Primeira Guerra Mundial, foi uma camisa de força na qual a luta pela sobrevivência, a competição de todos contra todos, ressurgiu. Mas, junto com isso, aconteceu que a classe trabalhadora recuou devido ao desgaste da própria revolução e da guerra civil. O que havia sido um impulso para a frente, o “rolo histórico” que estava ao lado da emancipação da classe operária, começou a tomar um rumo inesperado (Lewin), e a burocracia aparece como substituta dos trabalhadores.

É por isso que Trotsky e a Oposição de Esquerda tiveram a tarefa histórica de combinar duas batalhas: a batalha contra o capitalismo e a batalha contra o fenômeno sem precedentes da burocratização da revolução (é por isso que o trotskismo é o marxismo revolucionário de nossa contemporaneidade; porque ele enfrentou ambas as tarefas históricas, independentemente de seus limites e necessidades de atualização). Nesse papel, Trotsky e o trotskismo foram indispensáveis e seu legado imperecível, apesar dos desvios e mal-entendidos de suas várias tendências. Se Marx e Engels dedicaram todos os seus esforços para lançar as bases de nosso empreendimento socialista revolucionário, e se Lênin, embora vislumbrando a burocracia, tinha a tarefa de levar à tomada do poder pela classe trabalhadora, coube a Trotsky encarregar-se da contrarrevolução stalinista. [11] Além de sistematizar as lições da revolução, que foram imensas (sua História da Revolução Russa é sua principal obra a esse respeito),[12] ele também teve de explicar a burocratização da revolução.

Assim, a posição de Trotsky e do trotskismo (gostamos mais da designação mais genérica de socialismo revolucionário que, em suma, é o trotskismo em nossos dias, embora atravessado por todos os elementos de crise, falta de balanço estratégico e aspectos inerciais), foi – é – uma batalha em duas frentes: contra o capitalismo e a burocracia stalinista, à qual devemos acrescentar todos os tipos de burocracias e nacionalismos burgueses, correntes populistas pequeno-burguesas, autonomistas etc. Foi a partir da síntese dessas duas batalhas que a Quarta Internacional foi fundada em 1938.[13] Esse processo histórico continuou.

Esse processo histórico continuou, mas em 1989-91 o stalinismo entrou em colapso; os Estados que consideramos burocráticos (pelo menos, não capitalistas) caíram. O colapso final do stalinismo produziu efeitos contraditórios. Por um lado, o capitalismo foi restaurado em Estados onde – mesmo que não fossem Estados operários para nós – algumas das conquistas da revolução permaneceram, e um capitalismo neoliberal feroz foi imposto; em outras palavras, uma espécie de regressão histórica em termos de forças produtivas foi efetuada – mesmo que esse não seja o caso da China capitalista de hoje, transformada na segunda potência mundial.

Mas, por outro lado, e isso é muito importante do ponto de vista estratégico e logo começará a ser visto nesse novo estágio de extrema polarização do século XXI, a perspectiva socialista foi historicamente desbloqueada[14] Isso no sentido de que a identificação entre o stalinismo e o socialismo, a ideia de que o socialismo é algo feito por burocratas de cima para baixo para substituir a classe operária, começou a ser destruída. Essa destruição está apenas começando e não está isenta de dificuldades, porque as correntes stalinistas estão ressurgindo na vanguarda, como é o caso do Brasil. De qualquer forma, a queda do stalinismo abriu a possibilidade de começar a lutar novamente, como é nossa tradição socialista revolucionária, pela ideia de que a revolução socialista e o socialismo são um trabalho das próprias massas trabalhadoras, um trabalho de sua autoemancipação.[15] É a ideia marxista de que a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores por meio de seus próprios partidos, programas e organizações. A ideia de que não há aparato burocrático, figura bonapartista, comandante ou secretário-geral, nenhum fator externo que possa substituir a própria classe, suas organizações e partidos (sendo estes últimos indispensáveis, como a experiência histórica também demonstrou claramente).

No século XX, uma coisa foi substituída por outra (metonímia) até mesmo na teorização dos revolucionários.[16] Perdeu-se de vista a ideia de que a revolução e a transição socialista só podem ser um trabalho consciente e democrático das próprias massas com seu protagonismo histórico, a ascensão da classe operária que conscientemente faz história por meio de seus partidos, suas organizações e suas lutas políticas. E que não há “lei econômica”, forma de propriedade ou qualquer outra coisa que possa substituir essa ação histórica de autoemancipação da classe trabalhadora. (A ideia do partido de vanguarda e da autoemancipação são “quimicamente sintetizadas” em Lênin, que sabia como fundir dialeticamente o elemento autoemancipatório e o elemento jacobino). [17]

O século XX tornou-se muito emaranhado porque havia uma tendência a confundir revolução e contrarrevolução, uma tendência a dar um caráter de “operário” a sucedâneos que não eram a ação da classe trabalhadora, dos explorados e oprimidos. A história dessa discussão que estamos tentando desenvolver é a história dessa substituição, o desenvolvimento de uma teoria da revolução e da transição socialista sem o protagonismo da classe operária. O paradoxo é que, no segundo pós-guerra, todo o trotskismo tradicional teve essa recaída objetivista até então não corrigida, enquanto as correntes que consideravam a URSS um “capitalismo de Estado” ou um “coletivismo burocrático”, além de se mostrarem a-históricas, tiveram uma recaída subjetivista.[18].

A revolução e a transição socialista ocorrem de tal forma que a classe trabalhadora e as massas exploradas e oprimidas avançam progressivamente em suas condições de vida, em sua emancipação, em seus direitos e na tomada de todos os assuntos da sociedade em suas próprias mãos. O fato de que a classe operária tende a tomar todos os assuntos políticos e sociais em suas próprias mãos é a ideia central de nossa perspectiva estratégica e das lições do século 20; e é a ideia central que rege axiomaticamente o marxismo revolucionário, é a teoria política do marxismo revolucionário, a teoria política de Marx. Se a classe operária com seus partidos e organizações revolucionários for substituída, se a democracia operária for liquidada, se outros tomarem as tarefas da revolução e da transição em suas próprias mãos, a perspectiva não é a emancipação dos trabalhadores; as coisas vão para outro lado. Broué faz referência a várias obras dos oposicionistas do final da década de 1920 em relação ao surgimento do stalinismo, mas destaca principalmente o texto curto de Rakovsky, “Os perigos profissionais do poder” (1927), considerando-o um dos “textos capitais desse período, uma das primeiras análises sérias do fenômeno da degeneração da revolução, ou seja, o surgimento do stalinismo” (2003: 122). [19]

O trotskismo se caracterizou por lutar pela revolução internacional, por tirar a revolução das estreitas estruturas nacionais e contra a burocratização da revolução. A queda do stalinismo e a abertura do século XXI nos permitem recuperar esses ensinamentos e essas perspectivas para o processo que está por vir, renovando-os à luz do balanço histórico do século passado. Um balanço histórico que tomamos à maneira de Rosa Luxemburgo: como uma experiência inevitável de tentativa e erro.

Mas se a experiência é inevitavelmente de tentativa e erro, então as conclusões devem ser tiradas dos acertos e erros. Uma lição elementar que nem todas as correntes revolucionárias deste século estão seguindo, enquanto papagaiam fórmulas mortas que mal se aplicam à experiência vívida (vivida, vívida e viva).

Por outro lado, para concluir esse primeiro ponto, devemos destacar duas ou três questões: Primeiro, que a Oposição de Esquerda constituía a maior parte da oposição, mas havia outras tendências importantes, como os decistas (um grupo derivado da primeira oposição de esquerda no partido bolchevique, o grupo do Centralismo Democrático), bem como outras correntes bastante ultraesquerdistas, nas quais figuras como Ante Ciliga, um jovem dirigente da ala esquerda do Partido Comunista Iugoslavo que ficou preso por vários anos no gulag e, após sua libertação, voltou-se para a direita, simpatizando até mesmo com as correntes fascistas croatas. [20]

Broué destaca como dirigentes históricos da oposição anti-stalinista Trotsky e Christian Rakovsky, a quem ele presta um tributo sincero contra todas as calúnias lançadas sobre ele por sua capitulação – suposta ou real, uma questão de contestação -, mas também T.V. Sapronov, um dirigente dos decistas que defendia a posição de que a Rússia havia se transformado em capitalismo de estado a partir de 1927 e uma orientação em grande parte ultraesquerdista; a Smirnov, anteriormente chamado de “consciência do partido”, que foi e voltou, capitulou e depois se criticou por sua capitulação (ele seguiu um caminho mais tortuoso que não podemos desenvolver aqui, veja Comunistas contra Stalin). “Em 16 de novembro de 1927, A.A. Joffe, amigo de Trotsky e um velho revolucionário, meteu uma bala na cabeça porque lhe foi negada a permissão para se curar de sua doença no Ocidente; sua morte voluntária foi seu último gesto de protesto político. Seu funeral, em 19 de novembro, foi provavelmente a última manifestação pública legal em que os oposicionistas que tinham em sua direção não apenas Trotsky, Rakovsky e Smirnov, mas também outro dirigente histórico que está bem posicionado ao lado deles, o dirigente dos decistas T.V. Sapronov, se encontraram lado a lado” (Broué: 2003: 106).

2- O processo de burocratização

Muito cedo no processo da Revolução Russa, as dificuldades para o progresso da revolução começaram a se manifestar. A partir da década de 1920, 21, 22, a revolução começou a ficar isolada, separada do curso internacional. Em 1923, a revolução alemã foi derrotada. E na Rússia, como resultado do desgaste produzido pela própria revolução e pela guerra civil de 18-20-21 (sem esquecer a destruição anterior causada pela Primeira Guerra Mundial), começou a haver uma retirada das massas da ação política, um processo de esvaziamento dos sovietes e da participação.

