Por Danilo Moreira
Em abril passado, o Senado votou a PEC 45/2023, essa é uma Proposta de Emenda à Constituição que criminaliza a posse e o porte de drogas em qualquer quantidade. A PEC é uma reação da direita e da extrema-direita parlamentar ao STF que está em meio à votação de uma proposta ultralimitada de descriminalização do porte e consumo da maconha, porém que acirra o embate entre os poderes. O PT, partido do atual mandatário, se absteve de comentar a PEC e liberou os seus senadores a votarem como quisessem. Por essa razão – nenhum avanço real dos direitos é possível sem luta direta e aliança entre os explorados e oprimidos -, de forma unitária e independente dos patrões e governos, precisamos colocar de pé uma campanha nacional pela legalização da maconha para combater a discriminação, a violência e o encarceramento da juventude trabalhadora, negra e periférica.
UMA CRIMINALIZAÇÃO QUE VEM DE LONGE
A política de guerra às drogas não começou ontem, ao contrário, remonta ao século XIX quando em 1830 a Câmara Municipal do Rio de Janeiro criou uma legislação proibindo o “pito de pango”, o que tornou o Brasil o primeiro país do mundo a proibir a comercialização da maconha. Essa lei, refletindo a extrema desigualdade de uma sociedade escravagista, cria uma punição também desigual: para os vendedores, brancos donos dos boticários, a pena era uma multa, já para os consumidores, em sua maioria negros escravizados, a cadeia.
O Rio de Janeiro era a maior metrópole escravagista do mundo e havia crescente descontentamento com o regime e uma série de levantes pelo país, o que demandava um controle social cada vez mais autoritário, punitivista e encarcerador. Importante considerar que a perseguição ao uso da maconha pelo império escravocrata tem uma razão político-cultural. Trazida da África pelos escravizados desde o século XV para o Brasil, o uso da maconha era parte de rituais que traziam conforto, força e perspectiva de luta coletiva aos escravizados.[1]
Muito mais recentemente, mas dentro da mesma lógica de controle social proibicionista, a Lei de Drogas 11.343/2006, sancionada no final do governo Lula 1, que tinha como discurso justificador distinguir usuários e traficantes, despenalizar o consumo e endurecer a punição ao mercado ilegal, tem efeito totalmente distinto do anunciado.
No artigo 28, é estabelecido que fica ao encargo dos agentes públicos, juízes e policiais distinguir usuário de traficante; decisão que é baseada em quantidade não determinada na lei da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação policial, bem como circunstâncias sociais, pessoais, conduta e antecedentes do indivíduo.
Assim, o não estabelecimento da quantidade apreendida da substância para se caracterizar tráfico na lei foi um agravante, pois fica sob a análise/tutela da polícia/judiciário a classificação de quem é traficante e quem é usuário. Essa condição legal em um país onde o racismo/elitismo estrutural predomina, abriu ampla margem para que aconteçam arbitrariedades contra a população negra e periférica; pois, uma vez que a prova é apenas o testemunho dos agentes policiais, como acontece em 74% dos casos, o resultado não poderia ser diferente do que o aumento do encarceramento. Importante notar que no Brasil, 78,4% de condenações são feitas por “tráfico”. Já no estado de São Paulo, a porcentagem é de 85,52%, segundo a pesquisa “Prisão Provisória e Lei de Drogas” do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência).
A política de drogas do Lula 1, associada a todo o racismo e elitismo institucional presente na polícia e no sistema judiciário, fez com que as penas fossem mais pesadas, o que contribuiu de forma qualitativa para a superlotação dos presídios. vejamos: “o Brasil só fica atrás dos Estados Unidos (1,7 milhão de presos) e da China (1,69 milhão), supera países como Índia (554 mil presos) e Rússia (433 mil), de acordo com o banco de dados The World Prison Brief, da Birkbeck, Universidade de Londres. Só para se ter uma ideia, a população carcerária da Alemanha, que tem pouco mais de 56 mil presos, corresponde a menos de um terço do déficit de vagas do sistema carcerário brasileiro, que chega a 171 mil.”[2]
Essa lei do governo burguês de conciliação de classes Lula 1 contribui para o encarceramento em massa, o que diante das condições de violação sistemática dos direitos humanos – torturas de toda espécie, baixa qualidade dos alimentos, falta de saneamento básico, adoecimento em massa e falta de condições educacionais e de lazer – faz com que os detentos sejam recrutados para o crime organizado. Além da “mão de obra” para o crime organizado, as privatizações dos presídios possibilitam que o capital encontre mais uma forma de exploração e valorização, retirando fundos importantes do orçamento público.
DECLARAR GUERRA À GUERRA ÀS DROGAS
Apesar da importância do movimento pela legalização das drogas, ele ainda não tem conseguido mobilizar números expressivos de pessoas nas ruas para que possa fazer avançar essa pauta. Diante do avanço da extrema direita nos temas chamados de “costume”, muitas organizações políticas que se dizem de esquerda depositam esperanças no STF para que se tenha algum avanço na luta contra a criminalização, o que é um crime político.
