Uma concepção totalmente atual do marxismo

ANTONIO LABRIOLA E O MARXISMO DO SÉCULO 21

Parte 1: Uma concepção totalmente atual do marxismo

Este ano marca o centenário da morte do marxista italiano Antonio Labriola[NT1]. Seu perfil político e filosófico faz dele uma “avis rara” no movimento socialista do final do século XIX, por várias razões. Labriola, um dos intelectuais mais sólidos e profundos da Itália de seu tempo – um professor universitário que dialogava de igual para igual com o filósofo Benedetto Croce, por exemplo – abraçou o marxismo não quando era jovem, como a maioria, mas em sua maturidade. Sua formação filosófica, na qual a matriz hegeliana era perceptível, deu à sua abordagem do marxismo uma marca dialética absolutamente incomum na Segunda Internacional Social-Democrática. É bem conhecido que, sob a influência do desenvolvimento das ciências naturais e da renovação da filosofia kantiana, a característica da maioria dos marxistas da Segunda Internacional foi seu positivismo e sua rejeição de Hegel e da dialética como “um cachorro morto”. Tal foi o caso não apenas da direita reformista de Eduard Bernstein, mas até mesmo dos líderes mais proeminentes da Internacional após a morte de Engels (1895), como Karl Kautsky, chefe da ala majoritária centrista.

Em contraste, a versão do marxismo de Labriola é incomparavelmente superior em todos os aspectos: metodológico, científico, histórico e político. Não foi por acaso que a reação imediata de Labriola ao aparecimento da teoria reformista de Bernstein foi de rejeição enérgica. A base de tal atitude era uma concepção do marxismo revolucionário que se recusava precisamente a dividir, de forma antidialética, a luta por objetivos imediatos da luta pela transformação geral da sociedade.[1]

Pretendemos demonstrar que, longe de ser uma velharia de valor meramente histórico, a agudeza, a sensibilidade e a sutileza deste marxista, carrega uma riqueza filosófica, metodológica e política que continua sendo uma valiosa contribuição para o panorama do pensamento e dos debates de nosso tempo. Para isso, contaremos com o que são provavelmente os principais e mais conhecidos ensaios de Labriola: sua correspondência de 1897 com Georges Sorel, publicada sob o título Socialismo e Filosofia, e seu ensaio Sobre o Materialismo Histórico. São obras nas quais a intenção de popularização – para além de um certo “barroquismo” estilístico – em nenhum momento se transforma em uma vulgarização ou adoçamento teórico dos problemas em discussão. Também aqui se torna evidente a superioridade do método de Labriola sobre a norma padrão da Segunda Internacional [2]; é evidente que uma visão mais rica e matizada do marxismo lhe permitiu, mesmo em exposições mais pedagógicas, preservar, aplicar e desenvolver esta riqueza. E isto se torna ainda mais valioso quando nos lembramos como a complexidade do pensamento e método marxista foi então pisoteada pelos “manuais” que tanto amigos quanto inimigos muitas vezes tomam como o verdadeiro marxismo. No que se segue, então, oferecemos um comentário sobre alguns dos elementos que consideramos como elementos-chave do trabalho deste marxista italiano injustamente pouco conhecido e a sua relevância hoje.

Ao mesmo tempo, nos permitimos usar esta validade de textos ricos, sensíveis e dialéticos como estímulo para uma reflexão mais geral, à luz dos problemas teóricos e políticos do marxismo no atual período histórico. Entre eles, o debate com os pós-modernistas e com o utópico-romantismo, com especial – mas não exclusivo – situação difícil na América Latina.

Devido ao seu grande número, e por razões de conveniência para o leitor, as notas de rodapé serão apenas conceituais, não referenciais. No caso dos dois textos de Labriola mencionados, nos referiremos apenas ao capítulo do livro correspondente, com as abreviações SF (Socialismo e Filosofia) e MH (Sobre o Materialismo Histórico). Todos os destaques são nossos, salvo indicação em contrário.

MARCELO YUNES

I. Uma concepção atualíssima do marxismo

Academismo apolítico e política antiteórica

Em suas considerações preliminares à abordagem dos problemas teóricos do marxismo, Labriola ecoa a queixa de Sorel sobre a “pouca difusão da doutrina do materialismo histórico“, e até observa a “escassez de forças intelectuais” no campo do pensamento marxista. Se a isso acrescentarmos o fato de que “aqueles fora do socialismo têm interesse em combater, deformar ou ignorar esta doutrina“, o panorama do final do século XIX justificava a preocupação e o interesse de Labriola em contribuir para um maior conhecimento do marxismo (SF, 1).