A revolução é turbulenta, ela expressa a ampla participação das massas e, sem essa entrada das amplas massas na vida política, tudo fica no ar, sem potência. Quando as massas se retiram da praça, quando a praça está vazia, quando a agitação diminui, uma burocracia começa a assumir o controle, que começa a substituir a ação das massas exploradas e oprimidas. O ano de 1923 é um ponto de inflexão nesses acontecimentos. Em janeiro de 1924, Lênin morreu de dois derrames. Em outubro de 1923, foi emitida a primeira declaração antiburocrática, chamada de “Declaração dos 46”. Era um setor da direção do partido bolchevique que começou a questionar dois aspectos: as dificuldades no ritmo da construção socialista e da industrialização do país e, acima de tudo, o esvaziamento da democracia dos sovietes e do partido.

Esse esvaziamento, sobretudo dos sovietes, bem como as primeiras restrições à democracia partidária, começaram a ocorrer um pouco antes, com as dificuldades da guerra civil, com a substituição – devido às necessidades da própria guerra – das discussões democráticas por ordens de cima. Houve até mesmo erros dos próprios revolucionários: no X Congresso do Partido Bolchevique, devido às dificuldades no final da guerra civil, Lênin propôs a suspensão temporária das tendências e frações por meio de uma resolução secreta (algo temporário que o stalinismo tornou permanente).

O problema é que, como a ação da classe trabalhadora foi substituída, como a revolução ficou isolada, como a maré revolucionária recuou, formou-se um corpo de dirigentes e responsáveis em posições de comando que, de certa forma, substituiu a classe operária.

Há uma questão muito importante aqui. É difícil para a classe trabalhadora, que é uma classe explorada e oprimida, que não tem tradição de comando e controle, assumir as tarefas de direção. Além disso, por ser uma classe social de massa, ela exige uma direção coletiva, uma assunção coletiva das tarefas. E para que a condução seja coletiva, ela exige esferas de participação, de democracia socialista. Logicamente, em tudo isso, o partido revolucionário tem uma tarefa essencial porque é o segmento mais avançado da revolução e, ao mesmo tempo, precisa se conectar com a vanguarda de massa e com as massas para poder levar a revolução a bom porto.

O processo de isolamento da revolução foi enfraquecendo estas duas instâncias, inibindo o amadurecimento da classe operária, uma classe sem a tradição de comando que a burguesia teve durante a revolução burguesa e que também tinha um alto padrão de vida. A classe operária não pode exercer o seu domínio se não for coletivamente; como diriam os companheiros operários, sem assembleias. E tampouco sem tendências e partidos políticos da classe em disputa: a disputa política é o que torna as coisas democráticas, porque a síntese e as conclusões surgem do “choque de ideias” nas diversas áreas do duplo poder, do poder, da frente única, em assembleias ou onde quer que seja.

A Revolução de 17 foi um processo de ascensão da democracia operária, de ação coletiva revolucionária e de debate coletivo e politização, de sangue derramado por uma causa justa; uma aprendizagem da classe operária (vanguarda e massas) a tomar em suas mãos todas as tarefas da revolução. A contrarrevolução foi a inibição dessa dinâmica, a inibição da aprendizagem da classe operária para se tornar a classe dominante, para se elevar a uma classe histórica.[21] E a inibição de uma experiência que, com as suas correntes políticas, as suas organizações e os seus partidos, é inevitavelmente coletiva. A revolução é o acontecimento político por excelência e tem uma mecânica de partido, de vanguarda e de massas que já discutimos em outros textos. A transição socialista é um processo ainda mais complexo em que esta mecânica também se expressa, mas a natureza coletiva da tarefa requer, por assim dizer, um envolvimento mais consciente das massas do que a própria revolução.[22]

Se a revolução socialista é um acontecimento da vanguarda, da vanguarda das massas e das massas (a tríade marcada por Trotsky de revolução, insurreição e conspiração, ver “Trotsky, a História da Revolução Russa e a escola de Lenin”, izquierda web), a transição, que é a transformação da sociedade, a autêntica revolução social, deve ser ainda mais coletiva. Quando substitui aquela classe que não tem experiência acumulada, que deve adquiri-la ao longo do caminho, na experiência (forma de aprender das grandes massas, que não podem ir à universidade)[23] e, ao mesmo tempo, na sua democracia e a sua ação coletiva é inibida, um tipo diferente de fenômeno começa a surgir.

Isto torna a característica específica da revolução e da transição socialista, que tem esta característica distintiva: é uma experiência histórica original. É uma revolução das maiorias, que provêm de classes exploradas que não têm tradição ou cultura de dominação – mesmo que seja um domínio transitório para acabar com todas as relações de exploração e opressão –, e que requer instâncias colectivas, porque se não, não pode dirigir nem resolver.

São elementos importantes da tradição do trotskismo e do marxismo revolucionário, e elementos importantes da nossa corrente. Podemos resgatá-los em Marx e Engels, Lênin, Trotsky, Rosa, Gramsci; mas as formulações teóricas são uma coisa e a experiência histórico-concreta da revolução, esta especificidade histórica da revolução socialista, é outra.

O processo de burocratização da revolução – assim como o processo das revoluções da segunda pós-guerra, que foram anticapitalistas mas não socialistas – foi o processo de esvaziamento destas duas determinações: o corte do processo de aprendizagem da classe operária para dirigir a sociedade, e o corte da capacidade de exercer este domínio de uma forma cada vez mais colectiva, cada vez mais democrática. Em 1929, a ruptura começou a materializar-se na Oposição de Esquerda entre o setor que capitulou a Stalin, dirigido por Preobrajensky, e aquele que permaneceu íntegro na oposição (Trotsky e Rakovsky). Veremos isso mais tarde, mas queremos avançar uma reflexão do próprio Rakovsky sobre o que temos apontado: “Rakovsky confidenciou aos seus amigos que a imaginação economicista de Preobrajensky [seu esquematismo economicista, R.S.] o levou a esquecer a política. Sosnovsky, especialista em questões agrárias, via no novo rumo [stalinista] nada mais do que medidas circunstanciais, certamente não uma verdadeira viragem à esquerda que, se existisse, teria de ser transformada em termos políticos e de organização: ‘É necessário observar o que acontece nas alturas, mas certamente mais o que acontece entre as massas’” (Broué: 2003: 149).[24]

Isso foi combinado com um processo material. A crítica do trotskismo ao “socialismo em um só país” (a “teoria” inventada por Stalin no final de 1924 dirigida expressamente contra Trotsky)[25] tem a ver com o fato de que ela mina a base material para que a classe trabalhadora tenha tempo para fazer política: para exercer o domínio, a vida material deve ser garantida.[26] A revolução mundial entra no processo de mil maneiras, mas sobretudo desta forma: garantindo um padrão de vida que permita à classe exercer o seu domínio, além da sua confiança política nas perspectivas da própria revolução. Quanto mais atrasado é um país, menos condições materiais existem e mais difícil é agir politicamente de maneira coletiva. E se a isso se acrescentar a repressão stalinista, nem falar.

Estas condições foram potencializadas e tornadas possíveis pela Revolução Russa, e depois começaram a tornar-se difíceis. Pode-se falar de forma muito abstrata sobre a revolução e a transição socialista sem entender do que se trata. Para compreender o seu significado original como fato histórico, devemos falar desse protagonismo histórico da classe trabalhadora, que é fácil de dizer e difícil de realizar.

O protagonismo histórico da classe trabalhadora perdeu-se na articulação entre as décadas de 1920 e 1930 e foi substituído por uma camada burocrática (uma “classe política”). O debate é até onde foi esta substituição e quais as consequências económicas, sociais e políticas que teve. O outubro de 1923 é o cume entre a tendência para o exercício colectivo do poder e as derrotas e dificuldades no resto da Europa. Lênin e Trotsky estiveram “entre tapas” entre 21 e 22, mas depois se entenderam e em outubro de 1923, 46 ​​dirigentes do Partido Comunista apresentaram a “Plataforma dos 46” (que Trotsky não assinou devido aos seus altos cargos na mais alta direção do partido bolchevique, o bureau político, mas a defendeu em dois artigos de dezembro do mesmo ano, que deram a base de sua obra Novo rumo).[27]

Esta plataforma tem dois eixos (já o assinalamos acima, mas é comum que seja sintomaticamente esquecida nas fileiras do trotskismo tradicional): um económico, reindustrializar o país destruído pela guerra civil para criar uma nova base material para o país e a classe operária. Obviamente, sem uma classe operária suficiente não há poder operário nem transição socialista. O problema é que isto não funciona automaticamente como acreditavam os capituladores em 1929.[28] Os 46 também se levantam contra o início do processo de burocratização, exigindo partido e democracia soviética (paradoxalmente, é o próprio Preobrajensky quem encabeça esta carta em 1923; cinco anos depois capitularia, virando-se para a direita); dizem que a falta de democracia não só substitui a classe operária na tendência do exercício do poder, mas até substitui o partido: o aparelho substitui o partido.[29]

Nesta data começa uma dura batalha contra as traições do stalinismo no exterior e contra a substituição da classe operária no poder. Esta batalha, com as suas vicissitudes, durou entre finais de 1923 e finais de 1927, quando a Oposição foi derrotada dentro do partido. Depois continuou fora dele até que todos os bolcheviques-leninistas e outros oposicionistas foram assassinados nos Grandes Expurgos e, acima de tudo, no fuzilamento de trotskistas em Vorkouta durante sessões que duraram vários meses em 1938 (Broué).[30]

Essa batalha teve várias reviravoltas; foi difícil iniciá-la e foi difícil terminá-la, foi difícil compreendê-la, porque o fenômeno era original e porque o impulso da revolução tinha sido fenomenal e “de repente” tinha desaparecido e a retração entre os trabalhadores era esmagadora. Ao mesmo tempo, a “resistência dos materiais”, os elementos do conservadorismo, reaparecem e surpreendem os revolucionários… A burocracia começa a desenvolver uma espécie de “realismo” que é a Realpolitik, a adaptação ao que existe em lugar da imaginação realista de Lenine, que é partir da realidade para transformá-la, o marxismo como elemento ativista.[31]

Contra a ideia que muitas pessoas têm de que os quadros revolucionários são como robôs, aparelhos, que sabem tudo, que são “a moça ou o rapaz mais espertos do bairro”, a verdade é que passar de ser minoria a maioria é muito difícil, ser dirigente ou funcionário do Estado e renunciar a esse cargo é muito mais difícil (ou seja, passar de maioria a minoria novamente).[32] E não nos referimos à questão material, mas ao sacrifício que significa voltar a ser minoria depois de ter exercido o poder, algo que só Trotsky teve a coragem de enfrentar, dado que os outros dirigentes bolcheviques capitularam perante a “Razão de Estado” estalinista –nisto Stalin deu-lhe uma ajuda ao bani-lo da URSS. Assim, quando nos damos conta da formação da Oposição de Esquerda, referimo-nos ao melhor da nova geração de bolcheviques-leninistas, que renunciou a tudo pela perspectiva da emancipação da classe operária.

