Passo a passo, o PSOL se aprofundou até soterrar-se no oportunismo e na política de frente ampla lulopetista. Ao compor o governo de transição Lula-Alckmin, assume abertamente sua nova configuração enquanto partido da ordem, que opera dentro da lógica burocrática de conciliação de classes. O novo papel que protagonizará diante do cenário institucional e social será o de justificar um projeto de governo liberal, com mínimas medidas de compensação sociais-liberais, enquanto apazigua os ânimos da militância enganada e traída. Este último e derradeiro ato protagonizado pelo partido terá repercussão e crise? Somente o tempo dirá, muito embora haja uma forte possibilidade de crise na base honesta e militante do PSOL, que será colocada à prova diante da experiência com o próximo governo.
DEBORAH LORENZO
A história é a história da luta de classes
A vitória de Lula é um importante marco da luta de classes no Brasil e uma vitória da classe trabalhadora. Contudo, a esquerda da ordem e os apoiadores da campanha do petista, incluindo o PSOL, farão de tudo para transformá-la em pura aritmética parlamentar. Ou seja, em lugar de atribuir a vitória à imensa resiliência dos trabalhadores, que enfrentaram inúmeras pressões e obstáculos para exercerem seu direito democrático ao voto, transferiram todo louro da vitória às alianças eleitorais, de maneira a justificarem seu oportunismo traidor em compor uma frente e governo com a burguesia.
As pressões sobre a classe trabalhadora foram muitas, de todos os lados. Coação por parte dos empregadores, violência física e psicológica, operações ilegais da Polícia Rodoviária Federal (PRF), sem comentar o próprio papel desmobilizador da burocracia que dirige o movimento de massas. Ainda assim, o dia 30 foi uma verdadeira prova da força e da reserva de luta latente em nossa classe. Uma demonstração de que a luta de classes e as forças que operam sob sua dinâmica transcendem a lógica impressionista que os setores apoiadores de Lula e o PSOL querem utilizar como pretexto para suas articulações.
Diante disso, ficam evidentes as motivações da direção do PSOL e que suas movimentações desde a federação com o REDE Sustentabilidade, o apoio e ingresso orgânico na chapa Lula-Alckmin, coordenados pelo presidente do partido, Juliano Medeiros, já vislumbravam um horizonte de oportunidades para uma escalada de cargos e promoção de figuras em troca de favores políticos, com a mentira de que apenas entrando na frente eleitoral de conciliação de classes se poderia combater Bolsonaro, o que, como dissemos reiteradas vezes, se demonstrou o contrário. A derrota de Bolsonaro passava por um programa e táticas políticas que dialogassem diretamente com os trabalhadores e oprimidos, suas necessidades e formas de organização.
Os preparativos para a liquidação
Em reunião virtual em 18 de abril deste ano, o Diretório Nacional do PSOL confirmou a federação partidária com o REDE Sustentabilidade. Na sequência, em Conferência Eleitoral no dia 30 de abril, mais uma vez em decisão de cúpula fechada à participação e voz da militância, o partido decidiu por apoiar a chapa Lula-Alckmin renunciando a uma candidatura própria. Na ocasião, foi deliberado que se votasse a composição ou não do governo apenas após os resultados eleitorais, uma óbvia jogada para apaziguar os ânimos da militância de base.
Neste último sábado (5), a Executiva Nacional do partido voltou a se reunir em cumprimento à deliberação do diretório em abril. Sem nenhuma surpresa, votaram favoravelmente à composição do governo de transição, por 10 votos favoráveis e 9 contrários. Resistência apresentou resolução contrária e Primavera Socialista (corrente do atual presidente do partido) apresentou resolução favorável. Votaram por compor: Revolução Solidária, Primavera Socialista, Insurgência e Subverta. Votaram contra compor: Fortalecer, MES, Resistência, APS e Comuna.
Essas são as provas cabais do que planejava Juliano Medeiros e companhia desde o início e foi nesse sentido que orientaram suas organizações, ignorando a total dissolução política e apostando na inocência acrítica da militância de base, em sua maioria bem-intencionada. Vale lembrar que mesmo as organizações que votaram contra a composição do governo, a exemplo do MES e da Resistência, foram importantes protagonistas no processo de liquidação do partido, seja por abstenção – Resistência, que atualmente integra uma parcela importante do quórum da executiva nacional, absteve-se na votação referente à federação com o REDE, o que poderia reverter a decisão final caso se posicionasse contrariamente -, seja por apoio – MES votou a favor da federação com o RED, já a Resistência, foi favorável ao apoio à chapa Lula-Alckmin. Um jogo de cartas marcadas, pois esses senhores fazem as contas e sabem que mesmo com o voto contrário, as resoluções que liquidam o PSOL serão aprovadas, de maneira que eles continuaram no barco da conciliação de classes.
