Publicamos aqui a tradução de mais um capítulo do ensaio Questões de Estratégia, de Roberto Saénz. Aqui o autor faz um esforço no sentido de passar por temas centrais para a ação revolucionária, tais como: a definição da forma da Ditadura do Proletariado, o que não havia se resolvido até o advento da Comuna de Paris; como essa ditadura se expressou na experiência histórica do século XX e todos os desvios oportunistas em torno do tema “governo dos trabalhadores”; a politica dos revolucionários para os governos municipais e estaduais – tema de especial interesse em um ano de eleições municipais, no qual enfrentaremos uma série de desvios oportunistas – e a relação entre a construção do partido revolucionário, a tomada do poder e a consolidação deste poder pelos trabalhadores. Boa leitura.
Redação
Questões de Estratégia
Reivindicações, partido e poder
Por Roberto Sáenz, revista SoB 28
4. O problema do poder
Como já assinalamos, o problema estratégico por excelência é o problema do poder. Mas não se trata de uma problemática que se resolverá tão simplesmente na tradição do marxismo: havia que se determinar a forma do poder do proletariado.
4.1 A ditadura do proletariado
Na vida de Marx e Engels, vivendo a experiência da Comuna de Paris, se chegou “finalmente a descoberta da forma da ditadura do proletariado”, ou seja, do poder do proletariado. Com o passar do tempo, houve uma adaptação da social-democracia ao parlamentarismo burguês e uma ideia evolucionista da chegada do socialismo. Rosa Luxemburgo se posicionou contra essa adaptação e recuperou a ideia da greve política de massa, tomada à primeira vista, do arsenal do anarquismo, mas, na realidade, da experiência histórica da própria classe trabalhadora e das greves de massa que começaram a ocorrer entre o final do século XIX e início do século XX na Bélgica em torno do sufrágio universal e, acima de tudo, a experiência da primeira Revolução Russa, a Revolução de 1905: “A violência é e se mantém como a última razão, inclusive para a classe trabalhadora, a lei suprema da luta de classes, sempre presente, às vezes latente, às vezes ativamente. E quando tentamos revolucionar as cabeças por meios parlamentares (…) fazemos isso sem perder de vista que a revolução será finalmente necessária para mover não apenas a mente, mas também a mão ”(citado em Frolich: 85).
No entanto, como observamos acima, em sua luta contra o aparato morto da social democracia, Rosa tendia a perder a ciência e a arte da insurreição como o momento subjetivo mais alto da luta de classes: a organização da tomada do poder por parte do partido revolucionário. O poder nunca cairá no colo da classe trabalhadora: é preciso lutar por ele mediante as pressões passivistas e fatalistas enfrentadas em todas as partes (como Trotsky apontou) quando o problema do ataque ao poder começa a ser imediatamente, praticamente levantado.
É verdade que, no caso da Comuna, os eventos se desenvolveram espontaneamente; foi o próprio fato do abandono de Paris pela burguesia francesa (aterrorizada pelo avanço do exército alemão de Bismark) que deixou “entregue” o poder ao proletariado da cidade. Houve outros eventos de “fuga” da burguesia do poder, como Hungria e Baviera em 1919, e que deram origem a governos “soviéticos” efêmeros. Mas, em qualquer caso, são situações excepcionais que apenas confirmam a regra: nenhuma classe dominante abandona suas posições de privilégio pacificamente.
A própria Comuna foi um exemplo disso. Uma coisa era o poder burguês deixar a cidade … outra, muito diferente, que os trabalhadores se dispusessem a tomá-lo. Ante a “ruptura de classes” que este evento radical significava, a guerra franco-prussiana foi suspensa e o exército alemão permitiu que o governo francês recuperasse a sangue e fogo a cidade; as hostilidades foram interrompidas para que o exército inimigo pudesse se dedicar à “grande obra” de colocar as coisas em seu lugar: seja a burguesia francesa ou alemã, dá no mesmo, é a burguesia que detém o poder, não o proletariado. Assim, a queda da Comuna foi seguida pelo banho de sangue de 30.000 membros da comunidade; uma lição histórica da burguesia para com a classe trabalhadora que ensinou que, quando se trata da luta pelo poder e da sua manutenção, uma vez tomada, a ingenuidade é mortal: vigem as leis da guerra civil, as leis do terror mais implacável de uma classe sobre a outra. Como disse Trotsky, na guerra civil todos os laços de solidariedade entre as classes são violentamente anulados [16].
Não outra coisa ensinava Engels: “Somente após oito dias de luta os últimos defensores da Comuna sucumbiram nas alturas de Belleville e Menilmontant; e então aquele massacre de homens, mulheres e crianças desarmados atingiu seu apogeu, tendo feito estragos ao longo de toda a semana em uma escala ascendente. Os rifles de recarga não matavam rápido o suficiente, e metralhadoras começaram a correr para matar os derrotados às centenas. O Muro dos Comuneros do cemitério de Père Lachaise, onde o último assassinato em massa foi consumado, ainda está de pé hoje, testemunho mudo mas eloquente do frenesi que a classe dominante é capaz de chegar quando o proletariado se atreve a reivindicar seus direitos. [17] (Introdução de F. Engels à Guerra Civil na França, 1891, em Obras Escolhidas de Marx e Engels, volume II: 111).
Lição número um, então: o poder deve ser tomado conscientemente e defendido com unhas e dentes se não se quiser ser submetido a um banho de sangue pela burguesia, que caracterizou todas as contra-revoluções que ocorreram ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora ameaçava o poder burguês e não pode tomá-lo. Ou quando tomando-o, deixou escapar: vejamos a experiência da guerra civil espanhola e as execuções de Franco após sua derrota; o caso da Alemanha nazista e o banho de sangue dispensado aos comunistas e social-democratas após sua capitulação histórica em 1933; ou Noske, os Freikorps e a social-democracia alemã em janeiro de 1919, com o assassinato de Rosa e Liebknecht, e a lista poderia continuar até o infinito. O poder deve ser tomado e, uma vez alcançado, aferrar-se firmemente a ele, assim como os bolcheviques que lutaram por três anos sangrentos para consolidar a ditadura do proletariado.
