Pedro Cintra

A última quinta feira, dia 29 de julho, foi sem dúvidas um dos dias mais simbólicos do doloroso rastro que o bolsonarismo deixará na história. Enquanto o presidente promovia uma live “provando” a existência de fraudes nas urnas eletrônicas e preparando terreno para o seu circo golpista, um dos galpões que abriga parte do acervo da Cinemateca Brasileira ardia em chamas. O edifício, localizado na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo, armazena equipamentos, filmes e documentos que datam desde os anos 60 e descrevem a trajetória do audiovisual brasileiro. 

O Corpo de Bombeiros foi acionado no final da tarde para conter o fogo, que atingiu ao menos três salas do 1º andar, duas que conservavam filmes históricos e uma que reservava arquivos impressos. Segundo os bombeiros, o incêndio teria começado durante a manutenção do ar condicionado por uma empresa terceirizada contratada pelo Governo Federal. Ainda não se sabe exatamente quais foram os materiais danificados pelo fogo, porém ex-funcionários e pesquisadores afirmam que 4 toneladas de documentos históricos, rolos de filmes e uma parte do acervo do cineasta Glauber Rocha, o maior nome do Cinema Novo, podem ter sido queimados pelo fogo. 

Não foi por falta de aviso. O Governo Bolsonaro, que assumiu a gestão do espaço no início do ano passado após não renovar o contrato com a Organização Social que mantinha o local, foi avisado sucessivas vezes da precariedade da segurança da instituição e dos grandes riscos de incêndio. 

Em julho de 2020, o Ministério Público apresentou uma ação civil denunciando o Governo Bolsonaro por “estrangulamento financeiro e abandono administrativo”. Em abril deste ano, os trabalhadores da Cinemateca publicaram um manifesto sobre a negligência da Secretaria Especial de Cultura e alertaram sobre as altas chances de incêndio devido à falta de acompanhamento técnico e à alta inflamabilidade do nitrato, elemento presente nas películas. 

A crise financeira que a Cinemateca ultrapassa não é de hoje, porém o seu sucateamento se agravou ainda mais com o início da gestão de Jair Bolsonaro. O repasse de recursos pelo Governo Federal caiu drasticamente. Para se ter ideia, o orçamento previsto para 2020 era de R$12 milhões, porém a Secretaria de Cultura destinou somente R$3 milhões à instituição. O Governo Bolsonaro assumiu a gestão em 2020 após não renovar o contrato de concessão privada com Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que havia sido contratada sob a gestão Temer. Uma das primeiras medidas da administração bolsonarista foi a demissão do corpo técnico responsável pela curadoria e preservação do acervo.

O desprezo que o bolsonarismo tem pela arte é um fato inquestionável, porém considerar os cruéis e incessantes ataques de Bolsonaro contra a produção cultural como mero descaso ou displicência é uma ingenuidade. A reflexão crítica e a consciência social e histórica provocadas pela arte sempre foram um empecilho para a instauração de regimes de caráter fascista e autoritário. E estes, quando consolidados no poder, oprimem, perseguem artistas e travam uma guerra cultural para combater todas as obras contrárias ao ideal fascista. Basta lembrarmos da queima de livros inconvenientes ao regime nazista, ou recordarmos do confisco de milhares de quadros de arte moderna, que era considerada “degenarada” pelo Terceiro Reich. 

A associação que faço do bolsonarismo com o nazismo não é um capricho, principalmente na cultura. É acessível na memória, o pronunciamento do na época secretário de cultura Roberto Alvim, totalmente inspirado na estética nazista e nos discursos de Joseph Goebbles, Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista. O episódio tomou grande repercussão e o secretário hitlerista foi demitido pelo governo, talvez por dar muita bandeira. 

O campo cultural é um terreno de disputa para os fascistas. Travam uma guerra para destruir as expressões artísticas que se colocam como críticas ou provocadoras da ordem burguesa e se apoderam dos equipamentos culturais para propagar a sua estética e seus discursos pautados nos “valores” e no patriotismo. O chamado “marxismo cultural”, tão denunciado pela extrema-direita brasileira é nada mais do que uma reciclagem da conspiração do “bolchevismo cultural”, termo que os nazistas usavam para justificar a repressão e a perseguição dos movimentos artísticos modernistas daquele período, como a arte abstrata e a arquitetura Bauhaus.

O sucateamento dos organismos culturais e a repulsa que o bolsonarismo tem pela história e pela arte brasileira fazem parte de um projeto de destruição da memória e do patrimônio intelectual e científico. O cinema especialmente, como uma expressão artística de grande apelo popular, é um inimigo para o avanço do programa reacionário e autoritário do governo neofascista de Jair Bolsonaro. 

A arte é imprescindível para a construção do pensamento crítico, das liberdades e da consciência de classe. Ao mesmo tempo em que ela conserva uma individualidade humanizadora em sua gênese, ela é capaz de acionar qualidades subjetivas da história, de um determinado fato,  com o potencial de desabrochar descobertas filosóficas, sociológicas e científicas – um enriquecimento objetivo da sociedade, a partir de uma manifestação mais ou menos espontânea da necessidade,  como apontara Trotsky e Breton no Manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente.  A sua defesa e reivindicação escancara a necessidade de um programa anticapitalista que deve colocar a cultura como uma questão central para a emancipação da classe trabalhadora.