Manifesto da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie diante da rebelião nos Estados Unidos.
“I can’t breathe” (um grito de guerra contra a opressão racial e as injustiças do capitalismo estadunidense).
Roberto Sáenz
“George Floyd é importante. As vidas dos negros são importantes. E enquanto não pudermos construir um movimento para derrotar o racismo e o capitalismo, enquanto os trabalhadores de todas as ‘raças’ não são capazes de se unir contra os capitalistas e seu aparato repressivo, é importante que os patrões, os funcionários do governo e a polícia que lhes protege sintam um pouco da fúria proletária que os façam lembrar que as vidas dos negros importam.
Se se preocupam com os saques, dirijam-se aos militares, à polícia, às companhias farmacêuticas, os vampiros dos fundos de investimento, os proprietários, os especuladores imobiliários e os multimilionários. E exijam que o mundo que uma vez foi roubado da grande maioria seja devolvido”.
Peter Gowan, Jacobin, 28/05/20
A partir do assassinato policial de George Floyd na última segunda-feira 25 em Minneapolis, capital de Minnesota, um estado dos Estados Unidos, foi desatada uma histórica rebelião popular nada mais nada menos do que no coração do capitalismo mundial.
Para que se produza semelhante explosão histórica estão atuando fortemente um conjunto de causase circunstâncias que pretendemos esmiuçar neste Manifesto, que se pronuncia desde o início em repúdio ao covarde assassinato de Floyd, por justiça para ele e sua família, contra os toques de recolher e a militarização que se desenvolvem por toda parte dos Estados Unidos e por somar esforços entre a juventude mobilizada, o movimento negro e a classe trabalhadora para acabar de uma vez por todas com o governo de Donald Trump.
Um assassinato covarde
A faísca da rebelião foi o covarde assassinato racista de George Floyd pelo policial Derek Chauvin e outros três que serviram de cúmplices. Tal assassinato, na luz do dia, expressou todo o peso da opressão nacional e racial que sofre a população negra nos Estados Unidos – um elemento estrutural do principal país imperialista.
Estados Unidos foi inicialmente uma colônia escravista da Inglaterra. Após a Revolução da Independência de 1776, a escravidão não somente continuou, mas se multiplicou até a Guerra de Secessão de 1861-1865, na qual os estados escravistas do sul foram derrotados pelos estados do norte, representantes da modernidade capitalista do trabalho assalariado formalmente livre. [1]
A escravidão foi abolida e a unidade nacional dos Estados Unidos assegurada, o que representou uma verdadeira conquista para a época, saudada inclusive por Karl Marx à frente da I Internacional.
Entretanto, uma feroz discriminação social e racial continua até os dias de hoje. Durante o século XX a mesma alcançou expressão legal mediante um regime de segregação racial legal imperante, sobretudo nos estados do sul do país, denominado “leis Jim Crow”. [2]
Como subproduto de dito regime, a população negra tinha que viajar no transporte público separada, ir a banheiros públicos separada, frequentar bares e restaurantes separada, frequentar escolas especiais, proibição do ingresso em determinadas universidades, viver em bairros (guetos) exclusivamente negros e assim por diante; todo um regime de segregação social e racial (uma de suas expressões internacionais foi o regime de apartheid imperante na África do Sul na segunda metade do século passado).
A população negra permaneceu assim, legalmente, como uma “classe social” de segunda ou terceira categoria dentro do regime capitalista norte-americano. Essa injustiça descomunal levou às históricas lutas antirracistas da década de 60, que deram lugar a jornadas e acontecimentos históricos que cruzaram o país de ponta a ponta: mobilizações massivas, assassinatos de Malcom X e Martin Luther King, ocupações de homens negros em Washington provenientes de todos os Estados Unidos, recorrentes levantamentos nas cidades, choques sangrentos com a polícia e a guarda nacional, matanças e massacres impunes e etc., conseguindo finalmente revogar a articulação legal segregacionista com a Lei de direitos civis de 1964 e a Lei de direito ao voto de 1965.
