A VIGÊNCIA DO “QUE FAZER?” EM NOSSA ÉPOCA
Lênin no século XXI (1)
“Uma análise do Leninismo deve ser uma história do mesmo em sua evolução vivente.”
Marcel Liebman, “Leninism under Lenin”
POR ROBERTO SÁENZ
PREFÁCIO
A necessidade da organização revolucionária para arder o “mundo líquido”
RICARDO SILVA
A crise econômica mundial nos trouxe uma situação que a cada dia mais parece demonstrar que o “mundo líquido” pós-modernista1, espécie de estado plasmado de realidade, em que não mais haveria a possibilidade de mobilização entre as pessoas por causas coletivas, finda-se cada dia mais como impressionismo histórico. Em realidade, as brasas de inúmeras rebeliões hoje ardem perpassando todo o globo, desde seu “surgimento” explosivo, no fogo auto imolado de um jovem vendedor de frutas na Tunísia até as diversas chamas que pululam mundialmente, tendo talvez como epicentro hoje a marcha dos trabalhadores espanhóis e as rebeliões na Síria. No entanto, ainda que tais rebeliões e manifestações deem-se abundantemente pelo mundo, acabam possuindo um caráter muitas vezes dispersivo, tanto pelos seus limites programáticos, por sua falta de centralidade em muitos casos, quanto devido à ação oportunista de certas centrais sindicais e organizações políticas (partidos) cooptadas. Nesse sentido, este caráter dispersivo tende a um isolamento que não consegue transpor os limites de sua própria luta (sindical, econômica, etc.), o que dificulta o avanço da luta revolucionária contra um sistema capitalista centralizado, isto é, na forma de estados nacionais e organismos de poder econômico-políticos internacionais burgueses. Assim, apresentamos o artigo de Roberto Sáenz “Lênin no século XXI” que objetiva demonstrar a vigência historicamente necessária de partido revolucionário (no que tange a diversos aspectos, como apenas para citar um exemplo, a unificação e coordenação das lutas para além do mero âmbito econômico, corporativo, regional) mesmo depois de cerca de um século de sua elaboração, e das importantes contribuições de Gramsci, Luxemburgo, Trotsky e, principalmente, de Lênin.
O “resgate” da teoria do conhecimento em Lênin
Partindo desta perspectiva, focalizada sobretudo em Lênin, Sáenz começa seu texto visando demonstrar certos “equívocos” presentes na abordagem de alguns autores que buscaram discutir a obra de Lênin (como Anton Pannekoek, Karl Korsch, ou mais atualmente, Mike Rooke). Tais abordagens, segundo Sáenz, fazem uma leitura “superficial, mecânica e antidialética” da obra de Lênin, sobretudo, porque tal leitura não se dá segundo um critério rigoroso de abordagem, pautado por uma visão dinâmica da obra do autor, observando-a de conjunto, a partir do próprio processo de transformação militante do autor (tanto prático quanto teórico, em sua correspondência dialética). Nesse sentido, indo de encontro à perspectiva “equivocada” desses autores, Sáenz se baseia em dois textos do próprio Lênin, o primeiro, Materialismo e Empiriocriticismo, livro ainda influenciado, segundo o autor, pelas tendências filosóficas da II Internacional e, o segundo, Cadernos Filosóficos, livro posterior e mais maduro, sobretudo devido à leitura que Lênin faz da Lógica de Hegel,entre outros escritos.
Se os críticos de Lênin acusam-no de proceder a partir de um materialismo dualista, isto é, segundo “a aceitação do ser objetivo (matéria) como independente da consciência (mente)”, Sáenz vai elucidar esta crítica, afirmando que a teoria do conhecimento em Lênin, apresentava desde Materialismo e Empiriocriticismo um critério correto de partida para o entendimento da realidade, isto é, o materialista (“no sentido do reconhecimento dos objetos fora da mente”) e que, além disso, os limites e unilateralidades de Lênin foram superados não só por sua “prática dialética e revolucionária, mas também de maneira consciente e explícita nos Cadernos filosóficos”. No entanto, apesar de seu critério materialista, o Lênin de Materialismo e Empiriocriticismo insistia que as “representações teóricas em nossas cabeças eram apenas cópias do mundo real”, o que denota um caráter apenas contemplativo à realidade (Feurbachiano)2, que tende a conceber as coisas apenas pela sua aparência imediata (o que pode levar a distorção da realidade, ou seja, ao fetichismo), deixando de lado um importante elemento dialético do materialismo marxiano, isto é, a interação do sujeito com o mundo real, ou como coloca Vázquez, ao falar da concepção praxeológica de Marx, que “o materialismo marxiano vê o objeto como produto social da atividade prática humana” 3.
A partir da leitura da Lógica de Hegel, e já nos Cadernos Filosóficos, Lênin terá acesso ao “lado ativo do pensamento”, ao “lado ativo do sujeito”, e esta relação dialética entre o sujeito e a realidade, pensamento e realidade, desembocará numa nova compreensão sobre a aquisição da consciência política de classe que se traduzirá na “superação do caráter passivo ou desde fora da aquisição da consciência”, e também na distinção entre “a consciência imediata (sindicalista) e a mediata (política)”. Estas percepções serão fundamentais para a sua militância político-prática e, poderíamos dizer, demonstram-se ainda necessárias e essenciais para a atualidade.
As relações entre teoria do conhecimento e aquisição da consciência socialista e a concepção de luta concêntrica de Engels.
Assim, se a teoria do conhecimento e a aquisição da consciência socialista estão relacionadas, tal relação não pode ser estabelecida de maneira idealista (igualando diretamente, sem perceber as especificidades de cada uma, a teoria do conhecimento à aquisição da consciência política como o faz Mandel) ou mecânica (abordando a aquisição da consciência como uma espécie de “receita”, como faz Moreno). Tais desvios podem gerar tanto concepções que tendem a um vanguardismo (onde a consciência viria “desde fora” das massas, a partir unicamente de elementos externos) ou a um reducionismo que tende a apagar toda a especificidade da atividade dialética do partido frente à classe e, outrossim, pode colocar a mesma classe em um plano de passividade total.
Em sentido contrário a isto, Sáenz coloca que a aquisição da consciência política: “(…) alude, em uma importante medida,à problemática do conhecimento político-prático, guiado pela atividade, da totalidade das relações de classe na sociedade. A escola da classe operária é, efetivamente, a luta de classes, não o colégio ou a universidade. E nesta “escola” a classe operária aprende por experiência própria (como repetia uma e mil vezes Lênin). Porém precisamente ali surge uma dificuldade, e é no terreno dessa dificuldade onde se coloca, precisamente, a imprescindível necessidade do partido” (p. 27-28). Se a própria luta de classes é o agente capaz de formar uma consciência embrionária aos operários, dentro da dinâmica diária das lutas e da pressão que lhes é exercida por fatores como a ideologia burguesa ou de ordem material – demissões, enfrentamento com a polícia, etc -, ela pode por vezes se “enregelar” numa perspectiva materialista, mas por vezes fetichista da realidade, o que por sua vez, pode criar limites dialéticos a sua luta, fazendo com que ela desemboque num espontaneísmo ou mesmo num economicismo (e aqui, ressalve-se, que tal processo não se dá de maneira mecânica4). Como bem coloca Sáenz: “ (…) qualquer materialismo – deve dar espaço para um esforço específico de interpretação, para um elemento teórico que intervenha entre a percepção e a consciência, superando o caráter fetichizado da realidade”. (p. 28)
A isto poderíamos acrescentar a concepção de luta “concêntrica” de Engels, que em seu livro A guerra camponesa na Alemanha, apontava o caminho certo que percorriam os operários alemães ao conduzir sua luta em três direções – “teórica, política e econômica-prática (resistência contra capitalistas) -, coordenadas e articuladas entre si” (In: LENIN, Que fazer?, p. 84.). Assim sendo, Sáenz não refuta a ideia de que as massas trabalhadoras possam desenvolver espontaneamente seus próprios organismos de autodeterminação ou de democracia de base (ele mesmo aponta como a experiência latinoamericana dos últimos tempos evidenciou isso), contudo, estas massas não tendem a chegar sozinhas em um âmbito de consciência de classe socialista, isto é, de “transformação completa da sociedade”. A questão é que como colocava Lênin, a classe operária é a que, pela própria dinâmica de sua realidade, tende ao socialismo, no entanto, apenas tende, pois por outro lado, ela é a que também sofre as maiores influências da ideologia capitalista, e sobretudo das condições objetivas dilacerantes que o capitalismo lhe impõe. E assim, dada a sua situação dentro da sociedade burguesa, esta classe continua em grande parte refletindo a ideologia dominante, permanecendo assim presa a formas intelectuais e emocionais do capitalismo.
O metabolismo entre a classe trabalhadora, vanguarda e partido revolucionário (a extrapolação do mero âmbito espontâneo ou economicista). Deste modo, faz-se essencial o metabolismo entre a classe trabalhadora, sua vanguarda e o partido revolucionário. Não somente porque é o partido quem pode, na relação dialética entre classe e partido, colaborar na formação de uma percepção crítica ativa que vá para além do fetichismo do real e de toda ideologia capitalista, enfatizando o aspecto “concêntrico” da luta, mas também, pois ele pode, se tiver como uma perspectiva revolucionária de fato, colaborar para que a classe extrapole o mero âmbito espontâneo ou ainda economicista (isto é, de lutas ou reivindicações salariais ou por direitos, etc.) de suas lutas, para atingir uma perspectiva que vise a transformação da sociedade como um todo. É esta a ótica de Saénz quando coloca que a política socialista revolucionária não deve ser mera atividade espontânea da própria classe trabalhadora, mas sim, entendida como uma totalidade e como uma prática da totalidade.
Visando esta totalidade e entendendo os limites dados a luta dos operários e da aquisição da consciência socialista por eles, Sáenz postula que é evidente que “faz falta alguma organização específica que facilite, que tome como parte de suas tarefas práticas e teóricas, essa aquisição da consciência por parte das massas trabalhadoras”. Porque, para que a consciência socialista se “manifeste” é necessário um fator que “seja ativo neste sentido”, na perspectiva do todo, para além da luta espontânea, e que demonstre a totalidade da mudança social necessária para retirar a classe operária da sua “condição de explorada e oprimida”. É claro que este fator ativo não é externo à classe, mas na verdade, ele deve ser “propriamente uma parte específica e diferenciada da própria classe trabalhadora”,ou como o próprio Sáenz argumenta, ao esclarecer o histórico debate entre Martov e Lênin: (…) Martov tendia a confundir a própria organização dos trabalhadores por suas necessidades mais imediatas com a organização de um setor específico deles que se colocava a perspectiva de uma transformação de conjunto da sociedade. Perdia de vista que o partido devia operar por seleção e diferenciação [e entenda-se, diferenciação, não exclusão R.SIL.], em que a vanguarda não fora diluída na retaguarda(como ocorre nos sindicatos e/ou movimento de massas). Porque se devia estabelecer uma separação de princípios entre partido e movimento, diferenciando-se o militante político do militante sindical. Isto é, devia operar um processo de selecionar, hierarquizar e promover aqueles trabalhadores e estudantes que se destacaram do resto para “profissionalizá-los”, para fazer o centro de sua vida e atividade a militância socialista. Porque somente “dividindo” primeiro, poder-se-ia unir mais firmemente depois os laços entre o partido e as organizações de luta dos trabalhadores. (p. 38, grifos de Sáenz)
Neste critério, deve se ter em conta o problema da mescla sem princípios, principalmente porque o “movimento” geralmente se define por seu caráter reivindicativo parcial, enquanto o partido se define pelo seu programa total. Para além disso, esta perspectiva do todo em geral não se depreende de “maneira automática” de uma luta econômica ou reivindicativa, porque esta luta, se por um lado traz o ingresso à vida política, por outro gera “certas pressões, vinculadas a necessidades materiais imediatas e à classe ou fração da classe de que se trate”. Assim sendo, podemos dizer que na luta revolucionária não pode haver qualquer reducionismo e o horizonte desta luta deve buscar sempre não simplesmente os interesses econômicos da classe, “mas os seus interesses mais de conjunto, históricos”. Decorre disso também, que o partido deve, se visa este horizonte mais abrangente, como demonstra Sáenz através de Daniel Bensaïd, lidar com os fluxos e refluxos da luta de classes de forma não passiva, porque o desenvolvimento da consciência dentro das massas é desigual e, por conta disso, o partido deve se juntar a vanguarda da classe, no entanto, sempre buscando superar a desigualdade entre a retaguarda e a vanguarda.
A disputa entre correntes e sua relação com os interesses da classe
A partir deste ponto surge, por sua vez, uma questão muito relevante. Tendo em vista, em primeiro lugar, que a classe não é hegemônica, isto é, que possui diversos setores e que a conjuntura econômica, política, etc., torna cada uma delas mais radical ou menos e, que podem surgir diferentes balanços históricos, que por sua vez levam a concepções históricas distintas e, além disso, que novas provas históricas podem surgir na luta de classes para colocar ao teste quais são as hipóteses e programas mais pertinentes e justos para se lidar com a realidade, é inevitável que surjam diversas tendências diferentes e organizações políticas sempre em acirrada disputa política pela hegemonia 5. Desta forma, se a classe pode ser representada por diversos partidos (organizações), esta representação do social no político leva a existência de uma série de “regras de jogo e instituições que não podem e nem devem ser instrumentalizadas”, como pontua o autor argentino.
Aqui, Sáenz se refere a lógica aparatista que muitas organizações acabam seguindo, ao se colocarem acima dos interesses da classe. Ora, é claro que o partido enquanto organização que visa ao conjunto da sociedade deve ter independência política com relação ao conjunto das instituições estatais e da própria classe trabalhadora, e isso é fundamental para que ele possa servir como um “tribuno popular” (na expressão de Lênin), ou seja, como uma célula crítica que transpasse o âmbito apenas de tarefas administrativas (âmbito este que poderia burocratizá-lo). Isto levaria o partido ao âmbito político e ao da disputa pelo poder, que numa síntese não sectária, mas dialética com as organizações de massa, constituiria seu caráter revolucionário, uma vez entendido o seu papel como organizador das demandas gerais e não parciais da sociedade.
Esta questão é complexa e não pode ser entendida de forma leviana. Ela se relaciona como já exposto, com a relação partido-classe, mas também com as próprias relações internas do partido6 e , sobretudo, com os estágios de construção deste partido. Neste quesito, e pensando principalmente na organização em seu estágio de vanguarda, ou seja, no momento em que a organização está buscando marcar passo não só com relação a suas relações com as forças burguesas, mas também dentro da esquerda, existem “leis” diversas (e não mecânicas) na disputa pela influência entre franjas das massas. Tais leis, é claro, não são as mesmas que as relacionadas a uma organização que já possui “hegemonia frente à esquerda e aos setores mais avançados da classe operária e que já mergulhou no trabalho das massas”. No entanto, são elas que de alguma forma fazem essa organização de vanguarda dar um salto de qualidade rumo à transformação em uma organização com influência nas massas 7.
As “leis” de um partido de vanguarda e alguns critérios para um partido de influência nas massas (a “inversão dialética”).
No intuito, então, de traçar o caminho um pouco destas “leis” (e por este termo não se designa aqui a ideia de um “receituário” pronto, mas sim de um processo complexo e dinâmico), Sáenz já aponta um paradoxo para o estágio de vanguarda, isto é, que se sua política deve referir-se às “exigências objetivas da luta de classe, para responder as mesmas, o partido deve seguir em frente a expensas da mesma esquerda”.Isto, invariavelmente, leva a este partido se chocar com as outras correntes presentes dentro da realidade. Aqui se opera uma lógica interessante, o que se dá geralmente é que uma corrente de vanguarda ganha seu espaço de construção a expensas das outras. Como o autor coloca: “os ‘espaços’ se criam porque uma corrente “cai” e outra que vem acumulando de maneira progressiva o ocupa”(p.46).
A disputa, portanto, como postula Sáenz, se baseia numa espécie de “lei de seleção natural política” que funcionaria mais à maneira “lamarquista” do que “darwinista”, isto é, pois distintamente do que se dá na natureza, na sociedade, no que tange a “sobrevivência do mais apto”, conta também o fator subjetivo da vontade. Desta maneira, se não se quer cair numa ingenuidade política, as correntes devem se qualificar umas as outras e aquela que puder sobreviver a este meio hostil, se constrói. Este processo de disputa política e construção traz consigo as importantes tarefas de selecionar, recrutar, concentrar e formar os melhores elementos da vanguarda para que façam a coluna vertebral do partido,como evidencia o autor argentino ao pontuar o balance de Trotsky relativo ao debate histórico entre Lênin-Luxemburgo sobre a matéria de organização, ao qual evidenciamos que o “saldo” histórico é mais favorável a Lênin. Mas, além de todas estas tarefas, o partido precisa de uma base material sólida, baseada num esforço prévio, num período de acumulação qualitativo, caracterizado por um longo processo de desenvolvimento e, com isto, de inumeráveis esforços que visem a criar esta base material rumo ao salto qualitativo de um novo alcance na luta de classes.
