Após muitas idas e voltas, o governo Lula finalmente apresentou seu pacote fiscal, cujo intuito é cortar as despesas governamentais para reduzir a dívida pública e atingir os objetivos traçados no arcabouço fiscal. Isso se traduz num forte ataque contra o poder aquisitivo dos salários reais e a imposição de maiores restrições para acessar os programas de assistência social. É um ajuste abertamente neoliberal, mesmo que o governo tente mascará-lo promovendo outras medidas timidamente “progressivas” em paralelo.

Por tudo isso, é necessário derrotar nas ruas o pacote do governo Lula e impor uma reforma tributária verdadeiramente progressiva baseada na taxação das grandes fortunas, ao mesmo tempo que exigir o fim da escala 6×1 e a prisão de Bolsonaro e de todos os cúmplices da conspiração golpista.

Víctor Artavia

Em que consiste o pacote?

De acordo com as estimativas do governo, o pacote fiscal visa garantir uma economia de R$327 bilhões nos gastos públicos até 2030. A poupança será cumulativa: R$72 bilhões entre 2025 e 2026, e o montante restante de R$255 bilhões será economizado entre 2027 e 2030.

O pacote reflete a natureza liberal-social do governo burguês de Lula. De fato, a principal medida consiste na alteração da regra de reajuste do salário mínimo que, segundo estimativas oficiais, poupará R$109,8 bilhões até 2030 (uma terceira parte da economia projetada com o pacote)

A proposta do Planalto é limitar a expansão do salário mínimo real (acima da inflação) à mesma correção do arcabouço fiscal. Com a legislação atual, o crescimento do salário mínimo se determina pela variação percentual do PIB de dois anos antes mais a inflação. Sob a nova proposta do governo isso mudaria, pois o aumento estaria atrelado à expansão do arcabouço fiscal, ou seja, oscilaria entre entre 0,6% e 2,5%. A consequência dessa nova fórmula será de uma queda gradual e crescente do salário mínimo; por exemplo, em 2025 o valor do salário mínimo seria de R$1.515 (R$6 a menos do que a norma atual) e em 2030 de R$1.926 (R$94 a menos).  Essa queda no poder de compra dos salários é muito significativa em um país onde 70% dos trabalhadores ganham até dois salários mínimos (ao redor de 65 milhões de pessoas!)  e, desses, 35,63% ganham até um salário mínimo.

Adicionalmente, a correção anual do arcabouço impõe um teto para o crescimento dos salários, mas isso não impede que o ganho real seja menor. Pode acontecer que o percentual de crescimento do PIB de dois anos atrás seja menor que a alta real do arcabouço fiscal; nesse caso, o salário mínimo se estabelecerá com relação ao PIB, o qual representa -novamente!- um prejuízo para os trabalhadores e trabalhadoras. Por exemplo, suponhamos que o arcabouço tivesse uma alta real de 2%, mas o PIB de dois anos antes cresceu apenas um 1%, então o ganho real do salário mínimo será definido pela variação do PIB (1%) e não pelo teto do arcabouço fiscal (2%). 

Assim mesmo, o pacote impõe mais restrições para acessar benefícios sociais. No caso de abono salarial, hoje beneficia as pessoas que ganham até dois salários mínimos, mas o governo quer restringir o abono só para quem ganha R$2.640 (equivalente a dois salários mínimos de 2023) e ajustar esse valor apenas pela inflação, com o intuito de limitar o benefício para quem ganhe 1,5 salário mínimo daqui a dez anos. 

Algo similar acontece com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante o pagamento de um salário mínimo às pessoas idosas em situação de vulnerabilidade ou às pessoas com deficiência de qualquer idade. Hoje o benefício atinge cerca de cinco milhões de pessoas, mas essa cifra pode cair pelo endurecimento das regras estipuladas no pacote, como a inclusão da renda do cônjuge e de outros familiares. 

Já para Bolsa Família o governo quer aumentar os trâmites burocráticos. Por exemplo, no pacote estabelece restrições para municípios com percentual de famílias unipessoais acima do disposto em regulamentação, assim como a implementação da biometria e exigência de atualização cadastral a cada dois anos. 

Por último, o pacote flexibiliza o repasse orçamentário para fomento à cultura. Atualmente, a Lei Aldir Blanc estabelece a transferência de R$3 bilhões ao ano até 2027 para garantir acesso à renda emergencial para as pessoas profissionais do setor cultural e criativo, subsidiar a manutenção de espaços culturais e fomentar a cultura por meio da realização de prêmios e editais. 