3- Morre o Partido Bolchevique, nasce o partido da burocracia

Damos datas muito rapidamente. Em outubro de 1917 o poder foi tomado; de meados de 1918 a 1920 ocorre a guerra civil; 1921, começam apelos muito fortes à atenção com a trágica situação em Kronstadt; em março de 21, foi dado um passo atrás com a criação da NEP (nova política económica, economia mista entre empresas estatais, pequena propriedade agrícola e mercado). Lênin, à medida que os setores da propriedade privada são novamente abertos, propõe eliminar temporariamente tendências e facções dentro do partido; então essa proibição se torna permanente. Lênin tem dois derrames; no início de 23 rompeu relações com Stalin devido aos maus tratos a Krupskaia, enquanto ocorria a inibição do processo revolucionário na Europa Ocidental e a derrota da Revolução Alemã. E em outubro-dezembro de 23, a Oposição de Esquerda começou a nascer.

Aqui existe o paradoxo de que Trotsky é atacado por duas razões, uma mais factual (Lênin ainda está doente) e outra mais histórica. Participou de uma discussão sobre sindicatos no final de 20 com uma posição errada: afirmou que os sindicatos não tinham razão de existir num Estado operário; Lênin responde que se trata de um Estado operário com deformações burocráticas, pelo que o sindicato é necessário para que os trabalhadores continuem a lutar pelas suas reivindicações imediatas. Nos anos 21 e 22, Lênin e Trotsky se dão mal (Stálin enchia sua cabeça contra Trotsky dia e noite naquele período); Trotsky reconheceu relativamente rápido os seus erros – esta história de “bastidores” é combinada com o revés da revolução europeia e da própria classe operária russa. Em 23 voltam a coincidir, unindo-se, de certa forma, na batalha antiburocrática.[33]

Mas havia um segundo problema com Trotsky: ele não fazia parte do partido bolchevique antes de 1917, e isso causou um preconceito injusto contra ele no partido. Em Minha Vida, ele defende com razão a sua trajetória revolucionária independente, algo que também defendemos, pois não existe uma trajetória prescrita, mas sim uma que é posta à prova no momento da revolução; todos têm o direito de fazer a sua experiência, não existe apenas um caminho para a revolução, mas vários.[34]

Por tudo isto, Trotsky, que fazia parte do burô político do partido, não assinou a Plataforma dos 46, mas entre outubro e dezembro de 1923 eclodiu a primeira batalha contra a Oposição de Esquerda e a primeira campanha contra Trotsky no partido. No início de 1924, manobrado por Stalin para evitar chegar ao funeral de Lênin, Trotsky fez uma pausa na batalha da oposição e só a retomou em 1926.[35]

Em 1926-27 foi formada a chamada Oposição Conjunta, entre a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky, Preobrajensky e Rakovsky, e os antigos membros do centro burocrático e a antiga Troika com Stalin, Zinoviev e Kamenev, que eram dois dirigentes centristas históricos do bolchevismo. Nestes anos, quando a luta recomeça, as condições já são muito mais difíceis. Em 24 de Janeiro, quando Lênin morreu, o stalinismo convocou o que foi chamado de “leva Lênin”: trouxeram um milhão de novos membros para o partido; os militantes que fizeram parte da revolução permanecem numa minoria absoluta. Esta nova geração não entra no partido em ascensão revolucionária, entra porque é o partido do poder: “Se rabisco estes retratos e relato estas frases de 1926, é porque já revelam uma atmosfera e os começos sombrios de uma psicose [um coletivo de psicose, R.S.]. Toda a URSS, mais tarde, durante os anos trágicos, viveria esta psicose cada vez mais intensamente e constitui, sem dúvida, um fenómeno psicológico único na história” (Serge: 2017: 287).[36]

São todos problemas que têm muito conteúdo. Quando uma organização é pequena ou média, ou quando uma organização vai para a revolução, funciona um mecanismo de “seleção natural”: só entram pessoas que estão convencidas ou que querem estar ao lado daqueles que dirigem a revolução (entende-se que a seleção natural opera porque se arrisca a vida na revolução ou porque vai contra a tendência do possibilismo ambiente).[37] Desde o início da burocratização do partido no poder – partido que concede benefícios de filiação – ocorre um processo de “anti seleção natural”; não é pelo talento, pelas qualidades ou pelo voto de baixo, mas pela nomeação de cima e pela filiação ao aparato: não vão para os cargos os melhores, mas sim os que mais baixam a cabeça (ou seja, os piores). [38]

Tudo isso está ligado a uma série de processos e princípios. Falamos da praça cheia de vida ou vazia de participação popular, e falamos de mecanismos de seleção revolucionários ou de seleção burocrática. Quando a Oposição de Esquerda, com a participação temporária e inconsequente de Kamenev e Zinoviev, lançou a Oposição Conjunta em 26-27, o partido já era outro partido, onde se recrutava com outros critérios: “O partido estava adormecido. As reuniões eram acompanhadas apenas por um público indiferente (…) Em torno de Trotsky, uma equipa de velhos camaradas, que por demais são todos jovens, dedicava-se a outras tarefas. O seu Secretariado era um laboratório único no mundo onde ideias eram constantemente desenvolvidas. Trabalhavam ali com pontualidade regulamentada ao minuto. O compromisso marcado para às dez horas não é para dez e dois minutos” (Serge: 2017:292).[39]

Um partido no poder não pode recrutar militantes da mesma forma que quando não está no poder. Além disso, um partido que está no poder tem de manter a sua independência do Estado; as esferas do Estado e as esferas do partido não podem ser fundidas. O Estado encarna a vida quotidiana e tem de gerir (administrar os assuntos) a classe operária, o campesinato, a pequena burguesia, bem como geopoliticamente com os outros Estados burgueses, etc., mesmo que seja um Estado operário; enquanto o partido permanece sempre ligado ao programa histórico da classe operária, que é aprofundar a revolução, e não apenas a revolução nacional, mas a revolução mundial; ou seja, está vinculado às leis da luta de classes e não às relações entre os Estados, além de representar especificamente os interesses de classe do programa socialista da revolução.[40]

A fusão entre o partido e o Estado burocrático conduziu à teoria do socialismo num só país, uma teoria geopolítica por excelência, ou seja, uma teoria onde os sujeitos não são as classes sociais mas sim os Estados e cujo objetivo é erigir um Estado.

Então, concordamos que o jogo era outro jogo. Pierre Broué tem um livro clássico escrito no início dos anos 1960 chamado O Partido Bolchevique, considerando-o até 1956… É lindo porque conta um conjunto de experiências, mas o título é confuso, porque ele escreve uma história que vai de 1903 a 1960; naquela época não existia partido bolchevique há muito tempo. O partido bolchevique enquanto tal, o revolucionário, com todas as suas nuances, deixou de existir no final da década de 1920, basicamente com a derrota e exclusão da Oposição de Esquerda.

Para entender como é a batalha em um partido burocratizado, é preciso ler Memórias de um Revolucionário, de Víctor Serge, que não tem conceituação teórica, mas é muito sensível. Serge conta sua participação numa célula do partido em Petrogrado; cada vez que alguém da oposição falava, atiravam-lhe ovos, vaiavam-no. No 15º Congresso do Partido Bolchevique, realizado em 27 de novembro, a Oposição Conjunta praticamente não tinha delegados. As intervenções de Trotsky, Kamenev, Zinoviev ou Preobrajensky no Comité Central também foram entre gritos e vaias. Ou seja, o processo de burocratização já estava muito avançado: “Eu pertencia [ano 1925/6 mais ou menos, R.S.] à célula comunista do Krasnaie Gazeta, um grande jornal vespertino. (Naturalmente, desde o meu regresso da Europa Central fui mantido fora dos comités e dos chamados empregos “responsáveis”.) Éramos cerca de quatrocentos impressores, tipógrafos, linotipistas, escriturários, editores e militantes auxiliares. Perdidos entre esse número, três velhos bolcheviques que ocupavam cargos na administração. Uma dúzia de camaradas travaram uma guerra civil. Os outros trezentos e oitenta e sete (aproximadamente) pertenciam à “promoção Lênin”; trabalhadores que só chegaram ao partido após a morte de Lênin, após a consolidação do poder, em plena NEP. Éramos cinco opositores, dos quais um era duvidoso, todos da geração da guerra civil. Era uma pequena parte da composição do partido como um todo e explica muitas coisas” (Serge: 2017: 298).

O problema era extremamente delicado. Tal como os sovietes foram esvaziados pela guerra civil, a burocratização do partido bolchevique matou a última instituição da democracia socialista na URSS, uma instituição que era o próprio partido bolchevique…

4- Alguns marcos da luta da Oposição

Testamento de Lênin (1922/3)

Lênin morreu em 24 de janeiro, doente desde 1922 e afastado da vida política. Seu Testamento só foi conhecido em 1956, quando foi proferido o famoso discurso secreto de Khrushchev; o stalinismo escondeu isso. Entre muitas coisas valiosas, ele disse que Stalin não poderia ser Secretário-geral do partido porque era “um cozinheiro que só preparava pratos picantes”, no sentido de que, em vez de dirigir com critérios políticos objetivos, ele se envolvia constantemente em intrigas e manobras de alguns militantes contra outros (além de não terem critérios de princípios, acrescentaria Trotsky mais tarde).

O paradoxo do caso era que o próprio Lênin tinha promovido Stalin a Secretário-geral no início de 1922. Mas naquela altura era apenas uma espécie de posição “administrativa”; só quando Lênin recuperou-se do golpe da sua segunda enfermidade na cabeça, no final de 1922, é que se apercebeu do grau alcançado pelo processo de burocratização (ainda chamava-lhe “burocratismo”, mas era muito mais do que isso, evidentemente).