Sáenz coloca a questão de maneira precisa, inclusive em sua projeção dinâmica: “trata-se de uma lei de desenvolvimento pautada por largos períodos de acumulação quantitativos prévios aos curtos períodos de estalido revolucionário qualitativo”.(p.48) Nesse critério, e pensando no que é necessário para que um agrupamento de vanguarda se torne uma corrente histórica, não se pode desconsiderar alguns elementos muito importantes que o formam neste primeiro estágio, isto é, em primeiro lugar, a reunião de alguns homens e mulheres, comuns, cuja participação (como coloca Gramsci) está possibilitada pela disciplina e fidelidade e não tanto por um espírito criador e muito organizador. Sem este grupo o partido não existiria e é a partir dele e de sua coesão, disciplina e de uma formação abrangente (prática e teórica) que se consegue formar, por assim dizer, “capitães”. Se sem este primeiro grupo o partido não existiria, não pode também existir apenas com ele. Contudo, se a priori o partido possuiria um caráter algo “voluntarista” (mas com preceitos objetivos obviamente) é a partir deste elemento coeso e da formação de uma “convicção férrea na resolução dos problemas” presentes em sua construção que se pode definir a identidade política do partido em relação ao conjunto do movimento revolucionário da época e, além disso, é por meio desta coesão que o partido pode sobreviver as mais difíceis condições, aos retrocessos e fracassos, sem perder seus elementos políticos essenciais.
Ao lado da construção de uma coluna vertebral partidária, encontra-se também a questão do regime, da qual não há uma regra específica (ainda mais porque um partido é um “organismo vivo”, como afirma Trotsky), o que não significa por sua vez, que não existam alguns critérios para a sua concepção. Neste sentido, Sáenz aponta que o partido deve sempre seguir, como critério fundamental, as exigências da luta e, para tanto, deve fazer com que seus interesses se valham de maneira a contribuir para o “desenvolvimento, politização e triunfo desta luta” ou, se este agir de outra forma, pode acabar desembocando num instrumentalismo nada favorável ao desenvolvimento da consciência de classe, dos trabalhadores e da luta dos mesmos. Além disso, o autor ainda pontua outro tipo de reducionismo, ou seja, a interpretação formalista do partido, fazendo-o funcionar mecanicamente, a partir de um estatuto (quase tábua de mandamentos) que leva o partido a inanição, enrigecendo-o em fórmulas prontas ou em moldes pouco dinâmicos que terminam por eliminar todo a riqueza e abrangência de sua militância e acabam por engessar o seu aspecto essencial, a ação estratégica e revolucionária, e, no limite,a própria política.
Somando-se a estas duas questões, surgem também outras relativas a especificidade do regime político do partido e das leis de funcionamento de uma organização, de onde deriva a concepção pertinente ao federalismo ou centralismo em matéria de organização, combinada a da “livre discussão com a férrea unidade na ação”. Partindo de uma perspectiva histórica, Sáenz demonstra que quando se trata de organização – e para isto retoma a polarização entre Marx (centralismo) e Bakunin (federalismo), além das considerações de Lênin sobre a discussão – o federalismo funciona como uma “trava organizativista ao livre debate e decisão política no conjunto do partido”, principalmente porque o federalismo pressupõe uma disputa de forças no interior da organização que não depende propriamente das posições políticas lançadas ao debate e a criação de maiorias e minorias políticas, mas sim de valorizar nos debates “supostas ‘quotas’ da mesma organização”. Desta maneira, o federalismo impediria a unidade da organização em sua ação revolucionária, porque também acabaria com a democracia partidária, trazendo em seu bojo um critério de “aparato, de ‘quotificação’ do regime partidário” pouco afeito as importantes disputas por concepções políticas que venham a se erigir no interior do partido e que, inúmeras vezes são necessárias até mesmo para o “amadurecimento” da organização frente às demandas da realidade e da luta de classes. Assim sendo, a defesa do centralismo e da unidade na ação são fundamentais e, juntamente com ela, a importância da livre discussão democrática no interior da organização; para trabalhar estes aspectos, Sáenz retomará o conceito de centralismo democrático de Lênin.
Partindo da percepção que sem uma unidade de ação ferrenha é improvável que uma organização de luta possa fazer face ao caráter centralizado do Estado capitalista e da patronal,o autor retoma Trotsky, que faz uma boa síntese do par dialético do centralismo democrático, enfatizando por um lado a possibilidade para qualquer um dos elementos do partido de discutir, de criticar, de expressar seu descontentamento, de eleger e destituir, mas por outro lado, mantendo para isso uma disciplina veemente, dirigida por órgãos diretores elegíveis e revogáveis. Encarada desta maneira, a questão não exclui a consciência crítica de seus integrantes, fazendo com que estes possam exercer seus plenos direitos de opinião e, mais do que isto, em certos casos, de decisão autônoma. Não obstante este primeiro aspecto, é necessário evidenciar que todo o debate interno deve levar a ação. E isto deve ser encarado como um critério cabal, para que não se caia em um “criticismo”, uma vez que sem este critério o partido pode perder o seu caráter militante e de interferência no cotidiano ou, como coloca acertadamente Sáenz, mais uma vez retomando a práxis marxiana, de transformação sobre a realidade. Após ter evidenciado assim, algumas “leis” para um partido de vanguarda, Sáenz, já na última parte de seu trabalho, comentará en passant (mas, de maneira rigorosa) alguns aspectos importantes relativos a um partido com influência nas massas, termo que utiliza (a despeito do mais canonizado “partido de massas”) porque para o autor, retomando uma preocupação leninista, o partido revolucionário deve sempre manter seu caráter de vanguarda no que tange ao conjunto da classe para, como já dissemos, não se burocratizar ou mesmo, perder o seu aspecto político. No intuito, então, de colocar em relevo estes aspectos, ele dirá que a questão do partido com influência nas massas se apresenta segundo o que ele define como “inversão dialética” em relação ao partido de vanguarda.
Sáenz não despreza que pequenos grupos possam cumprir um enorme papel na luta de classes, no entanto, demonstra que é muito perigoso confundir os estágios nos quais se encontra um determinado partido e que, tanto na quantidade de militantes, envergadura política, inserção, organização, há uma diferença substancial entre ambos “momentos” do partido. Como ele mesmo coloca: “Trata-se de outras leis as que regem o salto às massas: aqui operam leis de multiplicação geométrica e não aritmética, que é o que caracteriza o partido no estágio de vanguarda”(p.56). Assim, por exemplo, se o partido de vanguarda capta unidades de pessoas, o partido com peso nas massas deve captar “núcleos, agrupamentos, organizações, setores inteiros dos trabalhadores e/ou estudantes”. Tratando ainda destas “leis de multiplicação”, o autor coloca que elas se dão principalmente pela busca de veículos para buscar este salto em qualidade na questão da construção. Contudo, tais veículos não podem ser estabelecidos de maneira inconsciente, devem ter por foco inexpugnável se seguem num sentido estratégico da construção da organização como partido revolucionário.
Neste fator, portanto, cabe também frisar a importância não apenas do acúmulo de experiência militante do partido, mas também de sua acumulação em matéria de construção partidária, porque sem esta acumulação, inclusive se existe o veículo necessário, o salto poderá não se concretizar. Além disso, ainda que possua tanto a acumulação e o veículo adequado para tal, o partido deve ter sempre em evidência, principalmente quando o partido se faz mais “impessoal” (isto é, diferentemente de seu estágio de vanguarda quando sua direção se faz mais “personalizada”) e grande parte de sua responsabilidade se corporifica em seu quadros, que a educação destes quadros e sua capacidade de autonomia se tornam um elemento chave na atuação frente às massas e no crescimento da organização e, uma vez atingida a inserção e o partido desenvolva interesses “próprios” no sentido político e de construção, ele não deve entender-se como um fim em si mesmo, mas debe fazer como pontua Sáenz, um correto balanço entre sua “vida interna e sua vida habitual, que está direcionada, e não pode deixar de estar, ao serviço da luta de classes”. Nesse sentido, o partido deve se libertar de toda inércia conservadora e deve se revolucionar sempre junto com a classe, sendo capaz de adaptar-se, de passar por cima de toda estrutura inflexível que não seja capaz de “nutrir-se dos impulsos revolucionários da realidade”, não se esquecendo nunca de alguns contrapesos que evitam que a organização se fixe em seus elementos de “atraso”, isto é, segundo Sáenz, “o grau de politização de seu núcleo partidário, sua composição social, a autoridade de sua direção, as tarefas a que habitualmente se dedica (não é o mesmo se o cotidiano for de intervenções nas lutas operárias ou se sua atividade básica for a eleitoral), o quadro teóricoestratégico da organização e seu caráter internacionalista” (p.57). Porque para que o partido se fusione às massas, ele deve ter sua coluna vertebral sólida, como apontava Lênin, para que com isso possa atingir seu viés sempre revolucionário.
“Arder o líquido” (a luta totalizante na diversidade social)
Por fim, cabe dizer que, tendo em vista todo este percurso desenvolvido por Sáenz, ou seja, da transformação da teoria do conhecimento em Lênin, seus reflexos na aquisição da consciência socialista e, a partir disso, da importância que tal concepção na militância do revolucionário russo, sobretudo no que se refere a questão da organização, seu metabolismo junto às massas, seus estágios de construção e etc., só poderíamos concluir a enorme vigência do pensamento de Lênin e da organização de viés leninista na atualidade. Se hoje a sociedade é relativamente ampla no que se refere a diversidade social, apresentando diversos grupos, com suas diversas lutas, tais grupos permanecem geralmente atrelados muitas vezes a uma perspectiva particularista ou, de outra maneira, ainda muito embrionária no que tange a uma visão mais totalizante das lutas.
Para além desta diversidade, contudo, as desigualdades sociais estabelecidas por um sistema opressor continuam a se exercer, e a todos os setores, independente do grau e da maneira por meio da qual são afetados8. Assim, a necessidade de uma perspectiva e luta totalizante, e de organismos que possam efetivar tal necessidade, são fundamentais para que se possa criar uma unidade e centralidade nas lutas. Aqui, apostamos na concepção leninista, principalmente pela sua vitalidade e necessidade histórica, nas organizações revolucionárias e em seu metabolismo com todos os movimentos sociais para que, por meio disso, possamos liquidar (ou melhor seria dizer: arder) este suposto “mundo líquido”, colocando-o numa alternativa verdadeiramente revolucionária.
São Paulo, 20 de Julho de 2013
NOTAS:
1 O autor que postula a ideia de liquidez na sociedade ou na modernidade (ou em seu caso, pós-modernidade) é Zigmund Bauman. Esta concepção se apresenta em diversas obras como, por exemplo, Amor líquido, Modernidade líquida, etc. 2Para entender a concepção de Feuerbach e a crítica de Marx a ela, vide principalmente as ”Teses sobre Feuerbach”de Karl Marx.
3 VÁZQUEZ, A.S. Filosofia da Práxis, México, Siglo XXI,2003, p.243. (extrato retirado do texto que ora comentamos de Sáenz)
4 Sáenz desvela bem este problema quando pontua que : (…) Este obstáculo [dos limites dialéticos da luta espontânea da classe operária R. SIL.] se refere ao caráter fetichizado, “invertido”, deformado das relações sociais na sociedade. Se isto é assim, não está dado aos trabalhadores adquirir uma consciência clara e profunda acerca das circunstâncias de sua exploração e opressão mais que mediante uma elaboração, um processo no que intervêm as tradições de luta herdadas de gerações anteriores,sua própria ação “espontânea”, os elementos de aprendizagem que vêm ou se acumulam como experiência e – no limite – o absolutamente necessário metabolismo com a organização revolucionária, sem a qual não se pode obter esta consciência política socialista” (p.29).
5 Sobre este ponto, Sáenz apresenta muita clareza quando coloca que: “(…) o agrupamento de pessoas ao redor de ideias sobre a sociedade, sobre como conduzi-la, etc. é absolutamente inevitável. E o dessas ideias ao redor de um programa é um partido, ou como se queira chamá-lo. De modo que a luta de tendências políticas da classe trabalhadora, a luta de partido, é, como já assinalamos, conatural a luta socialista: faz o conteúdo intangível da democracia dos trabalhadores”. (p. 42).
6 Antonio Carlos Soler, em seu artigo “A recomposição do movimento operário: possibilidades, limites e desafios da atualidade” (Revista Sob 22) explora um pouco tanto a relação partido-classe, como a de certa forma do partido internamente, ao colocar o entendimento de Lênin (em “A doença infantil do ‘esquerdismo’ no comunismo) sobre a disciplina do partido: Para Lênin, a disciplina no partido revolucionário não se define pela submissão a uma hierarquia, mas em primeiro lugar “pela consciência da vanguarda e por sua fidelidade a revolução, por sua firmeza, por seu espírito de sacrifício, por seu heroísmo. Segundo, por sua capacidade de ligar-se, de aproximar-se, e por assim dizê-lo, de fundir-se até certo ponto com as mais amplas massas trabalhadoras, principalmente com as proletárias, porém também com as trabalhadoras não proletárias. Terceiro, pela justeza da direção política que exerce esta vanguarda, pela justeza de sua estratégia e de sua tática política, com a condição de que as massas mais amplas se convençam desta justeza por experiência própria” (LENIN,V.I. A doença infantil do comunismo, Obras Escolhidas, Lisboa, Avante, 1979, tomo 3, p.281).
7 Aqui cabe evidenciar a ressalva de Sáenz sobre a complexidade deste salto: “(…) Este salto em qualidade , ao ser de uma mecânica tão complexa, foi resolvido de maneira correta apenas algumas vezes: sequer em vida de Lenin e Trostky à frente da III Internacional isto foi tarefa simples. Nem se fale dentro do movimento trotskista da segunda pós-guerra. Muitíssimas experiências terminaram empatadas neste salto devido a que se as tensões das pequenas organizações revolucionárias provém mais do lado do sectarismo, a das organizações as quais se coloca o salto às massas vêm, caracteristicamente, do oportunismo (p.45).
8 Marcelo Braz, em sua apresentação ao Que fazer? de Lênin, sobre esta diversidade, afirma estarmos num cenário que nos mostra: (…) uma explosão de interesses particulares que, se por um lado indica uma sociedade relativamente rica do ponto de vista da diversidade social e do desenvolvimento das possibilidades de ampliação das faculdades humano-sociais, por outro, apresenta-nos a gestação de particularismos diversos que se plasmam como tal na realidade porque estão assentados em desigualdades sociais de classes; configura-se na contemporaneidade, portanto, uma obstaculização das possibilidades humanizadoras que trava o pleno (e rico) desenvolvimento dos modos de ser do gênero humano” (In: LENIN, V.I. Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento. Ed. Expressão popular, 2010. p.21).
A VIGÊNCIA DO “QUE FAZER?” EM NOSSA ÉPOCA
Lênin no século XXI(1)
POR ROBERTO SÁENZ
Já transcorreu um intenso século desde que Lênin escreveu “Que fazer”? A obra estava referida especificamente às tarefas colocadas para a social democracia russa no começo do século XX, relacionadas com as dificuldades para estabelecer o marxismo revolucionário russo propriamente como partido. Estes problemas eram produto da tendência à dispersão na vasta superfície desse país, do “federalismo” e “localismo” dos distintos núcleos socialistas, do fator desorganizador que significa a contínua repressão do Estado czarista e das pressões “antipolíticas” que imprimia à atividade socialista o caráter puramente “econômico” da luta da emergente classe trabalhadora. O século transcorrido deu lugar a um sem-número de discussões e debates acerca da pertinência de seu trabalho para nossa época. Como um exemplo, em um livro editado anos atrás se insistia que “A teoria e a prática da revolução devem ser emancipadas de sua gerência leninista, e a pergunta “que fazer?” suplantada por (…) “que evitar”? e “que se tem de fazer de diferente?”(3). Mais ainda, chegava-se a afirmar que “se poderia dizer que o centenário de “Que fazer?” de Lênin não merece ser celebrado”(4).
Aqui sustentamos a tese contrária. Se bem que o trabalho de Lênin não podia deixar de ter aspectos unilaterais ou que remitiam a questões específicas de tempo e lugar, o essencial é que contém elementos de uma universalidade pasmosa e que cobram uma renovada atualidade, observadas desde as peremptórias exigências que estão colocadas no final desta primeira década do século XXI (ciclo latino-americano de rebeliões populares e crise econômica mundial em curso). E, Inclusive, mais: poder-se-ia dizer que o processo da luta de classes, internacionalmente, segue cruzado por um persistente déficit de “leninismo”. Não nos escapa que a obra de Lênin excede a mera discussão do “Que fazer?” No entanto, o que interessa é nos dedicarmos aos “problemas de organização” precisamente pela enorme atualidade destes problemas na rica experiência da luta de classes que se está vivendo e o “déficit de partido” que a recorre. Opinamos que os problemas de construção das organizações revolucionárias devem ser colocados “na ordem do dia” para superar os agudos limites de politização e perspectiva socialista que cruzam a luta de classes mundial, e que não poderão ser resolvidos sem afrontar esta questão urgente: a construção do partido revolucionário.
