A luta pela independência de classe

ANTONIO SOLER

Estamos lançando uma prévia do Caderno Teórico O PSOL NA ENCRUZILHADA em meio a uma situação mundial cada vez mais crivada de contradições. Nem bem acabou a pandemia da Covid-19 – que pode produzir outras variantes e ondas catastróficas – vivemos um conflito interimperialista – uma guerra indireta – na Ucrânia com a invasão do exército russo que, além de estar devastando o país, não descarta uma conflagração direta entre potências militares.

A crescente polarização da luta de classes, pela não solução definitiva da crise capitalista aberta em 2008, consequente ofensiva econômica da burguesia mundial que se traduz em precarização, superexploração e devastação ambiental, a formação de movimentos e governos de ultradireita e a resistência das massas manifesta através de rebeliões populares, em várias partes do mundo como contrapartidas, agora se deparam com um guerra indireta entre potências que está escalando e pode ir para um conflito direto com desdobramentos ainda mais graves. 

A irracionalidade do capitalismo, sua concorrência e a disputa interimperialista, além da destruição ultraliberal, da devastação ambiental e da pandemia, agora produz diretamente uma guerra no continente europeu que flerta com a terceira guerra mundial e com a utilização de armas atômicas. Ou seja, um reviver da Guerra Fria, só que agora em condições mais quentes, mais imprevisíveis, sem um enquadramento claro, à medida que novas potências emergentes colocam em questão a ordem mundial do pós-queda do Muro de Berlim. 

Além do sofrimento causado diretamente pela conflagração, mortos, feridos e refugiados que se contam já aos milhões, a guerra trará sofrimentos adicionais devido ao recrudescimento inflacionário, desemprego e precarização para trabalhadores de todo o mundo. Não se pode desconsiderar, também, que a ofensiva militar de Putin, mesmo que em resposta ao avanço da OTAN sobre o leste europeu, tem um caráter autoritário e que se for vitorioso fortalecerá governos e regimes autocráticos de todo o mundo, como é o caso de Bolsonaro no Brasil. Desde nossa corrente internacional Socialismo ou Barbárie, entendemos que a vitória de qualquer um dos imperialismos só pode significar mais opressão e exploração sobre a classe trabalhadora da Ucrânia e da região com repercussões orgânicas (políticas e econômicas) sobre todos os  explorados e oprimidos do mundo todo. Por isso, somos pela mobilização mundial da classe trabalhadora e da juventude pelo fim da guerra, pela suspensão imediata do conflito, retirada das tropas russas da Ucrânia e dissolução da Otan e de todo seu pacto militar.  

Como todos sabem, teremos em outubro deste ano eleições nacionais (presidente, governadores, Câmara Federal e Assembleias Estaduais), processo político que desde meados de 2021, com a retomada dos direitos políticos de Lula, já tomou conta do debate político nacional – se as massas têm preocupações mais urgentes na cabeça -, ao menos no mainstream político isso é incontestável. 

O nosso Caderno Teórico traz textos sobre a situação brasileira atual e polêmicas com as demais correntes que atuam no interior do PSOL. Além disso, dois  textos clássicos de Leon Trotsky – com suas lições teóricas, estratégicas e táticas revolucionárias, sobre a França e Espanha na década de 30, o ascenso das massas, a politica de traição das direções e a consequente derrota dessas experiências – que  consideramos fundamentais para compreender a nossa realidade atual e para a tarefa histórica de relançamento do marxismo revolucionário para este século.

Nas notas O PSOL na encruzilhada (Soler) e Brasil: os limites do possibilismo (Saenz) procuramos trazer as contradições mais importantes da realidade nacional onde tecemos uma crítica e um alerta para a gravidade do giro político da esquerda que cede oportunisticamente diante das pressões da realidade. Edifica-se um cenário nacional em que a polarização eleitoral entre Lula e Bolsonaro se torna uma questão política quase que exclusiva. Em torno desse tema todos estão se posicionando, não se pode escapar a essa temática se queremos dizer algo sobre a realidade. Enquanto a crise pandêmica, ambiental, econômica, social e ameaças golpistas ocorrem sem solução no horizonte, Lula e PT estão construindo uma frente eleitoral com todas frações da burguesia que teria Geraldo Alckmin como vice-presidente. O que não muda – apenas agrava – em um só milímetro a estratégia petista de conciliação de classes que tem sido uma marca nacional desde a fundação do partido e de todos os seus governos, como ápice os governos nacionais de Lula e Dilma nos anos 2000. 