Outro problema foi que Trotsky, a princípio, não se atreveu a travar uma batalha adequada. Ele temia que vissem nele uma pretensão ao poder pelo poder (o peso adverso do seu passado não-bolchevique).[41]

A “Plataforma dos 46” (1923) e a Oposição Conjunta (1926/7)

O primeiro marco real da Oposição de Esquerda é a “Plataforma dos 46”. É chefiado por Evgeny Preobrajensky, um importante dirigente e intelectual do partido (infelizmente com traços economicistas que foram afirmados mais tarde na luta partidária).[42]

Entre os 46 havia muitos quadros partidários importantes que não provinham do bolchevismo – outro dos paradoxos desta história que fala do fato de não haver nada mecânico na construção revolucionária nem pessoas “predestinadas”, algo que já apontamos acima –,[43] mas de correntes minoritárias da esquerda revolucionária não-bolchevique, como Trotsky, que se juntou ao bolchevismo em 1917. Desse ponto de vista, eles eram “espíritos mais independentes”. A Plataforma é o primeiro sinal de alarme sobre a burocratização.

Trotsky publicou uma série de artigos no Pravda que fizeram história, mas não os temos em mãos no momento em que escrevo esta nota. (O Pravda, que em espanhol significa Verdade, era o órgão oficial do partido. Mais tarde, na década de 1930, a juventude trotskista presa nos campos e isoladores publicou o que foi chamado de Pravda – a verdade – atrás das grades).[44] Por causa desses artigos, Trotsky foi furiosamente atacado e, como já apontamos, começaram dois anos em que Trotsky esteve doente, intuimos que por estresse devido à posição desconfortável em que se encontrava. Empurraram-no para uma luta que parecia uma mera luta “pelo poder”, de aparatos, em vez do que realmente era: uma luta de princípios pelo curso da revolução. Para piorar a situação, Trotsky tornou-se um “burocrata” pela sua posição contra os sindicatos no final da década de 1920; uma situação muito incômoda, num partido que não era o seu e com a desconfiança de amplos setores da vanguarda operária, como foi o caso dos membros ou antigos membros da Oposição Operária.

Lênin ainda estava vivo. Morrendo, ele não conseguia falar, embora tivesse consciência das coisas. Isto agravou enormemente o clima de intriga (Stálin rezava dia e noite para que Lênin morresse). Quando Lênin morreu, Trotsky, tentando garantir que não seja mal compreendido, não usa sua posição e prestígio à frente do Exército Vermelho, porque acredita que seria um erro bonapartista; ele escreveu anos depois que se a tivesse usado seria o bonapartista em vez de Stalin.[45]

Ele diz que teria sido um golpe de Estado usar o Exército Vermelho em seu benefício; uma nova substituição da classe operária. Isaac Deutscher, que seduz com a sua boa escrita e até certo ponto com a sua investigação histórica (Broué critica-o justamente por não ser um verdadeiro historiador), critica Trotsky por isso: obviamente fá-lo porque é um teórico do substitucionismo “revolucionário”…

Ao longo deste período, 1924 a 26, há muita confusão porque a luta entre tendências acontece nas alturas, fora dos ouvidos da base partidária, cada vez mais despolitizada, e das massas num processo de retração acelerada como resultado da paralisação da revolução europeia e das misérias econômicas de cada dia.

Trotsky falava da “revolução mundial” e isso não ressoou nas massas, que estavam cansadas e retiradas para as suas vidas privadas: “Eu não acreditava em nossa vitória, tinha a certeza no meu coração da nossa derrota. Lembro-me de ter contado a Trotsky (…). Na antiga capital (Petrogrado) reunimos apenas algumas centenas de militantes, os operários como um todo eram indiferentes aos nossos debates. As pessoas queriam viver em paz. Senti claramente que o velho sabia disso tanto quanto eu, mas que era necessário que todos nós cumpríssemos o nosso dever como revolucionários. Se a derrota é inevitável, o que fazer senão aceitá-la com coragem, enfrentá-la com espírito invicto? Isto seria útil para o futuro. León Davidovich fez um grande gesto: ‘Há sempre um grande risco a correr. Um acaba como Liebknecht e outro como Lênin. Para mim, tudo se resumia nesta ideia: mesmo que houvesse apenas uma oportunidade em cem favor da revolução e da democracia operária, essa oportunidade tinha de ser tentada a qualquer preço” (Serge: 2017: 304/5 ).

A ideia de “socialismo num só país” era como “música nos ouvidos” para as grandes massas, mesmo que fosse completamente falsa, e deu origem ao processo de burocratização que seria completado com a coletivização forçada, a industrialização acelerada, o Stakhanovismo, os Grandes Expurgos e o trabalho forçado no gulag. Ou seja, o Estado burocrático com resquícios da revolução.

As revoluções alemã e chinesa fracassaram. Sobre o balanço deste último está o texto de Trotsky Stalin, o grande organizador de derrotas; e de fato foi assim, porque o stalinismo já dominava o aparelho do partido e da internacional e, como burocratas que eram, temiam revoluções e a ascensão descontrolada das massas como se estivessem a fazer xixi na cama. Estes fracassos aumentaram a desmoralização da classe operária russa, que ainda não tinha recuperado do desgaste da guerra civil. Na década de 1930, com a virada para a coletivização forçada e a industrialização acelerada, surgiria uma nova classe operária de origem camponesa que não tinha vínculos com a tradição anterior. O stalinismo não fez nada mais do que qualquer burocracia costuma fazer: criar uma oposição entre a velha classe operária com tradição e as novas gerações que não a têm – embora em outros casos possa ocorrer o curso inverso da força e da renovação que vem das camadas jovens contra o conservadorismo dos velhos; em todos os casos, há que observar as circunstâncias específicas.

A derrota e divisão da Oposição de Esquerda (1927/8/9)

A Oposição de Esquerda é derrotada em 1927 como resultado de uma combinação de circunstâncias econômicas e políticas já mencionadas. Simultaneamente, na URSS houve uma combinação económica entre empresas industriais nacionalizadas, pequenos proprietários agrícolas e o mercado (comerciantes). Entre os anos 25 e 27, Stalin, depois de romper com Kamenev e Zinoviev, e com a ajuda de Bukharin, teve uma orientação oportunista de deixar crescer tendências pró-capitalistas na URSS; os camponeses começam a enriquecer, não têm insumos industriais suficientes para se abastecerem e procuram por conta própria rotas de comércio exterior, o que traz escassez nas cidades. Entre 1928 e 29, a maior parte da Oposição de Esquerda esteve exilada dentro da URSS, muito longe dos centros (Trotsky foi exilado da URSS em Janeiro de 1929).

Para enfrentar a escassez nas cidades, a burocracia dá uma guinada ultraesquerdista em direção à coletivização forçada do campo e à industrialização acelerada. Esta viragem do stalinismo provoca um dos grandes debates do marxismo revolucionário sobre o balanço da Revolução Russa; foi uma das grandes viragens históricas em que o destino da revolução foi decidido – devemos acrescentar a isto que em 1933 o nazismo chegou ao poder na Alemanha, o que tornou as condições internacionais ainda mais difíceis.

O stalinismo passa a nacionalizar brutalmente o campo: fala-se de cerca de seis milhões de camponeses mortos. Mas a socialização socialista do campo exige duas condições: uma é que existam meios técnicos para produzir em grande escala; a outra é o consentimento da maioria camponesa. A pesquisa histórica, até hoje, indica que os kulaks – camponeses ricos – eram uma minoria, e que o principal ataque do stalinismo foi contra os camponeses médios (todos os camponeses, na verdade, Kevin Murphy),[46] de onde lhes foi tirada uma conquista. que, embora tenha efectivamente trazido pressões pró-capitalistas que tinham de ser controladas, foi uma conquista democrático-burguesa da Revolução Russa de 1917, que lhes concedeu a posse das suas terras agora tomadas pela burocracia.

A tradição histórica do marxismo revolucionário diz que o campesinato deve ser conquistado para a coletivização da agricultura através do desenvolvimento das forças produtivas e da convicção da superioridade do trabalho coletivo sobre o trabalho individual. Stalin destruiu esse princípio e, na ausência de condições para uma coletivização socialista, deu origem a um desastre não só humanitário mas também económico: uma “coletivização” burocrática que Bukharin (que era um direitista mas não estúpido) descreveu como a sujeição do campesinato a “uma exploração militar-feudal”. No mesmo sentido, Rakovsky falaria das cooperativas agrárias formadas, as fazendas coletivas, como “pseudo cooperativas” para as quais os camponeses tinham sido arrastados à força.

Junto com isso, foi lançado um plano de industrialização acelerada nas cidades, baseado na superexploração de uma classe operária atomizada, sem quaisquer direitos ou participação no plano. Sobre o Stakhanovismo, Leon Sedov escreveria um artigo contundente intitulado “O Movimento Stakhanov”. Embora não tenha definido completamente o seu caráter reacionário (viu nele algo de progressista devido a um suposto aumento de produtividade que não era tal), o que descreveu foi uma operação contrarrevolucionária da burocracia para dividir a classe operária [47].

As formas de propriedade, por si só, não definem a natureza socialista dos processos. Condições materiais, forças produtivas, são necessárias para que estas formas de propriedade satisfaçam as necessidades humanas, e é necessária a participação consciente da classe operária, e não a sua opressão e superexploração.