Entretanto, essas duríssimas lutas não resolveram o problema da segregação racial. O que ocorre é que se soma à discriminação histórica pela cor da pele com a estrutura de classes: a população negra, por ser negra, está colocada no último escalão da estrutura de classes dos Estados Unidos – já é um país onde o fosso entre ricos e pobres, a desigualdade social, é uma das maiores do mundo: “A rapidez com que a pandemia consumiu comunidades negras é alarmante, mas também possibilita uma visão sem maquiagem sobre as dinâmicas de raça e classe que existe muito antes de sua emergência. A conversa mais inútil nos Estados Unidos é a discussão sobre se a raça ou a classe é o maior impedimento para a mobilidade social afro americana. Na realidade, não pode ser separado um do outro. Os afro americanos estão sofrendo durante essa crise não só pelo racismo, mas também como a discriminação racial amarrou-os no final da hierarquia de classes dos EUA” (Keeanga-Yamahtta Taylor, Monthly Review)
Superexplorados em todos os sentidos, são os que têm os empregos mais precários, uma proporção maior de infectados e falecidos em relação a sua proporcionalidade com a população em geral, em algumas cidades como Chicago sua expectativa de vida é 30 anos a menos do que a população branca. Também é evidente sua participação no sistema carcerário ianque – o maior do mundo, no qual por volta de 2.5 milhões de presos os afro americanos compõem 70% dela, não chegando hoje a 20% da população estadunidense e etc.
“Classe e cor da pele se conjugam de maneira intrínseca deixando a população negra em sua imensa maioria – existe uma franja burguesa de importante expressão da qual fazem parte um Obama, Condolezza Rice, Colin Powell e tantos outros que evidentemente não compartilham desta sorte – no fundo de uma estrutura social enormemente estratificada.” (Claudio Testa, Las tres etapas del racismo en EEUU, izquierdaweb).
Mas junto com essa base social, material, vem o fenômeno de discriminação social e política: por “possuir rosto”. Quando se trata de uma pessoa negra, de uma pessoa não-branca, sempre se suspeita com culpabilidade por algum delito. Se um branco denuncia um negro, só pelo fato da cor da pele, acreditarão em qualquer coisa que for dita pelo primeiro em detrimento do segundo.
O reconhecido cineasta negro Spike Lee acaba de editar um vídeo que fala sobre o assassinato de George Floyd, onde junto com algumas cenas de sua brilhante obra prima, “faça a coisa certa” – bem semelhante ao que aconteceu a Floyd -, mostra imagens de uma discussão no Central Park, Nova York, onde um guarda alerta uma mulher branca que respeite as indicações sobre o passeio com seu cachorro enquanto ela liga para a polícia e denuncia que uma pessoa negra “está assediando”.
Por outra parte, historicamente, a burguesia imperialista ianque em conjunto com a burocracia sindical mafiosa desse país, têm trabalhado para dividir a classe operária branca dos trabalhadores negros -e, também, os de origem latina.
A cor da pele, os prejuízos acumulados historicamente, o fazer crer a um branco pobre que pelo fato de ser branco é “mais” do que uma pessoa negra, alimentando a guerra de pobres contra pobres ao invés da unidade dos de baixo contra os de cima, foi historicamente um mecanismo de dominação de classe dentro do imperialismo norte-americano.
Assim as coisas, cor da pele, opressão nacional e estrutura de classes, combinaram-se para manter submetidos os explorados e oprimidos da principal potência capitalista impondo condições de dupla ou tripla exploração para a população negra: “Os negros, entretanto, não despertaram e não estão unidos com os trabalhadores brancos. Os 99,9% dos trabalhadores norte-americanos são chauvinistas, são cruéis em relação aos negros e, também, são em relação aos chineses. É necessário ensinar as ‘bestas’ norte-americanas. É necessário fazer-lhes entender que o Estado norte-americano não é seu Estado e que eles não têm que ser os guardiães desse Estado. Os trabalhadores norte-americanos que dizem: ‘Os negros norte-americanos deveriam separar-se quando eles quiserem e nós os defenderemos contra a nossa polícia norte-americana’ – esses são revolucionários, e tenho confiança neles”. (León Trotsky y la opresión de los negros en los Estados Unidos, Izquierdaweb, 31/05/2020).
