Esquerda não-lulista sai vitoriosa, mas com desafios e responsabilidades redobradas
Antônio Soler
O domingo passado, segundo turno das eleições municipais, confirmou em linhas gerais a tendência apontada no primeiro turno: derrota político-eleitoral do Bolsonarismo, fortalecimento dos partidos tradicionais da direita, contínua crise do petismo e surgimento entre setores de massas de uma alternativa de esquerda.
Seguindo a mesma toada internacional de um retorno do pêndulo político da extrema direita para posições mais ao centro, muito bem marcado pela derrota de Donald Trump nos EUA. Bolsonaro foi o maior perdedor nas eleições municipais deste ano, resultado que não estabelece diretamente outra correlação de forças na luta de classes com o governo ou garanta a derrota deste governo em 2022, mas, sem dúvida, reflete um enfraquecimento político das posições do reacionarismo de ultradireita.
Bolsonaro perdeu 12 das 16 apostas que fez e não elegeu prefeito em nenhuma capital na qual seus aliados disputaram no primeiro e segundo turno. Um dos casos mais emblemáticos desse fracasso eleitoral foi a derrota de Marcelo Crivella (Republicanos) para Eduardo Paes (DEM) no Rio de Janeiro, segunda capital em importância no Brasil, por 36% a 64%, respectivamente.
Se Bolsonaro, em 2018 foi decisivo para eleger governadores e deputados em todo o país, fazendo o PSL, que tinha apenas um deputado federal, passar à condição de segunda maior bancada da Câmara dos Deputados, agora o seu apoio significou um dos fatores fundamentais para a derrota nos pleitos municipais. Mas, esse resultado eleitoral, obviamente, não significa uma derrota definitiva do bolsonarismo.
Logo após o resultado do segundo turno do pleito municipal, Bolsonaro afirmou que houve fraude nas eleições estadunidenses e que não confia nos resultados das urnas eletrônicas no Brasil. Assim, como que em um mesmo lance, ao questionar a confiabilidade do sistema eleitoral nos dois países, procura manter laços de solidariedade com a extrema direita internacional e mobiliza também a sua base política, com a qual irá contar para manter a linha de ataques generalizados aos direitos, proteger aliados e familiares investigados por esquemas de corrupção e envolvimento com o crime organizado, manter-se no poder até 2022 e tentar a reeleição.
Ainda estamos longe do próximo pleito nacional, este governo continua funcional para os interesses das classes dominantes e dos partidos tradicionais, o movimento de massas não foi às ruas em um processo generalizado de descontentamento e a esquerda não petista ainda não é um fator decisivo para a luta de classes.
O fortalecimento dos partidos burgueses tradicionais
A extrema-direita bolsonarista perdeu espaço para os velhos partidos da direita da ordem, como o PSDB, DEM e MDB, que concentram, a partir de agora, a condução de grande parte das capitais nacionais e o maior número de municípios pelo país. Estes são partidos neoliberais, entreguistas, antioperários e antiesquerda que foram beneficiados pelo deslocamento pendular, pelo amplo apoio da classe dominante que percebeu que o negacionismo bolsonarista é de difícil sustentação e pela, ainda, incipiente alternativa nacional de esquerda à decadência do petismo.
Tendo como parâmetros o número de prefeituras e a população que irá governar, em primeiro lugar temos o PSDB. Esse é o partido do tucanato, uma ruptura do antigo MDB, partido oficial de oposição à ditadura militar, que se notabilizou pelas reformas neoliberais da década de 1990 e por ser um partido orgânico do capital financeiro. O PSDB tinha 805 prefeitos, passa a ter 533, mas continuar a governar a maior parte da população (16,7%), elegeu prefeitos em grandes cidades, como Santo André e São Bernardo do Campo (ABC Paulista) e Bruno Covas em São Paulo, a capital com maior número de eleitores, poder econômico e projeção política.
Depois vem o MDB, conhecido partido de Michel Temer, o ex-presidente, campeão do fisiologismo nacional e articulador do golpe institucional que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. Esse partido elegeu o maior número de prefeitos (803), mas na eleição passada havia sido eleito em 1048 municípios, e já demonstrava declínio numérico em relação às eleições anteriores ao ano de 2016. Em termos populacionais gerais, antes governava 14,5 % da população, agora irá governar 13%. Além disso, conseguiu se eleger em Porto Alegre, Goiânia, Boa Vista, Cuiabá e Terezina.