Em 1929, um setor da Oposição de Esquerda liderado por Preobrajensky capitulou ao stalinismo; a Oposição está desmoralizada: Stalin parece estar tomando medidas “de esquerda”. Trotsky e Rakovsky resistem e dizem o seguinte: não estamos interessados ​​apenas nas medidas que o aparelho toma, mesmo que pareça uma viragem à esquerda; o problema é qual classe social toma as medidas e com que métodos: o quê, como e quem. Uma coletivização realizada nas corretas condições técnicas e com o consentimento do campesinato, mais uma industrialização com a direção coletiva da classe operária, fortalecem as bases do Estado operário. Se tudo isto for feito às custas dos explorados e oprimidos; se as forças produtivas agrárias forem mergulhadas em três ou quatro décadas de crise permanente e o Estado se separar de qualquer consenso com os camponeses; se for industrializado com base na superexploração da classe operária, recompensando aqueles que mais perdem as costas – o Stakhanovismo –, dividindo assim a classe, os fundamentos do Estado operário ficam minados. “A análise de Rakovsky sobre a burocracia, inicialmente funcional e depois social, é que ela se tornou uma ‘categoria social totalmente nova’, respondeu às questões urgentes do momento, mas provavelmente não foi compreendida por aqueles a quem a explicação foi dedicada [o resto da explicação. a Oposição, RS]. Muitos consideraram isso um “desvio” ou uma “heresia”, embora fosse uma ferramenta muito afiada. Gostaria de salientar que, dezenas de anos depois, registrei em alguns a mesma reação da ortodoxia ‘trotskista’ a um texto que Trotsky havia difundido em todas as novas colônias de exilados e que considerava um ‘marco’ [ uma espécie de marco nos rumos da Roma Antiga, R.S.] no desenvolvimento do marxismo em relação à análise da burocracia nascida da degeneração da revolução” (Broué: 2003: 155). Esta é a categoria de “classe política” que defendemos no nosso trabalho Marxismo e a transição socialista em relação à burocracia estalinista.[48]

5- A memória da juventude da oposição assassinada pelo stalinismo na década de 1930

Já salientamos que Preobrajensky, Radek, Smilga e outros líderes da Oposição capitulam ao stalinismo, acreditando que as medidas “de esquerda” da burocracia regenerariam automaticamente a democracia dos trabalhadores no país…[49]

Em 1929, Trotsky foi forçado ao exílio e acabou na Turquia, onde foi separado da visão direta dos acontecimentos na URSS, mas, em contrapartida, obteve uma visão mais internacional dos assuntos. Rakovsky permanece na URSS. Pierre Broué afirma que uma das dificuldades da Oposição é que Rakovsky e Trotsky não poderiam estar juntos. Trotsky teve uma visão mais internacional, a fundação da Quarta, etc., e com relação à URSS foi mais cuidadoso. Rakovsky não tinha essa visão internacional, mas tinha grande sensibilidade em relação ao retrocesso na Rússia. Se estivessem juntos talvez tivessem feito mais sínteses. Essa síntese não foi alcançada. Mas apesar da (suposta) capitulação de Rakovsky em 1934, Trotsky continuou a reivindicá-lo como o seu único amigo verdadeiro entre a velha guarda.[50]

A partir da década de 1930, as fileiras da Oposição de Esquerda eram compostas quase exclusivamente por novas gerações – a maioria dos dirigentes históricos capitulou. Eles estavam em “unidades de isolamento”, onde havia prisões e campos de trabalhos forçados. Mas mesmo nessas condições muito difíceis, eles conseguiram garantir que ilhas de democracia operária subsistissem nesses lugares dentro da URSS burocratizada, como mencionámos acima com Ciliga (Serge conta uma história nas suas obras semelhante à do marxista jugoslavo). Eles não pensavam todos da mesma forma. O que tinham em comum era a defesa da perspectiva da revolução internacional, da democracia operária, etc. Escritos de setores da Oposição de Esquerda continuam a ser descobertos nos locais onde estavam esses campos de concentração (recentemente os Cadernos de Verneuralsk). A riqueza que trazem à teoria da revolução e da transição socialista exige a recuperação destas experiências e reflexões feitas em condições tão duras e que estão repletas de “pérolas teóricas” para futuras pesquisas.

Citaremos a seguir algumas dessas pérolas da obra de Broué. Uma delas é a conhecida posição de Trotsky sobre Rakovsky e a sugestão que este lhe fez alguns anos antes. Citaremos in extenso: “Rakovsky foi, basicamente, meu último elo com a velha geração revolucionária. Após a capitulação deles, não sobrou ninguém. Embora a minha correspondência tenha cessado – por motivos de censura – após o meu exílio, a figura de Rakovsky permaneceu como um elo até mesmo simbólico com os velhos camaradas de luta [é conhecida a lealdade mútua que Trotsky e Rakovsky tinham um pelo outro, a confiança entre eles, R.S.]. Agora não sobrou ninguém. A necessidade de trocar ideias, de debater questões globais, não será mais satisfeita depois de muito tempo” (Trotsky citado por Broué: 1996: 392).[51]

Broué cita então uma sugestão profunda que Rakovsky fez a Trotsky anos antes (e que temos a impressão de que ele não seguiu): “Na minha opinião, além do trabalho normal, será extremamente importante que você escolha qualquer tema – no género do meu Saint-Simon – que obriga a rever um conjunto de coisas e a relê-las de um determinado ângulo” (Broué:1996:393).[52] E Broué acrescenta: “Estas foram as palavras de um homem com um horizonte cultural mais amplo – e o de Trotsky era imenso – que tomou consciência do inevitável conservadorismo de um pensamento que se confina a um único domínio” (1996: 393). Genial Broué é o que podemos acrescentar.[53]

De resto, é importante enumerar os nomes dos jovens bolcheviques-leninistas que empunharam as bandeiras da revolução internacional na década de 1930 (e que Broué garante na sua obra que não sejam esquecidos! Honrado nele, um grande historiador do movimento trotskista que conseguiu escapar do doutrinarismo idiota): Grigori Iakovine, Sokrat Gevorkian, I.M. Kotzioubinsky, N.P. Gorlov, V. V. Virapov, N.P. Baskakov, Faina Viktorovna Jablonskaia (ainda da geração de outubro). E ao lado deles os mais novos: F.N. Dingelstedt, G.M. Stopalov, I.S. Kraskine, I.M. Poznansky, M. N. Sermuks, Victor Krainiy, Dimitro Kourenevsky, Vl.K. Iatsek, G.M. Vulfovitch, Arkadi Heller, V.I. Rechetnichenko, Lado Enoukidze, Kh.M. Pevzner, ‘Dika’ Znamenskaia, Bella Epstein, Abram Grigoriévich Prigojine, entre muitos outros (Broué: 2003: 331), a maioria deles de alto nível político e intelectual e provenientes das universidades vermelhas da década de 1920.

Com estes nomes e muitos outros, a Oposição de Esquerda acabou massacrada no final da década de 1930 na URSS. Foi, como Broué aponta com perspicácia, uma tentativa de “assassinato de memória” que felizmente não prosperou e que a nossa militância socialista revolucionária no século XXI reivindica como parte fundamental da nossa tradição.

Por outro lado, a esposa de Adolf Yoffe, uma testemunha milagrosa sobrevivente dessa carnificina, prestou-lhes homenagem, salientando que estes jovens, homens e mulheres, eram os melhores da Oposição de Esquerda e que o stalinismo lhes tinha cortado a experiência no auge da vida, cortando da mesma forma, tudo o que pudessem contribuir para a revolução. E, no entanto, a sua morte não foi em vão porque com a sua luta garantiram a continuidade da nossa tradição socialista revolucionária que é chamada a desempenhar um papel decisivo nas revoluções socialistas do futuro, desde que não caia numa consciência rebaixada para manter altas perspectivas socialistas.

6- Finalizando algo que não tem fim

Marx tinha plantado duas bandeiras na Primeira Internacional: “Proletários de todo o mundo, uni-vos” – que se refere ao carácter internacional da revolução – e “A emancipação dos trabalhadores será o trabalho dos próprios trabalhadores”. A primeira bandeira é geralmente mais clara entre as correntes do trotskismo; a segunda, paradoxalmente, não. Muitos deles, em diferentes países, continuam a apresentar reflexões, trabalhos, teorizações, que não consideram a autoemancipação da classe trabalhadora como um elemento axiomático central para a revolução e a transição socialista (autoemancipação que inclui como parte da é o mais íntimo do partido revolucionário; um partido que é indesculpável, essencial para a revolução: o mundo não pode ser mudado espontaneamente, muito menos sem tomar o poder).

Eles não compreendem do que se trata, no sentido de que o parâmetro último para apreciar a natureza dos acontecimentos é o progresso da classe trabalhadora na sua capacidade de assumir o comando dos assuntos da sociedade; a tendência para a igualdade, a elevação do nível de vida e a revolução das relações sociais; para a liberdade.

A ideia de que o grande ensinamento do século XX é que a revolução e a transição socialistas se realizam através da autoemancipação da classe operária é clara, não está localizada no centro, e é uma ideia que a nossa corrente, e isso se baseia na compreensão de que a revolução socialista é de imensa originalidade histórica porque tende à abolição de todas as classes, e não à criação de uma nova camada dominante. É por isso que Lênin falou de um “semi-Estado proletário”; porque não pretendia criar um aparato acima da sociedade.

Este é o principal ensinamento do século XX: na ausência de uma tendência para a gestão coletiva do poder, mesmo as conquistas progressistas como a expropriação da burguesia não podem ser usadas num sentido socialista. A forma de aproveitar a nacionalização dos meios de produção num sentido socialista, igualitário e libertador é a classe operária no poder. Caso contrário, tudo poderia levar à perda do caráter operário do Estado e à contrarrevolução.