Logo acima era o que afirmava Trotsky num debate com dirigentes trotskistas norte-americanos no início de 1933, sobre o direito à autodeterminação da população negra. E se as coisas mudaram em mais de um sentido, não deixa de ser acertado no sentido da necessidade que a classe trabalhadora branca considere como seus irmãos a classe trabalhadora negra e estenda suas mãos – uma questão na qual muitos avanços foram feitos até hoje mas, entretanto, segue tendo elementos de inércia entre os setores mais atrasados. [3]
Para que serve toda essa digressão, que no fundo é uma explicação anticapitalista, uma condenação da estrutura de classes opressora do capitalismo ianque? Vem para compreender tudo que está por trás do joelho do policial que sufocou impunemente George Floyd em Minneapolis na segunda 25 de maio!
Essa brutalidade policial, essa ação covarde encontrou no joelho de Derek Chauvin e seus cúmplices – que atinge a hierarquia inteira do Departamento de Polícia de Minneapolis e ao governador democrata do estado, Tim Walz -, uma “radiografia” transmitida em cadeia nacional pelas redes sociais dos Estados Unidos e do mundo inteiro, do asqueroso e racista capitalismo norte-americano que desatou a maior rebelião popular nesse país que se tenha memória desde os anos 60; um acontecimento sem dúvida histórico.
O pano de fundo de uma rebelião popular
A história dos Estados Unidos e suas lutas sociais está cheia de explosões de fúria contra a opressão, após assassinatos covardes e selvagens por parte da polícia branca ou alguns grupos fascistas como a Ku Klux Klan ou outras organizações fascistas ou de extrema-direita ianques.
Essas explosões muitas vezes duraram vários dias e eventualmente se espalharam pelo país. As mais recentes podemos listá-las a partir do assassinato de Rodney King em Los Angeles, em 1992, possivelmente o primeiro a ser gravado em vídeo e dada a publicidade de maneira instantânea.
Para trás existem vários “incidentes” desse tipo com um ponto de inflexão impulsionando a luta pelos direitos civis nos anos 1960 e, depois, quer dizer nas últimas décadas e anos. Temos mais recentemente a formação do movimento Black Lives Matter a partir de acontecimentos brutais ocorridos sob a primeira presidência negra do país, Barack Obama – que não fez nenhuma diferença em relação a opressão racial. [4]
Portanto, deve haver algum elemento da conjuntura para entender o específico desta explosão, em relação a qual o desencadeador foi o assassinato covarde de Floyd, mas as circunstâncias nas quais ocorreu esse covarde assassinato são de primeira ordem.
Poderíamos falar de três detonantes. O primeiro, óbvio, é o tratamento genocida por parte de Donald Trump a atual pandemia. Estados Unidos já passou enormemente o recorde escandaloso de 100 mil mortos, o dobro que em toda a Guerra do Vietnã, estes sendo o país mais poderoso da Terra não pode significar outra coisa senão uma constatação contra sua injusta estrutura social.
Isso significa dizer que dentro desses falecimentos escandalosos – verdadeiros assassinatos pela estrutura capitalista voraz e neoliberal dos Estados Unidos onde o único que tem valor é o lucro dos capitalistas -, como já temos dito, um número desproporcional de mortos está levando da comunidade negra.
O negacionismo fascista de Trump está tendo, entretanto, um custo político, porque um importante setor da população começa a cobrar por seu rechaço a algum trato humanitário diante da pandemia que, ainda que com seus limites capitalistas, foi visto em outras partes do mundo.
Com idas e vindas, o governo de Trump se mostrou como um dos mais improvisados, mais anárquicos, mais inoperantes em relação à pandemia, o que não deixa de ser um triste espetáculo mundial – um apelo contra o capitalismo norte-americano.