Mas ainda com as lições de outubro na mão, o problema do poder continuou a apresentar complexidades. o poder e a ditadura do proletariado podiam levar a inúmeras experiências caracterizadas por várias nuances e/ou circunstâncias históricas concretas. A história seguiu adiante e foi colocando diferentes tipos de combinações sociais e políticas a serem interpretadas em sua relação com a perspectiva da ditadura do proletariado. Dessa experiência surgiu o debate sobre o governo dos trabalhadores contido no ponto X da “Resolução sobre as táticas da Internacional Comunista” em seu IV Congresso, e que deu origem a um debate complexo.
4.2 Os distintos tipos de “governos dos trabalhadores” na experiência revolucionária
Um critério central de princípios, talvez o principal dos socialistas revolucionários, é que não participamos de nenhum governo burguês. Um debate histórico a esse respeito foi o de Rosa Luxemburgo, baseado na experiência de Millerand na França no final do século XIX, que terminou no mais profundo dos fiascos. Como foi dito, Rosa insistia que os socialistas revolucionários somos um partido de oposição em relação à ordem burguesa e que, ao contrário da participação no parlamento (em suma, um espaço de discursos), assumir cargos executivos nacionais liquida nossa independência política de classe, tornando-nos responsáveis pela gestão governamental. Lembremos que Engels salientou que o governo burguês nada mais é do que a junta que gerencia os assuntos comuns da burguesia, e deveria ser evidente que os revolucionários não podemos administrar os assuntos de nosso inimigo de classe.
No entanto, voltando ao presente, verifica-se que a possibilidade de Syriza chegar ao governo na Grécia recolocou o debate sobre os “governos dos trabalhadores” em bases parlamentares que haviam sido debatidos na época do IV Congresso da Internacional Comunista, e que resultou em uma resolução bastante confusa. [18]
Syriza não é uma formação social-democrata clássica, tornadas hoje partidos social-liberais inteiramente burgueses e uma parte orgânica do mecanismo de alternância das democracias imperialistas. O Syriza tem origem no ramo eurocomunista do antigo stalinismo grego, uma formação eleitoral reformista de esquerda que, além disso, insiste na sua profissão de fé no euro. Já abordamos esse debate em outra ocasião. No entanto, sendo uma formação reformista não tradicional, está despertando ilusões não apenas entre as massas gregas, mas no trotskismo europeu e, mais (ver artigo sobre a Grécia nesta edição), de que uma vez no governo, pela necessidade das coisas, acabe “rompendo com o capitalismo”.
De qualquer forma, coloca-se um debate central: que posição adotar no caso de o Syriza chegar efetivamente ao governo. É aqui que a questão do governo dos trabalhadores reaparece. A resolução que apontamos foi um dos trabalhos mais confusos dos quatro primeiros congressos da Terceira Internacional, liderados por Lenin e Trotsky. Bensaïd ressalta que essa abordagem ilustrou a “ambiguidade não resolvida” de algumas das fórmulas nascidas nos primeiros congressos da internacional, para além de que a partir desse equívoco deixaram escapar uma interpretação oportunista.[19] Chris Harman, do SWP inglês, afirmou o mesmo, embora sua interpretação tenha sido inversa em um texto do final dos anos 70, onde insistia que as “fórmulas políticas” que emitimos os revolucionários devem passar pela experiência concreta e que a formulação do “governo dos trabalhadores” sobre base parlamentar “como uma transição para uma possível ditadura do proletariado não passou no teste da experiência histórica do século XX, onde isso nunca aconteceu” (C. Harman e T. Potter, “O governo dos trabalhadores”).
A Terceira em seu período revolucionário teve outras resoluções limitadas, confusas ou superadas por eventos históricos. É o caso das Teses do Oriente, por exemplo, que colocavam abertamente uma orientação etapista para países semicoloniais ou coloniais, e sempre foram usadas para cobrir desvios oportunistas na ação política da esquerda nesses países.
Se, no caso dessas teses, sua limitação veio do fato de que a luta de classes não havia se desenvolvido suficientemente (o próprio Trotsky as corrigirá a partir da experiência da segunda revolução chinesa no final dos anos 20, que serviu para generalizar a teoria da revolução permanente para o mundo inteiro), acreditamos que algo semelhante acontece com a tese do governo operário: muitas vezes foi usada como cobertura para desvios oportunistas na ausência da condição central da dita tese, ou seja, a existência de um poder revolucionário cuja força gravitacional fosse atuante e palpável, como foi o caso dos bolcheviques no início dos anos 20.
A tese tratava de diferentes formas de governo de partidos considerados operários:
a) Descartava, como contra os princípios, a participação nos “governos operários-liberais” (do tipo trabalhista em um estado burguês estável); por exemplo, o caso hoje do PT brasileiro.
b) Também descartava “governos social-democratas” sobre uma base de estabilidade burguesa e parlamentar.
c) Ao mesmo tempo, estabeleceu, logicamente, o tipo de “governo dos trabalhadores” por excelência, que nada mais era do que a ditadura do proletariado encabeçada pelo partido revolucionário.
d) Mais dois tipos de “governos dos trabalhadores” que exigiam consideração foram observados. Uma se referia aos “governos operários e camponeses”, os governos de organizações reformistas, mas apoiados por instituições de duplo poder dos trabalhadores. É o caso dos mencheviques e dos revolucionários socialistas na Rússia em meados de 1917. Lenin faz a exigência de que “tomem o poder” e que, nesse caso, os bolcheviques serão uma oposição política “leal”, não insurrecional (porque para todos os efeitos práticos, o poder já estaria tomado pelos representantes reformistas da classe trabalhadora).