MATERIALISMO E DIALÉTICA
O ponto de partida mais geral do debate acerca dos problemas de organização é a problemática a propósito da aquisição da consciência de classe por parte dos trabalhadores. Esta mesma problemática remete às concepções em jogo acerca da teoria do conhecimento. Aqui se impõe fazer referência a obra de Lênin sobre a matéria: os textos Materialismo e empiriocriticismo (1908) e os Cadernos filosóficos sobre a Lógica de Hegel (1904). O problema é demasiado vasto para tratá-lo exaustivamente aqui (5). No entanto, não se pode não partir de uma breve revisão desta problemática dada sua importância para a questão dos pressupostos teóricos da concepção de Lênin sobre a aquisição da consciência socialista (junto com a polêmica que estas posições desataram). No primeiro trabalho, Lênin fazia parte ainda da tradição filosófica da II Internacional, apesar de que seu critério ativista, militante, determinar-lhe-ia desde o princípio – ainda que não de todo conscientemente – junto ao conjunto desta tradição. O segundo, ao contrário, é o texto de ruptura filosófica com esta tradição de materialismo mecânico e evolucionista. A avaliação dos fundamentos filosóficos do pensamento de Lênin deu lugar a disputas azedas. Há uma série de autores que centraram ridiculamente os problemas da revolução russa nos “defeitos filosóficos” da obra de Lênin. Este foi o caso de Karl Korsch na “Anticrítica” de Marxismo e filosofia ou de Anton Pannekoek em Lênin filósofo. Esta crítica foi recolhida décadas depois por John Holloway (hoje em dia já não tão em moda) em Como mudar o mundo sem tomar o poder e pela já citada compilação A dez anos do “Que fazer?”. Nesta última, Mike Rooke disse: “Korsch e Pannekoek identificaram exatamente o mesmo tipo de pensamento em Lênin [que o da II Internacional, RS].
Sustentaram que o materialismo de Lênin (exposto em Materialismo e empiriocriticismo, que apareceu em 1908) era dualista, que se apoiava na aceitação do ser objetivo (matéria) como independência da consciência (mente). Neste materialismo contemplativo outorga-se à matéria primazia epistemológica sobre a consciência, contradizendo de maneira direta a consideração de Marx. Portanto, a teoria do conhecimento de Lênin milita contra a unidade entre teoria e prática que encontramos em Marx. Sua concepção da teoria é tal que esta se mantém em uma relação contemplativa com o objeto, a qual se lhe aplica desde fora, e a prática se converte em um resultado desta aplicação. Isto se exemplifica no “Que fazer?” de Lênin, obra de 1902. A tese do livro é uma elaboração da perspectiva de Plekanov de que os intelectuais marxistas aportam aos trabalhadores a teoria (a ‘consciência socialdemocrata’) desde ‘fora’. Aqui se encontra o germe do substituísmo posterior do partido bolchevique no poder”(6). Sustentamos que esta é uma leitura superficial, mecânica e antidialética de como foi o processo de Lênin e da riqueza (não isenta de contradições) de seu pensamento. Porque na medida em que sua obra foi – como toda obra genuinamente revolucionária – uma obra em curso, em permanente progresso e reelaboração, necessariamente foi dando conta das problemáticas de sua época de uma maneira aproximativa: Lênin se reconhecia no terreno da filosofia como um simples “indagador”. Disto decorre o lado às vezes defeituoso ou fragmentário de seu pensamento filosófico. Com efeito, os limites de Materialismo e empiriocriticismo parecem corresponder-se com algumas formulações do “Que fazer?”, porém apenas formalmente, como veremos mais adiante. Entretanto, de nenhuma maneira se pode perder de vista que estes limites e unilateralidades foram superados não só por sua prática dialética e revolucionária, mas também – de maneira consciente e explícita – em seus Cadernos filosóficos sobre a Lógica de Hegel: “O trabalho de Lênin, ‘Materialismo e empiriocriticismo’ (…) sofreu da carência de um contato real com o movimento vivo [Lênin permaneceu nestes anos exilado na Rússia, RS]. Alguém só deve compará-lo com o magnífico, dialético, suave e ‘vivente’, Cadernos filosóficos”(7).
Não casualmente vários de seus críticos sempre se “esqueceram” dos Cadernos e o empreenderam contra Materialismo e Empiriocriticismo. Trata-se de um exercício de nua e crua desonestidade intelectual. Além disso, estes críticos sempre perderam de vista o elemento correto desta obra: sua fundamentação materialista do ponto de vista da filosofia. É dizer, a efetiva primazia epistemológica das condições materiais (existência) sobre a consciência: “ O ‘realismo ingênuo’ de todo homem de bom sentido, que não tenha passado por um manicômio ou pela escola dos filósofos idealistas, consiste em admitir que as coisas, o meio, o m u n d o , e x i s t e m independentemente de nossa sensação, de nossa consciência, de nosso eu e do homem em general”(8). “Claro que isto deve ser entendido sem perder de vista de que esta primazia é uma primazia dialética, uma relação construída pela interação de objeto e sujeito, e que o próprio universo da natureza humanizada (como a definia Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos) é um que emerge da própria ação e modificação da mesma pela ação humana, questão que para Lênin, neste texto, acabava lhe escapando (9). No entanto, quando se trata de nossos críticos, não podem evitar cair em uma crítica idealista contra Lênin: não há outra maneira de qualificá-los quando cifram no solo do Materialismo e Empiriocriticismo todas as desgraças da Revolução Russa. Isto não deixa de ser uma crua recaída no mais puro idealismo e na mais pura abstração. Ou, mais precisamente: a carência de uma verdadeira compreensão dialética, capaz de dar conta dos desenvolvimentos desiguais, combinações e paradoxos que caracterizam em toda verdadeira revolução a combinação dos fatores objetivos e subjetivos nela. A versão que cremos mais correta é que Lênin recorreu um caminho de progressão de sua própria base filosófica, que sem abandonar o ponto de partida materialista, permitiu-lhe afiná-lo e concebê-lo como uma dialética ativa, viva, que coloca em plenitude – no quefazer revolucionário – a atividade do sujeito.
REDESCOBRINDO HEGEL
Partamos, pois, da abordagem dos elementos da teoria do conhecimento presentes no verdadeiro Lênin. Digamos que a teoria do conhecimento se move por entre dois limites gerais. Por um lado, o conhecimento deve remeter a uma realidade que é objetiva, independente do sujeito do conhecimento, daquele que conhece. O conhecimento não é nem pode ser uma mera disquisição no vazio, uma abstração, ou algo puramente subjetivo ou caprichoso. No entanto, e ao mesmo tempo, o conhecimento de nenhuma maneira poderia tratar-se de uma versão puramente passiva ou de mero “reflexo” ou simples cópia da realidade, e necessariamente o próprio objeto em muitos casos já é um subproduto de uma atividade humana anterior. Este era o aspecto mais débil de Materialismo e Empiriocriticismo. Porque o processo mesmo do conhecimento significa uma relação ativa com o objeto: uma elaboração, uma “construção” por parte daquele que conhece. Somente conhecemos verdadeiramente o que fazemos, diz Marx: “O problema de se ao pensamento humano se pode atribuir uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas um problema prático. É na prática onde o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade de seu pensamento. O litígio acerca da realidade ou irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico”(10). Necessariamente, então, deve-se estabelecer uma relação dialética entre o que conhece e a realidade, uma relação entre o sujeito e o objeto, uma relação que redunda na transformação do próprio objeto por parte do sujeito se este sujeito é um sujeito ativo, transformador, aplicado à matéria, o sujeito de uma práxis. Isto é: trata-se de uma ação pela qual a aquisição do conhecimento exige necessariamente uma prática ativa, de elaboração e reflexão sobre o que se conhece. A atividade do sujeito (que implica o conhecer e o transformar) é efetivamente a mediação entre o objeto e o sujeito; e é esta mediação, esta práxis, o momento de unidade entre sujeito e objeto(11).
A apreciação destes dois planos tem enorme importância quando se intenta estabelecer a relação com as teorias do conhecimento em voga na época de Lênin. Por um lado, no Materialismo e Empiriocriticismo, a polêmica se centrou em Bogdanov, que sustentava uma concepção que combinava um empirismo cru com um subjetivismo idealista(12). Contra Bogdanov, Lênin corretamente afirmava o ponto de vista materialista de que o conhecimento é uma ação referida a uma realidade independente do sujeito que conhece. É esta realidade objetiva a que os mentores filosóficos de Bogdanov (Mach e Averanios) sustentavam, de forma nua e crua, em abolir. Para Lênin, pelo contrário, existe uma realidade “externa” que, no entanto, é dado ao pensamento conhecer. Afirma que não há barreira insuperável entre nossas sensações e o mundo real. Que existe algum tipo de “correspondência” entre as duas: uma relação entre o processo do pensamento e o mundo real. Bogdanov (a maneira de Kant) não deixava nenhum lugar a qualquer concepção da verdade que estivesse baseada na conformidade entre os nossos juízos e essa realidade independente. Em seu idealismo vulgar, tudo isto escapava aos críticos de Lênin. Em todo caso, como disse o autor marxista inglês John Rees em sua obra A álgebra da revolução, os problemas no enfoque de Lênin começavam quando se movia mais além da defesa do materialismo para dar uma formulação pela positiva da filosofia marxista(13).
Aqui se impactava negativamente o mundo do marxismo da II Internacional. Porque Lênin parecia assumir uma concepção reducionista e passiva do conhecimento: a teoria do conhecimento como cópia ou reflexo da realidade. Lênin insistia que as representações teóricas em nossa cabeça eram simples cópias do mundo real: “A razão fundamental do esquecimento em que Lênin – o grande revolucionário prático – tem a prática no plano teórico, está em sua inserção na tradição filosófica marxista que extrai de Engels do AntiDühring, empenhado em elaborar uma concepção filosófica geral na qual se perde o papel fundamental que a práxis tinha em Marx. E essa inserção se reforça em Lênin com a ajuda do pensador que, até [quase] o final de sua vida, foi tido como o marxista mais importante da Rússia e seu professor indiscutível: Plekanov, não obstante suas divergências políticas. A crítica de Lênin ao idealismo é no Materialismo e Empiriocriticismo uma crítica plekanoviana na qual falta o princípio praxeológico fundamental”(14). Isto, efetivamente, era o oposto a concepção do conhecimento em Marx. É o caso bem conhecido das “Teses sobre Feuerbach”, onde se insiste no aspecto crítico-prático-ativo do conhecimento como um processo de construção em que o sujeito tem um papel decisivo na sua interação com o mundo real. Neste sentido, Adolfo Sánchez Vázquez acerta quando assinala que “Lênin tem razão do ponto de vista do materialismo tradicional: ‘Materialismo é o reconhecimento dos ‘objetos em si’ ou dos objetos fora da mente’…, porém não o tem, ou é insuficiente, em se tratando do materialismo marxiano que vê o objeto como um produto social da atividade prática humana. E é justamente a prática o que Lênin deixa na sombra quando trata de resgatar a objetividade dissolvida pelo idealismo dos marxistas russos” (15). Precisamente, Lênin recaía em uma teoria materialista mecânica do conhecimento, apoiando-se nos materialistas burgueses do século XVIII e retrocedendo a respeito da dialética de Hegel e de sua assimilação por Marx.
A Lênin parecia que o conhecimento do mundo se alcançava simplesmente por uma reprodução mental de sua aparência imediata, perdendo de vista que o que está em jogo no conhecimento não são as formas de manifestar-se das coisas, mas suas conexões internas. De forma nua e crua, uma categoria chave ausente – a todos os efeitos práticos – em toda esta obra é a do fetichismo: isto é, a representação das coisas no mundo real de uma maneira distorcida. Esta concepção epistemológica terminava sendo, paradoxalmente, abertamente contraditória com sua própria concepção da aquisição da consciência manifestada no “Que fazer?” Porque ali Lênin mostra como o espontâneo aparece como a forma embrionária, não elaborada, da consciência; consciência que para elevar-se ao nível de consciência política socialista requer um momento de elaboração mais complexo (Leibman cita Lênin quando este assinala a impossibilidade de que “o movimento dos trabalhadores, pura e simplesmente, possa elaborar uma ideologia independente por si mesmo”(16). É disto que se faz imprescindível o metabolismo da classe trabalhadora com o partido. Porque qualquer teoria do conhecimento por “correspondência” – alguma versão da qual é essencial para qualquer materialismo – deve dar espaço para um esforço específico de interpretação, para um elemento teórico que intervenha entre a percepção e a consciência, superando o caráter fetichizado da realidade. Na “teoria do reflexo”, de outra forma, a consciência é reduzida a mera percepção, e este processo de elaboração ativo, este metabolismo – no limite, o partido mesmo -, desaparece. O que os críticos de Lênin preferem passar por alto – em um ato que, como já assinalamos, fala mal de sua honestidade intelectual – é que anos depois, no meio da crise que produziu o naufrágio da II Internacional e depois de uma revisão da Ciência da Lógica de Hegel, Lênin redescobre o lado ativo do pensamento, o lado ativo do sujeito. Aqui opera uma superação do materialismo mecânico da II Internacional. Tal como cita Raya Dunayevskaya (e o próprio Karl Korsch), Lênin chega a dizer que “a consciência do homem não só reflete o mundo objetivo, mas também o cria (Cadernos filosóficos)”(17). Lênin redescobre a crítica ao materialismo vulgar e insiste agora no fato de que Plekanov desconhecia os textos mais importantes de Hegel, sobretudo os referentes à teoria do conhecimento. Agora afirma: “A dialética é a teoria do conhecimento de Hegel e o marxismo”(18).
Nos Cadernos, Lênin assinala: “Plekanov critica o kantismo, mais do ponto de vista materialista vulgar que do ponto de vista dialético materialista (…)”. Os marxistas criticaram (no princípio do século XX) aos kantianos e aos discípulos de Hume, mas bem a maneira de Feuerbach do que de Hegel. É completamente impossível entender O Capital de Marx, e em especial seu primeiro capítulo, sem ter estudado e entendido a fundo toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, há mais de meio século, nenhum marxista tem entendido Marx!” (19) Como assinalamos mais acima, isto remonta às “Teses sobre Feuerbach”. Porque Marx havia assinalado ali com toda clareza que o problema do materialismo de Feuerbach é que perdia o lado ativo do conhecimento, presente em Hegel. Ao mesmo tempo, ao afirmar que “o educador deve ser educado”, rompia com toda possível externalidade na hora da aquisição do conhecimento e a consciência. No mesmo sentido, o Lênin dos Cadernos filosóficos chega a colocar que “a troca como resultado da luta entre opostos não é externa, contudo aponta a contradição interna, ao automovimento”(20). Esta compreensão das relações entre essência e aparência foi fundamental para a nova concepção acerca da relação entre o pensamento e realidade. Sua epistemologia ganhava assim em dois aspectos decisivos na hora do entendimento do problema da aquisição da consciência política de classe. Por um lado, ganhava na explicação da distinção entre a consciência imediata (sindicalista) e a consciência mediata (política). Porque o conhecimento requer um processo ativo de abstração (ou seja, uma elaboração) capaz de discriminar entre essência e aparência. Isto arroja nova luz sobre algumas das mais importantes teses do “Que fazer?” E por outro lado, porque ajudava a superar o caráter passivo e “desde fora” da aquisição da consciência, que formalmente (porém, apenas formalmente) era um limite importante do Que fazer? Reiteramos assim que partindo deste renovado ponto de vista, Lênin desenvolveu um papel mais ativo e “independente” para a consciência que o que aportava o esquema de Materialismo e Empiriocriticismo. E é esta espécie de ruptura ou superação crítica de seu anterior marco filosófico o que a crítica conselhista, autonomista e “antipartido” tende maliciosamente a desconhecer (21).
CONTRA O ESPONTANEÍSMO
“A luta sistemática de Lênin contra o economicismo era, em sentido mais amplo, um ataque dirigido contra a concepção espontaneísta” (22).