Esta é a pedra de toque da natureza do Estado da transição socialista. Pode admitir temporariamente muitas formas de propriedade. O que não admite, o que leva ao fracasso e à contrarrevolução, o que não leva à igualdade, o que não leva à liberdade, é que a classe operária não está no poder através do seu partido ou partidos revolucionários e das suas organizações de poder. O exercício coletivo do poder, e a criação das condições materiais para esse exercício, é o que leva a tirar partido da expropriação da burguesia num sentido socialista. Se a classe operária perde o poder como aconteceu na URSS no final da década de 1920, o Estado perde o seu caráter operário e a transição socialista é inibida: “Dirigido nos anos anteriores por várias tarefas, militares, governamentais, diplomáticas, Rakovsky começou, no entanto, desenvolver-se intelectualmente até se tornar um teórico de enorme estatura (…) Após um retorno às fontes – as reflexões de Engels sobre a burocracia, as de Lênin sobre a natureza do Estado Soviético -, marchou sobre seus ombros para começar a desenvolver-se em 1922 uma teoria original da gênese e evolução da burocracia soviética. Por um momento ele acompanhou seu amigo [Trotsky], depois começou a precedê-lo (…) Ele foi o primeiro a desenvolver uma teoria da burocracia que é valiosa e operacional hoje e que todos os sovietólogos da universidade e da imprensa ignoram ou fingem ignorar (1996: 395). [54]

E Broué acrescenta, depois de afirmar que Rakovsky acabará reivindicado (algo que tentamos fazer no nosso trabalho Marxismo e a transição socialista): “Acreditamos que a tentativa de opor a Trotsky em termos de ‘classe’ ou ‘casta’ é vã e inútil para designar a nova camada social dominante, tendo em conta a definição que Rakovsky deu a ‘esta classe original’ [que Rakovsky acabou por definir como uma ‘classe política’, R.S.]. Mas também consideramos que as consequências da ausência desta colaboração intelectual fraterna direta entre os dois homens ao nível da teoria e da análise política pesaram na balança dos anos decisivos da história da URSS” (1996: 395).

E Broué encerra sua homenagem a Rakovsky apontando que ele foi um homem do Iluminismo, impregnado de humanismo e visão elevada, e da necessidade de continuar o trabalho da Grande Revolução Francesa. Ele o chama de “camarada Rako” e cita uma definição dele feita por Boris Souvarine em uma obra de 1966: “Os primeiros comunistas franceses viram em Rakovsky um modelo de dedicação altruísmo e coragem pessoal que me torna incapaz de evocar sua memória sem me emocionar”. (1996: 397).

Lênin, Trotsky, Rosa, Gramsci e Rakovsky, juntamente com a jovem geração da Oposição de Esquerda, todos morreram em condições muito difíceis ou trágicas, levantando a bandeira da emancipação humana. Este humilde artigo é uma homenagem a todos eles, as gerações mais brilhantes até hoje da nossa histórica corrente socialista revolucionária.

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Artigo editado e corrigido por Patricia López. Para ler mais sobre a luta histórica da Oposição de Esquerda Russa, recomendamos a leitura de Os Trotskistas na URSS (1929-1938), de Pierre Broué.

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Bibliografía

Pierre Broué, Comunistes contre Stalin. Masacre d’ une génération, Fayard, París, 2003.

Rakovsky ou la Révolution dans tous les pays, Fayard, París, 1996.

Ante Ciliga, En el país de la mentira desconcertante, Editorial Les Iles d’ Or, París, 1950.

Aleksei Gusev, “Trotskistas en la URSS. Prólogo a los Cuadernos de Verjneuralsk”, Ideas de Izquierda.

Gus Fagan, “Biografhical Introduction to Christian Rakovisky”, Marxismo Internet Archive.

Sebastiano Timpanaro, Sobre el materialismo. Ensayos polémicos en torno a la teoría, la praxis y la naturaleza, Ediciones IPS, Argentina, 2022.

Victor Serge, Memorias de un revolucionario, Traficantes de Sueños, Madrid, 2019.

[1] A data do seu nascimento é a famosa “Carta dos 46” oposicionistas do CC à linha oficial de Stalin, que apareceu em Outubro de 1923 com Lênin ainda vivo mas já definitivamente imobilizado.

[2] Este texto baseia-se na palestra proferida pelo autor desta nota por ocasião do 80º aniversário do assassinato de León Trotsky, entre 20 e 21 de agosto de 1940, pelas mãos do agente do stalinismo Ramón Mercader. De resto, a obra O Homem que Amava os Cães, de Leonardo Padura, best-seller mundial há anos, é um excelente texto literário com uma séria investigação histórica em torno dos acontecimentos do seu assassinato, texto ao qual podemos recorrer para compreender o contexto em que atuou a Oposição de Esquerda durante a década de 1930, embora existam muitos outros que mencionaremos ao longo deste artigo.

[3] Kamenev e Zinoviev acreditaram ingenuamente que a batalha contra Stalin seria fácil… Trotsky, com razão, pensava o contrário. Assim, os dois primeiros capitularam rapidamente em 1927, após a derrota esmagadora da Oposição Conjunta.

[4] O primeiro volume do nosso trabalho é dedicado a esta juventude socialista revolucionária que lutou nos campos de internamento contra o stalinismo na década de 1930, mas não há nenhum capítulo específico sobre esta luta; aqui complementamos esse aspecto da história e a nossa elaboração sobre o stalinismo.

[5] Hal Draper lembra-nos que, em geral, as correntes revolucionárias não assumem o nome próprio do seu dirigente até depois da sua morte. No caso do trotskismo, é assim: eles não se autodenominavam “trotskistas”, mas sim “bolcheviques-leninistas”, continuadores da obra de Lênin, até pelo fato de existirem outros dirigentes na Oposição da estatura dos Christian Rakovsky e mais alguns. Escusado será dizer que, por outro lado, os da velha geração bolchevique na Oposição de Esquerda eram os menos numerosos: a esmagadora maioria dos “velhos” dirigentes capitularam perante o estalinismo e a “Razão de Estado” estalinista, e as fileiras da A oposição era constituída sobretudo por uma geração jovem e enérgica vitoriosa: “Esta geração jovem tinha ideias muito claras e era a mais radical da Oposição” (Broué: 2003: 94).

[6] Uma questão central que se conecta com a retomada da experiência histórica que estamos vivendo neste século XXI é que a composição majoritária da Oposição de Esquerda, como experiência de “ligação ao futuro”, era, logicamente, majoritariamente jovem (Veja a este respeito o nosso recente “Preparar as novas gerações para a revolução”, izquierda web).

[7] Quanto à importância estratégica de fazer um balanço das experiências passadas, Broué aponta o seguinte: “[Estamos] diante de um balanço da experiência coletiva sem o qual estaríamos condenados a repetir indefinidamente os mesmos erros e a repetir [a tradução não é literal mas optamos por colocar o que colocamos, R.S.] as mesmas derrotas” (2003: 349).

[8] É claro que muitos dos membros da Oposição de Esquerda e de outras oposições de esquerda (veremos isto mais tarde) que lutaram e morreram nos campos de concentração ou nos isoladores do stalinismo, ainda eram rapazes e moças durante a Revolução de Outubro. Porém, também é verdade que foram eles que melhor “beberam” dos seus ares libertários e por isso estavam comprometidos com os verdadeiros ideais da revolução.

[9] É significativo que na nova etapa mundial que atravessamos estejamos entrando num novo período de tendências e confrontos nos extremos, que sem dúvida acabará por balançar o pêndulo da evolução da extrema direita para a extrema esquerda – os  tempos serão vistos.

[10] Já assinalamos em outros textos que não é tão fácil estudar a Revolução Francesa porque ela foi, no nosso entendimento, uma revolução burguesa com impulsos anticapitalistas no clímax de sua realização (Guerin, Trotsky). Estes impulsos anticapitalistas regressaram em 1848 e 1871 com a Comuna.

[11] É bem conhecida a sua afirmação – absolutamente corroborada historicamente – de que o seu principal legado não foi a sua coparticipação com Lênin na direção da Revolução Russa (Lênin poderia ter feito isso sem ele; Trotsky não poderia ter feito isso sem Lênin), mas sim a sua luta antiburocrática da década de 1930.

[12] Sobre isso, veja nosso site “Trotsky, a História da Revolução Russa e a escola de Lênin”, izquierda web.

[13] É sabido, mas não menos sintomático, que autores como Isaac Deutscher rejeitaram a fundação da IV: a sua stalinofilia impediu-o de ver a importância estratégica desta tarefa com o argumento de que a IV não foi fundado num base de “massas”… Victor Serge, oposto a Deutscher, um trotskista-libertário que simpatiza conosco, também se opôs a ela com o mesmo argumento errado (o da falta de massas para a sua fundação), pior ainda, colocando acentos “derrotistas”…

[14] Já tínhamos começado a avançar esta ideia em Construir outro futuro, o texto da nossa fundação como corrente em 1999. Vista em retrospectiva, a nossa fundação como corrente ocorreu mais em torno de elementos internacionalistas do que de outras correntes que surgiram a partir da eclosão do morenismo; o internacionalismo é uma marca da nossa corrente Socialismo ou Barbárie. Daí também que na América Latina nenhuma corrente tenha um balanço coerente do stalinismo e que a corrente mandelista ou pós-mandelista careça de um balanço unificado, embora tenha sensibilidade sobre o assunto e muitas elaborações parciais em torno dele. O caso do SWP inglês é diferente: esta corrente continua apegada ao esquema a-histórico de que a URSS burocratizada era uma espécie de “capitalismo de Estado”. Um esquema que nos parece errado mas que, pelo menos, tem uma vantagem: deixou salvo o princípio marxista de autoemancipação da classe operária. E, no entanto, um sinal encorajador, o debate sobre o balanço do estalinismo, sobre o futuro de Cuba, etc., está claramente crescendo no seio do marxismo internacional

[15] O concreto é que hoje onde o trotskismo tem a maior oportunidade de “fazer história” é na Argentina. Isto apesar de, neste momento, sermos todos forças de vanguarda sem hegemonias estabelecidas dentro delas, e de que, em termos de concepção, poucas correntes sejam verdadeiramente socialistas revolucionárias: nenhuma delas tem um balanço de stalinismo; eles não compreendem nada sobre o que realmente significa o socialismo revolucionário, a nossa tradição histórica.

[16] Em epistemologia isso é chamado de metonímia. Um exemplo clássico de metonímia é a frase “bebo um copo d’água”: na verdade, não se bebe o copo, mas a água que está no copo… Pois bem, algo semelhante aconteceu com a abordagem do stalinismo: se tomou o que fazer da burocracia como se fosse a revolução socialista (um exemplo claro e também dramático: a coletivização forçada do campo russo).

[17] Dedicar-nos-emos a este e a outros temas num próximo trabalho em homenagem ao 100º aniversário da morte do grande revolucionário russo (“Lênin em 1915” será o título do referido ensaio).