Mas junto com o desastre humanitário e as consequências pelo tratamento da pandemia, junto ao duplo discurso e a vulgaridade deste protofascista, está a segunda determinação: o desencadeamento de uma depressão econômica potencial na primeira potência mundial.
Tal é a voracidade do capitalismo estadunidense, tal é a profundidade do neoliberalismo imperante nas últimas décadas, tal é a determinação do “livre mercado”, que todo emprego criado desde a crise de 2008 não foi mais do que emprego precário – uma forma de desemprego disfarçado que em poucas semanas evaporou.
Apenas isso pode explicar que os Estados Unidos compõe parte substancial dos demitidos no mundo, alcançando a cifra monumental de 40 milhões de demitidos em poucos meses.
Além do darwinismo social que expressa o funcionamento do “mercado de trabalho” norte-americano, parece evidente que esse mecanismo de proteção dos negócios no terreno do “micro” – despedir logo seja anunciada qualquer crise sem custo algum – se transforme em outras tantas formas de irracionalidade e anarquia “macro”, porque não se pode esperar que com semelhante destruição social, semelhante dinâmica de deixar multidões sem nada a perder exceto seus grilhões (Marx), nada irá acontecer…
A soma da pandemia com a catástrofe econômica são o contexto em que atua o crime contra George Floyd e que explica o porquê foi respondido de maneira massiva. E a isso é preciso acrescentar mais um elemento: a própria presidência de Donald Trump. Anárquica, polarizadora, “politicamente incorreta” para o centrismo imperialista habitual, bonapartóide e fascistóide, desordenada, que se bem expressa a política de determinados setores da classe dominante ao que lhes convém – sem dúvida alguma – seu ataque covarde aos direitos sociais e democráticos dos de baixo, sua tentativa de triunfar sobre a China e disciplinar outros países imperialistas, sua orientação nacional-imperialista como suposta “salvação” frente ao retrocesso hegemônico do imperialismo ianque, outra coisa distinta é que as relações de força o acompanhem…
Porque mesmo apesar da colossal cumplicidade de todas as alas do partido democrata – incluindo aí Bernie Sanders, que dobrou seu joelho frente a Biden, assim como as deputadas que se dizem “progressistas” só para condenar “a violência das mobilizações” -, a cumplicidade asquerosa desse verdadeiro “cemitério de movimentos sociais” que é o Partido Democrata, as relações de forças mundiais e nacionais não parecem dar para semelhantes brutalidades.
Assim, o assassinato de George Floyd se transformou numa histórica rebelião popular no coração do capitalismo mundial dada a soma dessas condições catastróficas. É um clássico que quando se ataca e tira as pessoas de suas rotinas habituais, quando ocorrem acontecimentos históricos como as depressões econômicas, as guerras e as pandemias, podem semear revoluções em resposta.
A burguesia multimilionária ianque acredita estar impune. Seus magnatas vivem em “outro mundo” e acreditam que podem dominar tudo “apertando botões” por cima. Mas a verdadeira história, como dizia Rosa Luxemburgo, cria-se nas profundezas da vida social, nas entranhas da sociedade. E quando a classe capitalista e seus governos ultrapassam todos os limites, se ampliam como ocorreu nos Estados Unidos e no capitalismo mundial nas últimas décadas, cedo ou tarde chega a resposta da luta de classes; isso é o que está ocorrendo hoje nos Estados Unidos.
Uma rebelião histórica
Vamos agora ao atual levante popular. Sem dúvida se trata de um acontecimento histórico, expressão que nos Estados Unidos existiam imensas reservas de luta – ainda que ficaram invisibilidades nas últimas décadas. [5]
O movimento de massas ianque tem enormes tradições de luta. Não é casual que o país seja a sede de tradições como os Mártires de Chicago, que nos Estados Unidos colocou a tradição do Dia Internacional da Mulher Trabalhadora a partir da tragédia na têxtil de Nova York na qual 129 trabalhadoras morreram sob o fogo em 1908, que teve comoção internacional pela execução imposta por eletrochoque dos militantes anarquistas Sacco e Vanzetti (1927), que teve referências como a de Eugene V. Debs, figura histórica do socialismo norte-americano em princípios do século XX, que concorreu 5 vezes pela presidência do país, que teve também a tradição internacionalista sindicalista revolucionária do Internacional Workers of The World, que na década de 30 se adiantaram na formação – no começo com elementos bastante progressivos – dos sindicatos por ramo de atividade, etc.