Como vínhamos assinalando, as questões epistemológicas gerais acerca da teoria do conhecimento estão relacionadas filosoficamente com os problemas da aquisição da consciência socialista por parte das massas trabalhadoras. Relacionadas não quer dizer que sejam idênticas: o problema do conhecimento científico remete a um terreno específico que é diverso no que diz respeito à problemática da aquisição da consciência política no terreno da luta de classes. Ciência e política têm ferramentas e meios próprios (23), independente de que é um fato que a aquisição da consciência socialista exige uma compreensão acerca das determinações da realidade. Porém, a grande diferença alude aos métodos que se deve utilizar para atingir esta compreensão. O problema é complexo. Nem Mandel, nem Moreno, resolveram-no corretamente. Se o primeiro tendia a perder toda a especificidade da política como instância própria assimilando-a mecanicamente à ciência e dando uma ideia idealista da aquisição da consciência, o segundo reduzia de alguma maneira a consciência de classe a uma sorte de receita dando uma ideia pragmática do papel do partido: “A sociedade (ou a classe operária ou qualquer outro setor dela) avança incorporando os resultados científicos, não os métodos de investigação que levaram a estes resultados. Negar isto seria o mesmo que dizer que um indivíduo que não tenha estudado medicina e farmácia não saberá utilizar a aspirina. No entanto, faz muitos anos que a humanidade faz uso da aspirina para se livrar da dor de cabeça com bons resultados”(24).
Está claro que assimilar o processo de aquisição da consciência de classe à ingestão de uma “aspirina” não deixa de sugerir uma apropriação mecânica da consciência que vai de encontro, de plano, com toda a especificidade da atividade política do partido e, por sua vez, dialeticamente, coloca a mesma classe em um plano de passividade total. Moreno, ao unitelarizar sua crítica a Mandel (que tinha aspectos justos contra os vanguardismos deste naquele período), apresentava uma visão reducionista a tudo o que faz a “espessura” da questão da aquisição da consciência de classe. Porque a aquisição da consciência política alude, em uma importante medida, à problemática do conhecimento político-prático, guiado pela atividade, da totalidade das relações de classe na sociedade. A escola da classe operária é, efetivamente, a luta de classes, não o colégio ou a universidade. E nesta “escola” a classe operária aprende por experiência própria (como repetia uma e mil vezes Lênin). Porém precisamente ali surge uma dificuldade, e é no terreno dessa dificuldade onde se coloca, precisamente, a imprescindível necessidade do partido. Como sintetizava Alan Shandro (acadêmico canadense) anos atrás: “O relato de Lênin da história do movimento operário russo descreve uma dialética de resistência, consciência, luta e organização. Esta dialética espontânea se identifica como uma consciência embrionária que se enfrenta com uma limitação que não pode sobrepassar por si mesma. Lênin define esta limitação de duas formas: primeiro pela negativa, em termos de consciência socialista: os grevistas dos noventa [do século XIX] ‘não eram e não podiam ser conscientes do antagonismo irreconciliável de seus interesses com o conjunto do sistema político e social moderno’. E logo pela positiva, em termos da própria consciência dos trabalhadores: ‘A história de todos os países atesta que a classe operária, exclusivamente com suas próprias forças, só está em condições de elaborar uma consciência sindicalista’. A restrição do desenvolvimento da consciência socialista da classe operária se entende não como um problema específico da situação dos operários russos, mas como um limite geral à dialética espontânea da luta da classe operária”(25). Em que consiste, então, esta dificuldade na hora da aquisição da consciência do todo das relações de exploração da sociedade capitalista? Lênin nos dá uma pista: “Com frequência se ouve dizer: a classe operária tende espontaneamente ao socialismo. Isto é muito justo no sentido de que a teoria socialista revela, com mais profundidade e precisão que nenhuma outra, as causas das calamidades que sofre a classe operária, e por isto os operários a assimilam com tanta facilidade. A classe operária tende de modo espontâneo ao socialismo, porém a ideologia burguesa, a mais difundida (e que sempre torna a surgir das formas mais diversas), impõe-se, não obstante, espontaneamente ao operário mais que a ninguém”(26).
Prossigamos. Este obstáculo se refere ao caráter fetichizado, “invertido”, deformado das relações sociais na sociedade. Se isto é assim, não está dado aos trabalhadores adquirir uma consciência clara e profunda acerca das circunstâncias de sua exploração e opressão mais que mediante uma elaboração, um processo no que intervêm as tradições de luta herdadas de gerações anteriores, sua própria ação “espontânea”, os elementos de aprendizagem que vêm ou se acumulam como experiência(27) e – no limite – o absolutamente necessário metabolismo com a organização revolucionária, sem a qual não se pode obter esta consciência política socialista. Isto está muito bem desenvolvido por Georg Lukács na História e consciência de classe, de onde se coloca que “as teses táticas do III Congresso [da 1ª Internacional Comunista] sublinhavam que ‘toda grande greve tende a converter-se em uma guerra civil e em uma luta imediata pelo poder’. Porém, somente tende. E a crise ideológica do proletariado consiste precisamente em que essa tendência não tenha chegado a ser realidade, apesar de que em vários casos estavam dados os pressupostos econômicos e sociais de sua realização. Esta crise ideológica se manifesta, por uma parte, no fato de que a situação da sociedade burguesa, sumamente precária objetivamente, segue refletindo-se nas cabeças dos proletários como se tivesse sua velha solidez, no fato de que o proletariado segue intensamente preso nas formas intelectuais e emocionais do capitalismo”( 28). Analogamente, poderíamos dizer que o ciclo de rebeliões populares latinoamericano vem vivendo sua própria “crise ideológica” expressada nas enormes dificuldades das massas trabalhadoras para tirar conclusões radicalizadas de sua própria ação revolucionária geral. Mas, em geral, o “déficit de partido” é uma expressão mais aguda deste mesmo problema: as massas trabalhadoras podem, espontaneamente, por si mesmas – o ciclo de rebeliões o demonstrou uma vez mais -, criar e desenvolver organismos de autodeterminação ou de democracia de base – assembleias populares, movimentos de trabalhadores desocupados, ocupações de fábricas, coordenadoras nacionais de resistência popular -, porém não podem chegar por si somente ao nível da consciência de classe socialista, da necessidade da transformação completa da sociedade.
Neste século XXI torna a se reafirmar uma conclusão epocal: é absolutamente imprescindível o metabolismo das massas e da vanguarda com o partido; é absolutamente imprescindível no século que se inicia o pensamento de Lênin em matéria de organização. Mas, voltemos por um momento aos críticos de Lênin. John Holloway diferencia corretamente o “fetichismo” como questão fechada, totalizada, de uma concepção do desenvolvimento contínuo na sociedade de um processo de fetichização, o que dá uma correta imagem mais aberta do fenômeno. No entanto, esta afirmação correta é utilizada de maneira espúria para intentar demonstrar que seria possível deixar de fora o partido revolucionário neste necessário metabolismo com a classe operária na hora da aquisição da consciência e da transformação socialista da sociedade(29). Efetivamente, se o fetichismo fosse um círculo completamente fechado, não haveria forma de escapar dele. Porém, insistimos: a correta compreensão de que o que existe é um contínuo processo de fetichização – que por definição é aberto – não significa que se possa superar ou romper este processo continuamente recomeçado pelo próprio marco das relações sociais do capitalismo sem o metabolismo complexo da consciência socialista que implica necessariamente a relação do partido com a vanguarda operária e as massas. Cajo Brendel – autor conselhista alemão – leva o espontaneísmo, todavia, mais longe: “Se a divisão do trabalho entre partido e sindicato tem seu sentido em tempos pacíficos, se transforma em uma ideologia em períodos revolucionários, já que [nela] realmente se constitui a unidade da luta econômica e da luta política. Neste período a separação entre o econômico e o político se dissolve e ambos se fusionam em um. Esta unidade autocriada também dá por resultado outra forma de organização”(30). Porém, a experiência histórica de todo o século passado demonstrou um caminho muito mais complexo que este ingênuo espontaneísmo, que perde, além disso, toda “espessura” da luta política(31).
As tremendas pressões reivindicativas e econômico-corporativistas que se vivem na vanguarda e em seus diversos movimentos dificultam esta progressão da consciência (esta contradição vivemos na própria carne no processo do Argentinaço), ainda que se trate de um processo dialético onde há dificuldade, mas também aprendizagem e superação parcial (ainda que só parcial) do fetichismo.
Superação que precisamente por ser parcial, requer imprescindivelmente – e não pode deixar de requerer – para sua “totalização”, o partido. Como afirmava classicamente Lênin no “Que Fazer?”, “quanto mais poderoso é o ascenso espontâneo das massas e mais se amplia o movimento, maior é a rapidez com que aumenta a necessidade de uma elevada consciência”. Trata-se de uma dinâmica oposta ao que a colocada por todos os conselhistas que no mundo houve, que não se cansam de afirmar contra a experiência histórica mesma dos fatos que “o ascenso operário resolveria por si só os problemas da consciência”… Lênin educava no sentido contrário: quanto mais agudo é o ascenso, mais agudamente se coloca a necessidade do partido revolucionário; isto foi válido ao largo de todo o século passado e tem recobrado uma enorme atualidade neste começo de XXI.
LÊNIN NÃO É KAUSTKY
Os críticos que citamos se utilizam da afirmação de Lênin que aparentemente parecia sugerir que a consciência socialista deveria prover “desde fora” da classe trabalhadora… Fazem isto para argumentar que se há uma concepção de “autoemancipação” do proletariado (característica do marxismo clássico e revolucionário), não se poderia ter, por sua vez, uma firme e sistemática concepção acerca da férrea necessidade do partido revolucionário… Está claro que opinamos com Lênin o contrário. Seguindo neste ponto, sugerem as análises de anos atrás do Filósofo marxista francês Daniel Bensaid, que na concepção de Lênin aparecem dois planos. Por um lado, está a clássica – e correta – alusão de que a consciência socialista deve prover desde fora da relação entre patrões e operários. Aqui havia – efetivamente – um mal-entendido com respeito à leitura de Kautsky, para quem a consciência não só deveria prover desde fora da atividade mais imediata da classe trabalhadora, como também nua e cruamente era aportada por outra classe ou fração de classe: os intelectuais pequeno-burgueses como tais, qual deus ex-machina (fator externo ao processo mesmo) colocado por cima da própria classe.
Diz Bensaïd: “Lênin tateia e nem sempre mede o alcance de suas próprias inovações. Assim, crendo parafrasear um texto canônico de Kautsky, modifica-o de forma essencial. Onde Kautsky escreve que ‘a ciência’ chega aos proletários ‘do exterior da luta de classes’ introduzida pelos ‘intelectuais burgueses’, Lênin traduz que ‘a consciência política (não a ciência) vem do exterior da luta econômica’ (e não da luta de classes, que é tanto política como social), levadas não pelos intelectuais enquanto categoria sociológica, mas pelo partido enquanto ator específico”(32). Efetivamente, a redação de Lênin – a este respeito – no “Que fazer?” pode parecer – para aqueles que o leram formal e superficialmente – como “contraditória”. Citando “textualmente” a Kautsky, diz Lênin: Porém não é o proletariado o portador da ciência, mas a intelectualidade burguesa (…) de modo que a consciência é algo introduzido desde fora na luta de classes do proletariado”(33). No entanto, mais adiante se diz algo muito diferente: “ A convicção de que se pode desenvolver a consciência política de classe dos operários desde dentro, por assim dizer, de sua luta econômica, ou seja, tomando somente (ou por menos, principalmente) essa luta como ponto de partida, e baseando-se somente (ou por menos, principalmente) nesta luta (…) é falsa de raiz (…). A consciência política de classe somente pode chegar ao operário desde o exterior, isto é, desde um campo direcionado fora da luta econômica, a margem da esfera das relações entre operários e patrões. A única esfera de que se podem extrair estes conhecimentos é a das relações de todas as classes e camadas com o Estado e o governo, a esfera das relações de todas as classes entre si (…). Para dotar de conhecimentos políticos aos operários, os socialdemocratas devem ir a todas as camadas da população, devem enviar a todas as partes os destacamentos de seu exército”(34). Isto é, a definição de Lênin apontava na realidade, a que a aquisição da consciência socialista devia advir não desde fora da classe operária como totalidade complexa (o que inclui o partido), como desde fora da mera luta econômica reivindicativa, o que é algo muito distinto.
A preocupação de Lênin apontava a um problema absolutamente real, na medida em que a aquisição da consciência requer uma elaboração da experiência, que não pode ser processada de maneira simples, mecânica e direta pelo conjunto da classe (nem sequer pelo conjunto da vanguarda), mas também exige a mediação de algum elemento que tenha acumuladas ou incorporadas as ferramentas para essa elaboração (aquisição da consciência): isto é, o partido como uma síntese específica da teoria e prática da luta de classes histórica. A pertinência do pensamento de Lênin tem que ver, então, com a compreensão de que a consciência plena acerca da própria ação e as condições da ação socialista requer – insistimos – uma elaboração. E esta elaboração, que por sua vez alude a uma impossibilidade de explicar a consciência como mero reflexo ou cópia da realidade, precisamente assinala o papel do partido em sua relação metabólica com a classe e a luta de classes. Filosoficamente, esta concepção concentrava implicitamente uma dupla crítica à parte das concepções teóricas do Lênin de Materialismo e Empiriocriticismo. Porque a aquisição da consciência é um processo que tem que ver com as relações sociais “objetivas” que a determinam, porém por sua vez, é uma elaboração ativa (não uma mera cópia), por intermédio de uma ação (não uma mera reflexão passiva) o que dá lugar – precisamente – ao papel do partido e a ação transformadora socialista da realidade.
A aquisição da consciência requer o “método da abstração” para ver mais claramente. Ao mesmo tempo, a consciência deve basear-se na atividade prática, que dará a prova de que ponto nossas concepções do mundo são ajustadas na realidade. O “padrão” do processo dialético do conhecimento vai desde a percepção vivida na experiência ao pensamento abstrato e daí a prática consciente, em que opera uma fusão do entendimento intelectual e a existência objetiva. Porque na atividade humana se supera a abstração do pensamento. Porque há um ponto em que o objetivo e o subjetivo se fusionam na hora da transformação revolucionária da realidade, e desse mesmo sujeito no ato de transformá-la. Portanto, o próprio método marxista, a própria dialética materialista, implica a atividade política. Porque só se pode realmente conhecer no curso dessa atividade. Por isto mesmo, Lukács era corretamente hostil à teoria passiva do conhecimento “fotográfico”, sob perigo de reducionismo fatalista dos pensamentos perante a realidade. Porque se o pensamento simplesmente reflete passivamente a realidade, que papel pode ter a consciência na transformação da realidade? A realidade transformada não é, mas torna-se tal coisa. E, neste “tornar-se”, a participação do pensamento e a ação que se deduz dele é absolutamente necessária. A própria consciência de classe é uma parte ativa desta realidade.
Para o Lênin dos Cadernos filosóficos, a prática ultrapassa a distinção entre “subjetividade” e “objetividade”. E no terreno para este descobrimento foi estabelecido pela teoria do partido de Lênin, o elemento mais dialético de seu marxismo (como corretamente insiste John Rees). A necessidade de “fusionarse” até certo ponto com as mesmas massas (como assinalava Lênin no O esquerdismo…) e ao mesmo tempo “ser específico” ao respeito do total das massas (Que fazer?) exige uma dialética que permita entender a unidade dos opostos. Isto é precisamente o que surge das determinações mais concretas do pensamento profundo de Lênin sobre partido.
LUTA ECONÔMICA E LUTA POLÍTICA
“A socialdemocracia revolucionária sempre incluiu em suas atividades as lutas por reformas. Porém, utiliza a agitação ‘econômica’ não somente para reclamar ao governo toda classe de medidas, como também (e em primeiro termo) para exigir que deixe de ser um governo autocrático. Além disso, considera seu dever apresentar ao governo esta exigência, não somente no terreno da luta econômica, mas também o de todas as manifestações da vida social e política. Em uma palavra, como parte ao todo, subordina a luta pelas reformas a luta revolucionária pela liberdade e socialismo”(35).
Isto parece escrito para o ciclo de rebeliões populares latino-americano, ainda que não gostem nossos críticos porque, de fato, se inscrevem na tradição do “economicismo”. Efetivamente, um dos problemas do atual processo regional é ter-se subordinado ao caráter fragmentário ou “corporativo” das lutas e movimentos sociais: às reformas que aqui ou acolá concederam um Hugo Chávez ou um Evo Morales…ao custo de manter o marco do capitalismo. Trata-se de um problema de estratégia típico do reformismo: em vez de subordinar a parte (as reformas) ao todo, as “conquistas” foram obtidas, basicamente, a expensas do processo mesmo enquanto eventualidade de um processo anticapitalista. Este processo de atomização e/ou fragmentação das reivindicações e demandas populares é uma pressão que vem desde baixo, desde as próprias necessidades e demandas dos setores que saem à luta, e se combina com a incapacidade de se colocar desde uma perspectiva mais de conjunto, a de acabar com a ordem social, se se pretende resolver inclusive questões “elementares”.