Em terceiro lugar temos o DEM, mas esse foi o partido que mais cresceu nesse processo. Tem sua origem na antiga Arena, partido que dava sustentação política à ditadura militar, e é o partido de Rodrigo Maia (Presidente da Câmara dos Deputados). Apesar de se opor docilmente a Bolsonaro, ao seu negacionismo e às ameaças ao regime, Maia é responsável por não dar andamento às dezenas de pedidos de impeachment protocolados e tem sido fundamental para dar sustentação às contra reformas aprovadas nos últimos anos. No pleito municipal anterior fez 277 prefeitos e, agora, elegeu 476. Em termos populacionais governava 5,6% da população, agora, passará a governar 12%. Além disso, venceu as disputas de capitais importantes, como Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba e Florianópolis. O que faz proporcionalmente do DEM o maior vencedor desse processo eleitoral.
Esse resultado eleitoral faz com que esse bloco de partidos já comece a sinalizar uma frente eleitoral ampla “antibolsonarista”, esse foi o recado dado por Eduardo Paes no discurso de vitória no Rio de Janeiro e também em São Paulo com o prefeito Bruno Covas. Tarefa de emblocamento à direita nada fácil para a direita tradicional, pois terão que lidar com distintos interesses que representam esses partidos, das disputas por protagonismo inter-bloco e um percurso politico que será carregado de enfrentamentos com o bolsonarismo e com a classe trabalhadora, suas lutas e seus partidos.
PT segue estagnado e PSOL surge como alternativa de esquerda
Depois de Bolsonaro e do bolsonarismo, o PT aparece como o partido que mais sofreu nesse processo eleitoral. Esse partido foi fundado no processo de luta contra a ditadura militar em 1980 e rapidamente se transformou no maior partido da classe trabalhadora, mas desde sua fundação foi dirigido por corrente reformistas/estalinistas que no final dos anos 80 e início dos 90 passaram a assumir posições cada vez mais pró-capitalistas, conciliatórias e burocráticas.
O PT passou de 254 prefeituras para 179, mas conquistou 4 cidades com mais de 200 mil habitantes e irá governar 3% do eleitorado, o mesmo percentual da população obtido em 2016, na eleição de 2012 conquistou 19% da população nacional. Por mais que esse resultado configure um processo de estagnação em relação ao número da população que será governada pelo PT, ter ficado fora do segundo turno em São Paulo, inédito desde o processo de redemocratização, e não ter conquistado nenhuma capital, significa mais do que uma estagnação, mas um verdadeiro retrocesso desse partido.
Dentro do leque de partidos considerados de “esquerda”, proporcionalmente ao seu tamanho, temos o PSOL como o que mais se destacou nestas eleições. O PSOL, do qual fazemos parte como tendência interna, é um partido amplo de esquerda é um partido de vanguarda, como alcance de sua política, no qual existe uma importante enfrentamento entre posições de conciliação de classes e posições independentes, o que o caracteriza como partido em disputa. Nestas eleições dobrou, passou de 2 prefeituras para 5, conquistou a capital do estado do Pará (Belém), e dobrou o número de vereadores. Mas a disputa que projeta o PSOL como alternativa política de esquerda nacional, apesar da derrota, foi realizada na cidade de São Paulo com a candidatura de Guilherme Boulos que obteve 40,62% dos votos válidos, perdendo para o candidato tucano (PSDB) que obteve 59,38%.
Guardando as devidas proporções de tamanho e diferenças políticas, os resultados eleitorais na “esquerda” colocam-se como um certo espelhamento entre PT e PSOL. Enquanto o primeiro se mantem em processo de estagnação e decadência o outro galga lentamente importantes posições político-eleitorais nos setores mais avançados da luta de classes hoje: mulheres, jovens e negros.
O que explica essa derrota político-eleitoral do PT e a lenta ascensão do PSOL não é apenas que o PT tenha sido “vítima” do impeachment, dos ataques da lava-jato ou da prisão do Lula, isso é parte da explicação, sem sombra de dúvidas, mas isso não é tudo que atingiu o conjunto da esquerda. A outra parte da equação é que o PT, ao contrário do PSOL, em que pese os seus limites como partido amplo e ainda de vanguarda, diante desses ataques assumiu uma inabalável linha estratégica de conciliação de classes, capitulação política, traição de promessas eleitorais e a mais absoluta docilidade e colaboração diante do conjunto dos ataques sofridos pela classe e pelo próprio partido nos últimos anos.