Inclusive o trotskismo norte-americano deixou pegadas históricas na tradição do movimento operário com seu protagonismo no sindicato dos caminhoneiros de Minneapolis com greves históricas e combativas na década de 30, com elementos de auto-organização enfrentando os fura-greves e a polícia agente da patronal e do Estado, e também o trotskismo levantou de maneira principista as bandeiras contra a guerra imperialista, etc. [6]
Avançando no tempo, essa enorme tradição de luta da classe operária, da juventude, do movimento negro, do movimento de mulheres e da esquerda revolucionária, expressou-se nos anos 60 na luta por direitos civis da comunidade negra e no movimento de massas contra a Guerra do Vietnã, que obrigou o imperialismo ianque a retirar-se desse país e atestou a primeira derrota militar, assim como um movimento de mulheres histórico que conquistou o direito ao aborto nos anos 70, a tradição do movimento gay com eventos fundacionais como Stonewall, o “movimento de contracultura” com Woodstock e outras expressões, o surgimento do Jazz e do Rock e um vasto e etc. impossível de resumir nessas curtas linhas.
São essas tradições combativas e culturais o verdadeiro Estados Unidos dos explorados e oprimidos; a verdadeira história oculta do país – e não as superficialidades destiladas que nos mostra Hollywood.
Entretanto, após o ascenso dos anos 60, da derrota no Vietnã e a renúncia de Nixon, o imperialismo ianque armou sua contraofensiva e a consolidou a partir dos anos 80 durante a presidência de Ronald Reagan. A partir dali, e mais ou menos até agora, essa ofensiva continuou, não importa se sob governos Republicanos ou Democratas, dá no mesmo.
As importantes mobilizações em Seattle em 1999 contra a globalização capitalista e o movimento Occupy Wall Street em 2011, foram tantas outras contratendências, o mesmo com o surgimento de movimentos como o Black Lives Matters, ou o movimento por 15 dólares por hora como salário mínimo, ou a campanha de Sanders apesar de suas limitações, o movimento de mulheres massivo que se expressou nas ruas de Washington quando assumiu o misógino Trump e, sobretudo, a emergência de uma nova geração identificada com o “socialismo”; todos elementos começaram a mostrar contratendências às derrotas das décadas anteriores.
Entretanto, agora parece que estamos frente a um acontecimento histórico, qualitativo. É preciso remeter aos anos 60, o último grande ascenso da luta de classes nos Estados Unidos, para encontrar uma revolta como a que estamos vivendo nessas horas, dado seu caráter militante e sua combatividade.
Não é comum que de maneira simultânea, ponham-se em pé dezenas de cidades dia e noite durante várias jornadas, desafiando toque de recolher, enfrentando a Guarda Nacional, oferecendo resistência pacífica e, por outro lado, confraternizando em alguns casos com a polícia, enfim, espalhando-se em marchas massivas em Paris, Berlim, Austrália, Londres, etc., atravessando o planeta pela transmissão ao vivo dos acontecimentos, como um apelo mundial pelo direito à rebeldia.
Está claro que a pandemia não podia abolir a luta de classes. Mas faltava que a rebelião popular chegasse no principal país do mundo para que não restem dúvidas. Nas últimas semanas se expressaram antecedentes no Chile, no Líbano, em Hong Kong e outros países. Mas é óbvio que os Estados Unidos são palavras maiores: expressão de que se vive, sem dúvida alguma, um recomeço histórico da experiência dos explorados e oprimidos, um ciclo mundial de rebeliões populares que nunca se fechou, que a “primavera dos explorados e oprimidos” que despontou ano passado chegou para ficar e agora reemerge na principal potência do planeta.