Em sua polêmica com os “economicistas”, Lênin diferencia veementemente “a política sindicalista” (reduzida a puras reivindicações econômicas no terreno político, como são as leis laborais) da “política socialdemocrata”, que se refere à elevação da classe ao todo, a propor-se respostas de conjunto para toda a sociedade: a revolução social. Esta orientação – por assim dizer – teria um objetivo por sua vez prático e “material”: o “obrigar” a classe operária e sua vanguarda a sair de sua própria estreiteza. “Obrigar” a classe operária ao aprendizado prático que significa entrar em contato com outras classes sociais ampliando assim seu horizonte na “escola” mesma da luta de classes. Lênin colocava como orientação prática a educação da classe trabalhadora em interessar-se pelos problemas de todas as classes, por todos os problemas da sociedade. E ao se dirigir desde um ponto de vista social total, colocar-se verdadeiramente o problema do poder político. O que implicava – para os proletários, desde o proletariado – dirigir-se a todas as camadas da sociedade. Trata-se de uma orientação prática, material: não simplesmente “ideias” ou“conceitos” que “vêm desde fora” da classe, porque a aquisição da consciência política por parte dos trabalhadores (que não é o mesmo que a formação marxista), não pode ser algo puramente “ideal” ou “intelectual” assimilado mecanicamente “desde fora”. É um fazer material da consciência mediada pela própria experiência, em interação dialética com o partido revolucionário, e cujo “veículo” é precisamente a política. Assim, a questão central é como os trabalhadores se movem desde a consciência de todos os dias à consciência de que é possível mudar revolucionariamente as condições terríveis em que vivem. Porém: como superar na consciência o fetichismo e alienação? Como superar o senso comum?(36).
Aqui é onde entra a relação metabólica do partido com a classe. Porque o “limite geral” ao desenvolvimento da consciência não se pode superar mediante a mera atividade espontânea da própria classe trabalhadora. Aqui entra a política socialista revolucionária como totalidade e como prática da totalidade. Como dizia Lênin: “Na realidade, não ‘se pode elevar a atividade da massa operária’ se só nos limitamos à ‘agitação política no terreno econômico’. E uma das condições essenciais para lograr a extensão indispensável da agitação política [mais além do terreno econômico] é organizar denúncias políticas que abarquem todos os aspectos. As massas só podem ser educadas em sua consciência política e em sua atividade revolucionária, sobre a base destas denúncias (…) A consciência da classe operária não pode ser uma autêntica consciência política se os operários não estão acostumados a fazer eco de todos os casos de arbitrariedade e opressão, de violência das massas operárias, não pode ser uma autêntica consciência de classe se os operários não aprendem, sobre a base dos fatos e acontecimentos políticos concretos e, além disso, de atualidade, a observar a cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações da vida intelectual, moral e política, se não aprendem a aplicar na prática a análise e a apreciação materialista de todos os aspectos da atividade e da vida de todas as classes, camadas e grupos da população. Quem concentra a atenção da classe operária, sua capacidade de observação e sua consciência exclusivamente ou ainda que somente seja uma forma preferente nela mesma, não é um socialdemocrata, pois o conhecimento de si mesma por parte da classe operária está vinculado, em forma inseparável, (…) a uma compreensão teórica absolutamente clara – ou dito melhor, não tanto teórica como prática – das relações entre todas as classes da sociedade atual, compreensão adquirida a través da experiência da vida política (…) Para chegar a ser um socialdemocrata, o operário deve formar uma ideia clara da natureza econômica e da fisionomia social e política do latifundiário e do padre, do mandatário e do camponês, do estudante e do “vagabundo”(…) Porém esta ideia clara não se pode obter nos livros: só pode surgir da realidade”(37).
A ORGANIZAÇÃO DOS OPERÁRIOS E A ORGANIZAÇÃO DOS REVOLUCIONÁRIOS (OU QUANDO A POLÍTICA NÃO SEGUE DÓCILMENTE A ECONOMIA)
Os elementos que vimos desenvolvendo a respeito da aquisição da consciência socialista estão ligados a uma determinada concepção acerca da relação entre o partido, a vanguarda e as massas, em um duplo sentido. Porque se os problemas da aquisição da consciência têm esta complexidade, é evidente que faz falta alguma organização específica que facilite, que tome como parte suas tarefas práticas e teóricas, essa aquisição da consciência por parte das massas trabalhadoras. Desta realidade teórica e política (e não de uma suposta vocação “jacobina” ou “blanquista” de Lênin (38) urgem as questões de organização. Se a realidade é que as massas trabalhadoras por sua só atividade espontânea não podem chegar ao nível da consciência socialista, faz falta um fator que seja ativo neste sentido e que se mova desde a perspectiva do todo, da totalidade da transformação social que é necessária para que a classe operária acabe com sua condição de explorada e oprimida.
Este fator adicional não por si mesmo é “externo”, mas propriamente uma parte específica e diferenciada da própria classe trabalhadora. Lênin assinalava: “Se o conceito de ‘luta econômica contra os patrões e o governo’ coincide para um socialdemocrata com o de ‘luta política’, é natural esperar que o de ‘organização dos revolucionários’ coincida, mais ou menos, com o de ‘organização dos operários”(39). Porém, “a luta política da socialdemocracia é mais ampla e complexa que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo. Do mesmo modo (e como consequência dele), é inevitável que a organização de um partido socialdemocrata revolucionário seja de distinto tipo que a organização dos operários para a luta econômica. A organização dos operários (…) deve ser o mais ampla possível. Pelo contrário, a organização dos revolucionários deve incluir ante tudo e sobretudo pessoas cuja profissão seja a atividade revolucionária (por isto falo de uma organização dos revolucionários, e me refiro aos revolucionários socialdemocratas) (…) Imaginemos pessoas absorvidas em 99% pela ‘luta econômica contra os patrões e o governo’. Durante todo o período de sua atividade (…) alguns deles jamais pensaram na necessidade de uma organização mais complexa de revolucionários”(40). É ao redor deste critério que teve lugar o histórico debate com Martov acerca de quem podia ser considerado militante do partido. Porque desta compreensão acerca da relação entre a atividade dos trabalhadores e a dos revolucionários se depreendiam consequências organizativas. Isto é, para colaborar com a aquisição da consciência socialista dos trabalhadores fazia falta uma organização (política) dos revolucionários distinta à organização da luta cotidiana dos trabalhadores, isto é, distinta dos sindicatos e expressamente separada deles. Esta era uma conclusão prática que se depreendia desta análise da aquisição da consciência e da necessidade de levar a cabo não uma política sindicalista, mas uma verdadeira política socialista.
Martov tendia a confundir a própria organização dos trabalhadores por suas necessidades mais imediatas com a organização de um setor específico deles que se colocava a perspectiva de uma transformação de conjunto da sociedade. Perdia de vista que o partido devia operar por seleção e diferenciação, de onde a vanguarda não fora diluída na retaguarda (como ocorre nos sindicatos e/ou os movimentos de massas). Porque se devia estabelecer uma separação de princípios entre partido e movimento, diferenciando-se o militante político do militante sindical. Isto é, devia operar-se um processo de selecionar, hierarquizar e promover aqueles trabalhadores e estudantes que se destacaram do resto para “profissionalizá-los”, para fazer do centro de sua vida e atividade a militância socialista. Porque só desta maneira, “dividindo” primeiro, poder-se-ia unir mais firmemente depois os laços entre o partido e as organizações de luta dos trabalhadores. Portanto, a concepção de partido de Lênin teria dois pólos unidos dialeticamente: a) uma estrita seleção dos membros do partido sobre a base de sua consciência de classe; b) a total solidariedade com e o apoio a todos os oprimidos e explorados no seio da sociedade capitalista. Lênin insistia em que não havia que mesclar coisas distintas: era militante da organização o que efetivamente assumia um compromisso político organizado. “Em virtude de que causa, de que lógica, se pode deduzir, pelo fato de que sejamos um partido de classe, a conclusão de que não faz falta distinguir entre aqueles que formam parte do partido e aqueles que estejam vinculados a ele? Muito ao contrário: precisamente por existir uma diferença enquanto ao grau de consciência e de atividade, é necessário estabelecer também uma diferença enquanto ao grau de proximidade ao partido. Somos um partido de classe, razão pela qual quase toda a classe (…) deve atuar sob a direção de nosso partido (…) Porém seria incorrer em ‘manilovismo’ e em ‘seguidismo’ pensar que toda a classe possa, sob o capitalismo, elevar-se até o grau de consciência e de atividade de seu destacamento de vanguarda, de seu partido socialdemocrata. Nenhum socialdemocrata sensato duvida de que, sob o capitalismo, nem sequer as organizações sindicais (que são mais elementares e mais acessíveis ao grau de consciência das camadas não desenvolvidas) podem abarcar a toda a classe operária ou a quase toda. Esquecer a diferença que existe entre o destacamento de vanguarda e o conjunto das massas que gravitam em torno dele, esquecer o dever constante do destacamento de vanguarda de elevar grupos cada vez mais amplos a seu próprio nível de vanguarda, só significa (…) fechar os olhos ante a imensidade das tarefas”(41).
Este é o conteúdo político que estava por detrás da discussão sobre o critério militante no congresso de 1903. Não por bastante conhecido deixa de ter enorme atualidade, como mostra a experiência recente na América Latina e o desenvolvimento de movimentos de luta e sua relação com os partidos. Lênin se colocava contra a mescla sem princípios: o “movimento” se define por seu caráter reivindicativo parcial; o partido se define por seu programa total. E isto engendra – insistimos – tipos distintos de militante e de atividade. Porque colocar-se desde a perspectiva do todo não é algo que se desprenda “automaticamente” da luta econômica ou reivindicativa. Pelo contrário, essa luta opera de maneira contraditória: ao mesmo tempo em que libera o ingresso à vida política de dezenas de milhares, gera determinadas pressões, vinculadas às necessidades materiais imediatas e à classe ou fração de classe que se trate. E não é tão simples, assim, colocar-se desde a perspectiva da transformação social. Isto é, de maneira não imediatamente reivindicativa, desde as necessidades do conjunto da classe e os setores populares e não simplesmente da própria “corporação”.
Estes problemas tiveram também exemplos de sobra no Argentinaço, porém se trata de um universal ao que, justamente, se busca dar resposta com a “mecânica” transicional da política revolucionária(42). Pelo contrário, o Lênin “político” alude a um âmbito global, das relações do conjunto de todas as classes da sociedade, que não se depreendem mecanicamente das relações econômicas. Isto mesmo sublinha Bensaïd quando assinala corretamente que o partido não se deve reduzir ao âmbito da representação dos interesses simplesmente econômicos da classe, mas a seus interesses mais de conjunto, históricos. É necessário evitar todo reducionismo da política revolucionária. Diz Bensaïd: “Mais que uma forma de disciplina ou de centralização, a ideia norteadora de Lênin alerta acerca da ‘confusão entre o partido e a classe’, confusão qualificada de ‘desorganizadora’. A distinção introduzida desta forma entre classe e partido se inscreve nas grandes polêmicas do movimento socialista da época. E, mais especificamente na Rússia, se dirige contra as correntes populistas, ‘economicistas’ e mencheviques (…) Lênin se opõe de forma bastante original para a época a esta redução do político ao social (…) Entende que as contradições econômicas e sociais não se expressam diretamente, senão sob uma forma específica, deformada e transformada, a política (que) condensa e revela uma crise latente global das relações sociais (…) do partido (…) A definição do membro do partido (…) é a delimitação do partido frente à classe. É precisamente a forma partido a que permite interfluxos da luta de classes (…) À luz da experiência de 1905, Lênin insiste (…) no fato de que o partido, por mais delimitado que seja, vive em um intercâmbio e diálogo permanente com as experiências da classe (…) O que permanece, mais além destes matizes e variações, é que o partido não é uma forma de organização entre outras, sindicais ou associativas, mas uma forma específica sob a qual a luta de classes se inscreve no campo político”(43).
Em palavras de Lênin: “Rabochi Misl não repudia por completo a luta política: nos estatutos das caixas, publicados em seu primeiro número, se fala da luta contra o governo. No entanto, crê que a política segue sempre dócil a economia’ (…) Estas teses (…) são totalmente falsas, se entendemos por política a dos socialdemocratas (…) [Se] renuncia por completo a elaborar independentemente uma política socialdemocrata específica que corresponda aos objetivos gerais do socialismo e às condições atuais da Rússia(45). É o partido socialista o que está chamado a representar estes interesses de conjunto, uma vez que faz parte – e não pode deixar de fazer, sob pena de converter-se em uma seita – de um sistema mais amplo de organização operárias e populares(46). Por outra parte, o desenvolvimento da consciência de classe sempre é desigual; a emergência de uma clara consciência nunca ocorre de um só golpe e de uma maneira coerente: inevitavelmente há vanguardas e retaguardas no seio da classe. Porque se deve compreender que sob o capitalismo e na transição socialista, o processo da aquisição da consciência de classe só pode ser desigual: nunca poderia ser em “uníssono” por parte de todas as massas laborais. Há, e não pode deixar de haver, vanguardas e retaguardas. E é tarefa imprescindível da organização revolucionária, justamente, o aportar ativamente à superação desta desigualdade apoiando-se sempre nos elementos mais avançados.
A LUTA PELA HEGEMONIA
Esta discussão tem, por razões históricas, de ser refeita. Os críticos da obra de Lênin quiseram estabelecer um suposto “abismo” entre a experiência do grande revolucionário russo e a de Marx (e Rosa Luxemburgo (47) em matéria de organização. Alguns argumentos convincentes assinalam que Marx esteve relacionado – em períodos distintos – com quatro tipos de partido distintos: a Liga dos Comunistas (uma pequena “seita” alemã durante a década de 40); os inícios da socialdemocracia na Alemanha (décadas de 60, 70 e começos de 80); a experiência da I Internacional e os primeiros esboços do Partido Trabalhista na Inglaterra. Ao mesmo tempo, é amplamente conhecida sua definição do Manifesto Comunista: “Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários. Não tem quaisquer interesses que não sejam os interesses do conjunto do proletariado. Não proclamam princípios especiais aos que quiseram moldar o movimento proletário. Os comunistas só se distinguem dos demais partidos proletários em que (…) nas diferentes lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem valer os interesses comuns a todo o proletariado (…); em que, nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta entre o proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto”. Está claro que Lênin, sim, se colocava a formação de um “partido à parte dos comunistas”. Mas a suposta “contraposição” entre Marx e Lênin não logra sustentar-se. É verdade que Marx tendia a defender uma ideia de partido mais próxima a uma organização surgida da experiência direta dos trabalhadores. Porém em Lênin a ideia de partido é categoricamente mais elaborada, mais madura, expressando um período distinto ao que pôde viver Marx.
Em um contexto que havia mudado, Lênin rompe com a tradição dominante do movimento socialista de seu tempo. Com a entrada em cena de um movimento operário aos fins do século XIX, o “partido socialista de massas” aparecia como uma espécie de encarnação política de toda a classe. A ideia se inspirava em certas fórmulas de Marx que insinuam que a organização progressiva do proletariado no partido político e na classe seriam “sinônimos”: seu ser social e seu ser político se uniam no partido. Lênin sublinha muito agudamente o contrário: a ruptura da continuidade entre o conflito econômico imediato e o conflito político mediato. Busca evitar confundir o problema das classes e dos partidos. Isto é, o conteúdo social e sua expressão política. Porque a luta de classes não devia reduzir-se à luta do operário contra o patrão, mas também devia abarcar a luta contra a classe capitalista inteira e seu estado. Desta forma, o socialismo revolucionário – enquanto partido político – deve buscar representar a classe trabalhadora em suas relações não somente com um grupo dado de empregadores, mas com todas as classes da sociedade contemporânea e o próprio Estado. Ao mesmo tempo, a insistência tão contínua de Lênin em diferenciar partido e classe conduz logicamente ao pensamento – despojado de toda ingenuidade – de uma pluralidade de organizações sempre em duríssima concorrência pela hegemonia. Neste sentido, anos atrás assinalávamos: “Ao nosso modo de ver, as formas de organização dos trabalhadores como os soviet, sindicatos ou movimentos, são mais ‘transitórias’ que o partido revolucionário, que é a forma mais concentrada e estável de organização da vanguarda dos trabalhadores. A diferença da demagogia anarquista e de sua posição em oportunidade de levantamento de Kronstadt de ‘soviet sem partidos’, o agrupamento de pessoas ao redor de ideia sobre a sociedade, sobre como conduzi-la, etc., é absolutamente inevitável. E o agrupamento dessas pessoas em uma organização e a cristalização dessas ideias ao redor de um programa é um partido, ou como se queira chamá-lo. De modo que a luta de tendências políticas da classe trabalhadora, a luta de partidos, é, como já assinalamos, conatural à luta socialista: faz o conteúdo intangível da democracia dos trabalhadores”(48).