Um caso semelhante, embora não seja idêntico, é o exemplo da Comuna de Paris. Era uma frente única das tendências socialistas da época, mas onde os internacionalistas de Marx quase não tinham peso; isto é, um poder operário sem um partido revolucionário.
e) Finalmente, houve uma espécie de proposta de governo dos trabalhadores, “governo de socialistas e comunistas”, que foi levantada como admissível em bases parlamentares como expressão culminante da tática da frente única. Trotsky na época apoiava uma combinação deste tipo. Ele fez o mesmo em pleno andamento da revolução alemã como um possível ponto de apoio auxiliar para melhor organizar a insurreição. No caso da França (1922), ele falará de “um governo operário que poderia resultar de um debut parlamentar da revolução“.
Esse tipo de governo é o aspecto mais controverso da resolução, além do fato de que a fórmula “governo operário e camponês” também foi usada oportunisticamente no segundo período do pós-guerra em relação às direções burocráticas que romperam com o capitalismo, mas não apoiado por organizações de democracia dos explorados e oprimidos, mas com base em partidos-exército caracterizados pela ausência de toda democracia. Por meio dessa formulação, uma parte fundamental do trotskismo apoiou esses governos, mesmo renunciando não apenas à independência política, mas à própria ideia de construir o partido nessas circunstâncias, como foi o caso do mandelismo na Nicarágua no início dos anos 80, onde, além disso, nem sequer se expropriou o capitalismo.
De qualquer forma, essa não é a principal preocupação que nos move aqui. O que emerge disso é o ensinamento de que não há nada que evite que os revolucionários se apoiem nas circunstâncias históricas determinadas, na análise concreta da situação concreta. Os formalismos do dogma não podem ser um antídoto para evitar desvios oportunistas ou sectários. A análise sempre remete a entidades concretas que devem ser apreciadas concretamente, o resto é dogmatismo ou bruxaria.
4.3 O caso do “governo dos trabalhadores” sobre bases parlamentares
Voltando ao nosso ponto, há dois aspectos a serem observados em relação ao problema do governo dos trabalhadores sobre bases parlamentares e de coalizão entre reformistas e revolucionários. Um é o das características excepcionais do momento em que essa variante tática foi pensada, onde na fronteira com a Alemanha estava o poder bolchevique, com todo o seu peso gravitacional. O outro, o significado histórico que esse tipo de formulações teve ao longo do século XX, que deram origem a todo tipo de ações oportunistas ou expectativas que desarmaram os revolucionários.
Quanto à primeira condição, é difícil pensar nesta tese do IV Congresso sem relacioná-la com a intensidade histórica da luta de classes do momento, com a Revolução Russa como um poder vivo e atuante efetivo sobre a realidade, especialmente a europeia. É certo que, para o Quarto Congresso, e por ocasião da discussão sobre a tese da frente única, a situação havia se tornado defensiva. O primeiro impulso ao poder criado pelo impacto imediato da revolução havia passado, e o que estava colocado de maneira imediata era a luta pelas massas. Mas fazer uma abstração do peso específico do poder bolchevique e da importância desse fator objetivo na formulação das próprias teses, adotadas por um verdadeiro partido da revolução socialista internacional, é puro doutrinarismo que apenas consegue repetir a suposta validade das resoluções em um contexto que não tem nada a ver com quando eles foram formulados.
Em segundo lugar, há a experiência da Saxônia e da Turíngia na revolução alemã, em outubro de 1923. A liderança centrista de Brandler (que negava a existência de condições para o assalto ao poder), uma vez incorporada aos governos social-democratas de esquerda nessas duas regiões, subordinou-se a eles quando o governo central enviou tropas do exército de Berlim para “garantir a ordem”. Negou-se assim, categoricamente, a assumir qualquer posição ativa diante dessa ação provocadora, revertendo o plano insurrecional que vinha preparando há muito tempo. Diante da recusa dos “social-democratas da esquerda” em enfrentar a ofensiva do governo central, o PC desconvocou a insurreição que estava chamando e, sem disparar um tiro, a revolução morreu (houve uma insurreição heróica em Hamburgo, mas foi isolada e derrotada em alguns dias ante o passo atrás da direção do PC). [20]
Assim, a primeira experiência de um “governo operário da coalizão social-democrata-comunista”, que terá como primeira tarefa (como dizia a resolução da Internacional) “armar o proletariado”, morreu antes do nascimento; e não mais se verificou no século XX. O que sim, se verificou foi outra coisa: as mil e uma vezes que a fórmula do “governo dos trabalhadores” foi usada para justificar cursos oportunistas de adaptação a governos reformistas em bases parlamentares, ou mesmo para entrar nesses governos burgueses.
Isso não significa ser sectário ou decretar antecipadamente um curso dos eventos históricos. Mas um dos principais ensinamentos de princípios do movimento socialista desde Marx é a independência política do proletariado; a organização separada da classe trabalhadora no plano político; a rejeição de princípio da entrada em todo governo burguês, mesmo que seja um governo reformista. Se esse governo reformista tomasse medidas progressivas e fosse atacado pela burguesia, seríamos os primeiros a defendê-las. Se não tomasse tais medidas, mas também se visse afetado por uma tentativa de golpe da direita, também. E se as condições históricas variassem e o marxismo revolucionário voltasse a tomar o poder em algum país, em qualquer caso, retornaríamos ao assunto analisando a situação concreta. [21]
Mas, por enquanto, a realidade é que essa fórmula tem sido usada para escamotear desvios oportunistas contra os quais temos que nos proteger. Os socialistas revolucionários não participam de nenhum governo reformista de bases parlamentares; nós o defendemos em caso de ataque da burguesia, mas nunca lhe damos apoio político, não é o nosso governo. Em vez disso, trabalhamos para deslocá-lo à esquerda e abrir o caminho para a verdadeira ditadura do proletariado.