O movimento de massa que se levantou nos Estados Unidos chegou para ficar. Trata-se, sobretudo, de um imenso movimento da juventude – sobretudo da juventude precarizada que é em sua imensa maioria assim como, está claro, um ressurgimento do movimento negro em todas as suas expressões.
A partir de agora a coisa é dia a dia, hora a hora, minuto a minuto. O movimento tem uma força imensa e poderia começar a ser um imã, também para as forças mais estruturais dos trabalhadores, dependendo de em que medida estes consigam passar por cima dos freios da burocracia sindical dos Estados Unidos, uma das mais poderosas e podre-corporativas do mundo (a burocracia da principal potência imperialista, nem mais nem menos).
Estamos diante de um movimento que expressa uma crescente radicalização; um sentimento difuso anticapitalista. Embora também é verdade que possui mais combatividade e visão especificamente política. É em grande parte órfão quando o assunto é representação política, tem que se livrar todavia da expectativa nos traidores enganosos do Partido Democrata e também criar laços estruturais com a classe operária, tarefas nada fáceis. Como também não é fácil a construção de um terceiro partido de trabalhadores, independentes de ambos partidos imperialistas, assim como correntes socialistas revolucionárias em seu interior; pequenas tarefas históricas.
Muitos capítulos estão por vir e não pode ser descartado um giro repressivo por parte de Trump: subestimá-lo seria um erro gravíssimo. Mas além de suas bravatas, a burguesia poderia unificar-se cinicamente atrás dele para pôr fim ao movimento, mediante um curso duplamente reacionário do que o que vimos até o momento.
Mas também é verdade que a burguesia poderia estar se dividindo nessas horas, temendo que o que faz Trump seja jogar gasolina no fogo, que aprecie que as mobilizações cresçam e se radicalizem em todo o país, e que ainda de maneira temerosa, nunca revolucionária isso está claro, coloque mais seriamente a cartada do impeachment, diferente do que ocorreu a seis meses atrás (isso é difícil de analisar diante da marcha dos acontecimentos que acontecem sem solução de continuidade).
A luta por um terceiro partido
A orfandade política da classe operária norte-americana é um clássico. A tradição liberal do país, a ideia pragmática das coisas, a associação de estatismo ao socialismo, a associação de qualquer ação coletiva cooperativa a estatismo, a cooptação de uma enorme aristocracia operária sendo o país imperialista mais poderoso do mundo durante muitas décadas, etc., sempre dificultaram a emergência de um movimento socialista de massas nos Estados Unidos.
Há um texto bonito de Trotsky intitulado “Se Estados Unidos for feito socialista”, que trata desses problemas que, apesar de ter 80 anos que foi escrito, tem questões de profunda atualidade: “Se a América do Norte for feita comunista como consequência das dificuldades e problemas que a ordem social capitalista é incapaz de resolver, descobriria que o comunismo, longe de ser uma intolerável tirania burocrática e controle da vida individual, é o modo de alcançar a maior liberdade pessoal e a abundância compartilhada”.
Na atualidade muitos norte-americanos consideram o comunismo apenas sob a luz da experiência da União Soviética. Temem que o sovietismo na América do Norte produza os mesmos resultados materiais que trouxe aos povos culturalmente atrasados da União Soviética.
“(…) Tremem diante da perspectiva de que os norte-americanos se vejam controlados nos seus hábitos de alimentação e vestimenta, obrigados a subsistir com racionamentos de fome, a ler uma estereotipada propaganda oficial nos jornais, a servir de simples executores de decisões tomadas sem sua participação ativa. Ou supõem que teriam que guardar para si seus pensamentos enquanto elogiavam em voz alta os líderes soviéticos ao cárcere ou ao exílio”.
Depois, na evolução do seu artigo, Trotsky conclui que a revolução norte-americana será muito distinta da russa, simplesmente porque partiria de condições materiais muito distintas, inclusive profetizando simpaticamente que “no terceiro mês do governo soviético na América do Norte, você não mascará mais chiclete!”.
Enfim, historicamente repetimos, a classe operária tem grande tradição de luta mas tem estado cooptada politicamente pelos partidos tradicionais, sobretudo o Partido Democrata, onde foram parar todos os movimentos sociais.