Se o partido não é mecanicamente a classe, entende-se que uma mesma classe pode representar-se politicamente através de vários partidos políticos em dura concorrência. E se desprende que a representação do social no político implica, outrossim, a existência de uma série de regras de jogo e instituições que não podem nem devem ser instrumentalizadas(49): “Lênin e seus colaboradores tiveram como primeiro cuidado preservar as filas do partido bolchevique dos defeitos do poder. No entanto, a conexão estreita e às vezes a fusão dos órgãos do partido e do Estado acarretaram desde os primeiros anos um prejuízo evidente à liberdade e à elasticidade do regime interno do partido. A democracia se encolhia a medida que cresciam as dificuldades. O partido quis e confiou em princípio em conservar no quadro dos soviets a liberdade das lutas políticas. A guerra civil trouxe seu severo corretivo. Um após o outro foram suprimidos os partidos de oposição. Os chefes do bolchevismo viam nestas medidas, em contradição evidente com o espírito da democracia soviética, não decisões de princípio, mas necessidades episódicas da defesa (50). Precisamente, neste mesmo sentido: “Como se explica que Moreno tenha evitado uma lição histórica decisiva da experiência do século passado, a saber, que a luta de tendências e o jogo da democracia dos trabalhadores é absolutamente imprescindível para a transição, e que não tenha retirado conclusão alguma acerca da burocratização da revolução? (…). O próprio partido revolucionário, para ‘preservar-se’ como tal, necessita que o poder esteja em mãos dos organismos da própria classe trabalhadora e sua vanguarda. Necessita do jogo da democracia dos trabalhadores em seu seio. Em certo sentido, necessita poder seguir cumprindo, junto com seu papel de direção e governo do Estado operário, seu papel crítico como organização política revolucionária em certa forma ‘independente’ das instituições do Estado proletário [como insistia Lênin, seus “organismos” não podem confundir-se sob pena de burocratização]. Necessita não ver reduzida sua atividade às tarefas puramente administrativas se quer preservar-se como organização revolucionária política que luta por impulsionar a transição nas condições do atraso econômico e cultural das massas e o cerco imperialista. Isto é, necessita seguir cumprindo o papel de “tribuno popular” que indicava Lênin em Que Fazer?, um papel distinto e superior ao de mero funcionário sindical, político ou estatal. Outra questão é que, efetivamente, o partido luta para que a classe trabalhadora e sua vanguarda tomem o poder sob sua direção; o partido luta por alcançar a maioria e dirigir os organismos de poder, estar à cabeça deles e tomar o poder a frente destes organismos. Se o partido não fizesse isto perderia sua condição de revolucionário: o partido deve lutar e não pode deixar de lutar pelo poder(51).
O que vimos assinalando é claro no debate de Lênin em 1905 com os membros de seu próprio partido: ante o dilema sectário que colocavam estes de “soviet ou partido”, Lênin replicava afirmando a perspectiva de “soviet e partido”: “A mim me parece que para liderar a luta política, ambos, o soviet…e o partido são, em um grau igual, absolutamente necessários”(52). A síntese efetuada por Lênin sublinha o falso desta contraposição entre organizações de natureza distinta. Tanto as organizações de massas como o partido são imprescindíveis. Porém em nenhum caso os “movimentos” podem substituir ou cumprir o papel dos partidos: este é um ensinamento categórico. Como a experiência histórica demonstrou, são os partidos os únicos que lutam entre si desde uma perspectiva geral, por cima de qualquer demanda reivindicativa parcial. As reivindicações parciais só podem ser eixo de organizações de massas como os sindicatos ou os diversos movimentos de trabalhadores. Porém quando se trata do partido revolucionário, o que manda é o ponto de vista da totalidade, o conjunto dos interesses imediatos e históricos da classe.
SOBRE AS LEIS DE CONSTRUÇÃO DO PARTIDO REVOLUCIONÁRIO
“A organização bolchevique foi a criação do próprio Lênin. A ideia mesma de organização ocupa um lugar central no leninismo; organização do instrumento revolucionário; organização da revolução como tal; organização da sociedade a qual a revolução deu vida. A insistência na absoluta necessidade de organização se encontra em todos os escritos e toda a carreira de Lênin” (53) .
Os ensinamentos de Lênin são de um grau de universalidade que se relacionam com as coordenadas centrais de todo partido que se preze enquanto tal, seja enquanto o partido esteja no estágio de organização de vanguarda (e, inclusive, se é um grupo de propaganda), ou com influência entre setores das massas: “O que defendo ao longo do livro [Que fazer?], desde a primeira até a última página, são os princípios elementares de qualquer organização de partido que possa imaginar-se”(54). Ao mesmo tempo, o “modelo” de partido leninista em todo estágio deve possuir traços de partido de vanguarda a respeito do conjunto da classe operária. Explicamo-nos: Ao ser partido político e não meramente movimento reivindicativo, sempre deve tender a encarnar os interesses mais estratégicos dos trabalhadores. Neste sentido, jamais deve marcar o passo com os elementos de consciência mais atrasada: “A socialdemocracia em todo lugar e sempre tem sido, e não pode deixar de sê-lo, o representante dos trabalhadores com consciência de classe, e não dos trabalhadores sem consciência de classe”(55).
Insistimos: o partido revolucionário sempre deve ser o destacamento avançado da classe: “O partido deve ser só a vanguarda, o líder das vastas massas da classe trabalhadora; o conjunto (ou cerca do conjunto) delas ‘trabalham sob o controle e a direção’ das organizações do partido, mas o conjunto destas mesmas massas não pode pertencer ao partido”(56). Nesse mesmo sentido, Liebman assinala que: “A convicção de que a revolução russa devia ser necessariamente o trabalho de um grupo de vanguarda e não de um partido de massas estava baseada não meramente nas características circunstanciais da Rússia de seu tempo, mas também na forma em que se concebia a relação entre a classe operária e o partido proletário; para ser mais preciso, desprendia-se de sua visão geral a respeito da consciência de classe que o proletário possuía o não possuía.”(57). Porém, há outro ângulo que tem que ver com as características do partido e seus estágios de construção. A que nos referimos com isto? Ao fato de que as leis específicas de uma organização em um estágio construtivo de vanguarda – isto é, que busca abrir passo não só em relação com as forças burguesas, mas também no interior mesmo da esquerda – são diversas a respeito do caso em que já está colocada a disputa pela influência entre setores das massas.
Estas leis não podem ser idênticas às que tendem a caracterizar uma organização que já é hegemônica no interior da própria esquerda e dos setores mais avançados da classe operária, e que mergulhou de cabeça no trabalho de massas. Este salto de qualidade, ao ser de uma mecânica tão complexa, foi resolvido de maneira correta apenas em poucas vezes: se quer na vida de Lênin e Trotsky a frente da III Internacional isto foi tarefa fácil. Nem se fale dentro do movimento trotskista do segundo pós-guerra. Muitíssimas experiências terminaram empatadas neste salto devido a que se as tensões das pequenas organizações revolucionárias provêm mais do lado do sectarismo, a das organizações as quais se lhes coloca o salto às massas vêm, caracteristicamente, do oportunismo. Está claro, por outro lado, que o anteriormente dito de nenhuma maneira deve ser razão para não se afrontar este desafio, sob pena de ser uma seita irremediável que faria um fraco favor a mesma classe operária, que – a experiência histórica propriamente socialista demonstrou claramente – não se pode levar adiante uma revolução propriamente socialista sem um grande partido socialista revolucionário com influência entre as massas.
Em síntese, para além dos determinantes gerais de todo partido revolucionário que vimos acima, no que diz respeito aos estágios de construção do mesmo, operam leis diversas e o salto de qualidade de um ou outro é o desafio mais difícil e historicamente pior resolvido em matéria de construção de organização revolucionária. No entanto, no que se segue, iremos nos concentrar sobre tudo na operação destas leis no caso das organizações no estágio de vanguarda e só daremos umas “pinceladas” sobre o salto às massas.
A LEI DO MAIS FORTE
As leis de construção de uma organização no estágio de partido de vanguarda estão marcadas por um paradoxo: se sua política sempre deve estar referida às exigências objetivas da luta de classes, para responder às mesmas, de certo modo, não tem alternativa a não ser ir adiante a expensas do resto da mesma esquerda. Isto é assim devido a que o “espaço” e o terreno político objetivo mais geral que habitualmente tem a esquerda revolucionária (claro que isto varia substancialmente quando se abrem situações revolucionárias) apresenta determinadas dimensões que obrigam às correntes a se chocar umas com as outras.
Na experiência histórica que conhecemos mais de perto, a do velho MAS – que havia “resolvido” as relações de forças no seio da esquerda -, este alcançou em poucos anos estender seu “espaço” de atuação mais além da vanguarda. Porém, a tremenda contradição surgiu quando começou a “flertar” com o peronismo: entrou em uma espiral de crise que o levou a dissolução. Teve um projeto errado para dar o salto até a influência entre amplos setores das massas: um projeto basicamente regional-geográfico-eleitoral em vez de um orgânico-laboral-estrutural. Este desvio oportunista em matéria de organização – junto a um conjunto de outras razões – o liquidou. Porém o habitual entre as correntes de vanguarda sem peso nas massas é uma construção que se leva a cabo a expensas do outro. Os “espaços” se criam porque uma corrente “cai” e outra que vem acumulando de maneira progressiva o ocupa. Trata-se de uma sorte de “lei de seleção natural política”, de sobrevivência do mais apto, ainda que mais “lamarquiana”(58) que “darwinista” porque, diferentemente da natureza, na sociedade, conta o fator subjetivo da vontade(59). Trata-se de uma lei materialista que rege a vida das correntes revolucionárias: devem-se qualificar umas as outras; a que tem mais capacidade e é sobrevivente em um meio hostil, constrói-se: esta é a lei.
Segundo Liebman, o próprio Martov na época da velha Iskra assinalava que “a luta entre ‘iskristas’ e os oponentes da centralização às vezes tomava a forma de uma ‘guerra de guerrilhas’ na qual ‘táticas subversivas’ deviam empregar-se e na qual, finalmente, ‘a lei do mais forte terminava impondo-se’. Decorre disso que os militantes aprendam suas primeiras lições [na arte da luta de tendências políticas”](60). Partindo do ponto de vista anterior, e durante esta duríssima luta, que muitas vezes abarca todo um período histórico (precisamente essa foi a experiência de bolcheviques e mencheviques na Rússia pré-revolucionária(61)) é que na hora de capitalizar acertos ou direções políticas, o mais “forte” é o que “leva mais” na hora da “divisão/partilha”: se há dez companheiros para ganhar, a corrente mais forte fica com sete, e as mais débeis “repartem”, entre elas, um cada uma.
A questão é que toda organização revolucionária que não se ajuste a estas leis objetivas de disputa, seleção e recrutamento na vanguarda se verá incapacitada para atingir um salto construtivo de qualidade. Isto mesmo é o que colocava Trotsky em seu balanço a respeito do debate Lênin-Luxemburgo em matéria de organização (debate que tem por saldo o triunfo da tese leninista). É que, efetivamente, como dizia Trotsky, o problema de Luxemburgo foi que não possuiu a capacidade de visualizar que a construção da organização revolucionária está determinada por um esforço subjetivo em selecionar, recrutar, concentrar e formar os melhores elementos da vanguarda para que construam a coluna vertebral do partido.
Rosa ficou taxada irremediavelmente como “espontaneista”, porque dadas as circunstâncias históricas em que viveu, sua concepção apostou muito na emergência espontânea e independente da base operária contra o aparato da direção socialdemocrata, questão que em si mesma não estava equivocada, porém, desvalorizou outra tarefa que estava colocada, a construção de uma forte fração centralizada no interior da socialdemocracia alemã. Mas retornemos a nosso ponto. Como vínhamos assinalando, o que nos interessa é apontar como são as leis de crescimento de uma organização de vanguarda. Suas leis são dialéticas como dialéticas são as leis de movimento tanto na natureza quanto na sociedade. Refere-se a uma compreensão profunda da operação desta lei: os saltos em qualidade se produzem após uma progressão caracterizada por toneladas de esforços e desenvolvimentos quantitativos prévios. Isto é, a lei de acumulação no terreno da natureza, a economia e também da construção do partido requer uma base material, um esforço prévio, que é o que em realidade ocupa praticamente a história inteira do processo, no qual o período de acumulação quantitativo leva um largo período de desenvolvimento. Trata-se de uma lei de desenvolvimento pautada por largos períodos de acumulação quantitativos prévios aos curtos períodos de surto revolucionário qualitativo. Em síntese, toneladas de esforços reformistas são necessários para criar as condições materiais de um salto qualitativo em matéria de construção do partido revolucionário.
QUANDO “A VONTADE É TUDO”
Porém, há algo mais no que pertence a organização de vanguarda: trata-se da passagem de ser uma organização que depende da vontade única de seus integrantes (característica das organizações de vanguarda) em transformar-se em uma corrente, digamos, histórica. Neste sentido, Gramsci (que evidentemente tinha muitíssima sensibilidade em matéria de organização) assinalava algo muito agudo. Citamos in extenso:
“A questão de quando se formou um partido, ou seja, quando se tem uma tarefa precisa e permanente, produz muitas discussões. Verdadeiramente se pode dizer que um partido não está nunca perfeito e formado, no sentido de que todo desenvolvimento cria novas obrigações e tarefas (…). Aqui se deseja aludir a um particular momento desse processo de desenvolvimento, ao momento imediatamente posterior a aquele no qual um fato pode ter existência ou não tê-la no sentido de que a necessidade de sua existência não chegou, todavia, a ser ‘peremptória, mas que depende ‘em grande parte’ da existência de pessoas com uma extraordinária potência volitiva e de extraordinária vontade. Quando se faz historicamente ‘necessário’ um partido? Quando as condições de seu ‘triunfo’ estão ao menos em vias de formação e permitem prever normalmente seus ulteriores desenvolvimentos. Porém, quando se pode dizer que um partido não poderá ser destruído com meios normais? Para contestar esta pergunta deve-se desenvolver um questionamento: para que exista um partido é necessário que confluam três elementos (propriamente, três grupos de elementos): “Um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação está possibilitada pela disciplina e a fidelidade, não por um espírito criador e muito organizador. Sem eles, é verdade, o partido não existiria, porém também é verdade que o partido não existiria ‘somente’ com eles. Eles são uma força na medida em que há alguém que os centralize, organize e discipline, porém se falta esta outra força viva de coesão, dispersarão e anular-se-ão em uma pulverização impotente. “O elemento principal de coesão que centraliza no âmbito nacional, que dá eficácia e potência a um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, contaria zero ou pouco mais; este elemento está dotado de uma força intensamente coesiva, centralizadora e disciplinadora, e também, ou inclusive talvez por isto, inventiva (se se entende ‘inventiva’ em certa orientação, segundo certas linhas de força, certas perspectivas, e também certas premissas); também é verdade que só este elemento não formaria o partido, contudo o formaria, de todos os modos, mais do que no primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, porém na realidade é mais fácil formar um exército que formar capitães. Tanto é assim que um exército já existente fica destruído se fica sem capitães, enquanto que a existência de um grupo de capitães, coordenados, de acordo entre eles, com finalidades comuns, não tarda em formar um exército inclusive onde não existe. Um elemento médio que articule o primeiro com o segundo, coloque-os em contato não somente ‘físico’, mas também moral e intelectual. Na realidade, para cada partido existem ‘proporções definidas’ entre estes três elementos, e se alcança o máximo de eficácia quando se realizam essas ‘proporções definidas’. Para que isto ocorra [isto é, a formação do partido. RS] é necessário que se vá formando a convicção férrea de que é necessária uma determinada solução dos problemas vitais. Sem essa convicção não se formará o segundo elemento, cuja destruição é mais fácil, por sua escassez numérica; porém é necessário que este segundo elemento, quando é destruído, deixe como herança um fermento a partir do qual possa reconstruir-se” (62).
Pedimos desculpas pela extensão desta citação, que reproduzimos completa porque é brilhante e capta em toda sua tremenda agudez o caráter a priori “voluntarista” (o que não quer dizer que não se apóie em premissas objetivamente fundamentadas) que necessariamente tem a construção de toda organização de vanguarda. Ou para dizê-lo de uma maneira mais “universal”, de uma corrente política definida com uma identidade tal que introduza um matiz no conjunto do movimento revolucionário de sua época. Em definitiva, segundo Liebman, a vantagem de que gozava o bolchevismo sobre o menchevismo (para além, claro está, das diversas estratégias) se fundamentava não tanto em uma equipe teoricamente superior, mas na capacidade de se manter viva, apesar de todos os fracassos e retrocessos, e inclusive apesar das mais difíceis condições, uma organização de partido que em período de reação e desmoralização que viram o colapso dos mencheviques salvaguardara o essencial e assegurara um futuro para a socialdemocracia russa.