Sem dúvida, muitos fatores mudaram. Para dar um exemplo, a lacuna de uma “edição completa e crítica” dos textos de Marx e Engels apontada por Labriola foi preenchida em boa parte, embora não completamente [3]. No entanto, “ler todos os escritos dos fundadores do socialismo científico” permanece, hoje como na época de Labriola, “um privilégio dos iniciados” (SF, 2). Isto deu origem a duas “versões” do marxismo simetricamente opostas e igualmente unilaterais.

Por um lado, precisamente a hipertrofia da difusão do Marx e do Marxismo na esfera acadêmica, sobretudo, é claro, no campo das “ciências sociais”, deu origem a um curioso fenômeno, quase um paradoxo: não existe praticamente nenhuma área do pensamento sociológico, antropológico, historiográfico e etc., que não tenha sido de uma forma ou de outra “colonizada” por ferramentas conceituais e metodológicas emprestadas do Marxismo. E ao mesmo tempo, na grande maioria dos casos, a margem crítica dessas ferramentas teóricas é decisivamente minada quando a) ela é integrada de forma eclética e não orgânica com outras correntes de pensamento, ou ainda b) se fragmenta um enfoque teórico integral e orgânico, analisando-a em seu disjecta membra [4] e, por fim, c) um critério metodológico fundador do marxismo se perde de vista: seu caráter de reflexão total e totalizante sobre toda a vida histórico-social. Precisamente, a superioridade metodológica do marxismo – que, como doutrina, está de certa forma na própria base do nascimento das “disciplinas sociais” – está baseada na superação de visões parciais e fragmentadas do todo social. Retornaremos a isso mais tarde em termos de suas implicações epistemológicas.

Por outro lado, e diante deste empobrecimento, desta verdadeira mutilação do marxismo que procura reduzi-lo ao plano intelectual, há quem se lembre que o marxismo como movimento e Marx como indivíduo nunca separaram a elaboração teórica do princípio de ação que procura transformar a realidade, ou seja, a práxis social e política [5]. Infelizmente, aqueles que assumem o papel de herdeiros de um dos aspectos mais imperecíveis e inevitáveis do marxismo, enunciado na famosa Tese XI sobre Feuerbach, caem em muitos casos em uma unilateralidade do sinal oposto. De fato, quando a própria atividade política se transforma em uma esfera decisivamente autônoma e superior às demais, quando a conexão dialética entre intervenção na realidade e reflexão teórica sobre as condições, problemas e lições dessas experiências é quebrada, o marxismo deixa de ser uma ferramenta integral. Na verdade, torna-se pouco menos que uma profissão de fé de “verdades históricas” que, na medida em que perdem o ângulo de reflexão sobre a experiência viva – ou seja, na medida em que perdem seu caráter histórico – simplesmente deixam de ser verdades e se tornam dogmas ossificados.

Ambas estas versões rançosas, a Cila do Academicismo e a Caríbdis[NT2] do Politicismo, são contornadas por Labriola precisamente em virtude de sua concepção mais geral do caráter do marxismo, que desenvolveremos mais tarde.

A perversão stalinista do marxismo

Dito isto, no entanto, atualmente, os obstáculos mais formidáveis à propagação do marxismo no campo ideológico são dois: o legado venenoso do estalinismo e aquele ambiente intelectual difuso que, por falta de maior precisão, chamaremos de ideologia pós-moderna.

Os danos causados pelo estalinismo, naturalmente, transcendem o terreno ideológico: os crimes diretos, a política de convivência pacífica com o imperialismo, a estratégia de aliança com as burguesias “nacionais” ou “progressistas” e, como consequência de tudo isso, o imenso descrédito e a mancha que caiu sobre o nome do socialismo constituem uma carga muito difícil de ser levantada ainda hoje. Mas, no plano teórico, os danos não devem ser subestimados. Em particular, é graças ao estalinismo, sua práxis política e seus manuais ad hoc grosseiros (de filosofia, teoria política, história…) que, mesmo nos círculos acadêmicos, o marxismo foi vulgarizado e reduzido a uma caricatura. Embora quase todos mostrem respeito por Marx individualmente – de fato, até mesmo Labriola aponta que, no campo da “ciência oficial”, Marx já havia se tornado um “adversário com quem não se pode brincar” (SF, 3) – sua doutrina e, em particular, seus continuadores foram submetidos ao escárnio. Sem o trabalho do estalinismo de simplificação, rudimentarização, degradação e às vezes simplesmente falsificação do marxismo, os acadêmicos e “comunicadores” não teriam isso tão fácil em suas operações de difamação.

Quanto à influência da ideologia da pósmodernidade, que trataremos a seguir, apenas antecipamos aqui que o discurso sobre a “queda das grandes narrativas”, a abdicação da capacidade do pensamento para compreender a realidade, a metástase da “micropolítica” em sua versão mais acomodativa e uma visão do mundo como um caos impenetrável só pode gerar a maior desconfiança na “macropolítica” da transformação revolucionária da sociedade.