Como digressão, apontemos que o PTS da Argentina se lançou a uma reflexão unilateral acerca da posição de Trotsky sobre “governos operários”. O PTS parece confundir duas coisas. Uma é o fato de que Trotsky insistira em que o balanço da derrota da revolução alemã de 1923 foi produto do que o Partido Comunista Alemão não estava à altura das circunstâncias; a liderança encabeçada por Brandler (sob os auspícios de Zinoviev, na época à frente da IC), não tenha girado a tempo de preparar a tomada do poder. O PTS confunde isso com o debate mais específico sobre as táticas complexas do governo dos trabalhadores na Saxônia e na Turíngia na época, que Trotsky ainda assim considerava explicitamente como uma “questão menor” em relação aos problemas da revolução como tal. Para o PTS, parece que não é assim: consagra a isso o centro de sua “reflexão estratégica”, o que é errado e perigoso, uma vez que pode abrir caminho a todos os tipos de desvios oportunistas: “É impossível entender Trotsky como revolucionário sem entender como ele concebeu a possibilidade de ‘governos operários ou ‘governos de operários e camponeses’ como fontes para promover a preparação ou o desenvolvimento triunfante da guerra civil (…) Sem partir de seu pensamento vivo, não se pode entender a importância da concepção de Trotsky que viu que ‘o governo operário’, como consigna anti-burguesa e anticapitalista, pode ser um caminho régio para a ditadura do proletariado e não apenas sua denominação popular” (“Trotsky e Gramsci: debates estratégicos sobre a revolução no Ocidente”, Emilio Albamonte e Matías Maiello).
É dramático que a maneira a-histórica e doutrinária de abordar os problemas que caracterizam o PTS lhes faça desconhecer que, na experiência real do século XX, essas fórmulas de “governos dos trabalhadores” em bases parlamentares tenham introduzido a maior confusão nas fileiras dos revolucionários. Em vez de servir como um “caminho régio” para a ditadura do proletariado, foram usados para capitular às mais diversas expressões do poder burguês e burocrático.
De qualquer forma, mesmo admitindo a possibilidade dessa “tática” sob condições muito específicas, daí a transformar essa hipótese de trabalho na medida para “entender o tamanho de Trotsky como revolucionário”, realmente há um caminho longo demais.
4.4 O debate sobre um eventual governo do Syriza
Voltemos à possibilidade de um governo do Syriza na Grécia. Como expressão máxima das expectativas que está abrindo e da aplicação confusa da fórmula do governo dos trabalhadores, temos um artigo da Inprecor, a atual revista da corrente mandelista, assinada por seu principal líder hoje, François Sabado: “Outra hipótese deve ser levantada: uma feroz resistência do povo grego e do Syriza que resulte em um governo anti-austeridade. É claro que esse governo estará “em disputa” entre as forças que exercerão as pressões das classes dominantes e as demais, de um movimento dos de baixo, mas que existem no Syriza, inclusive à esquerda de seus setores de direção. Não devemos esquecer que “em circunstâncias excepcionais – crise, crise econômica, guerras – as forças políticas da esquerda podem ir além do que pensavam inicialmente” (Trotsky no Programa de Transição, 1938).” E depois acrescenta-se que “o papel dos revolucionários não é denunciar o Syriza em antecipação às possíveis traições de amanhã. Pelo contrário, é contra as políticas de austeridade e fazer todo o possível para reforçar a dimensão anticapitalista de seu combate (…). Uma derrota do Syriza também será a nossa derrota” (F. Sabado,“ Quelques remarques sur la question du gouvernement”, Inprecor 592/3, abril de 2013).
Vejamos os dois problemas que essas citações colocam. O primeiro é a própria definição de “governo em disputa”, que esteve no centro do oportunismo diante de governos como Chávez ou Lula na última década. No caso do segundo, nada mais era do que uma maquiagem para apoiar (e até integrar) um governo nem mesmo “reformista”, mas neoliberal ou social-liberal burguês.
O caso de Chávez é mais complexo. Seu governo, uma espécie de nacionalismo burguês do século XXI, deu origem a algumas concessões às massas e teve um curso de independência política do imperialismo. Diante dos ianques e das tentativas de golpe em curso contra Maduro hoje, é de princípio defendê-lo, mas uma coisa muito diferente é o apoio político – e muito mais a integração ao governo, ou ao partido do governo, o PSUV, que foi a orientação de muitos “Trotskistas” – para um governo que nunca foi além dos limites do capitalismo. Pelo contrário, manteve a propriedade privada como um todo, além de certas nacionalizações, e atuou sistematicamente contra a classe trabalhadora e, em geral, contra a organização independente dos explorados e oprimidos, contra as possíveis formas de poder alternativo ao estatal.
Todos esses anos, no entanto, ouvimos falar da “Revolução Bolivariana”, de que Chávez estava se “armando para quebrar a burguesia” … E em que tudo isso derivou: em um capitalismo de estado em crise terminal. Uma crise que tem todas as perspectivas de acabar mal, à direita, entre outras coisas, porque quase toda a esquerda foi cooptada pelo bonapartismo chavista (e alguns grupos muito pequenos têm tanta confusão que estão em acordos ou frentes únicas com os setores esquálidos).
Deixando de lado essa categoria de “governos disputados” (que dá a ideia de que eles careciam de caráter de classe ou que isso seria débil), está a ideia de que o Syriza poderia ir além dos limites do capitalismo, um passo que nem Chávez ousou dar.