Enquanto isso, na esquerda temos a  direção majoritária do PSOL – emblocada por correntes de tradição do trotskismo nacional e supostamente revolucionárias, como a Resistência, Insurgência e Subverta – liquidando totalmente a independência de classes do partido através do ingresso direto na frente burguesa de salvação nacional Lula-Alckmin somado à conformação de uma federação partidária com a REDE, movimentação que é apoiada pelo MES – posição que terminou por enfraquecer a candidatura própria com um programa anticapitalista para presidência com a figura de Glauber Braga. Tudo isso, como sempre, “justificado” pela necessidade de dialogar com as massas. 

Após a derrota da Revolução Alemã de 1923, pela mais absoluta falta de estratégia e disposição revolucionária das direções, que permitiu a ascensão do fascismo, o processo revolucionário francês e espanhol colocou novas esperanças na revolução internacional e na luta contra o processo de burocratização da Revolução de Outubro na Rússia. É neste contexto, de revolução e contrarrevolução, que Trotsky desenvolve parte do melhor de sua elaboração política e teórica e se transforma em combatente número 1 da falsificação teórica do campismo manifesto na participação de organizações socialistas e revolucionárias nas frentes populares com setores “progressistas” da burguesia. Em A França na encruzilhada (texto de 28 de março de 1936), escrito após a expulsão de Trotsky das terras da Comuna de Paris na forma de prefácio da nova edição de Terrorismo e Comunismo (uma resposta à Kautsky), é feito um balanço geral da politica de frente popular – uma ruptura com a ciência e a arte do marxismo. Trotsky que foi campeão prático-político-teórico da necessidade de uma frente única para lutar, foi também o maior crítico da política que tinha como estratégia ganhar politicamente as classes médias através da aliança com partidos burgueses (campismo) e rejeitar consequentemente uma política para disputar estes mesmos setores e do campesinato, a partir de uma posição independente da classe trabalhadora, como propunha o velho Marx – uma lição central tirada entre 1848 – 1851 com a situação alemã. 

No texto Lições da Espanha: a última advertência (17 de dezembro de 1937), toda a discussão teórica, estratégica e tática entre mencheviques e bolcheviques volta à tona na crítica à posição estalinista orientava que a revolução espanhola iria se deter pelas tarefas democráticas, daí, segundo os estalinistas, a tarefa para os comunistas era a de conformar um campo comum com a burguesia progressista. Algo mais grave passa a ocorrer na Espanha, superando o apoio à frente popular na França ou políticas de contenção do movimento de massas – históricas greves – através da direção dos aparatos; na Espanha o estalinismo que caluniou, perseguiu e assassinou combatentes revolucionários, era parte orgânica de seu respectivo governo burguês. Assim, a partir dessas experiência e dos Processos de Moscou (1936-1938), Trotsky passa a considerar a burocracia estalinista como uma força contrarrevolucionária diretamente, não mais centrista como o fazia antes, o que se desdobra na necessidade histórica de construir na Espanha uma organização revolucionária totalmente independente, o que, junto com a entrada de Andrés Nin – assassinado pelo estalinismo em 27 de julho de 1937 – na frente popular, gerou uma série de diferenças e finalmente uma ruptura política. Em que pese do caráter de Nin, Trotsky caracterizou corretamente sua política de ingresso na frente popular como uma traição. Essa capitulação política foi determinante para que a burguesia, em frente com o estalinismo, pudesse desenvolver a linha de normalizar a situação – atomizando qualquer alternativa revolucionária independente -, liquidando assim a situação de duplo poder das massas e dos setores armados e perseguindo dirigentes combativos, como Nin. 

Em momentos de polarização da luta de classes, o “diálogo com as massas” sempre é usado como argumento para capitulação à frentes populares ou à coalizões burguesas, isto é, uma adesão consciente da teoria campista  antagônica pelo vértice aos princípios da independência de classes e às estratégias revolucionárias – axiomas de acúmulo do movimento operário. Uma ruptura com o marxismo que remonta aos velhos possibilistas franceses do final do século XIX e à Bernstein, para os quais o gradualismo era o horizonte político, seguido pelo menchevismo e seu etapismo e aliança estratégica contra o czarismo com a “burgueses progressistas” na Rússia, e a concepção estalinista do socialismo em um só paísetapismo, frente popular e campismo transformados em uma nova totalidade política, em uma teoria, estratégia e táticas políticas internacionais contrarrevolucionárias permanentes que tiveram repercussões destrutivas para todos os processos pela emancipação social. Tais orientações – uma falsificação do marxismo –  foram responsáveis pela derrota de vários processos revolucionários, como na China no final da década de 20, França e Espanha na década de 30, Indochina na década de 40 e 50, sem falar em vários processos em que o estalinismo, se utilizando da máquina dos estados burocráticos, atuou no sentido de reprimir diretamente movimentações revolucionárias, como na Alemanha, na Hungria na década de 50 e na Iugoslávia na década de 60. 