Uma definição não-vulgar de marxismo

Até este ponto, não fizemos mais do que atualizar a preocupação de Labriola com os problemas, obstáculos e desvios que o marxismo teve que tomar para se sustentar e se desenvolver. E isto é possível na medida em que compartilhamos com o marxista italiano uma visão do próprio marxismo e de seu caráter que é hora de explicitar.

O que é o marxismo? Esta pergunta simples e básica admitiu e admite, poderia ser dito, tantas respostas quanto existem marxistas, ou pelo menos tipos de marxismo. Acontece que ambos os problemas têm uma ligação íntima: parafraseando o ditado, diga-me o que você acha que é o marxismo e eu lhe direi que tipo de marxismo você professa.

A resposta de Labriola é, acreditamos, uma das mais completas, dialéticas e equilibradas. Do seu ponto de vista, o marxismo ou materialismo histórico assume um triplo caráter: Primeiro, “tendência filosófica em termos da visão geral da vida e do mundo“, ou seja, uma visão do mundo; segundo, “crítica da economia que tem modos de procedimento redutíveis à leis (…) porque representa uma fase histórica“, ou seja, uma crítica científica da ordem capitalista; e finalmente, uma “interpretação da política e, sobretudo, do que é necessário para conduzir o movimento operário rumo ao socialismo“, com a qual Labriola deixa claro o ângulo político prático do marxismo. E logo depois, ele acrescenta: “Estes três aspectos, que eu enumero aqui de forma abstrata [ou seja, separadamente] (…) por conveniência de análise, eram uma e a mesma coisa na mente de seus autores” (SF, 2). Este caráter unitário, que já mencionamos, no qual uma visão geral do homem e da sociedade, uma compreensão científica do mundo atual e uma elaboração e intervenção no plano político se entrelaçam, é decisivo para a compreensão do marxismo em Labriola.

É por isso que, mais adiante, ele desenvolve “três ordens de estudo” para o materialismo histórico: “a primeira responde à necessidade prática, própria dos partidos socialistas, de obter um conhecimento adequado da condição específica do proletariado em cada país. A segunda (…) [é] redirecionar a arte historiográfica para o terreno da luta de classes, dada uma estrutura econômica [que deve] ser conhecida e compreendida. A terceira consiste no tratamento dos princípios diretivos, para compreender e desenvolver qual a orientação geral necessária“. E mais uma vez se enfatiza que “essas três ordens de estudo (…) eram uma e a mesma coisa na mente de Marx, e (…) eram uma e a mesma coisa em sua obra e no seu fazer. Sua política era como a prática de seu materialismo histórico, e sua filosofia era inerente à sua crítica da economia, que por sua vez era sua forma de lidar com a história” (SF, 5).

Convém reter este conceito, que em essência nada mais é do que restaurar ao marxismo uma de suas marcas de origem: a união da teoria e da prática, a eliminação da vulgar oposição entre uma e outra que está na base das versões “acadêmica” e “irrefletida” do marxismo que mencionamos acima. Nas palavras de Labriola, “a filosofia da práxis (…) é a medula do materialismo histórico (…) Da vida ao pensamento e não do pensamento à vida: este é o processo realista. Do trabalho, que é um conhecer fazendo, ao conhecer como teoria abstrata, e não da última para a primeira” (SF, 4).

A “matéria” do materialismo marxista

Aqui encontramos um conceito que gerou, também, uma infinidade de mal-entendidos e rudeza teórica tanto em aderentes quanto em adversários do marxismo. Trata-se do materialismo e, sobretudo, da “matéria” à qual deve seu nome. Que matéria é essa? Mais uma vez, a tradição filosófica estalinista, resumida nos manuais clássicos (como os de V. Afanasiev, G. Politzer e muitos outros), contaminou, distorceu e levou o conceito de materialismo e matéria ao limite do ridículo, que acabou adquirindo um caráter quase metafísico. Isto foi levado ao extremo da simplificação maniqueísta da história da filosofia como uma luta eterna entre os “materialistas”, que sustentam a existência independente de uma matéria concebida quase no aspecto geológico, contra os teimosos “idealistas”, que contra todas as evidências acreditam que toda a realidade é uma espécie de emanação mental. O próprio Lenin contribuiu em parte para a confusão com um texto francamente problemático, Materialismo e Empiriocriticismo (1908) [6].

Em claro contraste com estas formulações antidialéticas, Labriola define que “o materialismo histórico, ou seja, a filosofia da prática, na medida em que se refere ao homem histórico, é o fim do materialismo naturalista… assim como termina com todas as formas de idealismo (…) A revolução intelectual que levou a considerar os processos da história humana como absolutamente objetivos é contemporânea… daquela outra revolução intelectual que conseguiu historicizar a natureza física [alusão à teoria da evolução de Darwin. MY.]” (SF, 4).