A POLÍTICA NO POSTO DE MANDO
“Tampouco penso que possa dar uma fórmula tal sobre o centralismo democrático que ‘de uma vez por todas’ elimine os mal-entendidos e falsas interpretações. Um partido é um organismo ativo. Desenvolve-se na luta contra obstáculos exteriores e contradições internas (…). O regime de um partido não cai feito do céu, mas se forma gradualmente na luta. A linha política predomina sobre o regime; em primeiro lugar, é necessário definir os problemas estratégicos e métodos táticos corretamente com o fim de resolvê-los. As formas organizativas deveriam corresponder à estratégia e a tática. Somente uma política correta pode garantir um regime partidário saudável. Entende-se que isto não significa que o desenvolvimento do partido não dará lugar a tais problemas de organização. Porém implica que a fórmula para um centralismo democrático deve encontrar inevitavelmente uma expressão diferente nos partidos de diversos países e em distintos estados de desenvolvimento de um mesmo partido”(63). Acerca da espinhosa questão do regime do partido se escreveram toneladas de páginas, no mais das vezes “inservíveis”. Aqui só queremos deixar estabelecida uma série de critérios que cremos fundamentais para abordar esta problemática começando por assinalar que nunca se poderia tratar de tomá-los como um “receituário”. Em última instância, as determinadas “regras do jogo” do funcionamento do partido dependem das circunstâncias concretas da luta de classes em que a construção do mesmo se leva a cabo e em certa forma também do estágio construtivo em que se encontra o partido, tal como coloca Trotsky.
Começaremos despejando questões básicas. A primeira é que sempre os problemas de organização (e o regime de partido de partido dentre deles) se seguem dialeticamente da política. É a todas as luzes evidente que um partido direcionado a mera atividade eleitoral terá um tipo de regime muito diverso ao de uma organização revolucionária cuja atividade principal é intervir cotidianamente na luta de classe. Nesta intervenção, o que deve mandar são sempre as exigências que coloca a luta. Isto é, não há como resolver os problemas da intervenção do partido por uma via de onde se imponham interesses estranhos aos da mesma luta. Os irrevocáveis interesses do partido devem fazer-se valer de uma maneira que contribuam ao desenvolvimento, politização e triunfo dessa mesma luta. O contrário seria instrumentalismo e nada mais que instrumentalismo, que fraco favor faria aos trabalhadores e ao progresso de sua consciência de classe. O regime de partido é passível de outro tipo de reducionismo: o de fazer uma interpretação do mesmo em chave formalista. É dizer, crer que o regime pode ficar preso na aplicação formal de um estatuto que condena o partido a inação, liquidando o desenvolvimento de sua vida militante em toda sua riqueza e diversidade. Porque o que manda em uma organização autenticamente revolucionária é a política, o conteúdo das apostas estratégicas: “A fração e o perigo de uma divisão [do partido bolchevique em oportunidade de luta contra a oposição de esquerda ao acordo de Brest-Litovsk.RS] foram vencidos não por meio de decisões formais baseadas nos estatutos, mas com a ação revolucionária”(64). No mesmo sentido, Marcel Liebman insiste uma e outra vez, de maneira convincente, que, sobretudo em condições de ascenso revolucionário (quando há retrocesso, necessariamente, regem outras leis, mais “fechadas” no que tange a vida da organização), o “partido de Lênin” é um [partido, CER] extremadamente flexível e aberto à pressão revolucionária proveniente desde baixo, como veremos mais adiante.
CENTRALISMO OU FEDERALISMO?
Ainda que se sigam dialeticamente dos problemas políticos, está claro que há e não pode deixar de haver uma especificidade nos problemas de regime de partido. Esta especificidade refere-se a várias leis de funcionamento da organização: trata-se das questões que se relacionam com o federalismo ou centralismo em matéria de organização e a combinação da livre discussão (65) com a férrea unidade na ação. Interessa-nos começar pelo federalismo: historicamente, este foi o reflexo organizativo do economicismo: uma expressão pouco madura no terreno político; um marcar o passo com o mais atrasado da classe; o fazer valer os interesses “particularistas” contra o conjunto; um critério de despolitização. Enfim: vários dos temas caros a corrente anarquista-autonomista(66).
Precisamente, o debate entre concepções federalistas e centralistas em matéria de organização se deu já nos primeiros tempos da I Internacional. É conhecido que Marx era partidário do centralismo. O partidário do federalismo era Bakunin. Este acusava Marx de “socialista burocrático”: “Os anarquistas [viam] em toda centralização um obstáculo para a livre iniciativa local e para o impulso revolucionário das massas. Longe de desejar que dessem ao Conselho Geral [da I Internacional a frente do qual estava o próprio Marx] poderes mais amplos a fim de dirigir o movimento, queriam acabar com ele por completo e substituí-lo por uma mera Oficina de Correspondência que manteria em relação os grupos de distintos países, mas que não estaria encarregada de dirigir, em nenhum sentido, a atuação deles”(67). Porém como assinalava Lênin, em matéria de organização partidária, o federalismo é um “câncer”: uma trava organizativista ao livre debate e decisão política no conjunto do partido. Porque o federalismo supõe uma luta de relações de forças no seio da organização que não depende das posições políticas lançadas ao livre debate e a criação de maiorias e minorias políticas, mas de fazer valer nos debates supostas ‘quotas’ da mesma organização.
É conhecido que um dos cânceres do POUM espanhol dos anos 30 que acompanhava organizativamente seu centrismo político – foi que apesar de ter chegado a agrupar uma quantidade importante de militantes (algo em torno de 40.000) era uma organização pautada por caciques e caudilhos regionais que se negavam a subordinar-se, por mesquinhos interesses locais/regionais, a toda organização e diretivas políticas centralizadas. Outra coisa completamente distinta é quando se pensa na organização do Estado (já não do partido). E quando, ademais, este estado está integrado por uma série de nacionalidades diversas para as quais se deve permitir-lhes incondicionalmente livre expressão: trata-se do direito à livre autodeterminação nacional. É o caso – quando a formação da ex-URSS em vida do próprio Lênin – de se a Rússia bolchevique devia ser uma Federação de repúblicas soviéticas – posição de Lênin – ou uma União (grande posição russa de Stalin). Porque o que a União tendia a fazer, e fez, era liquidar os direitos à autodeterminação das minorias futuras integrantes da URSS. No entanto, quando se trata de partido, fala-se de outra coisa muito distinta: o federalismo se converte em uma trava organizativista que impede a unidade da organização em sua ação revolucionária, que se põe acima de toda decisão política. Trata-se não de um critério de democracia partidária, mas de algo muito distinto: um critério de aparato, de“quotificação” do regime partido. Como assinalava Liebman: “O propósito da Iskra era de terminar com este choque dos distintos grupos locais. O centralismo de Lênin era muito mais, no entanto, que esta vocação para unir: era uma concepção das relações no seio da organização entre a ‘liderança’ e a base, entre o ‘centro’ e as ‘regiões’ dependentes dele, uma definição das regras de hierarquia que deviam prevalecer na organização, um conjunto de questões que apresentavam a questão da democracia no seio do partido” (68).
DEMOCRACIA E CENTRALISMO
Em segundo lugar está a famosa questão de como estabelecer a combinação dos critérios de centralização na ação com a livre discussão democrática no interior da organização. Esta combinação, historicamente, expressou-se em uma fórmula proposta por Lênin em 1906 no interior do POSDR: o centralismo democrático(69). Classicamente, alude – como seu nome indica – a um par dialético, em que estão combinadas duas exigências distintas. Por um lado, a exigência de um amplo espectro de democracia e livre debate no interior da organização: os militantes partidários não são “autômatos”, mas companheiros dotados de consciência crítica que devem poder exercer seus direitos de opinião e, inclusive, de decisão autônoma. Como assinalava agudamente Trotsky: “Sabíamos que o regime de partido se baseava nos princípios do centralismo democrático. Supunha-se, desde o ponto de vista teórico (e assim se fez, desde logo, na prática), que esses princípios implicavam a possibilidade absoluta para o partido de discutir, de criticar, de expressar seu descontento, de eleger, de destituir, ao mesmo tempo em que permitia uma disciplina de ferro na ação, dirigida com plenos poderes por órgãos diretivos elegidos e revogáveis. Se se entendia por democracia a soberania do partido sobre todos os seus organismos, o centralismo correspondia a uma disciplina consciente, judiciosamente estabelecida, que garantisse em certo modo a combatividade do partido”. (69)
Precisamente: junto com o elemento de absoluta liberdade na discussão deve-se sublinhar que não há organização de luta – e o partido o é – que possa funcionar frente ao caráter centralizado do Estado capitalista e a patronal de uma maneira que não implique a mais férrea unidade na ação da organização. Neste sentido, Moreno dizia corretamente que questionar o centralismo é questionar a eficácia mesma, e que nenhuma revolução pode triunfar sem um alto grau de disciplina e centralização. Aqui se coloca outro agudo problema: nenhuma organização revolucionária pode dirigir-se à intervenção na luta de classes sustentando duas políticas (70). Isto a condenaria à impotência mais escandalosa. Daí que, chegado a um ponto, o debate no interior do partido – em qualquer de seus organismos – deve resolver-se para passar ao plano da ação. Porque sem essa ação o partido perde seu atributo de partido militante: em seu seio, o debate democrático e, inclusive, a elaboração teórico-política, devem estar ao serviço – em última instância – da ação: de exercer uma ação militante transformadora sobre a realidade. Assim, a unidade de teoria e prática, a práxis em matéria de um regime de partido militante, resolve-se na condenação do federalismo e no impulso da mais livre democracia na discussão e na mais férrea unidade na ação: “[Lênin] dizia que, todavia, havia trabalho a fazer para realmente aplicar os princípios do centralismo democrático na organização do partido, trabalhar incansavelmente para fazer das organizações locais as unidades organizacionais principais do partido nos fatos e não meramente nas palavras. Sua aplicação implica universal e total liberdade para criticar, sempre e quando isto não socave a unidade na ação; [esta regra] ditava cortar pelas raízes todo ‘criticismo’ que rompesse ou fizesse difícil a unidade de uma ação decidida pelo partido” (71).
O SALTO ÀS MASSAS
“Em janeiro de 1905, no momento de desencadear-se a revolução, a organização bolchevique estava integrada por 8.400 membros. Para a primavera boreal de 1906, o total de membros do POSDR alcançava os 48.000, dos quais 34.000 eram bolcheviques e 14.000 mencheviques. Em outubro desse ano, o total de associados excedia os 70.000 (…) e para o congresso de Londres em 1907, o partido tinha 84.000 membros, dos quais 46.000 eram bolcheviques e 38.000 mencheviques”(72).
Como assinalamos mais acima, não nos deteremos in extenso no que se refere aos complexos problemas da passagem do partido de vanguarda a um com influência entre as massas, nem às leis internas específicas deste último. Só faremos, em todo caso, uma série de meros assinalamentos deixando claro que quando falamos de “partido com influências entre as massas” tratamos de diferenciá-lo da ideia nua e crua de “partido de massas”, precisamente pelo que explicamos mais acima acerca da preocupação leninista de que o partido revolucionário deve manter seu caráter de vanguarda no que tange ao conjunto da classe. Aqui há várias questões, porém a primeira que se deve assinalar é que na operação das “leis” antes assinaladas há, evidentemente, uma transformação. Isto ocorre tanto em matéria das leis de crescimento do partido como no que tange inclusive ao regime interno do partido. Porque se a organização de vanguarda é até certo ponto uma sorte de “brigada de combate”, um partido que está se lançando na influência entre setores das massas, evidentemente deve ter um série de critérios próprios em matéria de organização e funcionamento que configuram em muitos casos uma sorte de “inversão dialética” das leis que regem o estágio de vanguarda. Isto não obsta para que em todos os estágios rejam leis de desenvolvimento desigual e combinado.
Explicamo-nos: se é muito perigoso confundir os estágios construtivos do partido, isto não quer dizer que não haja circunstâncias em que núcleos muito pequenos cumpram um papel de enorme importância com uma projeção no campo político muito acima de suas forças organizativas(73). Porém digamos algo a respeito das leis de crescimento de um partido com peso entre as massas. Os multiplicadores no que pertence a quantidade de militantes, inserção e envergadura política e organizativa do partido numa época revolucionária, evidentemente, variam substancialmente a respeito do período em que a organização é um partido de vanguarda. Trata-se de outras leis as quais regem o salto às massas: aqui operam leis de multiplicação.
Para que, ademais, não seja um salto ao vazio, faz falta a existência de uma acumulação prévia em matéria de construção partidária. O que ocorre, é que em um sem número de momentos se coloca ao partido esta possibilidade. Porém se não há partido organizado previamente, há um ditado que pinta de corpo inteiro a impotência desta situação: é como “tomar sopa com um garfo”(74). O mesmo se passa com a situação do partido: o salto às massas requer uma acumulação anterior, sob pena de que, inclusive, se existe um veículo a mão para dar esse salto, não possa concretizar-se.
Aqui há um terceiro problema: a variação das leis de construção no caso do partido que se lança a ter influência de massas, que muitas vezes o leva a chocar-se contra a parede. Pode-se dar o caso de que se tenha tanto o “veículo” como certa acumulação partidária para acometê-lo. É muito distinto o grau de politização da militância do partido de vanguarda; são muito distintos também os métodos de direção mais “personalizados” que caracterizam a organização de vanguarda. Porém quando o partido se faz realmente “impessoal” e tudo descansa nos quadros, no grau de educação que os mesmos receberam, e em sua capacidade de atuação autônoma (ainda que dentro dos parâmetros da política geral da organização), este elemento da acumulação de quadros prévia se transforma no elemento chave. Além disso, o partido transformado já – até certo ponto – em um “fato objetivo” tem a tendência de desenvolver interesses “próprios” de uma maneira muito forte, o que coloca a questão de que nunca se deve pensar o partido independentemente da luta de classes.
É o típico perigo do partido “grande”: considerá-lo um fim em si mesmo, ter medo de arriscar, desentender -se dos problemas da sociedade e da classe como se o partido pudesse construir-se independentemente da luta de classes (o caso extremo foi o da socialdemocracia alemã, caracterizada como um “Estado dentro do Estado”). Isto é, deve-se estabelecer um correto balanço entre a vida interna do partido e sua vida habitual, que está dirigida, e não pode deixar de estar, ao serviço da luta de classes. Vejamos o quarto problema: o das “âncoras” do partido. Aqui nos referimos aos contrapesos para que as pressões sociais que começam a exercer um setor das massas sobre a organização – com todos seus elementos de atraso – não a faça desabar.
Estas âncoras são: o grau de politização de seu núcleo partidário, sua composição social, a autoridade de sua direção, as tarefas as que habitualmente se dedica (não será o mesmo se o cotidiano for a intervenção nas lutas operárias ou se a sua atividade básica for a eleitoral), o quadro teórico estratégico da organização e seu caráter internacionalista(75). Porque, caracteristicamente, e ligado dialeticamente ao anterior, há outro ponto chave: o grau de flexibilidade do partido em matéria de nutrir-se do melhor da jovem geração que entra em luta. O partido deve deixar para trás toda inércia conservadora e lançar-se de todo em intervir política e construtivamente na luta de classe incrementada. É aqui onde entra a capacidade de adaptação do partido, sua flexibilidade revolucionária, sua capacidade de livrar-se de toda inércia conservadora, toda estrutura inflexível que não seja capaz de nutrir-se dos impulsos revolucionários da realidade. Aqui há outra exigência ainda. Em situações de ascenso da luta de classes, o partido corre o risco de ficar por detrás da situação – tanto política como organizativamente – em vez de ser vanguarda.
Como dizia Lênin em 1905: “‘Necessitamos aprender a ajustar-nos a este completamente novo alcance do movimento’. Esta adaptação aos eventos significa que a distinção entre a organização e o movimento, entre a ‘rede horizontal’ e a ‘rede vertical’, e, finalmente, entre a vanguarda e a classe trabalhadora, começava a fazer-se mais tênue” (76). Isto ocorre quando há um ascenso revolucionário: o partido deve livrar-se de toda a inércia, revolucionar-se junto à classe. Há, até certo ponto, e como já assinalamos, uma “inversão” dos princípios enunciados mais acima. Porém para que este salto não seja ao vazio, o estágio de partido de vanguarda deve ter sido resolvido de uma maneira satisfatória. O partido manterá seu caráter geral revolucionário só se quando se “fusiona” com as massas (como assinala Lênin em O esquerdismo…) tem firmes suas colunas vertebrais enquanto organização revolucionária. Aí já se estaria fechando todo um círculo dialético em que até agora só o bolchevismo foi capaz de transitar satisfatoriamente, porém que seguramente terá novos capítulos neste século XXI.
NOTAS:
1 O presente trabalho é uma atualização com importantes modificações do artigo “A um século do Que fazer?”, escrito anos atrás e tendo em mente os problemas planejados para a construção de nossa corrente Socialismo ou Barbárie Internacional.
2 Marcel Liebman, Leninism under Lenin, The Merlin Press, 1985. No mesmo sentido diz Trotsky: “Um partido vivente pode somente alcançar uma política relativamente correta por aproximações sucessivas; isto é, por desvios sucessivos à direita e esquerda. O mesmo é verdade individualmente para cada membro do partido. O vigor do partido e a habilidade de seus dirigentes se provam por suas capacidades para assimilar os desvios parciais a tempo e não permitir que cheguem a uma ruptura completa com o marxismo”, “Como dirigir una discusión política”, em Textos sobre centralismo democrático, Buenos Aires, Antídoto, 1990, p.108.