Para ficar apenas em acontecimentos importantes desse ano que ajudam a entender a situação política, além de tardar meses para chegar à conclusão de que era necessário fazer a campanha do “Fora Bolsonaro”, depois do aberto deslocamento de setores de massas para essa posição, no momento mais crítico de luta contra a escalada golpista de Bolsonaro em meados deste ano, quando as torcidas organizadas de futebol chamaram ações de rua para enfrentar politicamente e conseguiram o fazer recuar, o PT e suas principais figuras inicialmente se colocou contra as mobilizações e depois acabou com uma posição equidistante. Posição política de conciliação, capitulação e entreguismo permanente que tem feito o PT pagar caro nos processos eleitorais e na perda de adesão dos setores mais dinâmicos da luta de classes.
Já o PSOL, por outro lado, teve em geral, apesar de sua direção confundir unidade de ação com frente política, uma posição de independência de classe diante dos ataques patronais dos últimos anos, colocou-se contra a ofensiva reacionária que levou ao impeachment e a prisão de Lula, contra as “reformas” ultraliberais e contra as ameaças golpistas de Bolsonaro. E no mês de maio, no pico da luta contra a ameaça golpista, soube com Boulos à frente aparecer como catalisador do sentimento de defesa dos direitos democráticos, projetando-o na mídia como anti-Bolsonaro. Foi assim que a maior parte da juventude e franjas massivas de outros setores e movimentos se deslocaram para a candidatura do PSOL em São Paulo e o projetou como alternativa de esquerda ao PT.
É fundamental reconhecer aspectos progressistas e limites do processo
A campanha de Boulos em São Paulo (veja artigo de balanço específico), bem como as demais campanhas pelo país, enquadra-se no campo da construção de alternativa de esquerda progressiva ao PT. Obviamente que quando falamos em fenômenos progressivos temos que reconhecer os seus avanços e limites políticos para poder indicar caminhos para a sua superação. Nesse sentido as campanhas do PSOL, particularmente em São Paulo, foram progressivas porque mobilizaram o sentimento antibolsonarista, procuraram apresentar saídas não neoliberais, da defesa dos direitos das mulheres, dos negros e da juventude e conseguiram assim mobilizar setores para esse conjunto de ideias.
A partir do reconhecimento do progressismo contido nesse processo, é importante indicar para a necessidade, mesmo em nível local, de que sem se avançar para propostas anticapitalistas, para uma frente com o partido da classe trabalhadora e com o movimento social e não com partidos da ordem, como se configurou no segundo turno, para levar esse programa para a luta nas ruas não se pode fazer um governo que atenda minimamente a necessidades das massas. É preciso, assim, a partir do reconhecimento do quanto é progressivo o fenômeno Boulos/PSOL nestas eleições, reconhecer também os seus limites e apontar para a sua superação, se não quisermos ver repetidas as catastróficas experiências petistas do passado.
Para não ficar no campo da apologia ao “boulismo”, como faz a direção majoritária do PSOL e parte das correntes internas de esquerda, precisamos apontar para a construção de um programa anticapitalista compreensível e adequado às necessidades das massas, para a construção de um partido organizado em núcleos de base e voltados para a intervenção direta na luta de classes, na construção de frentes amplas para lutar, superando a fragmentação das organizações sindicais e populares existentes hoje, e na construção de uma frente política com independência de classes, não em frentes amplas com partidos da ordem, como vimos se esboçar no segundo turno das eleições. Essas questões não são menores, foi justamente por ficar no meio do caminho, não apostar a fundo em um processo de mobilização nas ruas e em medidas anticapitalistas e, também, por atacar os servidores públicos que o governo de Luiza Erundina, tão reivindicado por Boulos, acabou de forma melancólica.
Enfim, estamos em meio a um movimento pendular que até agora tende lentamente para o centro em nível nacional, o que significou uma derrota do bolsonarismo, o fortalecimento da direita tradicional, a estagnação/ retrocesso do PT e o fortalecimento de uma alternativa de esquerda. Estamos apenas no começo de um processo de reversão da correlação de forças extremamente desfavorável na qual entramos nos últimos anos que para superá-las será necessário enfrentar tremendos desafios, tais como as reformas administrativas que tiram direitos que a classe dominante e os partidos burgueses que saíram vencedores estão levando a cabo nos governos e fazendo tramitar no Congresso, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais.
Por isso, o PSOL e Boulos, que saem fortalecidos desse processo eleitoral, mas que ainda não dirigem diretamente partes significativas do movimento social têm a tarefa gigantesca de apontar centralmente para as renovadas tarefas da construção, da unidade nas ruas em defesa dos direitos, para a unificação dos movimentos independentes dos patrões e da burocracia e para a formação de uma frente política com total independência da patronal e da burocracia lulista.
[…] ³https://esquerdaweb.com/eleicao-2020-derrota-de-bolsonaro-vitoria-da-direita-tradicional-e-psol-como… […]