E, respondendo de antemão às elucubrações de manual sobre o caráter do materialismo marxista, ele aponta em outro texto: “Que os verbalistas construam tantos castelos no ar quantos quiserem sobre o valor da palavra matéria, na medida em que é um sinal ou um lembrete de cogitação metafísica (…) Aqui não estamos no campo da física, da química ou da biologia; estamos apenas procurando as condições explícitas da vida humana na medida em que ela não é mais simplesmente animal. Não se trata de induzir ou deduzir algo dos dados da biologia, mas de reconhecer primeiramente as peculiaridades da vida humana” (MH, 1).

Labriola recupera aqui, então, a noção de materialismo “na medida em que se refere ao homem histórico“, ou seja, como “filosofia da prática“, e em nenhum caso como uma especulação metafísica sobre a proeminência da matéria, entendida no sentido “da física, química ou biologia” sobre as ideias: a natureza, ou seja, a evolução histórica do homem, encontra-se no processo da práxis” (SF, 3). O materialismo marxista não tem nada a ver com – ou de qualquer forma, implica em uma clara superação do – “materialismo naturalista, ou seja, do materialismo não-humano. Na visão de Marx, clara e serenamente exposta por Labriola, e apesar de todas as vertentes estruturalistas e anti-humanistas do marxismo, o homem é a medida de todas as coisas, e portanto também do materialismo, que é histórico (ou seja, permeado pela ação humana) e não geológico ou biológico[7].

Monismo e totalidade dialética

Por outro lado, nada poderia estar mais longe da concepção de Marx do que uma rígida oposição mente-matéria, do que uma vã polaridade homem-natureza onde a ação histórica se dissolve em evolução natural. Como diz Labriola, “não seria descabido dizer que a filosofia implícita no materialismo histórico é a tendência ao monismo“. Eu uso a palavra “tendência” e a sublinho (…) Pois não se trata de voltar à intuição teosófica ou metafísica da totalidade do mundo (…) [mas] admitir que tudo é concebível como gênese (…) e que a gênese tem as características aproximadas de continuidade. O que diferencia este sentido de gênese da que existem nas vagas intuições transcendentais (Schelling) é o discernimento crítico e, consequentemente, a necessidade de especificar a investigação. Ou seja, a abordagem do empirismo no que diz respeito ao conteúdo das coisas e a renúncia à pretensão de levar no bolso o esquema universal das coisas. Os evolucionistas vulgares, por outro lado, procedem desta maneira: uma vez aferrados a noção abstrata de devir (evolução), colocam tudo dentro dela (…) foi o que os repetidores de Hegel também fizeram (…) A principal razão para a correção crítica que o materialismo histórico aplica ao monismo é esta: que o materialismo histórico parte da práxis (…) e que, assim como é a teoria do homem que trabalha, assim também considera a própria ciência como um trabalho. Desta forma, consuma o significado implícito das ciências empíricas, ou seja, que com as experimentações nos aproximamos da produção das coisas e alcançamos a convicção de que as próprias coisas são um fazer, ou seja, um produzir-se” (SF, 6).

Trataremos da riqueza epistemológica desta interpretação mais tarde. O que estamos interessados em enfatizar agora é que o marxismo é um monismo, no sentido de que seu ponto de partida é a totalidade. Mas esta totalidade não é metafísica, não é a priori, não é um esquema prévio, mas é precisamente o início de uma investigação na qual o conhecimento do detalhe, do particular (a “especificação da investigação”) é indispensável. A dialética da relação entre a totalidade e suas partes não esquece, senão exige o estudo detalhado das partes do todo (isto é o que Labriola chama de “aproximação ao empirismo”). Nas palavras de Labriola, “não estamos no caso de acreditar que o princípio unitário (…) possa, como um talismã, valer (…) como um meio infalível para resolver em elementos simples do cruel aparato e da complicada engrenagem da sociedade (…) nos incumbe a obrigação de investigação direta e meticulosa.” (MH, 6).

O que, no entanto, dá coerência e sistematização à soma de análises particulares, e impede que elas sejam transformadas em uma aglomeração de dados sem razão, é precisamente que não se trata de uma adição desordenada, mas de um todo integrado do qual partimos, mas cujas determinações específicas devem ser estudadas concretamente para estabelecer sua verdadeira relação com o todo e entre si. Neste sentido, o marxismo como filosofia e como método representa uma superação (dialética, ou seja, um ir além preservando seus momentos) tanto do idealismo nebuloso quanto do empirismo de baixo voo. No aspecto metodológico: “Pensar concretamente e, ao mesmo tempo, ser capaz de refletir abstratamente sobre os dados e as condições de pensabilidade” (SF, 6).