Mas aqui temos que recorrer novamente a análises concretas. Nós nos perguntamos: em que bases sociais e organizacionais um governo do Syriza romperia com o capitalismo? É verdade ou não que há juramentado defender o euro e que capitulou à campanha de que os gregos, agora, com base nessa moeda, são finalmente “europeus”? É verdade que o Syriza é uma formação basicamente territorial e parlamentar, com laços orgânicos muito fracos dentro da classe trabalhadora organizada para apoiar-se nela? E o exército grego, que nada tem a ver com o “bolivariano” da Venezuela e faz parte do dispositivo da OTAN?
Se tudo isso é assim, não vemos bases reais para um curso de ruptura anticapitalista. Esses pontos de apoio, historicamente, foram dois. Um, o clássico, vinculado às perspectivas da revolução proletária, da mobilização independente da classe trabalhadora, de suas organizações de poder, do partido revolucionário, como foi a experiência entre guerras. Dois, as formações burocráticas não capitalistas chinesas, iugoslavas, vietnamitas e cubanas (com seus partidos comunistas e guerrilhas), que se não se apoiaram no proletariado ou na organização democrática do campesinato e das massas empobrecidas, o faziam no aparato stalinista de Moscou e uma administração bonapartista das classes pobres.
Na ausência dessas duas condições, não vemos sobre o que o Syriza possa se apoiar além da administração parlamentar em circunstâncias de aguda crise econômica, apontando para uma renegociação com a União Europeia que certamente será marcada por uma série de contradições, mas que finalmente virá a algum tipo de arranjo (e capitulação).
Isso nos leva à posição dos revolucionários frente a um governo Syriza. Obviamente, de um ponto de vista objetivo, isso seria visto como um “triunfo” e um executivo “próprio” das massas. De qualquer forma, seria sem dúvida um avanço na experiência da classe trabalhadora grega. Mas de maneira alguma seria nosso governo, um governo dos trabalhadores. Muito menos que sua derrota seria uma derrota dos socialistas revolucionários, a menos que eles apoiassem, ou até integrassem, em vez de construir uma alternativa revolucionária pela esquerda para esse governo, na perspectiva do poder da classe trabalhadora na base de construir seus próprios organismos. Caso contrário, o processo em seu conjunto levará a uma derrota subproduto da traição das lutas e expectativas das massas pelo governo reformista.
Somente se não fizermos isso, a derrota de um governo do Syriza será “nossa derrota”. Pode haver uma derrota do processo político grego em geral, porque não se conseguirá mover os reformistas pela esquerda (por razões de imaturidade dos fatores subjetivos ou o que for). Mas isso aconteceria por razões objetivas, não por ter tido uma política de capitulação.
Os revolucionários não apoiaremos um governo Syriza; vamos defendê-lo caso você tenha confrontos reais com a União Europeia ou tome medidas realmente progressistas, mas manteremos nossa independência política mais intransigente, trabalhando para abrir um caminho revolucionário que o supere pela esquerda.
4.5 O governo operário e a prefeitura
“A participação dos sindicatos na administração da indústria nacionalizada pode ser comparada à dos socialistas nos governos municipais, onde às vezes conquistam a maioria e são forçados a liderar uma importante economia urbana, enquanto a burguesia continua a dominar o Estado e permanece em vigor as leis burguesas da propriedade. No município, os reformistas se adaptam passivamente ao regime burguês. No mesmo campo, os revolucionários fazem tudo o que podem no interesse dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, os ensinam a cada passo que, sem a conquista do poder do Estado, a política municipal é impotente” (León Trotsky, “La indústria nacionalizada y la administracion del trabajo”, Writings, volume X).
Cabe lembrarmos que existem posições executivas admissíveis na tradição revolucionária sobre bases parlamentares. Essas são as prefeituras: embora tenham responsabilidades executivas, é geográfica e territorialmente limitada e passível de explicar que não se tem a responsabilidade de conjunto.
As experiências revolucionárias municipais podem, então, ser um grande ponto de apoio ao desenvolvimento de uma política revolucionária. Mas também representam perigos sérios, que não devem ser abordados com base na renúncia covarde dos desafios impostos pela luta de classes, senão de maneira revolucionária.
A conquista de uma prefeitura tem um impacto nacional porque é um triunfo de uma força revolucionária considerada até então como minoria; é obviamente uma alavanca formidável abrir caminho a uma influência cada vez mais ampla entre as massas e construir o partido.
Mas, a partir desse triunfo, levanta-se como abordar a “gestão municipal”. Aqui acontece o mesmo que vimos em relação ao parlamentarismo, mas de maneira aguda, uma vez que no parlamento não há gerência executiva e no município sim, o que aumenta as responsabilidades.
Como realizar, então, uma política municipal revolucionária? O principal critério nunca pode ser o de “gerenciamento”. Muitas experiências ocorreram nos últimos anos de “prefeituras reformistas”, “orçamentos participativos” etc., que nada mais foram do que o processo de cooptação pelo poder central (veja o caso da Democracia Socialista, ex-integrante do mandelismo, na prefeitura de Porto Alegre, Brasil, sua gestão “participativa” do orçamento e sua brutal adaptação e integração ao governo do PT [22]).
Mas há outra alternativa de uma política municipal revolucionária. Seu critério é o mesmo para todo o resto: o cargo municipal é um ponto de apoio secundário para desencadear uma grande mobilização de massas contra o poder burguês central e estadual. A ideia é que esse poder “sufoque” à municipalidade que não deseja que suas medidas progressivas transcendam como exemplo para o Estado e para o país e que, se os trabalhadores e moradores não se mobilizam, a administração não poderá ser levada adiante.
Insistimos: uma abordagem de pura “gestão” seria criminosa. Não existe outro gerenciamento realmente possível em um município isolado que não seja o de administrar a miséria; para não mencionar o problema praticamente irresolúvel do que fazer com a guarda municipal, como avançar em sua dissolução com uma mobilização popular pela autodefesa e segurança dos bairros pelos próprios vizinhos.