A legalização tem sido discutida no STF desde 2015 (lá se vão 9 anos) e no momento encontra-se suspensa após um novo pedido de vista no dia 6 de março feito pelo ministro Dias Toffoli.[3] A votação está em 5 x 3 para os favoráveis que se estabeleça uma quantidade mínima (ainda não foi estabelecido a quantidade que cada pessoa pode portar ou plantar).
Entre os votos contrários há a alegação de que essa possibilidade de porte seja prejudicial aos usuários. Esse argumento é facilmente refutado, pois já há inúmeros artigos científicos falando sobre os benefícios da planta que, aliás, já é utilizada no tratamento de uma série de doenças. Além disso, em consonância com pesquisas científicas e práticas sociais ancestrais, vários países no mundo tiraram a maconha da lista de drogas perigosas. Esse novo pedido de vista demonstra como os poderes tratam essa questão que aflige grande parcela da população, pois está a serviço de permitir que a direita e a extrema direita, com a conivência do governo, possam avançar no projeto que está tramitando no Congresso para criminalizar qualquer quantidade de porte de maconha e outras drogas proibidas.
É justamente o que está acontecendo com a PEC 45/2023, que insere no art. 5º da Constituição a criminalização da posse de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Esse Projeto de Emenda à Constituição é de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, foi aprovado e encaminhado à votação na Câmara dos Deputados. Uma Câmara que tem como presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) Caroline de Toni e como relator do projeto o Deputado Ricardo Salles, que argumentou a favor do projeto dizendo “se quem vende é bandido, quem compra também”, ambos do PL e ferrenhos bolsonaristas defensores do conservadorismo na pauta de costumes. Ou seja, está sendo impulsionado pelo “Centrão”, setor considerado “democrático” pelo governo e por seus apoiadores políticos, e pela extrema direita.[4] Essa PEC é uma emenda ultrarreacionária porque significa um retrocesso histórico ao criminalizar o consumo de drogas e fortalecer o punitivismo praticado pelo estado, polícia e justiça. O que vai aumentar de forma qualitativa o número de encarcerados e servir como uma justificação a mais para que a polícia e a justiça racistas aumentem a sua violência contra a juventude trabalhadora, principalmente a negra e periférica.[5]
Além disso, a proibição é usada como justificativa para operações policiais extremamente violentas que, por muitas vezes, terminam em chacinas e relatos de moradores sobre as ações truculentas, deixando um rastro de tragédia que faz sangrar e aterroriza comunidades periféricas por todo o país. Em nome da “guerra às drogas” são realizadas verdadeiras operações de extermínio – como a que ocorreu na Baixada Santista que deixou um saldo de 28 mortos em 40 dias de “confronto” – pelo Estado através da Polícia Militar. Prática que se tem agravado com a ascensão da extrema direita no país e em governos estaduais.[6] Atenção que a intensificação da violência não ocorre apenas em governos de extrema direita, o caso da Bahia (estado governado pelo PT há 17 anos) é exemplar de como a violência estatal contra os “pobres” é uma grave endemia em todo o Brasil.
ANTIPROIBICIONISMO NÃO COMBINA COM PRIVATISMO
Esse cenário só reafirma que transformações profundas e favoráveis aos explorados e oprimidos em qualquer campo só podem vir a partir da luta direta e da auto-organização. Em relação ao tema especificamente, a conclusão óbvia é a de que é necessário lutar nas ruas pela legalização da venda e do consumo da maconha – e de todas as drogas – para fins recreativos, religiosos e medicinais como única forma de resolver de fato uma série de problemas postos pelo proibicionismo.
É hora de nacionalizar um movimento de massas pela legalização da maconha, pois da mesma maneira de que em outros temas, como o da luta contra as chacinas promovidas pela polícia militar de vários estados e as privatizações, a luta pela legalização da maconha tem que se politizar, ou seja, estabelecer pontes, ser incluída na pauta e realizar ações com outros movimentos. O movimento pela legalização da maconha, além de lutar contra a proibição, precisa estabelecer uma pauta que dialogue com as demandas de outros explorados e oprimidos para que se possa construir aliança com outros setores.
Certamente que isso não passa por saídas liberais-privatistas. Nós, do Socialismo ou Barbárie (SoB) e da juventude Já Basta!, pensamos que apenas uma saída anticapitalista e socialista para a questão pode interessar a nossa classe e nossa juventude. Nesse sentido, não basta lutar apenas pela descriminalização para que grandes empresas façam disso mais um grande negócio lucrativo com trabalho precarizado e sem nenhum controle social sobre o processo.
Regulamentar a maconha do ponto de vista capitalista sem que a sua produção e distribuição tenha impacto sobre a melhoria das condições de vida da maioria não nos interessa. Defendemos que para combater a violência policial e do tráfico ilegal, o encarceramento da juventude periférica e a desigualdade crescente, é necessário que a legalização seja feita em outro patamar. Da mesma forma que qualquer outro produto agrícola, a legalização da maconha deve estar acompanhada de uma reforma agrária radical, sem indenização e sob controle dos trabalhadores. Além disso, requer a expropriação das grandes empresas industriais de tabaco e a reorganização da produção em cooperativas socialistas e para que o usuário – se assim desejar – possa ter condições de produzir a sua própria substância.