É precisamente esta obrigação do marxismo de permanecer no terreno da análise concreta e específica, evitando receitas válidas para todos os tempos e lugares (a figura de “carregar no bolso o esquema universal” descreve com espantosa precisão a atitude de toda uma série de grupos e pessoas), que o próprio desenvolvimento do marxismo está subordinado a este trabalho. Nos antípodas da repetição ritual das fórmulas, a evolução do pensamento marxista, se quiser fugir da petrificação e do dogmatismo, só pode contar com “um novo estudo cuidadoso de outras fontes (…) Uma vez que esta doutrina é em si crítica, ela só pode ser continuada, aplicada e corrigida criticamente. E como é uma questão de especificar e aprofundar processos, não há catecismo que possa suportar ou generalização esquemática que o valha” (SF, 2). Este convite ao trabalho científico sério, crítico, documentado, em suma, é a única maneira de evitar a estagnação e a preguiça intelectual daqueles que resolvem problemas teóricos e políticos recorrendo a um breviário de citações dos clássicos do marxismo.

II. Um inimigo do reducionismo e do determinismo

O sujeito: motor e mediação

O ponto de vista marxista, então, longe de se tornar uma chave mestra para a explicação de todos os problemas (e lembremos que esta é a caricatura do marxismo que muitos conhecem), é um convite para abordar a realidade em toda sua complexidade e contradições. É o oposto de simplificação e às vezes a simples eliminação de aspectos que não coincidem com o “esquema”. Em particular, o marxismo é estranho a algo que, ironicamente, é muitas vezes apresentado como sinônimo de materialismo histórico: o reducionismo econômico.

De fato, demasiadas exposições do marxismo (nem sempre por inimigos!) consideram que o elemento essencial do materialismo histórico é o fato de reduzir todos os outros fatores a apenas um: o econômico. Contra o álibi frequentemente utilizado da “última instância”, Labriola esclarece seu significado: “não se trata de traduzir todas as manifestações complicadas da história em categorias econômicas, mas de explicar em última instância (Engels)… por meio da estrutura econômica que está debaixo (Marx), o que implicaanálise e redução, e depois mediação e composição” (MH, 3). Esta formulação em nenhum caso pode ser confundida com o economicismo puro e duro: “A estrutura econômica (…) não é um mecanismo simples do qual instituições, leis, costumes, pensamentos, sentimentos e ideologias saltam fora, como efeitos automáticos e mecânicos. Desse fundo para tudo mais, o processo de derivação e de mediação é bastante complicado, muitas vezes sutil e tortuoso, nem sempre decifrável” (MH, 6)[8].

Uma das palavras-chave aqui é mediação, que fornece um tipo de relação entre o “determinante” e o “determinado” de uma ordem muito mais dialética – mais próxima da complexidade do real – do que a dinâmica nua de causa-efeito.

No materialismo histórico assim entendido, as ações dos sujeitos passam a desempenhar um papel efetivo e deixam de ser meros instrumentos de “superdeterminações” que os reduzem quase a marionetes da história ou de “leis econômicas”. Não é o menor dos méritos dessa visão recuperar o “lado subjetivo” da realidade e da explicação histórica que desaparecem no objetivismo, e quando a subjetividade é restaurada, a história volta a ser o que é: “Não se trata mais de substituir a história pela sociologia (…), trata-se de compreender integralmente a história em todas as suas manifestações intuitivas (…). Não se trata de superar o acidente da substância (…) se trata de explicar (…) o entrelaçamento e a complexidade (…) as categorias econômicas… nasceram e se formaram, como tudo, porque os homens mudam (…) Em suma, é uma questão de história e não de seu esqueleto. Trata-se da narração e não da abstração; é uma questão de expor o todo, e não de resolvê-lo e analisá-lo somente; é, em uma palavra, agora como antes e como sempre, uma arte” (MH, 11).

Naturalmente, nada disso significa apoiar a teoria do livre arbítrio, nem basear a filosofia da história na pura vontade, mas “está destituída de qualquer fundamento a opinião que tende à negação de toda vontade, por meio de uma visão teórica que gostaria de substituir o voluntarismo pelo automatismo; esta, é antes de tudo, uma pura e simples presunção.” (MH, 5).

O indivíduo na história

Esta posição que reconhece e integra o geral e o particular em sua especificidade, mas não os absolutiza, permite a Labriola superar o sociologismo e o individualismo e formular uma teoria marxista impecável sobre o papel do indivíduo na história:De um lado estão os sociólogos extremos, do outro os individualistas que, como Carlyle, nos falam da história dos heróis. Segundo aqueles, basta provar… as razões do Cesarismo, sem se importar nada com César. Segundo os outros, não há razões subjetivas de classe e interesses sociais suficientes para explicar nada (…) O materialismo histórico supera as visões antitéticas de sociólogos e individualistas e, ao mesmo tempo, elimina o ecletismo dos narradores empíricos (…) O próprio fato de que toda a história repousa sobre antíteses, contrastes, lutas e guerras explica a influência decisiva de certos homens em certas ocasiões. Estes homens não são nem um acidente insignificante do mecanismo social nem milagrosos criadores do que a sociedade, sem eles, não teria feito de forma alguma. (…) Enquanto os interesses particulares dos grupos sociais estão em tal estado de tensão que todas as partes em conflito se paralisam mutuamente, a para mover a máquina política se necessita a consciência individual de uma determinada pessoa ” (MH, 11).