Há outro caso que nos encaminha para parte da discussão anterior, que se referia ao próprio governo central, ainda que na experiência da revolução alemã a proposta de “governo operário” tenha sido limitada a dois governos de coalizão estadual. Descartado o problema do governo central, é o caso dos governos provinciais ou estaduais não de coalizão com os reformistas, mas com os revolucionários.
Trata-se, sob todas as luzes, de um caso fronteiriço, um enigma que não pode ser resolvido, exceto com base em uma aguda luta de classes. Um governo municipal, e mais ainda um regional, em condições de estabilidade burguesa, só pode resultar em uma administração reformista e, portanto, capitalista. De qualquer forma, é possível assumir, demonstrar o cerco do governo central e orientar para que esse governo seja um ponto de apoio para desencadear uma grande mobilização operária e popular contra o governo central, enquanto houver condições de não cair no reformismo; depois, devemos renunciar.
Isso nos remete às condições de “anormalidade”. Uma espécie de “reformismo revolucionário” como o proposto para a ação parlamentar, no caso do executivo, seria ainda pior. Se o “reformismo revolucionário” divide a luta diária e a perspectiva do poder, no caso de uma situação excepcionalmente revolucionária, rica e dinâmica de ascensão operária o governo local pode ser um ponto de apoio excepcional para desenvolver uma mobilização revolucionária e construir os organismos de poder na luta contra a asfixia do poder central.
4.6 A transformação da luta de classes em guerra civil
“Segundo a magnífica expressão do teórico militar Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. Esta definição também se aplica totalmente à guerra civil. A luta física é apenas um dos “”outros meios” da luta política. É impossível se opor, porque é impossível parar a luta política quando é transformada, pela força de seu desenvolvimento interno, em luta física. O dever de um partido revolucionário é prever a inevitabilidade da transformação da política em conflito armado declarado e preparar-se com todo as suas forças para esse momento, assim como se preparam as classes dominantes para ele ” (Leon Trotsky, Aonde vai a França?).
À medida que uma situação revolucionária se aprofunda, vai se apresentando o problema do armamento do proletariado. Toda a situação clama para os trabalhadores começarem a se armar à medida que a luta de classes se torna mais direta; se desarmado, não há como combater, questão que deve ser, ao mesmo tempo, uma campanha do partido revolucionário: a necessidade do armamento do proletariado.
Se na experiência histórica das últimas décadas não houve de forma contundente experiências de armamento popular – exceto no mundo árabe, embora a base do processo não seja de classe -, é inevitável que o problema surja na medida em que a situação radicalizar e a democracia burguesa se veja esmagada.
De uma maneira um tanto simbólica, o movimento piquetero na Argentina levantou o problema de certa autodefesa e de certo armamento com paus (ou barricadas e pedras na revolta de outubro de 2003 em El Alto, Bolívia). Mas a natureza rudimentar dessas experiências mostra até que ponto ainda estamos longe de um cenário de verdadeira radicalização na luta de classes.
No entanto, inscrito na mesma lógica dos eventos, de uma luta de classes que chega ao seu fim lógico, está o problema de sua transformação em guerra civil (ou com elementos de guerra civil) e o problema do armamento. Também surgirá na medida em que os partidos revolucionários crescerem e a burguesia começar a se preocupar conosco (quando, em vez de nos convidar, eles nos estigmatizam na TV) devido ao peso real, orgânico e não apenas eleitoral, que comecemos a adquirir entre setores amplos da classe trabalhadora e das massas. [23]
A passagem da luta de classes para a guerra civil ocorre quando a luta de classes se converte em um confronto físico entre as classes. A luta de classes geralmente se desenvolve e adquire elementos de luta direta, isto é, extraparlamentar, por meio de greves, mobilizações, bloqueios de estradas, piquetes, ocupações de fábricas e assim por diante. No entanto, isso não significa que o confronto físico seja alcançado. Pode haver repressão por parte do governo e do Estado a tal ação e resposta dos grevistas na forma de autodefesa, coquetéis molotov e similares, mas nesse estágio ainda não estamos em uma situação de guerra civil. Os elementos da mediação institucional ainda funcionam; a própria luta refere-se, em resumo, aos métodos clássicos da luta sob a democracia burguesa: a realização de novas mobilizações, a intervenção de advogados, a denúncia nas câmaras parlamentares e assim por diante.
Mas isso fica em um lugar totalmente subordinado quando se trata de uma guerra civil: nesse caso, o que está em jogo é a existência física dos contendores, a própria vida está em jogo. É o exemplo que damos à repressão da Comuna de Paris. Por isso, Marx chamou o panfleto que escreveu sobre essa experiência A Guerra Civil na França.
No entanto, e ao mesmo tempo, dadas as condições da luta de classes no século XX, fica claro que a repressão da Comuna foi quase uma brincadeira de criança em relação às vítimas que ocorreram no momento da guerra civil após outubro de 1917 na Rússia, ou a guerra civil na Espanha nos anos 30, ou a invasão contrarrevolucionária do exército nazista sobre a URSS em junho de 1941.