3 “A cien años del “Que fazer?” Leninismo, crítica marxista y la cuestión de la revolución hoy”, Werner Bonefeld e Sergio Tischler, Herramienta, 2003, p.11.
4 Idem, p.9.
5 Neste ponto seguimos o capítulo 4, “Lênin e a filosofia”, do livro do marxista inglês John Rees A álgebra da revolução, que nos parece um aporte sólido à compreensão da dialética marxista, publicado em Socialismo ou Barbárie 21.
6 Mike Rooke, “La dialéctica del trabajo y la emancipación humana”, em A 100 años del “Qué hacer?”, p. 127.
7 Tony Cliff, cit., p. 291.
8 Materialismo e empiriocriticismo, idem, p.65.
9 Isto não quer dizer que esta obra não tenha sinais neste último sentido: “Marx lamenta que o materialismo tenha abandonado ao idealismo o cuidado de apreciar a significação das forças ativas [isto é, da prática humana. Lênin].Estas forças ativas devem ser arrancadas do idealismo, segundo a opinião de Marx, para reintegrá-las também ao sistema materialista”. Lênin, cit., p.107. No entanto, o sentido geral desta obra foi para o outro lado.
10 Tesis II sobre Feuerbach, citado pelo mesmo Lênin em Materialismo e empiriocriticismo, Pueblos Unidos, Montevideo, 1971, p. 105.
11 Ao mais que chega o Lênin de Materialismo…é dizer que “ A. Levy tem razão, no fundo, quando diz que , para Marx, a ‘ atividade das coisas’ corresponde à ‘atividade fenomenal’ da humanidade: isto é, a prática da humanidade tem não só uma significação fenomenal ( no sentido que Hume e Kant dão à palavra), mas também uma significação objetiva-real”, ainda que seguisse perdendo de vista o caráter transformador desta prática mesma. Cit., p.107.
12 Bogdanov era o dirigente de uma fração esquerdista e sectária do bolchevismo chamada novistas que planejava a não participação por princípios no parlamento burguês e que foi duramente combatida por Lênin no plano político.
13 Lênin só emprega a palavra “dialética” apenas algumas vezes nesta obra. Além disso, não é nada casual que em todo o texto, no momento de exemplificar suas concepções filosóficas, estas se apresentem sobre o terreno dos fenômenos da natureza e nunca da história. É evidente que isto diz sobre a unilateralidade metodológica de Materialismo… porque ainda que as leis da dialética sejam unitárias, a história se cifra no peso específico que tem a intervenção humana sobre a marcha dos acontecimentos.
14 A. Sánchez Vázquez, Filosofia de la práxis, México, Siglo XXI, 2003, p.245.
15 Cit., p.243. Trata-se de uma obra que combina aspectos valiosos com outros muito desiguais. Por exemplo, Sánchez Vázquez incorretamente assimila o pensamento de Lênin – em matéria de aquisição da consciência por parte dos trabalhadores – ao de Kaustky. Mais adiante rechaçaremos prontamente esta interpretação.
16 Liebman, cit., p.30.
17 Raya Dunayevskaya, Filosofia y revolución, México, Siglo XXI, p.104.
18 Dunayevskaya, cit. Deve-se recordar que desde sua juventude Leon Trotsky teve outra base filosófica, superior a de Lênin. Estando em prisão, teve a oportunidade de estudar Antonio Labriola, um filósofo marxista italiano do final do século XIX que tinha o valor de sustentar uma posição filosófica a contramão do tronco principal da tradição materialista passiva e mecânica da maioria da II Internacional. Labriola reivindicava uma filosofia marxista muito mais tributária a respeito do pensamento de Hegel.
19 Filosofia y revolución, p. 101. Lenin, Cuadernos filosóficos.
20 Cit.
21 Significativamente, em nenhuma das 300 páginas de A 100 anos… se faz referência aos Cuadernos filosóficos (Cadernos filosóficos).
22 Liebman, cit., p.30.
23 “[Para Mandel] elevar-se à consciência de classe é chegar à compreensão teórica, científica e global do marxismo como ciência; manejar a dialética, a sociologia, a economia e a história marxistas. Por isto ‘só pode ser assimilada em forma individual e não coletiva’; isto é, por isso só uma ínfima minoria científica pode chegar a ela. É a concepção mais derrotista que podemos imaginar; é, na verdade, uma tarefa impossível de cumprir para o movimento operário”. Nahuel Moreno, El partido y la revolución, Buenos Aires, Antídoto, 1989, p. 292. Assinalamos esta observação correta de Moreno acerca da diferença entre ciência e política apesar de que imediatamente criticaremos sua unilaterização pragmática da complexa questão da aquisição da consciência de classe por oposição à concepção “idealista” de Mandel.
24 Nahuel Moreno, El partido y la revolución, cit., p.293.
25 Alan Shandro, “A consciência desde fora: marxismo, Lenin y el proletariado”, citado em Construir outro futuro, Buenos Aires, Antídoto, 2000, p.67.
26 V.I. Lenin, Que hacer?, Obras completas, Tomo 5, Buenos Aires, Cartago, 1971, p.441.
27 Vide R. Sáenz, “Tradiciones, espontaneidade, experiências y consciência”, em Socialismo ou Barbárie nº 4.
28 G. Lukacs, “Observaciones de método acerca del problema de la organización”, em Historia y conciencia de classe, México, Grijalbo, 1985, p.222.
29 “Se dentro do capitalismo o fetichismo é algo estável e fixo, então voltamos a enfrentar a problemática leninista de como conduzimos as massas fetichizadas a revolução. O conceito duro de fetichismo nos leva até o dilema óbvio: se baixo o capitalismo as pessoas existem como objetos, então como pode conceber-se a revolução?, como é possível a crítica?, diz John Holloway em Cambiar el mundo sin tomar el poder (Mudar o mundo sem tomar o poder), p. 127. Holloway rechaça o esquema do “fetichismo duro” só como forma de justificar seu repúdio a ideia mesma de partido.
30 “Perspectivas políticas de la izquierda”, em A 100 años del Que hacer?, p.54.
31 Ao que parece, em Holloway, a relação entre os trabalhadores e o sistema social seria uma relação “pura”, “direta”, sem estar mediada pela ação das instituições burguesas sobre a consciência e ação dos trabalhadores.
32 D. Bensaid, “Lenin y la política del tiempo partido”, em Marxismo, modernidad y utopia, Xama, 2000, p. 181.
33 Que hacer?,cit., p.476.
34 Idem, p.460-1.
35 O “economicismo” foi uma corrente do movimento operário russo que Lênin combateu a inícios do século XX. Esta corrente, em palavras de Lênin, “elogiava as formas mais baixas de atividade do proletariado”. Por esta abordagem foram os primeiros a acusar Lênin de “substituista”, de estar contra a “autoemancipação do trabalho…Porém a perspectiva de “libertação dos trabalhadores pelos trabalhadores mesmos” não pode implicar um caminho simplista de onde se perca de vista as desigualdades entre setores de vanguarda e retaguarda, as tensões entre “o reino da necessidade” e os objetivos socialistas, etc. Este metabolismo não pode prescindir do partido nem da luta diretamente política.
36 Também Gramsci questionava a concepção “de coisa [cósica, em espanhol, CER]”, fechada, da consciência. É muito esclarecedora com relação aos elementos integrantes da consciência concreta dos setores populares a análise que faz a respeito dos elementos de “senso comum” e “bom senso” que se aninham, de maneira “superposta”, na consciência das massas: “O homem ativo nas massas tem uma atividade prática, porém tem uma clara consciência teórica de sua atividade prática. Tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória). Uma implícita em sua atividade, que o une com seus companheiros na transformação do mundo real. E outra superficial e verbal herdada do passado e absorvida acriticamente. O populismo, a bandidagem social, o milenarismo e o misticismo no campo; o insurrecionalismo urbano, o socialismo utópico; estas espontâneas e impuras formas de consciência mesclam elementos de ‘senso comum’ e de ‘bom senso’”.
37 Que hacer?,p. 467-8.
38 Deve-se dizer, no entanto, que Lênin tinha em alta estima certas características do militante narodniki em matéria de bravura pessoal e organização clandestina. Marcel Liebman, de maneira convincente, assinala que o bolchevismo não foi uma mera negação do populismo em matéria de organização (operativo formalista do menchevismo que lhe destituiu todo caráter militante), mas também uma superação crítica.
39 Cit., p.505.
40 Idem, p. 506 e 507. 41V.I. Lênin, Um passo adelante, dos passos atrás, Obras completas, Tomo 7, Buenos Aires, Cartago, 1971, p. 288.
42 Isto é, a lógica do encadeamento de consignas transitórias que informa o método do programa transicional formulado por Trotsky vai justamente ao sentido de enfrentar este problema.
43 Daniel Bensaid, op cit., p. 178-180.
44 Lênin produzia aqui uma brilhante crítica ao economicismo que crê que, mecanicamente, a base econômica pode se expressar no campo da política.
45 Que hacer?, p. 442.
46 Nisto também havia um problema na concepção de Nahuel Moreno quando colocava que “as duas estratégias permanentes dos revolucionários” eram “a mobilização das massas e a construção do partido”. Na realidade, as estratégias permanentes dever ser três, incluindo o impulso dos organismos de luta e poder dos trabalhadores.
47 As Relações particulares entre Lênin e Rosa Luxemburgo tratamos em “Atualidade dos problemas de organização”, Socialismo ou Barbárie no 4. Ali, colocávamos a necessidade do estabelecimento de um “diálogo” fecundo entre ambos revolucionários em matéria de organização. Cremos que isto segue sendo válido quando se toma em conta a área mais ampla do conjunto de organizações e instituições que fazem parte da democracia dos trabalhadores. Porém quando se trata das concepções específicas acerca do partido revolucionário, devemos ser categóricos: o pensamento de Lênin é o que se demonstrou como mais universal, o que passou melhor pela prova dos fatos.
48 Roberto Sáenz, “Las revoluciones de pós-guerra y el movimento trotskista”, em Socialismo o Barbárie 17/18.
49 Por “instrumentalização” nos referimos aos perigos que se derivam de que ao se autoproclamar como “o partido revolucionário” sem nenhum princípio de realidade que garantatal alegação e deslizando-se a pensar-se como fim em si mesmo, creia-se que não está sujeito a nenhuma regra de jogo e que poderia fazer “o que quisesse”. Trotsky alertava muito agudamente a respeito da “independitização” dos interesses do “partido”, ou melhor do aparato, a respeito da classe: “(…) um aparato independente (…) ou com tendência a sê-lo, que encontra seu fim em sua própria existência, que vela pela “ordem” sem ocupar-se da massa do partido [ou da classe], que ataca e até suprime sua vontade, se a “ordem” [ou mesquinhos interesses sectários] o exigem, que pisoteia aos estatutos, que adia os Congressos, que faz deles uma ficção”. Em “Os problemas do regime interior de partido”, Textos sobre o centralismo democrático, cit., p.48.
50 León Trostky, “La degeneración del partido bolchevique”, em Textos sobre centralismo democrático, cit., p.86. Trata-se de um texto em que Trotsky cita explicitamente de maneira aprobatória observações muito agudas de Christian Rakovsky sobre a burocratização da ex-URSS, apesar de que este já havia capitulado à burocracia.
51 R. Sáenz, cit.
52 Tony Cliff citando Lênin, idem, p.163. Ou também, novamente com Lênin: “(…) o Soviet de deputados operários ou o partido? Penso que é equivocado por a questão desta maneira e que a decisão deve necessariamente ser: ambas, o Soviet de Deputados Operários e o partido. A única questão – e uma verdadeiramente importante – é como diferenciar, e como combinar, as tarefas dos Soviet e aquelas do POSDR”.
53 Marcel Liebman, cit., p.25.
54 Um passo adelante, dos passos atrás. Repuesta a Rosa Luxemburgo, cit., p. 519.
55 Liebman, cit., p. 32.
56 Construyendo el partido, Tony Cliff, p. 108.
57 Marcel Liebman, cit., p. 29.
58 Em Lamark a adaptação parecia surgir de um esforço “subjetivo” da espécie em questão, ao invés da “coincidência” darwinista objetiva entre a espécie e o meio que fazia que umas espécies (casualmente mais adaptadas a suas circunstâncias) sobrevivessem e outras não.
59 Jogando com a analogia que estamos fazendo com as leis que regem a seleção natural, demos a conhecer o que dizia ao respeito o arqueólogo marxista Gordon Childe: “Para o biólogo, o progresso – se é que emprega este termo – significará o êxito na luta pela existência. A sobrevivência do mais apto é um bom princípio evolutivo. Só que a aptidão significa justamente o êxito na vida. Uma prova provisional da aptidão de uma espécie seria a de contar o número de seus membros durante várias gerações. Se o número total resultasse ser crescente, poder-se-ia considerar que a espécie teve bons resultados; se o número diminui, estará condenada ao fracasso”. Em Cómo el hombre se hizo a símismo, México, FCE, 1954, p.19.
60 Liebman, cit., p. 28. Trata-se de um dos melhores trabalhos acerca da construção do partido em Lênin. É superior ao mais conhecido de Pierre Broué (O partido bolchevique) que é, melhor caracterizando-o, uma reconstrução histórica.
61 Liebman assinala que o Trotsky pre-bolchevique denunciava que Iskra (sob a condução de Lênin) “lutava não tanto contra a autocracia como contra as outras frações do movimento revolucionário”… Está claro que o jovem Trotsky, todavia, não terminava de entender a mediação da luta na vanguarda para chegar às mais amplas massas e o valor político que tinha a polêmica entre as correntes revolucionárias. Cit., p. 29.
62Antología, Barcelona, Siglo XXI, 1999, p.347.
63 Leon Trotsky, “Sobre el centralismo democrático. Umas poucas palavras acerca del régimen de partido”, em Textos sobre centralismo democrático, cit., p. 104.
64 León Trotsky, “El nuevo curso”, em Textos sobre centralismo democrático, cit., p.26.
65 Livre discussão que nunca poderia ser “democratismo”, que é outra coisa muito distinta. Como assinala Trotsky: “A maturidade de cada membro do partido se expressa particularmente no fato que não exige do regime partidário mais do que [este membro, CER] pode dar. A pessoa que define sua atitude frente ao partido pelos impulsos pessoais que lhe dão na cabeça é um pobre revolucionário. É necessário, portanto, lutar contra todos os erros individuais dos dirigentes, toda injustiça, etc. Contudo, é necessário determinar essas ‘injustiças’ e ‘erros’ não neles mesmos, mas em conexão com o desenvolvimento geral do partido a escala nacional e internacional. Um juízo correto e um sentido das proporções em política são extremamente importantes”. “Sobre o centralismo democrático”, em Textos sobre centralismo democrático, cit. , p.105.
66 G.D.H.Cole caracteriza a luta entre Marx e Bakunin como uma entre os defensores da ação política (Marx) e os federalistas-anarquistas-localistas (Bakunin).
67 G.D.H.Cole, Historia del pensamento socialista, Tomo II, México, FCE, 1958, p. 185. Cole adiciona que “onde Marx acentua a necessidade de uma direção centralizada e uma organização de classe disciplinada, Bakunin depositava fé na ação espontânea dos trabalhadores individuais e nos grupos primários que seus instintos naturais de cooperação social o levariam a formar, quando a necessidade surgisse”, cit., p. 211.
68 Liebman, cit., p.38.
69 Tal foi a maneira que encontrou Lênin de resolver – no congresso do POSDR de Londres de 1906 – a relação entre bolcheviques e mencheviques no seio do partido sem por em risco sua unidade na ação.
70 Não fazemos referência aqui a circunstâncias transitórias que se possa dar em uma organização que se cria como organização de frente única de tendências revolucionárias e que necessariamente então deve reger-se por um regime com liberdade de tendências políticas por todo um período. Acerca deste tópico, ver o artigo de Antônio Carlos Soler em Socialismo o Barbárie 22.
71 Liebman, cit., p.51.
72 Idem, p.47.
73 Historicamente na América Latina, o máximo exemplo deste desenvolvimento desigual com muito pouca “organicidade” é o exemplo do POR boliviano e seu peso entre os mineiros no final da década de 40 do século XX. Está claro que além do desvio político oportunista que sofreu na revolução de 1952, não deixou de pagar muito caro por sua incapacidade de obter um salto construtivo: o partido foi “comido” pelo movimento.
74 Na história da corrente morenista há um exemplo emblemático neste sentido: a imensa eleição do FOCEP no Peru em 1978: ao redor de 20% dos votos com só 40 militantes…
75 É evidente que estas “âncoras” falharam completamente no caso do velho MAS.
76 Liebman, cit., p.46.