Esta exposição, além de sua beleza e precisão, lembra irresistivelmente, metodologicamente, a conhecida análise da personalidade e do papel de Lênin em 1917 por Leon Trotsky (cuja dívida para com Labriola já mencionamos) em sua História da Revolução Russa e outros escritos. Este marxismo de bom cunho, onde a dialética do geral e do particular se mostra em toda sua riqueza e plenitude, é, insistimos, a própria negação do determinismo econômico ou sociológico que transforma a história em um processo mecânico inerte e os seres humanos em seus brinquedos. Contra a preguiça intelectual de simplificar fórmulas, implica uma reconstrução do todo, de suas partes e das complexas relações que um e outro estabelecem no curso de seu constante movimento. “Em conclusão, o partidário do materialismo histórico que quer expor e relatar não deve fazê-lo esquematizando. A história é sempre determinada, configurada, infinitamente desigual e multicolorida. Tem combinação e perspectiva (…) é tudo o que sabemos do nosso ser, como seres sociais e não mais simplesmente animais” (MH, 11).

Toda a concepção de Labriola visa não transmitir uma doutrina, da maneira de quem traz a boa nova da palavra revelada a seus paroquianos ignorantes, mas fornecer ao seu interlocutor as ferramentas mais apropriadas para o trabalho intelectual que ele mesmo deve realizar, em sua realidade e em seu momento histórico: “a maior dificuldade apresentada pela compreensão e continuação do materialismo histórico não está na intelecção dos aspectos formais do marxismo, mas na apropriação das coisas às quais essas formas são imanentes, das coisas que Marx soube e elaborou por si mesmo e das muitíssimas outras que temos que conceder e elaborar diretamente” (SF, 10).

A vitória “inevitável” do socialismo

Finalmente, vale a pena parar para considerar o caráter político da versão determinista do marxismo. Já vimos que o determinismo apaga o sujeito como um ator eficaz na história passada; bem, não é menos real que o determinismo também faz o sujeito desaparecer da política (que alguns chamam história presente).

Este problema era particularmente premente para Labriola e seus contemporâneos, na medida em que o marxismo e a filosofia da história da Segunda Internacional estavam fortemente tingidos de objetivismo e de uma crença na “inevitabilidade” do socialismo. No entanto, isto não deveria nos provocar um mero sorriso de comiseração, porque de certa forma parte do descrédito da perspectiva socialista no século XXI se deve precisamente ao calamitoso colapso da ideia da “inevitabilidade” da vitória socialista sobre o capitalismo.

Acontece que, longe de estar confinada à esfera da socialdemocracia do início do século 20, a convicção do socialismo como resultado necessário da história fazia parte do tecido ideológico da força política que, apesar de tudo, assumiu o papel de “porta-voz” do socialismo a partir do segundo período pós-guerra: o estalinismo. Por exemplo, a estratégia de “coexistência pacífica” com o imperialismo foi baseada na absurda, mas sincera, crença na vitória inelutável da ordem “socialista” (na realidade, burocrática) [9]. Um dos secretários gerais do PCUS, Leonid Brezhnev, chegou ao ponto de “prever” nos anos 60 que até 1980 a produtividade do trabalho na URSS superaria a dos principais países capitalistas.

No caso da socialdemocracia, a certeza do triunfo socialista tinha duas vertentes: uma “catastrofista” no sentido econômico (a “crise final” do capitalismo convenceria as massas da necessidade do socialismo) e outra exatamente oposta, o do gradualismo reformista, ou seja, do advento do novo sistema pela forma pacífica de aumentar o controle dos mecanismos sociais através da legislação, do desenvolvimento das organizações sociais e sindicais, do crescimento das funções da democracia e do Partido Socialista dentro dela, etc.[10].