[18] Na América Latina e na França predominam correntes mais ou menos objetivistas, definindo a ex-URSS como um Estado operário; nos países anglo-saxões (Estados Unidos e Grã-Bretanha), as correntes subjetivistas, que defendem a ideia de que se tratava de capitalismo de Estado.

[19] Em relação às dificuldades de se medir não só na prática com o stalinismo, mas também teoricamente, Broué destaca com clareza algo que, apesar de conhecido, ainda é extremamente importante e característico do doutrinarismo: “os revolucionários, como todos os outros seres humanos, são fortemente conservadores no seu pensamento” (2003: 124).

[20] Seu trabalho mais conhecido é intitulado “Na terra das mentiras desconcertantes”, de 1937, posteriormente ampliado no período pós-guerra. Citá-la-emos mais adiante neste texto, embora possamos adiantar algumas das suas observações (esclareçamos que a ala mais ultraesquerda da Oposição atuou nos isoladores): “O Estado burocrático ainda os mantém sob o seu controle, o seu terrível  aparato de coerção impede qualquer manifestação livre dos trabalhadores. Mas na vida quotidiana da URSS encontra-se a cada passo o ódio mal disfarçado que os operários e os kolkosianos nutrem contra a ordem burocrática triunfante. É perceptível em todos os lugares que o desejo por um regime diferente e melhor surge entre as massas. Estas duas correntes – a mentira oficial dos burocratas e o ódio secreto das massas – alimentam a vida soviética (…)” (Ciliga: 1950: 22).

[21] Dos fracassos do século XX nesta tarefa, importantes sociólogos marxistas como Andre Gorz tiraram a conclusão da heteronomia nas tarefas. Ou seja, uma suposta incapacidade da classe operária de exercer o poder e dominar o trabalho morto. A sua obra mais reconhecida intitula-se Adeus ao Proletariado (final da década de 1970), uma abordagem emblemática desta ideia de ceticismo histórico em relação à classe operária. Assim, Gorz propôs que a tarefa “possível” seria simplesmente construir uma “autonomia” – subordinada, evidentemente – dentro do sistema existente (uma espécie de antecipação das “ilhas de felicidade no mar da barbárie” do autonomismo atual: cooperativas, reivindicação do trabalho não assalariado paralelo ao assalariado e coisas reformistas e populistas assim.

[22] Acontece que o carácter socialista da transição refere-se precisamente à própria tarefa social, e uma tarefa com estas características não pode ser realizada a partir do semi-Estado proletário, mas requer uma “filigrana social” que envolve todos e todas. E, desse ponto de vista, é a superação da “mera política” (abordamos isto em profundidade no nosso volume I: O marxismo e a transição socialista, a publicar).

[23] Nisto Moreno estava certo sobre Mandel quando este deu uma ideia “escolar” da formação das massas versus ação política (O Partido e a Revolução). O problema é que, no entanto, em Moreno a política era vista de forma reducionista (“enfie em dois ou três slogans”…) ao mesmo tempo que subestimava completamente o papel da vanguarda no mecanismo da subjetividade da classe operária. Teve a famosa formulação de que a “estratégia” revolucionária se reduzia “à construção do partido e à mobilização das massas”… esquecendo completamente a luta essencial para conquistar a vanguarda como parte do “mecanismo de engrenagem” para conquistar a direção dos processos. A luta pela direção esteve presente no morenismo, mas de forma reducionista, puramente política, sem ideia de hegemonia ou elaboração teórico-cultural; por isso mesmo, o morenismo acabou desprezando o estudo teórico e essa foi uma das causas de sua barbárie intelectual e de seu colapso. Esta discussão pode ser vista – do ponto de vista de Moreno – em O Partido e a Revolução, que, no entanto, tem o grave defeito de ser reducionista na abordagem das tarefas que a vanguarda deve assumir de forma essencial (o texto homólogo de Mandel, ainda não conseguimos lê-lo).

[24] Como se sabe, naquela época Rakovsky insistia repetidamente que a questão dos métodos utilizados para governar os sindicatos e o Estado tinha predominância sobre todas as outras questões (as relações dialéticas entre forma e conteúdo das tarefas que apontamos repetidamente em nosso trabalho Marxismo e a transição socialista). Por outro lado, é interessante citar o argumento sectário de Preobrajensky em relação à juventude: “Preobrajensky viu um perigo na atitude dos ‘jovens’ que não sabiam o que era um partido [sic, R.S.]: ‘Devemos mudar rumo a uma reaproximação ao partido, caso contrário, transformar-nos-emos numa pequena seita de ‘verdadeiros leninistas’” (Broué: 2003: 150).

[25] A “elaboração” teórica de Stalin não vale um centavo porque foi toda ad hoc às suas necessidades pragmáticas do momento. A sua “racionalidade” era essa, não uma análise objetiva e científica de determinações reais.

[26] E para tudo o mais que constitui uma vida verdadeiramente humana: para estudar, escrever, fazer arte, ouvir música, para recreação, para amar e tudo que desenvolve o aspecto especificamente humano da humanidade (ugh, certo, esquecemos que a “esquerda althusseriana” proclama um “anti-humanismo” radical do marxismo… É claro que não leram uma única página sobre Marx).

[27] Trotsky cometeu o erro de assinar um compromisso com Stalin neste momento do debate (23 de dezembro) que Stalin imediatamente traiu. Trotsky lutou durante todo o ano 24 mas, simultaneamente, ficou fora de ação durante vários meses (uma doença indeterminada que parece ser simplesmente stress e depressão) para reaparecer com tudo na luta começando com a Oposição Conjunta de 1926 e continuar a sua luta anti-stalinista. lutou com louvável inflexibilidade até ser assassinado por Mercader em agosto de 1940 no México. Por outro lado, Novo Curso, assim como Problemas da Vida Cotidiana, são obras de grande “frescura” sociopolítica, expressão de uma revolução que ainda está viva. Esta frescura foi mantida na sua História da Revolução Russa, mas perdeu-se em grande parte nas suas obras posteriores (isto não foi um problema com Trotsky, que manteve toda a sua nitidez e profundidade, mas com a dura realidade).

[28] Os capturadores por razões económicas foram, precisamente, Preobrajensky, Radek e outros; a maioria dos quadros históricos da Oposição de Esquerda.

[29] Nisto, os 46 regressaram, paradoxalmente, a algumas das intuições “luxemburguesas” iniciais de Trotsky no seu texto unilateral contra Lênin: As Nossas Tarefas Políticas (1904). No debate em torno do que fazer? É evidente que Lênin estava certo contra Trotsky e Rosa. O trabalho doméstico? É um texto muito educativo, do qual gostamos muito, exceto pela formulação errônea de que a consciência socialista viria “de fora” da classe operária, embora Lênin, acreditando seguir Kautsky, afirmasse algo diferente: afirmava que ela vinha de fora da luta puramente econômica dos trabalhadores e dos patrões, não de fora da classe trabalhadora tout court (Bensaïd). Veja: “100 anos depois O que fazer?” Lênin no século XXI”, um texto escrito por nós há anos e que consideramos atual, embora a nossa reflexão sobre o partido continue a evoluir num sentido ainda mais partidário – ver parte IV do nosso trabalho, “Partido e estratégia”, em O Marxismo e a transição socialista, volume I.

[30] A título de digressão, destaquemos esta observação sobre o balanço da batalha heroica da oposição anti-stalinista na ex-URSS: “A outra lição é a tolerância que não parou de crescer [Broué coloca a palavra francesa croître , que não parece “crescer”, mas interpretamos assim de acordo com o contexto da citação, R.S.] entre as vítimas e que as abriu para debates políticos e vastos horizontes. Assim puderam, no gulag, prestar homenagem a todas as vítimas do desumano sistema stalinista” (2003: 348).

[31] O trabalho de Sebatiano Timpanaro – que defende um materialismo passivo – erra o alvo ao inclinar demasiado a vara para o lado “objetivo” das coisas: “Penso que a mesma incerteza que sempre houve no campo marxista sobre a forma de compreender o materialismo [sic] (…) encontrou terreno favorável numa falta de clareza que remonta à origem da doutrina marxista e que talvez não tenha sido completamente superada mesmo no marxismo maduro [sic] (…) Parece que desde que o ser humano começou a trabalhar e a produzir, só entrou em relação com a natureza (de acordo com uma famosa passagem de A Ideologia Alemã) através do trabalho. Isto recorre à concepção pragmática da relação homem-natureza que anula ilegitimamente o ‘lado passivo’ de tal relação” (Timpanaro; 2022; 33). Além de Timpanaro questionar toda a obra de Marx (ele tem o direito de fazê-lo porque, além disso, é um autor sério), se misturam duas coisas de ordens diferentes: a) para Marx, a única relação com a natureza não é o trabalho (que é uma espécie de reducionismo “trabalhista” de Marx do tipo que Hannah Arendt propõe e que criticamos em outros lugares), e b) o “lado passivo” das determinações naturais que nos tornam o que somos (biológicas, fisiológico, etc.) não anulam o outro lado que atua no contexto dessas determinações: o elemento ativo – ativista, Korsch – que nos permite transformar as nossas condições para um ponto certo, mas muito importante e móvel. É difícil conceber as tarefas revolucionárias – muito menos as da oposição anti-stalinista nos isoladores e nos campos de trabalhos forçados – sem ter em conta, simultaneamente, ambos os elementos: o passivo!

[32] É por isso que as correntes que condenam os outros simplesmente por serem mais “minoritárias” provocam risos; a experiência histórica mostrou que isso não significa nada. Moreno é contundente em seu panfleto sobre “A Revolução Chinesa e Indochina” quando critica o pragmatismo – resultados pragmáticos – como critério de verdade. Colletti afirma a mesma coisa quando salienta que a Realpolitik, no final das contas, é a coisa mais irreal que existe (logicamente em relação aos objetivos revolucionários).