Parecem ter esquecido de toda a história do século XX, uma vez que nenhuma corrente sequer saiu ilesa da experiência de conciliação de classes, todas se destruíram politicamente. No caso brasileiro, basta ver o fim trágico que teve a Democracia Socialista do PT, uma corrente de origem trotskista, como o MES e a Resistência, que tinha grande expressão, mas que ao se adaptar à conciliação lulista colapsou política e organizativamente.
O que não estava nos cálculos desta cúpula é que a classe trabalhadora – principalmente o setor mais explorado e oprimido – não é burra, já fez suas experiências em anos anteriores com os governos de conciliação de classes de Lula e Dilma e, mais recentemente, com o genocida, racista, misógino e ultrarreacionário Bolsonaro. Destas experiências, tiraram suas conclusões entendendo que Bolsonaro tinha que ser expurgado da Presidência para que um novo ciclo fosse aberto, o que, evidentemente, não significa um cheque em branco ao lulismo.
Abre-se agora um novo período no qual a militância psolista será confrontada pelas inúmeras contradições que estão colocadas por ser parte de um governo burguês de conciliação de classes. Com esse processo, tendemos a uma nova crise e necessidade de reorganização política da vanguarda e da classe trabalhadora. Os ritmos e a profundidade disso ainda estamos por verificar.
O novo papel do PSOL
A transição do governo mal começou e as justificativas para a conciliação e medidas contra a classe já estão aparecendo. Após a primeira reunião entre a equipe de Lula, da qual Geraldo Alckmin (PSB) é o principal coordenador, e o relator do orçamento, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), foram divulgados os números do orçamento para 2023. Em coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira (3), Castro comunicou que diante do enorme rombo orçamentário, herança deixada por Bolsonaro, será necessária uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em caráter de urgência para atender às demandas mais sensíveis do próximo ano.
A chamada “PEC de Transição” terá por objetivo criar exceções para furar o teto de gastos, como o Bolsa Família de R$600, o programa Farmácia Popular, o ajuste do salário-mínimo e outros programas voltados à saúde indígena e à merenda escolar, por exemplo. “Não tem recurso pro Bolsa Família, pra Farmácia Popular, pra saúde indígena, para merenda escolar, são muitas as deficiências do Orçamento. Mas temos que trabalhar dentro da realidade. O Orçamento que estamos trabalhando foi apresentado legitimamente pelo atual governo e legitimamente o governo eleito está fazendo gestões para emendá-lo para que possa se adequar. Chegamos a um acordo, entendimento, que não cabe no Orçamento atual as demandas que precisamos atender”, afirmou Castro.
Fica evidente, pela fala do senador, o caráter conciliatório que já toma o próximo governo de concertação nacional, que não se compromete com a revogação de contrarreformas, muito menos com a implementação e restituição de direitos perdidos. A tônica do próximo governo está dada e não será de reformas sociais robustas, mas sim de míseras migalhas para frear a revolta popular em nome da manutenção dos interesses da burguesia nacional. Além disso, já é parte das negociações para que seja votado no novo furo do teto a primeira contrarreforma do novo governo: a reforma administrativa para tirar direitos dos servidores públicos federais.
Prevendo as dificuldades do governo de conciliação no próximo ano, a equipe de Lula e apoiadores, dentre os quais o PSOL, já começaram seus esforços para elaborar as melhores justificativas. Todo o discurso gira em torno da irresponsabilidade de Bolsonaro frente aos gastos públicos – gastos estes, que de fato serviram para operacionalizar sua sobrevida política junto aos setores políticos majoritários. Contudo, omitem os limites da política de frente ampla, que não vai tomar nenhuma medida contra os interesses do grande capital, taxação das grandes fortunas, taxação do capital financeiro, nacionalização de setores-chave da economia, reformas estruturais etc., verdadeira raiz dos problemas do futuro governo.
O que quer esconder, a direção do PSOL, uma vez que evidenciar tais limites e contradições seria o equivalente a assumir o caráter oportunista da aliança política com a chapa Lula-Alckmin firmada neste ano – falsamente com a justificativa de que era uma tática para derrotar Bolsonaro -, é que a frente ampla, em essência, só serve para perpetuar a ordem burguesa, seja concedendo mínimos direitos à classe, seja reprimindo a revolta popular, como já presenciamos em outras ocasiões.
Agora, ao compor a equipe de transição do governo, mentindo para a base de que a intenção é apenas garantir a posse de Lula, o PSOL sinaliza que irá compor também o próximo governo. Se assim o for, e é muito mais provável que o seja, assumirá a tarefa de cúmplice não apenas em criar falsas justificativas para o projeto liberal de governo, mas de respaldar um governo que garantirá a exploração capitalista, realizará contrarreformas e implantará qualquer repressão à classe trabalhadora diante destas mesmas justificativas.