Todas estas versões têm dois pontos em comum: primeiro, o lugar da ação autônoma e autodeterminada do sujeito individual e coletivo é completamente minimizado em favor das “leis da história” cujos guardiões e administradores são, de fato, os aparelhos burocráticos (o Estado, o Partido). Em segundo lugar, como era de se esperar, quando a imagem idílica de uma vitória garantida antecipadamente é quebrada, aqueles que a apoiaram com tanto dogmatismo tornam-se os mais amargos derrotistas, os renegados mais vociferantes, os traidores mais consumados. Este é o espetáculo que nos oferecem os antigos “revolucionários” que, tendo quebrado o banco burocrático onde depositaram sua fé socialista, se transmutam, com o fanatismo dos convertidos, em defensores da ordem social capitalista. Sistema que, a seus olhos desiludidos, derrotou definitivamente seus inimigos e passou no teste da história com distinção. Eles nunca foram ateus marxistas: eles apenas mudaram o objeto de sua idolatria. Os exemplos são tantos e tão patentes que nem vale a pena o trabalho de encher estas páginas com seus nomes.

Por outro lado, um efeito não menor do “grande desencanto” com o marxismo – ou melhor, com sua versão politicamente mais brutal e intelectualmente fossilizada – foi contribuir para uma mudança na reflexão teórica da esquerda em direção a temas “culturais” (identidade, alteridade, diferença, o corpo) em detrimento e, muitas vezes, no lugar da política. É verdade que o marxismo “tradicional” deixava todo um flanco no terreno da subjetividade, mas também é verdade que aqui ele operou uma reação exagerada que, de fato, apagou da agenda por anos temas como o imperialismo e a exploração, sem mencionar a revolução (termos que foram, e em parte continuam sendo, objeto de ridículo, descrédito ou cinismo distante)[11].

Voltando à socialdemocracia europeia do século XIX, seu otimismo semidarwinista revelou “em latência”, como Labriola acentua, “um certo neoutopismo, como é o caso daqueles que repetem constantemente o dogma da evolução necessária e depois o confundem com o direito a um estado melhor, e, portanto, chegam a professar que a futura sociedade do coletivismo (…) será porque deve ser, como que esquecendo que esse futuro deve ser produzido pelos próprios homens (…) Felizes são aqueles que podem medir o futuro da história (…) O tempo dos profetas já passou” (SF, 10).

Vale a pena destacar esta veia antiutópica do verdadeiro marxismo, em um momento em que muitos, direta ou indiretamente atingidos pelo colapso do “socialismo real”, pretendem tomar seu lugar com um socialismo … utópico.

Sem dúvida, o socialismo utópico da primeira metade do século XIX (Owen, Saint-Simon, Fourier) tinha um lado progressista no sentido de: a) fazer uma crítica às misérias do advento do capitalismo industrial e b) propor uma recuperação de formas de sociabilidade e cooperação humana de valor mais universal. Mas o “socialismo científico”, que é capaz de reconhecer essas contribuições da utopia, as supera na medida em que as integra a uma teoria geral das condições de possibilidade de emancipação humana, condições que são tanto teóricas quanto práticas. Em suma, o marxismo não é um “realismo” do voo de galinha nem a construção de uma aurora autoconsoladora cor-de-rosa, mas uma crítica implacável às misérias da ordem social capitalista e, ao mesmo tempo, um trabalho sério e sistemático a partir do interior de suas contradições para estabelecer uma efetiva contestação política e social a essa ordem, à qual não é garantida de antemão a vitória nem a derrota. Voltaremos a este assunto.

Notas:

1] Labriola até preferiu chamar a si mesmo e ao movimento marxista de “comunista”. Costumava citar uma conhecida passagem de Engels na qual este mostrava seu desgosto pelo termo “socialdemocrata”, que ele julgava confuso e enganoso, e que ele só relutantemente aceitava como imposto pelo uso.

2] Vale notar que Leon Trotsky – cujo marxismo foi por vezes acusado de ser antidialético, por exemplo, por J. J. Sebreli – se referiu em mais de uma ocasião a sua dívida com Labriola, em particular precisamente no campo do método dialético. Na verdade, na medida em que Labriola era o melhor que se podia pedir como tradição filosófica na Segunda Internacional, esta matriz não deixou de ser uma influência poderosa e benéfica sobre o marxismo de Trotsky.

3] Por exemplo, embora trabalhos fundamentais sobre economia política desconhecidos na época de Labriola tenham sido publicados depois, como os Manuscritos Econômico-Filosóficos e os Grundrisse, uma parte substancial dos cadernos e notas de Marx, especialmente aqueles que se referem ao que Enrique Dussel chama de “os quatro rascunhos do Capital“, permanecem inéditos ou não traduzidos.

4] O agudo marxista francês Henri Lefebvre resumiu o paradoxal “sucesso” acadêmico do marxismo desta forma: “estudado um pouco por toda parte, classificado entre os autores clássicos em muitos países, transformado em um fato cultural, foi reduzido a um pequeno número de citações, penso, para estudantes e militantes. (…). Sob o manto do cientificismo (…) este pensamento foi privado de sua graça; foi dividido em partes separadas, seja por erudição (Marxistologia) ou por interpretações, leituras, releituras cada vez mais abstratas” (Hegel, Marx, Nietzsche).