Mas o campismo com a “burguesia progressista” também é um desvio de correntes revolucionárias em nosso continente, como ocorreu com o POR boliviano que, após a revolução que destruiu o aparato militar, apoiou o governo de Paz Estenssoro, o que contribuiu com o restabelecimento do Estado burguês Neste sentido é preciso lembrar do apoio da corrente de Ernest Mandel ao governo sandinista, do apoio do grupo dirigido por Pierre Lambert ao governo de Mitterrand, do apoio ao governo Lula e Dilma dos lambertistas e mandelistas locais – o que significou um enorme atraso para o desenvolvimento do trotskismo na França e a desmoralização total destas correntes que vivem do aparato petista no Brasil – e de uma série de outras capitulações políticas que levaram a atraso, desvios, derrotas e traições diretas aos processos revolucionários e à organização independente dos trabalhadores. 

O apoio às coalizões políticas de classe no Brasil tem atrasado tanto a mobilização e organização independe dos trabalhadores quanto a conformação de partidos revolucionários com influência de massas, o que redunda em atrasos do próprio processo de transformação radical da sociedade e em situações regressivas como as que estamos vivendo hoje. Não é capitulando ao lulismo que se dialoga com as massas (insistimos que o argumento do diálogo oportunista vem à tona para justificar as traições), mas sim buscando permanentemente a mobilização para derrotar Bolsonaro – que tem crescido nas pesquisas em grande medida devido à desmobilização causada pelas ilusões fomentadas de que basta votar em Lula para que tudo se resolva magicamente.  

Apesar da confusão que fazem setores do PSOL, como a Resistência – corrente que rompe com seu passado de independência política e infelizmente entra de cabeça ao campismo burguês -, a frente única para lutar é uma tática totalmente oposta à frente popular. O ingresso em frentes ou governos com “setores progressistas da burguesia” como sempre conformaram Lula e o PT, independente de Alckmin, leva invariavelmente à capitulação e vai justamente para o lado oposto das estratégias e táticas necessárias para enfrentar as tarefas colocadas. Se dialoga com as massas fazendo o debate dos pontos programáticos fundamentais, formulando um calendário para derrotar Bolsonaro pelas ruas e em uma sólida organização e mobilização independente de qualquer governo burguês – progressista ou não – pois estes sempre governam e reprimem para defender os interesses da classe dominante. Em determinados momentos a ala mais progressista da burguesia promete manter a ordem por meio da democracia multicolor, em outros,  a sua face mais reacionária (protagonista nos períodos de crise) investe em demonstrar que o parlamentarismo é corpo em decomposição e deve ser superado em favor de uma ditadura militar e policial declarada. Os métodos políticos são diferentes, mas os interesses sociais e econômicos são os mesmos.

Enquanto fechamos a publicação deste Caderno, a direção majoritária do PSOL negocia seu ingresso na frente eleitoral de salvação nacional que vai da burocracia lulista até o capital rentista e negocia, com o apoio do MES, com a REDE uma federação partidária. O ingresso na frente Lula-Alckmin e a federação com a REDE –  duas políticas combinadas de ruptura com a independência de classe – significará a liquidação política total da independência de classes do PSOL. Por essa razão, estamos na linha de frente da luta contra essa traição, chamamos a toda a base do partido ao debate e à luta por uma frente de esquerda socialista que tome as tarefas de organizar, mobilizar e exigir das direções do movimento de massas que mobilizem as bases para derrotar Bolsonaro. Essa é a única forma de construir uma alternativa de massas independente do lulismo, esse é o projeto original do PSOL que está sendo destruído pela sua direção majoritária nesse exato momento. Para tanto, a convocação urgente de uma Conferência Eleitoral com representantes eleitos diretamente pela base do partido, é fundamental. 

 

 

1 COMENTÁRIO

  1. mas a esquerda radical já está se articulando.
    Existe o Polo Socialista e Revolucionário – chamado pelo PSTU, ao qual já aderiram o MRT e a CST – para articular uma alternativa de independência de classe, para nao ter de votar em lula;
    e o Comitê de Enlace – chamado pela Transição Socialista, mas que pretende iniciar uma discussão mais programática , inclusive tendo em perspectiva uma possível conformação de uma nova organização política revolucionaria