Por maior que seja o esforço de Juliano Medeiros em distorcer a realidade, as evidências de deterioração do projeto político do PSOL estão agora mais explícitas do que nunca. Ao declarar sua participação na equipe de transição do governo Lula, Juliano disse que está “será uma oportunidade de fortalecer uma agenda de esquerda para 2023 e compreender o tamanho dos desafios que temos diante de nós”. Como toda a capitulação histórica, essa é feita em nome de “grandes perigos”, como a luta contra Bolsonaro, e/ou “grandes intenções”, como “espaço à esquerda”.
Contudo, sabemos bem que a natureza dessa movimentação política é a da passagem de malas e bagagens para a conciliação de classes, para o frenteamplismo, e que o PSOL cumprirá o papel de quinta coluna do governo burguês de conciliação de classes, não apenas para 2023, mas para todo o próximo período. Isso porque tanto estar na aliança Lula-Alckmin, quanto participar da transição ou compor o próximo governo, ao contrário do que diz a direção do PSOL, como vimos nas eleições recentes, não contribui com a luta para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo, mas dilui totalmente a estratégia, o programa e as táticas de luta socialistas contra o neofascismo nas ruas.
Nossa tarefa é reorganizar a esquerda
É fato que a derrota eleitoral de Bolsonaro é uma vitória e um marco importante para a luta de classes no Brasil. É fato, também, que ela representou uma enorme reserva de luta da nossa classe, reserva, essa, subaproveitada até então pela ausência de uma direção de massa independente. Este é um dado concreto sob o qual os setores da esquerda socialista devem debruçar-se no próximo período, a enorme lacuna política e histórica que só se resolverá superando o lulismo pela esquerda e não criando pontes entre o lulismo e as massas, como faz a direção do PSOL.
Para além do balanço crítico do saldo deste período eleitoral – a atonia da esquerda socialista que não convocou sequer uma reunião para organizar a mobilização pelas ruas, o sectarismo estéril de organizações como o MRT que orientou voto nulo envergonhado, entre outros -,a prioridade número um será reorganizar a esquerda revolucionária do país, tanto para garantir que os resultados eleitorais sejam respeitados e exigir que todos os crimes do governo Bolsonaro sejam devidamente investigados e punidos, quanto para reivindicar os direitos de nossa classe. Para isso, é fundamental colocar no cenário político uma oposição de esquerda anticapitalista diante do governo de Lula, a fim de construir um polo de referência para a classe trabalhadora e os setores explorados e oprimidos.
Reivindicamos as ruas como a tática maior de enfrentamento do neofascismo, que jamais as deixemos novamente para serem usurpadas pelos vermes da extrema direita. É, portanto, necessário convocar todos os representantes da esquerda socialista a compor um Comitê Unificado de luta, que seja capaz de se diferenciar politicamente da esquerda da ordem e da oposição de extrema direita, que ao mesmo tempo combata as forças reacionárias do bolsonarismo, que continuarão existindo, e exija do governo Lula as pautas centrais da classe trabalhadora, não apenas as míseras migalhas que estão dispostos a dar.
Além da política de frente única para lutar, diante da falência do PSOL como organização independente ao capitular totalmente à conciliação lulista, precisamos identificar que essa traição política abre um processo de reorganização política da vanguarda e de setores de massas. A esquerda do PSOL, se quer se manter à esquerda, se não quer ser cúmplice da conciliação de classes, contribuindo, de fato, com os trabalhadores e oprimidos na luta de classes, terá que dar passos concretos no sentido de romper com esse partido. Terá que, junto aos setores que se mantêm independentes, como o PSTU, abrir imediatamente um processo de discussão sobre a necessidade de construir um fórum de discussão, uma frente única do socialismo revolucionário (FUR), para discutir o cenário atual e a necessidade de um novo partido frente à falência política do PSOL. Vale ressaltar, contudo, a necessidade de o PSTU romper o sectarismo e entender que a construção revolucionária também se faz a partir da fusão com demais setores revolucionários e com a esquerdização de outros.
Passemos ao enorme desafio histórico de nos lançar a tarefa de construir uma nova organização política revolucionária que seja um instrumento de luta independente, socialista, anticapitalista, democrática e internacionalista. Nós, da Socialismo ou Barbárie – SoB, continuaremos nossa construção como corrente socialista e anticapitalista de vanguarda, principalmente no movimento estudantil. Mas colocamos nossas forças e acumulação militante para construir uma FUR, política que queremos debater com o ativismo de esquerda e as organizações revolucionárias.