5] A pretensão de alguns de modelar um Marx essencialmente intelectual, investigativo e “científico”, alheio às disputas sociais e políticas de seu tempo, nada mais é do que uma fantasia autojustificadora. O fraco argumento às vezes esgrimido de que a atividade política de Marx foi ostensivamente reduzida desde a derrota da Comuna (1871) até sua morte em 1883 ignora muitos problemas. Em primeiro lugar, foi toda a atividade do movimento revolucionário de trabalhadores que declinou. Em segundo lugar, vários dos escritos políticos mais afiados de Marx (tais como a Crítica do Programa Gotha de 1875) são posteriores à Comuna. Além disso, na verdade, o período mais fértil de elaboração teórica de Marx não coincidiu com seus anos de suposto desdém por questões de política cotidiana. E finalmente, se a atividade de Engels serve de exemplo, fica claro que Engels combinou elaboração teórica com militância política na socialdemocracia alemã e internacional até sua morte, atividades que, por outro lado, não estão separadas.

Não se trata aqui, é claro, de negar a especificidade de ambas as instâncias, mas de protestar contra o ponto de vista que estabelece entre elas uma muralha chinesa em vez de um vínculo dialético e mutuamente enriquecedor. A teoria marxista não é feita sem uma ligação direta ou indireta com o movimento social da classe trabalhadora, e não basta sentar-se por alguns anos na biblioteca do Museu Britânico para escrever O Capital.

6] Para uma reflexão rica e equilibrada sobre a evolução do pensamento filosófico de Lênin, ver a obra de John Rees, The Algebra of Revolution, 1998, capítulo 4.

7] Mais próximo no tempo e no espaço, o marxista argentino Milcíades Peña, em sua excelente Introdução ao Pensamento de Marx de 1958, questiona o “materialismo metafísico” com argumentos semelhantes, já que Peña se declara explicitamente um tributário de Labriola. Por sua vez, o filósofo argentino-maxicano Enrique Dussel, em La producción teórica de Marx (un comentario a los Grundrisse), pp. 35-37, também lança seus dardos contra o que ele chama de “materialismo cosmológico” e recorre à Ideologia Alemã, entre outros textos, para afirmar a ligação indissolúvel entre o materialismo de Marx e a prática humana.

8] É claro que a rejeição do reducionismo economicista não pode ser usada como desculpa para evitar a necessidade de estudar especificamente os problemas econômicos. O marxismo do século XX oferece bons exemplos de análises concretas e elaborações teóricas no campo da economia que são, por sua vez, não-reducionistas.

9] A questão da natureza social da URSS e dos Estados do Leste é de demasiada envergadura para ser tratada aqui. Apenas salientamos que, a nosso ver, esses estados não eram de modo algum “socialistas”; nem “estados operários” (posição trotskista clássica cuja validade, pelo menos desde o período pós-guerra, tornou-se problemática) nem “capitalistas de estado” (posição de vários analistas e algumas correntes trotskistas), mas, como resultado de um conjunto complexo de fatores históricos, políticos e econômicos, eles se tornaram formações sociais burocráticas e permaneceram como tal até seu retorno ao capitalismo após 1989-1991.

10] O atual reformismo das correntes socialdemocratas, “progressistas”, “de terceira via” e similares representa em todo caso um aggiornamiento, mas dificilmente uma modificação substancial, de tal estratégia.

11] Eduardo Grüner observa, com razão: “Tememos que as correções necessários aos reducionismos… incorridos por certos marxistas… nos deslizem para um reducionismo pior (…) eliminando a legitimidade teórica e política de categorias como a ‘luta de classes’ (…) Uma tendência dominante no pensamento pós-moderno, mesmo ‘esquerdista’ (…) é a acentuação -perfeitamente legítima- de identidades particulares, ao custo – que não é mais tão legítimo- da expulsão quase total da categoria ‘luta de classes’ do cenário histórico e sociocultural” (Em sua “Introdução” a F. Jameson e S. Zizek, Estudos Culturais. Reflexões sobre o Multiculturalismo, pp. 24 e 34).


[NT1] Publicado em abril de 2004 na revista Socialismo o Barbarie, nº 16 e republicado em 14/02/2021 in http://izquierdaweb.com/antonio-labriola-una-concepcion-del-marxismo-de-plena-actualidad/

[NT2] Cila e Caríbdis são respectivamente uma rocha e um redemoinho, cada um de um lado do Estreito de Messina que separa a Sicília da Itália. Na mitologia grega aparecem como monstros marinhos na Odisseia de Homero, dificultando a passagem de Odisseu (Ulisses) pelo estreito no seu retorno a Ítaca.

Publicado originalmente em http://izquierdaweb.com/antonio-labriola-una-concepcion-del-marxismo-de-plena-actualidad/

Traduzido por José Roberto Silva