Por isso, todas as organizações democráticas, políticas, sindicais, estudantis e sociais devem assumir essa pauta. Para combater a PEC 45, impulsionar a campanha pela legalização da maconha sob controle dos produtores, lutar contra o encarceramento da juventude negra e contra as chacinas das polícias militares em SP e em todo o país, chamamos todos ativistas e simpatizantes da legalização da maconha, o movimento estudantil, DCEs, sindicatos, CSP-Conlutas e outras organizações, para se somarem à Marcha da Maconha que acontecerá no dia 16 de junho às 14:20 em frente ao Masp.
NOTAS
[1] CANELLAS, Marcelo. Triste Bahia. Revista Piauí, maio de 2024. Leia em https://revistapiaui.pressreader.com/revista-piaui/20240501
[2] Raio X carcerário: superlotação, prisão ilegal e morosidade em https://www.dw.com/pt-br/raio-x-carcer%C3%A1rio-superlota%C3%A7%C3%A3o-pris%C3%A3o-ilegal-e-morosidade/a-66422478#:~:text=No%20ra.
[3] Os pedidos de vista podem ter duração de até 90 dias para que o julgamento seja remarcado.
[4] “A proposta de emenda à Constituição prevê a criminalização do porte e posse de substância ilícita entorpecente (que são aquelas ditas pela administração pública como tais) e faz a ressalva da impossibilidade da privação da liberdade do porte para uso; ou seja, o usuário não será, jamais, penalizado com o encarceramento, não há essa hipótese. O usuário não pode ser criminalizado por ser dependente químico; a criminalização está no porte de uma substância, tida como ilícita, que é absolutamente nociva por sua própria existência — afirmou Pacheco.” Fonte: Agência Senado.
[5] Estes, têm que lidar com os estigmas sociais, são marginalizados e presos pela criminalização da produção, comércio e uso de uma substância comprovadamente menos nociva do que uma série de outras que são legalizadas. Vivemos um sistema racista e classista, pois evidenciamos vários episódios em que pessoas com alto poder aquisitivo, que fazem ou não parte das instituições públicas associadas ao tráfico de drogas, como nos 39 quilos de cocaína encontrados no avião de um oficial da comitiva do governo Bolsonaro, na qual o sargento da aeronáutica Manuel Silva Rodrigues foi autuado pelo transporte da droga ou na ocasião em que houve a apreensão de cerca de 450 quilos de cocaína em um helicóptero que pertencia a família do ex-senador de Minas Gerais, Zezé Perrella, localizado em uma fazenda em 2013.
[6] Iniciada em 27 de julho de 2023, em que os moradores conviveram com quarenta dias de medo, com um saldo de 28 mortos em “confronto” com suspeitos e 958 pessoas presas, com a justificativa do assassinato de um militar da Rota o policial Patrick Bastos Reis, a mesma utilizada em outras ações.
REFERÊNCIAS
BORGES, Rebeca. PEC das Drogas: tema volta ao debate no Congresso com análise na CCJ. CNN. Brasília jun/24. Leia em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pec-das-drogas-tema-volta-ao-debate-no-congresso-com-analise-na-ccj/
BRASIL, Agência. STF Suspende julgamento sobre descriminalização do porte de drogas. 2024. Leia em https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2024-03/stf-suspende-julgamento-sobre-descriminalizacao-do-porte-de-drogas
CANELLAS, Marcelo. Triste Bahia. Revista Piauí, maio de 2024. Leia em https://revistapiaui.pressreader.com/revista-piaui/20240501
CARTA CAPITAL, Quanto mais presos, maior o lucro. 2014. Leia em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-mais-presos-maior-o-lucro-3403/
CORRÊA, Fabio. Raio X carcerário: superlotação, prisão ilegal e morosidade. Leia em https://www.dw.com/pt-br/raio-x-carcer%C3%A1rio-superlota%C3%A7%C3%A3o-pris%C3%A3o-ilegal-e-morosidade/a-66422478#:~:text=No%20ra.
NASCIMENTO, Stephany. Sistema carcerário brasileiro: a realidade das prisões no Brasil. Leia em https://www.politize.com.br/sistema-carcerario-brasileiro/
JESUS, M. G. M. et al. Prisão Provisória e Lei de Drogas – Um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2011.
Proposta de Emenda à Constituição n° 45, de 2023 em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160011#:~:text=Proposta%20de%20Emenda%20%C3%A0%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20n%C2%B0%2045%2C%20de%202023&text=Ementa%3A,com%20determina%C3%A7%C3%A3o%20legal%20ou%20regulamentar.
RODAS, Sergio. 74% das prisões por tráfico têm apenas policiais com testemunhas no caso. 2017. Leia em https://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas/