Reproduzimos o capítulo final do brilhante trabalho “A origem da família, a propriedade privada e o estado”. Apesar dos limites da pesquisa antropológica e histórica da época, este trabalho permanece essencial para compreender a emergência e o desenvolvimento da civilização humana.
Socialismo ou Barbárie, 07/08/2019
A origem da família, da propriedade privada e do Estado
(1884)
IX
Barbárie e Civilização
Acompanhamos o processo de dissolução da gens nos três grandes exemplos particulares dos gregos, romanos e germanos. Para concluir, pesquisaremos as condições econômicas gerais que na fase superior da barbárie minavam já a organização gentílica da sociedade, e acabaram por fazê-la desaparecer, com a entrada em cena da civilização. Para isso, O Capital de Marx vai nos ser tão necessário quanto o livro de Morgan.
Nascida a gens na fase média do estado selvagem, e desenvolvida na fase superior, ela alcançou seu apogeu, segundo nos permitem julgar os documentos de que dispomos, na fase inferior da barbárie. Por essa última, portanto, começaremos a nossa investigação.
Nela, onde os peles-vermelhas americanos vão nos servir de exemplo, encontramos a constituição gentílica completamente desenvolvida. Uma tribo se divide em diversas gens, comumente em duas; com o aumento da população, cada uma das gens primitivas se subdivide em várias gens filhas, para as quais a gens-mãe persiste como fratria; a própria tribo se subdivide em várias tribos, em cada uma das quais, na maioria dos casos, vamos achar as antigas gens; uma confederação, pelo menos em certos casos, une as tribos aparentadas. Essa organização simples é inteiramente adequada às condições sociais que a engendraram. Não é mais do que um agrupamento espontâneo, capaz de dirimir todos os conflitos que possam nascer no seio da sociedade a que corresponde. Os conflitos exteriores são resolvidos pela guerra, que pode resultar no aniquilamento da tribo, mas nunca em sua escravização. A grandeza do regime da gens — e também a sua limitação — é que nele não cabiam a dominação e a servidão. Internamente, não existem diferenças, ainda, entre direitos e deveres; para o índio não existe o problema de saber se é um direito ou um dever tomar parte nos assuntos de interesse social, executar uma vingança de sangue ou aceitar uma compensação; tal problema lhe pareceria tão absurdo quanto a questão de saber se comer, dormir e casar é um dever ou um direito. Nem podia haver, na gens ou na tribo, divisão em diferentes classes sociais. E isso nos leva ao exame da base econômica dessa ordem de coisas.
A população fica muito dispersa e só é relativamente densa no local de residência da tribo, ao redor do qual se estende uma vasta região para a caça, à qual se segue a zona neutra de bosques protetores que separam as tribos umas das outras. A divisão do trabalho é absolutamente espontânea: só existe entre os dois sexos. O homem vai à guerra, incumbe-se da caça e da pesca, procura as matérias-primas para a alimentação, produz os instrumentos necessários para a consecução dos seus fins. A mulher cuida da casa, prepara a comida e confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda em seu domínio: o homem na floresta, a mulher em casa. Cada um é proprietário dos instrumentos que elabora e usa: o homem possui as armas e os petrechos de caça e pesca, a mulher é dona dos utensílios caseiros. A economia doméstica é comunista, abrangendo várias e amiúde numerosas(1) famílias. O resto é feito e utilizado em comum, é de propriedade comum: a casa, as canoas, as hortas. É aqui e somente aqui que nós vamos encontrar “a propriedade fruto do trabalho pessoal”, que os jurisconsultos e economistas atribuem à sociedade civilizada e que é o último subterfúgio jurídico em que se apoia, hoje, a propriedade capitalista.
Mas não foi em todas as partes que os homens permaneceram nessa etapa. Na Ásia, encontraram animais que se deixaram domesticar e puderam ser criados no cativeiro. Antes, era preciso ir à caça para capturar a fêmea do búfalo selvagem; agora, domesticada, ela dava uma cria a cada ano e proporcionava, ainda por cima, leite. Certas tribos mais adiantadas — os árias e os semitas, e talvez os turanianos — fizeram da domesticação e da criação do gado a sua principal ocupação. As tribos pastoras se destacaram do restante da massa dos bárbaros. Esta foi a primeira grande divisão social do trabalho. Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs, couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez, o intercâmbio regular de produtos. Nas fases de evolução anteriores apenas podiam ser realizadas trocas ocasionais. É verdade que uma habilidade excepcional no fabrico de armas e instrumentos pode produzir uma divisão transitória de trabalho. Assim, foram encontrados em muitos lugares restos de oficinas para a fabricação de instrumentos de pedra, procedentes dos últimos tempos da Idade da Pedra. Os artífices que desenvolveram sua habilidade nessas oficinas hão de ter trabalhado por conta da comunidade, como o fazem, ainda hoje, os artesãos das comunidades gentílicas da Índia. De qualquer modo, nessa fase de desenvolvimento, só podia haver troca no seio mesmo da tribo, e ainda assim em caráter excepcional. Mas quando as tribos pastoras se destacaram do resto dos selvagens, encontramos inteiramente formadas as condições necessárias para a troca entre membros de tribos diferentes e para o desenvolvimento e consolidação do comércio como uma instituição regular. A princípio, as trocas se fizeram entre as tribos através dos chefes gentílicos; mas, quando os rebanhos começaram pouco a pouco a ser propriedade privada, a troca entre indivíduos foi predominando mais e mais, até chegar a ser a forma única. O principal artigo oferecido pelas tribos pastoras aos seus vizinhos era o gado; o gado chegou a ser a mercadoria pela qual todas as demais eram avaliadas, mercadoria que era recebida com satisfação em troca de qualquer outra; em uma palavra: o gado desempenhou as funções de dinheiro, e serviu como tal, já naquela época. Foi com essa necessidade e rapidez que se desenvolveu, no início mesmo da tioca de mercadorias, a exigência de uma mercadoria que servisse de, dinheiro.
A horticultura, provavelmente desconhecida dos asiáticos da fase inferior da barbárie, apareceu entre eles mais tarde, na fase média, como precursora da agricultura. O clima dos planaltos turanianos não permite a vida pastoril, a não ser com provisões de forragem para um longo e rigoroso inverno; foi preciso cultivar ali, portanto, os prados e os cereais. O mesmo pode ser dito das estepes situadas ao norte do Mar Negro. Mas, se a princípio o grão foi recolhido para o gado, não tardou a ser também um alimento para o homem. A terra cultivada continuou sendo propriedade da tribo, entregue em usufruto, primeiro à gens, depois às comunidades de famílias, e por último aos indivíduos estes devem ter tido certos direitos de posse — nada além disso.
Entre os descobrimentos industriais dessa fase, há dois especialmente importantes: o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de minerais e o trabalho com metais fundidos. O cobre, o estanho e o bronze — este combinação dos dois primeiros — eram os mais importantes; com o bronze eram fabricados instrumentos e armas, que, entretanto, não podiam substituir os de pedra. Isso só seria possível com o ferro, mas ainda não se sabia de que modo consegui-lo. O ouro e a prata começaram a ser empregados em joias e enfeites, e provavelmente logo alcançaram valor bem mais elevado que o cobre e o bronze.
O desenvolvimento de todos os ramos da produção — criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos — tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas as condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo — necessariamente — a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.
Continuamos ignorando, até agora, quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo ou da gens e passaram a ser patrimônio dos diferentes chefes de família; mas a mudança, no essencial, deve ter ocorrido nessa fase. E, com a aparição dos rebanhos e outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família. O providenciar a alimentação fora sempre assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram produzidos por ele e de sua propriedade ficavam sendo. Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. O “selvagem” — guerreiro e caçador — se tinha conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência à mulher; o pastor, mais “suave”, envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base, para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa — a exclusividade no trato dos problemas domésticos — assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. Esta condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige, e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.
A supremacia efetiva do homem na casa tinha posto por terra os últimos obstáculos que se opunham ao seu poder absoluto. Esse poder absoluto foi consolidado e eternizado pela queda do direito materno, pela introdução do direito paterno e a passagem gradual do matrimônio sindiásmico à monogamia. Mas isso abriu também uma brecha na antiga ordem gentílica: a família individual tornou-se uma potência e levantou-se ameaçadoramente frente à gens.
O seguinte marco de progresso é o que nos leva à fase superior da barbárie — período em que todos os povos civilizados viveram sua época heroica; período da espada de ferro, mas também do arado e do machado de ferro. Ao pôr este metal a seu serviço, o homem se fez dono da última e mais importante das matérias-primas que tiveram, na história, um papel revolucionário; a última, se excetuarmos a batata. O ferro tornou possível a agricultura em grande escala e a preparação, para o cultivo, de grandes áreas de florestas; deu aos artesãos um instrumento cuja dureza e cujo fio jamais haviam podido ter pedra alguma ou qualquer metal. Tudo isso foi acontecendo aos poucos: o primeiro ferro era frequentemente mais mole do que o bronze. Por isso foi lenta a desaparição das armas de pedra; machados de pedra ainda eram usados em combate no Canto de Hildebrando e até na batalha de Hastmgs, em 1066, O progresso, contudo, era irresistível, menos intermitente e mais célere. A cidade, encerrando casas de pedra ou de tijolo dentro das suas muralhas de pedra com torres e ameias, transformou-se na residência central da tribo ou da confederação de tribos. Isso marca um notável progresso na arquitetura, mas é também um sinal do perigo crescente e da necessidade de defesa. A riqueza aumentava com rapidez, mas sob a forma de riqueza individual; a arte de tecer, o trabalho com os metais e outros ofícios de crescente especialização, deram variedade e perfeição sempre maior à produção; a agricultura principiou a fornecer, além de cereais, legumes e frutas, azeites e vinhos, cuja preparação já tinha sido aprendida. Um trabalho tão variado já não podia ser realizado por um só indivíduo e se produziu a segunda grande divisão social do trabalho: o artesanato se separou da agricultura. O constante crescimento da produção, e com ela da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de, trabalho do homem; a escravidão, ainda em estado nascente e esporádico na fase anterior, converteu-se em elemento básico do sistema social. Os escravos deixaram de ser meros auxiliares e eram levados às dezenas para trabalhar nos campos e nas oficinas. Ao dividir-se a produção nos dois ramos principais — agricultura e oficios manuais — surgiu a produção diretamente para a troca, a produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras da tribo como também por mar. Tudo isso ainda estava pouco desenvolvido; os metais preciosos apenas começaram a se converter na mercadoria-moeda preponderante e universal; mas as moedas ainda não eram cunhadas, os metais eram trocados por peso.
A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades. A terra cultivada foi distribuída entre as famílias particulares, a princípio por tempo limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi-se realizando aos poucos, paralelamente à passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou a transformar-se na unidade econômica da sociedade.
A crescente densidade da população exigiu maior união, tanto interna como externamente. Torna-se uma necessidade, em toda parte, a confederação de tribos consanguíneas, e logo a sua fusão; por isso, seus territórios se fundiram no território comum do povo. O chefe militar do povo — rex, basileu, thiudans — veio a tornar-se um funcionário permanente e indispensável. A assembleia do povo foi criada onde ainda não existia. O chefe militar, o conselho e a assembleia do povo constituíam os órgãos da democracia militar egressa da sociedade gentílica. E essa democracia era militar porque a guerra e a organização para a guerra eram, agora, funções regulares na vida do povo. As riquezas dos vizinhos excitavam a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de riquezas como uma das finalidades precípuas da vida. Eram bárbaros: o saque lhes parecia mais fácil e até mais honroso do que o trabalho produtivo. A guerra, feita anteriormente apenas para vingar uma agressão ou com o objetivo de ampliar um território que se tornara insuficiente, era empreendida agora sem outro propósito que o do saque, e se transformou em um negócio permanente. Não era por acaso que se erigiam formidáveis muralhas em torno das novas cidades fortificadas; seus fossos eram o túmulo da gens e suas torres alcançavam já a civilização. Internamente, deu-se o mesmo. As guerras de rapina aumentavam o poder do supremo chefe militar e também dos chefes inferiores; a eleição habitual dos seus sucessores nas mesmas famílias, sobretudo a partir da introdução do direito paterno, passou gradualmente a ser sucessão hereditária — tolerada a princípio, em seguida exigida, e finalmente usurpada; com isso, foram assentados os alicerces da monarquia e da nobreza hereditária. Dessa forma, os órgãos da constituição gentílica foram sendo arrancados de suas raízes populares, raízes na gens, na fratria e na tribo, com o que todo o regime gentílico acabou por se transformar em seu contrário: de uma organização de tribos para a livre regulamentação de seus próprios assuntos, fez-se, uma organização para o saque e a opressão dos vizinhos; e, correspondentemente, seus órgãos deixaram de ser instrumentos da vontade do povo, convertendo-se em órgãos independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo. Isso nunca teria sido possível se a cobiça das riquezas não houvesse dividido os membros da gens em ricos e pobres,
“se as diferenças de propriedade no seio de uma mesma gens não tivessem transformado a comunhão de interesses em antagonismo entre os membros da gens” (Marx)
e se o incremento da escravidão já não tivesse começado a fazer considerar o trabalho para ganhar a vida como algo para escravos, mais desonroso do que a pilhagem.
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Chegamos aos umbrais da civilização, que se inicia por outro progresso na divisão do trabalho. No período inferior, os homens produziam somente para as suas necessidades diretas; as trocas reduziam-se a casos isolados e tinham por objeto os excedentes obtidos por acaso. Na fase média da barbárie já nos defrontamos com uma propriedade em forma de gado, entre os povos pastores, e, quando os rebanhos são bastante grandes, com uma produção com excedente regular sobre o consumo próprio; ao mesmo tempo, verificamos uma divisão do trabalho entre os povos pastores e as tribos mais atrasadas, que não tinham rebanhos; e daí dois diferentes graus de produção coexistindo, o que implica em condições para uma certa regularidade de troca. A fase superior da barbárie nos traz uma divisão ainda maior do trabalho: a divisão entre a agricultura e o artesanato; e daí a produção cada vez maior de objetos fabricados diretamente para a troca, e a elevação da troca entre produtores individuais à categoria de necessidade vital da sociedade. A civilização consolida e aumenta todas essas divisões do trabalho já existentes, acentuando sobretudo o contraste entre a cidade e o campo (contraste Que permitiu à cidade dominar economicamente o campo — como na antiguidade — ou ao campo dominar economicamente a cidade, como na Idade Média), e acrescenta uma terceira divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, criando uma classe que não se ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca dos produtos: os comerciantes.
Até aqui, apenas a produção havia determinado os processos de formação de classes novas; as pessoas que tomavam parte nela se dividiam em diretores e executores, ou em produtores em grande e pequena escala. Agora, surge uma classe que, sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a direção geral da mesma e avassala economicamente os produtores: uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e os explora a ambos. Sob o pretexto de poupar aos produtores as fadigas e os riscos da troca de produtos, de encontrar saída para os produtos até nos mercados mais distantes, tornando-se assim a classe mais útil da sociedade, forma-se uma classe de aproveitadores, uma classe de verdadeiros parasitas sociais, que, em compensação por seus serviços, na realidade insignificantes, retira a nata da produção nacional e estrangeira, concentra rapidamente em suas mãos riquezas enormes e adquire uma influência social correspondente a estas, ocnmndo, por isso mesmo, no decurso desse período de civilização, posição de mais e mais destaque, logrando um domínio sempre maior sobre a produção, até gerar um produto próprio: as crises comerciais periódicas.
É verdade que, no estágio de desenvolvimento que estamos analisando, a nascente classe dos comerciantes ainda não suspeitava das grandes coisas que lhe estavam reservadas. Mas se formou e se tornava indispensável — e isso era suficiente. Com ela, veio o dinheiro-metal, a moeda cunhada, novo meio para que o não-produtor dominasse o produtor e sua produção. Havia sido encontrada a mercadoria por excelência, que encerra em estado latente todas as demais, o instrumento mágico que se transforma, à vontade, em todas as coisas desejadas e desejáveis. Quem o possuía era dono do mundo da produção. E quem o possuiu antes de todos? O comerciante. Era suas mãos, o culto do dinheiro estava garantido. O comerciante tratou de tornar claro que todas as mercadorias, e com elas os seus produtores, deveriam prosternar-se ante o dinheiro. Provou de maneira prática que as demais formas de riqueza não passavam de quimeras, em face dessa genuína encarnação da riqueza como tal. De então para cá, nunca c poder do dinheiro se manifestaria com tanta brutalidade e violência primitiva como naquele período de sua juventude. Em seguida à compra de mercadorias por dinheiro, vieram os empréstimos, e com eles os juros e a usura. Nenhuma legislação posterior submete, de maneira tão dura e irremissível, o devedor ao credor usurário, como o faziam as leis da antiga Atenas o da antiga Roma; e, nos dois casos, essas leis nasceram espontaneamente, sob a forma de direito consuetudinário, não sujeitas a outra compulsão que a economia.
Ao lado da riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza em dinheiro, apareceu a riqueza em terras. A posse de parcelas do solo, concedida primitivamente pela gens ou pela tribo aos indivíduos, fortalecera-se a tal ponto que a terra já podia ser transmitida por herança. O que nos últimos tempos eles exigiam antes de tudo era ficarem livres dos direitos que as comunidades gentílicas tinham sobre essas parcelas, direitos que para eles se tinham transformado em obstáculos. O obstáculo desapareceu, mas em pouco tempo também desaparecia a nova propriedade territorial. A propriedade livre e plena do solo significava não só a posse integral do mesmo, sem nenhuma restrição, como, ainda, a faculdade de aliená-lo. Esta faculdade não existiu quando o solo era propriedade da gens. Quando, porém, o obstáculo da propriedade suprema da gens e da tribo foi suprimido pelo novo proprietário, em caráter definitivo, se rompeu também o vínculo que unia indissoluvelmente o proprietário ao solo. O que isto significava ensinou-lhe o dinheiro, que se inventou justamente ao tempo do advento da propriedade privada da terra. A terra, agora, podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou penhorada. Logo que se introduziu a propriedade privada da terra, criou- se a hipoteca (vide Atenas). Tal como o heterismo e a prostituição pisam os calcanhares da monogamia, a hipoteca adere à propriedade imóvel. Não quiseste a plena, livre e alienável propriedade do solo? Pois aqui a tens. “Tu l’as voulu, Georges Dandin!”(2)
Com a expansão do comércio, o dinheiro, a usura, a propriedade territorial e a hipoteca, progrediram rapidamente a centralização e a concentração das riquezas nas mãos de uma classe pouco numerosa, o que se fez acompanhar do empobrecimento das massas e do aumento numérico dos pobres. A nova aristocracia da riqueza acabou por isolar a antiga nobreza tribal, em todos os lugares onde não coincidiu com ela (em Atenas, em Roma e entre os germanos). E essa divisão de homens livres em classes, de acordo com seus bens, foi seguida, sobretudo na Grécia, de um extraordinário aumento no número dos escravos,(3) cujo trabalho forçado constituía base de todo o edifício social.
Vejamos agora qual foi a sorte da gens no curso dessa revolução social. Ela era impotente diante dos novos elementos que se tinham desenvolvido sem o seu concurso. Sua primeira condição de existência era que os membros de uma gens ou de uma tribo estivessem reunidos no mesmo território e habitassem exclusivamente nele. Esse estado de coisas já tinha desaparecido há muito. Gens e tribos se achavam misturadas em toda parte; em toda parte, escravos, clientes e estrangeiros viviam no meio dos cidadãos. A vida sedentária somente alcançada em fins da fase média da barbárie via-se alterada com frequência pela movimentação e pelas mudanças de residência devidas ao comércio, bem como pela mudança dos ocupantes e pelas vendas das terras. Os membros das uniões gentílicas já não se podiam reunir para resolver assuntos comuns; a gens ocupava-se apenas de coisas secundárias, como festas religiosas, e com indiferença. Paralelamente às necessidades e interesses para cuja defesa se tinham formado e eram aptas as uniões gentílicas, a revolução nas relações econômicas e a consequente diferenciação social haviam criado novas necessidades e novos interesses, não só estranhos, mas até opostos, em todos os sentidos, à velha ordem da gens. Os interesses dos grupos de artesãos, nascidos da divisão do trabalho, as necessidades específicas da cidade, opostas às do campo, exigiam órgãos novos; mas cada um desses grupos se compunha de pessoas pertencentes às mais diversas gens, fratrias e tribos, e até de estrangeiros. Os novos órgãos, portanto, tinham que se formar necessariamente fora do regime gentílico, independentemente dele — e, pois, em detrimento do mesmo. Em cada corporação gentílica, por sua vez, se fazia sentir esse conflito de interesses, que culminava quando se defrontavam pobres e ricos, usurários e devedores, dentro da mesma gens e da mesma tribo. A tudo isso, vinha juntar-se a população nova, estranha às associações gentílicas, que podia chegar a ser uma força no país (como aconteceu em Roma) e que, ao mesmo tempo, era bastante numerosa para poder ser admitida gradualmente nas estirpes e tribos consanguíneas. Em face dessa população, as uniões gentílicas figuravam como corporações fechadas, privilegiadas; a democracia primitiva, espontânea, transformara-se numa detestável aristocracia. Em uma palavra: a constituição da gens, fruto de uma sociedade que não conhecia antagonismos interiores, era adequada apenas para semelhante sociedade. Ela não tinha outros meios coercitivos além da opinião pública. Acabava de surgir, no entanto, uma sociedade que, por força das condições econômicas gerais de sua existência, tivera que se dividir em homens livres e escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser levados a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em meio a uma luta aberta e incessante das classes entre si. ou sob o domínio de um terceiro poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse os conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi destruído pela divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e substituído pelo Estado.
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Já estudamos, uma a uma, as três formas principais de como o Estado se erigiu sobre as ruínas da gens. Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica: ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classe que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar. Como, porém, a essa conquista não correspondia uma luta séria com a antiga população, nem uma divisão de trabalho mais avançada; como o grau de desenvolvimento econômico de vencidos e vencedores era quase o mesmo — e por conseguinte persistia a antiga base econômica da sociedade — a gens pôde manter-se ainda por muitos séculos, sob uma forma modificada, territorial, na constituição da marca, e até rejuvenescer durante certo tempo, sob uma forma atenuada, nas famílias nobres e patrícias dos anos posteriores, e mesmo em famílias camponesas, como em Dithmarschen.(4)
O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é “a realidade da ideia moral”, nem “a imagem e a realidade da razão”, como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.
Distinguindo-se da antiga organização gentílica, o Estado caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo agrupamento dos seus súditos de acordo com uma divisão territorial. As velhas associações gentílicas, constituídas e sustentadas por vínculos de sangue, tinham chegado a ser, como vimos, insuficientes em grande parte, porque supunham a ligação de seus membros a um determinado território, o que deixara de acontecer há bastante tempo. O território permanecera, mas os homens se haviam tomado móveis. Tomada a divisão territorial como ponto de partida, deixou-se aos cidadãos o exercício dos seus direitos e deveres sociais onde estivessem estabelecidos, independentemente das gens e das tribos. Essa organização dos súditos do Estado conforme o território é comum a todos os Estados. For isso nos parece natural; mas, em capítulos anteriores vimos como foram necessárias renhidas e longas lutas antes que em Atenas e Roma ela pudesse substituir a antiga organização gentílica.
O segundo traço característico é a instituição de uma força pública, que já não mais se identifica com o povo em armas. A necessidade dessa força pública especial deriva da divisão da sociedade em classes, que impossibilita qualquer organização armada espontânea da população. Os escravos integravam, também, a população; os 90 000 cidadãos de Atenas só constituíam ama classe privilegiada em confronto com os 365 000 escravos. O exército popular da democracia ateniense era uma força pública aristocrática contra os escravos, que mantinha submissos; todavia, para manter a ordem entre os cidadãos, foi preciso também criar uma força de polícia, como falamos anteriormente. Esta força pública existe em todo Estado; é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo gênero, desconhecidos pela sociedade da gens. Ela pode ser pouco importante e até quase nula nas sociedades em que ainda não se desenvolveram os antagonismos de classe, ou em lugares distantes, como sucedeu em certas regiões e em certas épocas nos Estados Unidos da América. Mas se fortalece na medida em que se exacerbam os antagonismos de classe dentro do Estado e na medida em que os Estados contíguos crescem e aumentam de população. Basta-nos observar a Europa de hoje, onde a luta de classes e a rivalidade nas conquistas levaram a força pública a um tal grau de crescimento que ela ameaça engolir a sociedade inteira e o próprio Estado.
Para sustentar essa força pública, são exigidas contribuições por parte dos cidadãos do Estado: os impostos. A sociedade gentílica não teve ideia deles, mas nós os conhecemos muito bem. E, com os progressos da civilização, os impostos, inclusive, chegaram a ser pouco; o Estado emite letras sobre o futuro, contrai empréstimos, contrai dívidas do Estado. A velha Europa está em condições de nos falar, por experiência própria, também disso.
Donos da força pública e do direito de recolher os impostos, os funcionários, como órgãos da sociedade, põem-se então acima dela. O respeito livre e voluntariamente tributado aos órgãos da constituição gentílica já não lhes basta, mesmo que pudessem conquistá-lo; veículos de um poder que se tinha tornado estranho à sociedade, precisam impor respeito através de leis de exceção, em virtude das quais gozam de uma santidade e uma inviolabilidade especiais. O mais reles dos beleguins do Estado civilizado tem mais “autoridade” do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; no entanto, o príncipe mais poderoso, o maior homem público, ou general, da civilização pode invejar o mais modesto dos chefes de gens, pelo respeito espontâneo e indiscutido que lhe professavam. Este existia dentro mesmo da sociedade, aqueles veem-se compelidos a pretender representar algo que está fora e acima dela.
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o instado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por exceção há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo império alemão da nação bismarckiana: aqui, capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados “junkers” prussianos.
Além disso, na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem. Foi o que vimos em Atenas e em Roma, onde a classificação da população era estabelecida pelo montante dos bens. O mesmo acontece no Estado feudal da Idade Média, onde o poder político era distribuído conforme a importância da propriedade territorial. E é o que podemos ver no censo eleitoral dos modernos Estados representativos. Entretanto, esse reconhecimento político das diferenças de fortuna não tem nada de essencial; pelo contrário, revela até um grau inferior de desenvolvimento do Estado. A república democrática — a mais elevada das formas de Estado, e que, em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada vez mais iniludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia — não mais reconhece oficialmente as diferenças de fortuna. Nela, a riqueza exerce seu poder de modo indireto, embora mais seguro. De um lado, sob a forma de corrupção direta dos funcionários do Estado, e na América vamos encontrar o exemplo clássico; de outro lado, sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa. Tal aliança se concretiza com facilidade tanto maior quanto mais cresçam as dívidas do Estado e quanto mais as sociedades por ações concentrem em suas mãos, além do transporte, a própria produção, fazendo da Bolsa o seu centro. Tanto quanto a América, a nova república francesa é um exemplo muito claro disso, e a boa e velha Suíça também traz a sua contribuição nesse terreno. Mas, que a república democrática não é imprescindível para essa fraternal união entre Bolsa e governo, prova-o, além da Inglaterra, o novo império alemão, onde não se pode dizer quem o sufrágio universal elevou mais alto, se Bismarck, se Bleichröder. E, por último, é diretamente através do sufrágio universal que a classe possuidora domina. Enquanto a classe oprimida — em nosso caso, o proletariado — não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala da extrema esquerda. Na medida, entretanto, em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado atual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão — tanto quanto os capitalistas — o que lhes cabe fazer.
Portanto, o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada à divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo à produção mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze.
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De tudo que dissemos, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil — que compreende uma e outra — atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior.
Em todos os estágios anteriores da sociedade, a produção era essencialmente coletiva e o consumo se realizava, também, sob um regime de distribuição direta dos produtos, no seio de pequenas ou grandes coletividades comunistas. Essa produção coletiva era levada a cabo dentro dos mais estreitos limites, mas ao mesmo tempo os produtores eram senhores de seu processo de produção e de seus produtos. Sabiam o que era feito do produto: consumiam-no, ele não saía de suas mãos. E, enquanto a produção se realizou sobre essa base, não pôde sobrepor-se aos produtores, nem fazer surgir diante deles o espectro de poderes estranhos, como sucede, regular e inevitavelmente, na civilização.
Nesse modo de produzir, porém, foi-se introduzindo lentamente a divisão do trabalho. Minou a produção e a apropriação em comum, erigiu em regra dominante a apropriação individual, criando, assim, a troca entre indivíduos (já examinamos como, anteriormente). Pouco a pouco, a produção mercantil tornou-se a forma dominante.
Com a produção mercantil — produção não mais para o consumo pessoal e sim para a troca — os produtos passam necessariamente de umas para outras mãos. O produtor separa-se de seu produto na troca, e já não sabe o que é feito dele. Logo que o dinheiro, e com ele o comerciante, intervém como intermediário entre os produtores, complica-se o sistema de troca e torna-se ainda mais incerto o destino final dos produtos. Os comerciantes são muitos, e nenhum deles sabe o que o outro está fazendo. As mercadorias agora não passam apenas de mão em mão, mas também de mercado a mercado; os produtores já deixaram de ser os senhores da produção total das condições de sua própria vida, e tampouco os comerciantes chegaram a sê-lo. Os produtos e a produção estão entregues ao acaso.
Mas o acaso não é mais que um dos polos de uma interdependência, da qual o outro polo se chama necessidade. Na natureza, onde também parece imperar o acaso, faz muito tempo que pudemos demonstrar, em cada domínio específico, a necessidade imanente e as leis internas que se afirmam em tal acaso. E o que é certo para a natureza também o é para a sociedade. Quanto mais uma atividade social, uma série de processos sociais, escapam do controle consciente do homem, quanto mais parecem abandonados ao puro acaso, tanto mais as leis próprias, imanentes, do dito acaso se manifestam como uma necessidade natural. Leis análogas também regem as eventualidades da produção mercantil e da troca de mercadorias; frente ao produtor e ao comerciante isolados, aparecem como forças estranhas e no início até desconhecidas, cuja natureza precisa ser laboriosamente investigada e estudada. Estas leis econômicas da produção mercantil modificam-se de acordo com os diversos graus de desenvolvimento dessa forma de produção; mas todo o período da civilização, em geral, está regido por elas. Até hoje, o produto ainda domina o produtor; até hoje, toda a produção social ainda é regulada, não segundo um plano elaborado coletivamente, mas por leis cegas que atuam com a força dos elementos, em última instância nas tempestades dos períodos de crise comercial.
Vimos como, numa fase bastante primitiva do desenvolvimento da produção, a força de trabalho do homem se tornou apta pari produzir consideravelmente mais do que era preciso para a manutenção do produtor, e como essa fase de desenvolvimento é, no essencial, a mesma em que nasceram a divisão do trabalho e a troca entre indivíduos. Não se demorou muito a descobrir a grande “verdade” de. que também o homem podia servir de mercadoria, de que a força de trabalho do homem podia chegar a ser objeto de troca e consumo, desde que o homem se transformasse em escravo. Mal os homens tinham descoberto a troca e começaram logo a ser trocados, eles próprios. O ativo se transformava em passivo, independentemente da vontade humana.
Com a escravidão, que atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em uma classe que explorava e outra que era explorada. Esta cisão manteve-se através de todo o período civilizado. A escravidão é a primeira forma de exploração, a forma típica da antiguidade: sucedem-na a servidão na Idade Média e o trabalho assalariado nos tempos modernos. São as três formas de avassalamento que caracterizam as três grandes épocas da civilização. A civilização faz-se sempre acompanhar da escravidão — a princípio franca, depois mais ou menos disfarçada.
O estágio da produção de mercadorias com que começa a civilização caracteriza-se, do ponto-de-vista econômico, pela introdução:
- da moeda metálica (e, com ela, o capital em dinheiro), dos juros e da usura;
- dos comerciantes como classe intermediária entre os produtores;
- da propriedade privada da terra e da hipoteca;
- do trabalho escravo como forma predominante na produção.
A forma de família que corresponde à civilização e vence definitivamente com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a mulher, e a família individual como unidade econômica da sociedade. A força de coesão da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada. Também são características da civilização: por um lado, a fixação da oposição entre a cidade e o campo como base de toda a divisão do trabalho social e, por outro lado, a introdução dos testamentos, por meio dos quais o proprietário pode dispor de seus bens ainda depois de morto. Essa instituição, que era um golpe direto na velha constituição gentílica, não foi conhecida em Atenas, mesmo no tempo de Solon; foi introduzida bastante cedo em Roma, mas ignoramos em que época,(5) Na Alemanha, implantaram-na os padres, para que os cândidos alemães pudessem, sem dificuldade, deixar legados para a Igreja.
Baseada nesse regime, a civilização realizou coisas de que a antiga sociedade gentílica jamais seria capaz. Mas as realizou pondo em movimento os impulsos e as paixões mais vis do homem e em detrimento das suas melhores disposições. A ambição mais vulgar tem sido a força motriz da civilização, desde seus primeiros dias até o presente; seu objetivo determinante é a riqueza, e outra vez a riqueza, e sempre a riqueza — mas não a da sociedade, e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo. Se, na busca desse objetivo, a ciência tem-se desenvolvido cada vez mais e têm-se verificado períodos de extraordinário esplendor nas artes, é porque sem isso teriam sido impossíveis, na sua plenitude, as atuais realizações na acumulação de riquezas.
Desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, isto é. da imensa maioria. Cada benefício para uns é necessária- mente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra. A prova mais eloquente a respeito é a própria criação da máquina, cujos efeitos, hoje, são sentidos pelo mundo inteiro. Se entre os bárbaros, como vimos, é difícil estabelecer a diferença entre os direitos e os deveres, com a civilização estabelece-se entre ambos uma distinção e um contraste evidentes para o homem mais imbecil, atribuindo- se a uma classe quase todos os direitos e à outra quase todos os deveres.
Mas não deve ser assim. O que é bom para a classe dominante deve ser bom para a sociedade, com a qual a classe dominante se identifica. Quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a encobrir os males que traz necessariamente consigo, ocultando-os com o manto da caridade, enfeitando-os ou simplesmente negando-os. Em uma palavra: elabora-se uma hipocrisia convencional, desconhecida pelas primitivas formas de sociedade e pelos primeiros estágios da civilização, que culmina com a declaração de que a classe opressora explora a classe oprimida exclusiva e unicamente para o próprio beneficio desta. E, se a classe oprimida não o reconhece, e até se rebela, isso, além do mais, revela sua mais negra ingratidão para com seus benfeitores, os exploradores.(6)
Para concluir, vejamos agora o julgamento da civilização por Morgan:
“Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumente da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força incontrolável, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é a finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu desde o início da civilização não passa de uma fiação ínfima da existência passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico — cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza — porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a razão, e a ciência. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob uma forma superior.” (Morgan, A Sociedade Antiga, pág. 502).
Notas de rodapé:
(1) Sobretudo nas costas norte-ocidentais da América (ver Bancroft). Entre os haidas do arquipélago da Rainha Carlota, podem encontrar-se núcleos de economia doméstica abrangendo até setecentas pessoas, sob um só teto. Entre os notkas, tribos inteiras viviam sob o mesmo teto. (Nota de Engels) (retornar ao texto)
(2) Na comédia George Dandin, de Molière, o herói faz questão de casar-se com uma mulher de condições sociais superiores à sua, e, casando-se, é obrigado a suportar todas as extravagâncias da esposa. Um dia exclama para si mesmo: «Tu l’as voulu. Georges Dandin, tu l’as voulu!» (Tu quiseste, George Dandin, tu quiseste!). A frase tornou-se proverbial. (Nota do Tradutor)
(3) Veja-se na página 117 o total dos escravos em Atenas. Em Corinto, nos últimos tempos de grandeza da cidade, era de 460.000; em Egina, de 470.000; nos dois casos o número de escravos era de dez vezes o dos cidadãos livres. (nota de Engels). Engels dá a página da quarta edição em alemão. No presente livro, ver página 96. (N. da R.)
(4) O primeiro historiador que teve ideia, pelo menos aproximada, da natureza da gens foi Niebuhr. e isso graças ao conhecimento que tinha da gens dithmársica, ao qual deve também os erros convencionais que não submeteu à crítica. (Nota de Engels)
(5) O Sistema dos Direitos Adquiridos (Das System der erworbenen Rechte) de Lassale, em sua segunda parte, gira principalmente em torno da tese de que o testamento romano é tão antigo quanto a própria Roma, que «nunca houve uma época sem testamento» na história de Roma e que o testamento nasceu do culto aos mortos, muito antes da época romana. Lassale, como bom hegeliano da velha escola, não faz derivar as disposições do Direito Romano das relações sociais dos romanos e sim do «conceito especulativo» da vontade, chegando, assim, a esta afirmação inteiramente anti-histórica. Não se deve estranhar isso num livro que, em virtude desse mesmo conceito especulativo, chega à conclusão de que na herança romana a transmissão dos bens era uma questão meramente acessória. Lassale não se limita a crer nas ilusões dos jurisconsultos romanos, sobretudo da primeira fase: vai além delas. (Nota de Engels)
- Tive a intenção de valer-me da brilhante critica à civilização que se encontra esparsa nas obras de Charles Fourier, para expô-la paralelamente à de Morgan e à minha. Infelizmente, não tive tempo. Farei notar apenas que Fourier considerava a monogamia e a propriedade da terra como as instituições mais características da civilização, que ele chama uma guerra dos ricos contra os pobres. Em seu trabalho, já encontramos, também, uma apreciação profunda do fato de, em todas as sociedades defeituosas e cheias de antagonismos, as famílias individuais («les familles incohérentes») são unidades econômicas. MacLennan chama de “tribos” exógamas aos primeiros, endógama a estas últimas e, muitas vezes e sem mais circunlóquios, ele aponta que há uma antítese bem marcada entre as “tribos” exogâmicas e endógamas. E mesmo quando suas próprias investigações sobre a exogamia colocam em seus olhos o fato de que essa antítese em muitos, se não na maioria ou mesmo em todos os casos, existe apenas em sua imaginação, é por isso que ele não pára de tomá-la como base. de toda a sua teoria. De acordo com isso, as tribos exogâmicas não podem tomar mulheres, senão de outras tribos, que, dada a permanente guerra entre as tribos, tão típica do estado selvagem, só pode ser feita através do rapto. (Nota de Engels)