[33] Esta batalha conjunta não se concretizou devido a uma série de dificuldades táticas de Trotsky enquanto Lênin estava doente. Depois Lênin morre e Trotsky fica “sozinho” com os quadros mais valiosos do partido, vindos, paradoxalmente, das tendências esquerdistas não-bolcheviques de antes de 1917. Isto mostra que não existe um caminho “linear” para a revolução, mas sim vários caminhos alternativos, e que o pessoal que cercou Lênin durante a sua carreira por volta de 1917 era mais conservador do que a tendência que historicamente expressou ou foi organizada em torno de Trotsky…

[34] Isto é o que não entendem as seitas que por autoproclamação divina se consideram “O partido”…

[35] Antes de morrer, Lênin propôs que Trotsky fosse nomeado vice-comissário do povo, como contrapeso a Stalin. O próprio Stalin aceitou isso, mas Trotsky viu isso como uma manobra deste último para fazer parecer que Trotsky estava entrando em uma luta pelo “mero poder”, e rejeitou a designação com a desculpa de que ele era de origem judaica e que os judeus não eram queridos pela população pelo seu atraso… Nesse período ocorreu todo um conjunto de micro circunstâncias estratégicas, que não podemos detalhar aqui porque é obra de historiadores e nós não somos.

[36] Pensemos que nas lutas tendenciais dentro das correntes revolucionárias, e também na luta entre correntes revolucionárias, surge alguma “psicose”, isto é, um certo clima de “subjetividade” e agonia que deve ser objetivado. Imaginemos então como foi a luta sob o stalinismo e no clima dos Grandes Expurgos, um multiplicador ao enésimo grau daquela psicose persecutória ou daquele clima subjetivo agonizante.

[37] Não há melhor “mecanismo político de seleção natural” do que arriscar a vida pela revolução. Nenhum carreirista faria isto, mas o partido que recruta massivamente quando está no poder – no calor do poder e dos seus privilégios – está cheio de carreiristas.

[38] Assim, milhares ou dezenas de milhares de mencheviques e socialistas revolucionários entraram no partido. Em si, seria sectário – talvez, deva ser visto em cada caso específico – não permitir que a base destes partidos entre no partido revolucionário depois da revolução. Mas os dirigentes que estavam contra a revolução vindos da “esquerda” são outra história, como os dirigentes que formaram o governo provisório burguês que lutou e manobrou contra a revolução e abriu caminho a Kornilov.

[39] Heijenoort, em sua bela e austera biografia sobre seu trabalho como secretário de Trotsky no exílio, fala sobre os critérios ultra exigentes – e auto exigentes – do grande revolucionário russo para o trabalho, e narra que, às vezes, ele incorreu em injustiças por esse motivo (a idade, e para piorar a situação sob enorme pressão, às vezes prega peças nesse sentido porque os nervos estão um pouco mais danificados do que o normal).

[40] O que não exclui, mas antes contém, os interesses de outras camadas sociais, como as nacionalidades e o campesinato pobre, questões que o stalinismo esmagou por “razões de Estado”.

[41] Em todo caso, o peso positivo da coisa é que ele era um personagem independente e é em grande parte por isso que não capitulou à razão de Estado stalinista, além da sorte que teve de Stalin o ter exilado fora da Rússia. 

[42] Broué cita a este respeito: “A direita [da Oposição] é Preobrajensky. Ele não vê uma submissão [ao aparato], mas sim uma conciliação devido à ‘virada à esquerda’ [de Stalin] (…) Preobrajensky está em processo de capitulação em nome de suas leis econômicas” (lembre-se que Preobrajensky tinha escrito uma importante obra intitulada A nova economia, valiosa mas que já apresentava limitações metodológicas economicistas e objetivistas (ver nosso texto “Dialética da transição. Plano, mercado e democracia operária”, em izquierdaweb).

[43] O antídoto revolucionário é manter sempre uma abordagem crítica e não dogmática, além de uma independência de critérios que não seja caprichosa, claro.

[44] Broué e outros historiadores marxistas revolucionários salientam o paradoxo – ainda outro – de que o pensamento crítico, marxista e criativo substitui na URSS da década de 1930 apenas nos isoladores e nos campos de trabalhos forçados. Durante um período, nas prisões stalinistas, os presos políticos gozaram de alguns “privilégios”, como serem separados dos presos comuns, autorização para publicar boletins e coisas assim: “Os recém-chegados ao centro de detenção ficaram surpresos com o grau de liberdade” com que os internos se comportavam. O trotskista A.I. Boyarchikov, que chegou a Verjneuraslk em 1932, recordou: ‘Naquela época as pessoas eram presas por uma palavra dita inadvertidamente, mas no isolador, atrás dos muros de pedra, havia liberdade de expressão, de facções, de grupos, de partidos e da imprensa (manuscrita) (…) Nos feriados saíamos com bandeiras vermelhas (feitas de trapos brancos tingidos com manganês) e cantávamos canções da revolução, após o que todos se reuniam em círculo e iniciavam o comício, no qual falaram os líderes dos grupos rivais» (…) A. Ciliga relata impressões semelhantes: «Vi muitas maravilhas na URSS, mas nunca tinha visto nada parecido. Onde eu vim? Para uma ilha de liberdade num oceano de escravidão, ou para uma ilha de loucos? O contraste entre o terror e a opressão de todo o país e a liberdade moral que existia aqui, atrás das grades desta prisão, era tão grande que parecia que se tinha chegado a uma ilha de loucos. Na verdade, na sexta parte do globo que a União Soviética tão orgulhosamente ocupou, tinha apenas dois ou três cantos e, para piorar a situação, por uma ironia do destino, esses cantos eram prisões, onde as pessoas mantinham o direito de dizer em voz alta o que pensava, e dizê-lo não individualmente, mas coletivamente”‘ (Aleksei Gusev, “Trotskistas na URSS. Prólogo aos Cadernos de Verjneuralsk”, Ideas de Izquierda).

[45] Trotsky tem um artigo muito educativo intitulado Como Stalin derrotou a oposição? (1935) onde eleva o peso das condições objetivas em sua derrota e se defende da ideia de que sua luta teria sido pelo próprio poder. Ele ressalta, de forma contundente, que a tarefa de um escritor é muito mais gratificante do que a de poder.

[46] Este autor, decista e defensor da definição de “capitalismo de Estado” para a URSS, tem bons artigos sobre a posição equivocada de Trotsky em tempo real em relação à coletivização agrária, mas erra pelo lado do sectarismo em relação à sua trajetória anti-stalinista. Ele coloca Trotsky fora das circunstâncias de tempo e lugar e posiciona-se a favor dos decistas, uma posição legítima, mas que nos parece errada: no seu sectarismo convicto, eles consideravam a revolução derrotada antes do tempo. Trotsky tem um texto bastante educativo em relação a eles intitulado “Nossas divergências com o grupo decista”, 11/11/28.

[47] A pesquisa histórica demonstrou que não ocorreu nenhum aumento com esta compulsão ao trabalho: a produtividade média não aumentou, mas ocorreu o contrário, pois na rejeição desse servilismo de alguns aos diretores de fábrica e devido aos privilégios concedidos a esses fura-greves pela burocracia, os trabalhadores trabalharam com mais relutância do que o habitual.

[48] ​​​​Aparentemente, o estudioso marxista americano Kevin Murphy considera Rakovsky um “cachorro morto” cujo estudo “leva trinta anos de atraso” (apesar do fato de o stalinismo ter lhe sequestrado uma enorme obra escrita que ainda poderia ser encontrada)… Pois o resto facilmente o acusa, desde sua posição de acadêmico privilegiado nos Estados Unidos, de ser um “capitulador”. Não está claro se Rakovsky realmente capitulou ou não; Broué afirma em Rakovsky ou la Révolution dans tout les pays que não, e o que citamos é uma obra sobre Rakovsky de alguns anos – possivelmente a última antes da sua morte. Em qualquer caso, seria interessante ver o que Murphy teria feito se estivesse no lugar de Rakovsky em 1934… antes de se autoproclamar tão “de princípios”.

[49] Deve ser lembrado que, após a derrota da Oposição de Esquerda, houve outra oposição à derrota, que foi a direita composta por Bukharin, Rikov e Tomsky. Contudo, a sua derrota foi muito mais simples porque se tratou de uma mera luta no aparelho, sem qualquer tentativa de organização descendente. O historiador de Bukharin, Stephen Cohen, aponta, contra todas as evidências, que a luta contra a direita era mais importante do que contra a esquerda, mas não foi esse o caso. De qualquer forma, o trabalho do próprio Cohen e as elaborações teóricas de Bukharin, embora erráticas, merecem atenção. Bukharin, para além do seu direitismo, foi um pensador importante que não pode simplesmente ser descartado (algumas das suas críticas ao stalinismo na década de 1930 teriam pontos de convergência com as de Trotsky).

[50] Infelizmente não temos tempo aqui para desenvolver este aspecto da história, mas Broué, no seu último trabalho Rakovsky ou um Revolucionário de Todos os Países, insiste que a sua “capitulação” foi um movimento táctico numa altura em que o espaço parecia se abrir no partido durante 1934, espaço que fechou com o assassinato de Kirov em dezembro de 1934.

[51] Não é necessário estar no isolamento da ex-URSS para perceber o que significa a falta de interlocutores teóricos e políticos honestos, que, como Lênin apontou, são sempre escassos (a nossa própria elaboração foi realizada em grande parte no isolamento em termos geográficos-políticos). 

[52] Humildemente, este é o “operativo” que tentamos fazer no Marxismo e a Transição Socialista, colocando a elaboração da geração do marxismo revolucionário sobre a URSS e outros problemas sob o contraste das elaborações mais clássicas de Marx e Engels .

[53] Acrescentemos que em Marxismo e a Transição Socialista apontamos que a cultura marxista de Rakovsky era maior que a de Trotsky; teve os clássicos mais presentes que o grande revolucionário russo. E apontamos também a importância da militância sair da briga cotidiana com as outras correntes – uma disputa reduzida nestes tempos de baixo nível marxista onde tudo é injúria mesmo entre os dirigentes – e ascender ao grande e universal problemas levantados pelo marxismo.

[54] Rakovsky, um dos grandes estudisosos da Revolução Francesa entre os bolcheviques, gostava de citar as palavras de François Babeuf ao sai da prisão de Abbaye em 18 de outubro de 1794: “É mais difícil reeducar o povo no amor à liberdade do que conquistá-la”.