Essa transformação da luta de classes em guerra civil, ou mesmo a passagem para uma luta de classes mais direta, levanta todos os problemas de autodefesa, do armamento do proletariado. A burguesia está armada (na realidade, está sempre armada) e pretende reivindicar seu monopólio da força pelo Estado. Mais ainda: arma e permite administrar grupos “irregulares”, cuja tarefa é afugentar a vanguarda dos trabalhadores ou mesmo destruir todas as “instituições da democracia operária no seio do capitalismo”, a principal característica do fascismo, segundo Trotsky. Quando os fascistas moem a pau aos diferentes núcleos e organizações dos trabalhadores todos os dias, o que faz a vanguarda dos trabalhadores e depois toda a classe? É evidente que ela deve se armar até os dentes, formar suas milícias, seus grupos de autodefesa e devolver dez vezes mais cada golpe dos fascistas, cada golpe da repressão. Somente assim a confiança em suas próprias forças pode ser aumentada e a confiança na classe trabalhadora do resto das classes oprimidas e parte das classes médias. [24]
Essa experiência ocorreu no período entre guerras. Na Itália e na Alemanha, para dar os exemplos mais extremos, parte dos ex-combatentes foram afiliados nos grupos de extrema-direita chamados “corpos francos”, que mais tarde nutriram as fileiras dos grupos fascistas e nazistas. Mas, ao mesmo tempo, por exemplo, na experiência italiana, constituiu-se os Arditi del Popolo, que no início dos anos 20 agrupavam os setores de massa de ex-combatentes sob um programa majoritariamente esquerdista (eram uma defecção dos direitistas Arditi, ex-combatentes que formariam fileiras no fascismo). Para além de que o Partido Comunista Italiano não sabia como se relacionar com esse fenômeno ultra-progressivo (tinha uma abordagem sectária), ele existia e, se tivesse uma orientação correta, talvez o processo de fascistização tivesse contornos diferentes. [25]
Este é apenas um exemplo do processo mais amplo de transformar a luta de classes em guerra civil. Leon Trotsky, em seus escritos da década de 1930, por exemplo na França, insistia na necessidade absoluta de promover a autodefesa e o armamento do proletariado, de devolver cada golpe fascista de maneira redobrada, sem confiar, sequer por um momento, na polícia do Estado (orientação social-democrata), unida por mil laços com as formações fascistas. Algo semelhante acontece hoje com o caso de Alba Dorada e a polícia e o exército grego.
4.7 O partido e a insurreição. A complexa mecânica da luta pelo poder
Finalmente, temos o problema do poder e da insurreição. Como discutimos em Ciência e Arte da Política Revolucionária, a tomada do poder é o “momento consciente” por excelência da luta de classes, em que o subjetivo e o objetivo se fundem em um, sempre com base em determinadas condições.
Deve haver uma organização, um partido que se coloque conscientemente essa tarefa, política e praticamente. O poder não cai no colo da classe trabalhadora: deve tomar-se a partir de um plano científico para esse fim, organizado por um centro executor com o máximo cuidado. Por isso, em outubro, Lenin insistiu que o partido organizasse a tomada do poder antes mesmo que se reunisse o II Congresso dos Sovietes, e que o encarregado prático da tomada do poder deveria ser o partido bolchevique. A tomada do poder (amadurecida por todo o conjunto de circunstâncias históricas e políticas) não se referia a um problema de “legalidade” (quem mandata a tomada do poder), mas a uma questão eminentemente prática: qual centro organizador a leva a cabo. [26]
Há também a determinação da avaliação das circunstâncias. Assim, Lenin falava de ciência e arte da insurreição, porque os elementos de análise da situação deveriam ser adicionados à intuição de que as circunstâncias estavam maduras, para que a vanguarda que toma o poder arraste à maioria (ao conjunto do país). Ou, como disse Trotsky, alcançar pelo menos a “neutralidade amigável” dessa maioria e a oposição ativa de apenas uma minoria.
A revolução é um evento “popular”, uma ação da maioria em benefício da maioria. E de uma maioria que é uma “ampla maioria social”, como Lenin disse. No entanto, sob estas condições, é uma vanguarda a que conscientemente se coloca a tarefa prática de tomada do poder, vanguarda que deve ser organizada pelo partido. É uma mecânica complexa, uma dialética entre a classe trabalhadora, seus organismos, sua vanguarda e o partido revolucionário. Essa dialética não admite nenhum mecanismo, e os bolcheviques passaram a entendê-la melhor do que ninguém. Rosa Luxemburgo não chegou a entender isso, exceto em um estágio muito tardio da revolução alemã.
Portanto, sem partido não há tomada do poder; se ocorre sem partido, sua conservação será praticamente impossível. Uma lição que a Revolução Russa trouxe à tona e à qual se lhe pode agregar, a partir da experiência do segundo período do pós-guerra, de que não se trata de qualquer poder, não se trata de que um aparato que fale em “nome” das massas, mas não seja uma expressão direta de suas lutas e necessidades, assuma o poder. O poder deve ser tomado pela classe trabalhadora sobre a base de suas próprias instituições democráticas, sob a liderança do partido revolucionário.
NOTAS:
16. O cientista político de direita simpatizante do nazismo Carl Schmitt não disse outra coisa em sua Teoría del partisano (1962): “O partidário moderno não espera graça ou justiça do inimigo. Deu as costas à inimizade convencional, com suas guerras domesticadas, e foi para um reino de outra verdadeira inimizade, que está enredada em um círculo de terror e contraterror até a total aniquilação. ” Se trata de uma guerra de “inimizade absoluta” que não reconhece nenhum marco.
17. Veja nossa referência ao muro dos comuneiros de Père Lachaise em “As pegadas da história”, Roberto Sáenz, www.socialismo-o-barbarie.org. Traverso conta nas origens da violência nazista como a maioria das vítimas não morreu nos confrontos, mas foi presa, levada para campos de concentração, sumariamente julgada e baleada, sob uma desculpa desumanizante e “social darwinista” que indicava que essas “pessoas” faziam parte de elementos “perigosos e degenerados”, os “mais baixos da escala social” motivados por uma espécie de “animalidade”. Desse modo, a repressão da Comuna de Paris, bem como os eventos da Primeira Guerra Mundial, são tantos dos outros antecedentes do tipo de violência contra-revolucionária incorporada pelo nazismo.