O medo da “orfandade” ou o “frio” político de ficar fora de um grande aparato como o Democrata tem levado a dobrar o joelho, como temos falado, historicamente, a muitos movimentos de esquerda, o último dos quais o caso Bernie Sanders, sumido agora da cena política após seu apoio a Joe Biden e por sua submissão diante das regras do jogo da democracia imperialista.
O mesmo acontece com as deputadas (Câmara de Representantes) da “esquerda” democrata como Ilhan Omar ou Ocasio-Cortez, que se diferenciaram das mobilizações por sua “violência”, ou correntes como a DSA (Democratic Socialists of America), que editam a revista Jacobin e aparecem muito atrás dos acontecimentos, com o debate por fazer sobre romper de uma vez com a submissão ao Partido Democrata; a rebelião popular que cresce marca a fogo a hora desta tarefa que já foi postergada demais!
A construção de um terceiro partido de trabalhadores e de correntes socialistas revolucionárias ao calor da atual rebelião se coloca na ordem do dia; sobretudo se o processo se estende e aprofunda e dá lugar a resultantes mais radicais.
Parte disso mesmo é a luta por um programa independente: a defesa incondicional da mobilização, o rechaço aos toques de recolher, a exigência de retirada da Guarda Nacional e o fim da repressão policial, a punição a todos os assassinos materiais e intelectuais de George Floyd, a luta por um programa real que acabe com a discriminação da população negra; a reivindicação, de seguir desenvolvendo os acontecimentos, de arrancar Donald Trump com a mobilização sem esperar as eleições de novembro, como já estão pregando os organizadores de derrotas democratas, etc., são algumas das consignas que devem ser escritas na construção de um partido independente dos trabalhadores, o mesmo que a criação de comitês de autodefesa, colocar em pé todo tipo de organismos e coletivos de luta que facilitem a mobilização, assim como a exigência e o chamado aos sindicatos para que se somem à luta, colocar um programa de reivindicações que façam ponte com os trabalhadores e trabalhadoras da saúde e, em geral, contra a barbárie da pandemia e a crise econômica.
[1] George Washington e Thomas Jefferson, “pais fundadores” da República dos Estados Unidos, foram reconhecidos escravistas. [2] Se trata de uma expressão pejorativa dos afro americanos surgida no ano de 1832 a partir de uma sátira teatral. [3] Sobre a consigna propriamente dita de autodeterminação, talvez a população negra esteja hoje já suficientemente – mal – assimilada nos Estados Unidos para que seja central; entretanto, é o espírito da posição de Trotsky que nos interessa destacar aqui: a importância de vencer todos os preconceitos que ainda sobrevivem entre os trabalhadores brancos a respeito dos negros; o instrumento que ainda hoje faz a burocracia sindical e agita Trump para dividir a classe trabalhadora ianque entorno desses preconceitos. [4] O movimento Black Lives Matter foi fundado em 2013, depois da absolvição de George Zimmerman pelo assassinato do adolescente afro americano Trayvon Martin por causa de um disparo. A organização começou a ganhar reconhecimento nacional logo que em 2014 foram assassinados dois jovens, Michael Brown e Eric Garner, o que deu lugar a protestos e disturbios em Ferguson, cidade de Nova York. [5] Podemos voltar a marcar aqui como a intelectualidade esquerdista – os tantos “professores” que há na academia – está dominada pelo impressionismo, como é incapaz de apreciar os desenvolvimentos que vão sendo produzidos por baixo, o mesmo que os que estão dominados pelo “impressionismo chorão”, por assim dizer. [6] A partir da ruptura do SWP ianque em 1939 as correntes trotskistas desse país se dividiram os defensores da ex-URSS e os anti-defensores que se negavam a sua defesa incondicional. Trotsky se alinhou com os defensistas, o que não impediu que ambas tendências tivessem elementos de continuidade principista, assim como determinados setores incorreram em capitulações ao imperialismo e ao stalinismo.Tradução Gabriel Mendes