18. No início dos anos 30, ao apontar os fundamentos programáticos da Oposição de Esquerda, Trotsky introduziria um critério metodológico de extrema importância para a questão com a qual estamos lidando aqui: “A Oposição de Esquerda se baseia nos quatro primeiros congressos da Conmintern Isso não significa que ela segue suas decisões à risca, muitas das quais tinham caráter puramente conjectural e foram contraditadas por eventos subsequentes. Mas todos os princípios essenciais (em relação ao imperialismo, o estado burguês, a democracia e o reformismo, os problemas da insurreição; a ditadura do proletariado, sobre as relações com os camponeses e nações oprimidas, o trabalho nos sindicatos, o parlamentarismo, a política das frentes únicas) permanecem, ainda hoje, como a mais alta expressão da estratégia na época da crise geral do capitalismo ”. Em Duncan Hallas, “Leon Trotsky socialista revolucionário”: 41. A citação de Trotsky é retirada de Writings 1932-33: 51-55. Observe que em sua lista Trotsky não inclui as táticas do governo dos trabalhadores.
19. Em “Sobre o retorno da questão político-estratégica”, no mesmo sentido oportunista em questões estratégicas, Bensaïd acrescenta o seguinte: “No mesmo ponto em que estávamos confusos ou golpeados na época [refere-se ao final dos anos 70. RS] pela adesão de Mandel à “democracia mista” com base no reexame das relações entre soviet e constituinte na Rússia. É evidente, de fato, com mais razão nos países da tradição parlamentar mais que centenária, que onde o princípio do sufrágio universal está solidamente estabelecido, um processo revolucionário não poderia ser imaginado senão como uma transferência de legitimidade que consagra a preponderância de um ‘ socialismo pela base ‘, mas em interferência com formas representativas ”. Mas, parece-nos aqui, que dois planos diferentes são erroneamente misturados: a) como as formas diretas de representação soviética podem ganhar sua primazia, em correlação com a experiência que as massas estão fazendo com as formas parlamentares de democracia burguesa e b) a O fato de haver experiências históricas que mostraram que as formas da democracia burguesa sempre foram usadas contra as formas de poder da classe trabalhadora para reabsorvê-las e liquidá-las. Veja o caso da constituinte dissolvida pelos bolcheviques no início de 1918 ou o exemplo inverso da constituinte que estabeleceu a República de Weimar na Alemanha em meados do ano seguinte e que operou, precisamente, dissolvendo as formas soviéticas emergentes no território alemão. A mudança de Mandel para a “democracia mista” foi confusa, o que é observado, mesmo, no exemplo dado por Bensaïd ao invocar essa mesma fórmula, que propõe a correção de que o mandelismo haja apoiado o apelo eleitoral sandinista às eleições de 1990, que o deixou fora do poder sem disparar um único tiro.
20. Às vezes se perde de vista a insistência com que Trotsky fundara no fracasso da revolução alemã de outubro de 1923, a maior derrota do proletariado de sua época, o ponto de articulação para a burocratização da URSS e a podridão da Internacional Comunista e do Partido Bolchevique.
21. Harman e Potter assinalam a respeito o seguinte: “O que estamos apontando não significa que, sob nenhuma circunstância, um governo operário real poderia ocorrer antes da ditadura do proletariado. No passado, houve governos de trabalhadores cuja tarefa mais elementar era armar o proletariado, no entanto, foram exceções extremas. Por exemplo, os casos da Hungria e da Baviera em 1919, onde o poder burguês praticamente entrou em colapso e o governo passou para as mãos de pessoas que se baseavam na consigna do Poder Soviético ”(“O governo dos trabalhadores”). No entanto, acrescentamos que ambas as experiências acabaram frustradas e, em ambos os casos, estava presente o poder gravitacional da Revolução Russa.
22. Raúl Pont, um de seus principais líderes, foi ministro da Agricultura em um governo, como o PT, onde a “reforma agrária” avançou ainda menos do que sob a administração abertamente neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, sem mencionar a fechar os olhos para assassinatos sistemáticos de sem terras por parte dos fazendeiros.
23. O Partido dos Trabalhadores da Argentina acredita que possui uma “audiência de milhões” porque seu dirigente é regularmente convidado para a mídia que se opõe ao governo. Mas se esse convite é uma grande oportunidade para ampliar a influência política geral dos revolucionários, seria uma cegueira criminosa perder de vista, também, o quão relativamente epidérmico que é hoje a “influência da mídia” e a importância de traduzir essa influência difusa geral em força orgânica dentro da classe.
24. Em um nível mais geral, Carl Schmitt, um cientista político ligado ao nazismo, mas muito agudo, disse que Napoleão tinha um respeito máximo pelo combate irregular que rezava que “com partizanos há que se lutar da mesma maneira que os partizanos”.
25. Veja Tom Beham The Resistible Rise of Benito Mussolini. Aparentemente, os ADP chegaram a 20.000 membros organizados em 144 células, ativas em 56 das 71 províncias da Itália. Enzo Traverso também é muito perspicaz na análise da passagem da “política parlamentar” para a guerra civil no período entre guerras.
26. Sabe-se que Trotsky teve um matiz tático com a orientação de Lenin, afirmando que era melhor denunciar que a guarnição de Petrogrado estava sendo retirada da cidade por Kerenski para deixar a capital da revolução à mercê do exército alemão e colocou a necessidade de um Comitê Militar Revolucionário que assumisse sua defesa Foi uma desculpa para lançar a preparação da insurreição, uma posição tática que tinha maioria no CC bolchevique. No entanto, se tratava de uma cobertura política que não mudou a substância da questão levantada por Lênin: que o partido se envolvesse imediatamente, de maneira prática, na organização da tomada do poder.
Tradução: José Roberto Silva
existe uma primeira parte desse artigo?