Em síntese, o pacote do governo representa um ataque à classe trabalhadora que, ademais, legitima os discursos anti-operários do Centrão e da extrema direita, pois coloca os salários como a causa principal dos problemas econômicos do país. Sob essa lógica burguesa, os salários são uma despesa que pode ser cortada, mesmo que sejam a única fonte de ingresso da maioria da população brasileira. 

Pelo contrário, o governo não muda em nada as isenções fiscais que favorecem as grandes empresas, as quais saltaram de R$51 bilhões para R$647 bilhões em 20 anos (um crescimento de 314%). Apenas afirma que, em caso de déficit nas contas públicas, impedirá a criação ou ampliação de subsídios fiscais, mas até agora não detalhou como pretende fazer isso. Isso evidencia, mais uma vez, que os governos de conciliação de classes não enfrentam os grandes capitalistas, mesmo que, às vezes, façam “discursos vermelhos” para se aproximar de setores da classe que ainda confiam neles. 

Uma manobra que visa às eleições e não a taxar ao grande capital 

Durante a coletiva para apresentar o pacote fiscal, o ministro Haddad também anunciou a proposta de elevar para R$5 mil a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Hoje a faixa de isenção é de dois salários mínimos (R$2.824).

Para cobrir o déficit que essa reforma gerará, o governo propõe a criação de um novo imposto de 7,5% da renda mensal, a ser cobrado daqueles que ganham mais de 50.000 reais. Essa medida, segundo as expectativas governamentais, terá um potencial de arrecadação de R$35 bilhões.

Devido ao anterior, o debate na mídia burguesa se concentrou na proposta de reforma do IRPF, deixando de lado as medidas contra o salário incorporadas no pacote. Isso não é surpreendente, levando em conta que o establishment burguês não discorda dessa medida anti-operária, embora estejam pressionando por um ataque ainda maior. 

Na realidade, a reforma do IRPF é uma cortina de fumaça que o governo estendeu para esconder o conteúdo neoliberal das medidas de ajuste propostas. Foi uma manobra para incentivar uma disputa secundária com setores do Centrão e da extrema direita que se opõem a qualquer tipo de medida fiscal progressiva, mesmo daquelas que são insuficientes para reverter a desigualdade social e tributária no país. 

Dessa maneira, Lula procura se posicionar midiaticamente como um “adversário” dos grandes empresários e “defensor” do povo; um relato que instrumentaliza para recompor seu apoio entre os setores de baixa renda. Mas, ao mesmo tempo, compactua com os partidos burgueses para agilizar o avanço no Congresso do pacote neoliberal.

Essa estratégia do governo foi expressamente confirmada por um membro da equipe governamental envolvida na definição do pacote, que em declarações à Folha afirmou que “o projeto de corte de gastos é urgente e viável”, enquanto a reforma tributária “pode, inclusive, não avançar no Congresso. Mas a decisão política foi anunciar as duas medidas conjuntamente”. Aliás, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente, já sinalizaram que as mudanças no IRPF não irão para a frente em 2025, ao contrário das medidas de corte que terão celeridade na tramitação parlamentar. 

O exposto acima mostra que a proposta de reforma tributária é um artifício do governo para desviar a atenção das medidas de ajuste contra o salário mínimo e outros benefícios sociais. Mesmo que não seja aprovada, Lula pode contra-atacar durante a campanha eleitoral, denunciando os partidos de direita e de extrema direita que se opuserem ao aumento da faixa de isenção que beneficiaria os trabalhadores com salários mais baixos. 

Por que a Faria Lima não gosta do Pacote?

O grande capital financeiro não tardou em reagir negativamente ao pacote do governo, pois esperavam que Lula fizesse uso de seu capital político para impor um ajuste ainda mais severo, principalmente para promover mudanças maiores nos gastos obrigatórios (como educação ou saúde). 

Sua maior preocupação é o aumento contínuo da dívida pública que, durante o governo Lula 3, passou de 71,68% do PIB para 78,64% em menos de dois anos. Além disso, tudo indica que a tendência de crescimento se manterá ao longo da próxima década e poderá escalar acima do 80% em 2026, um percentual considerado insustentável pelo próprio Tesouro, pois pode comprometer “o espaço fiscal do país” (ou seja, limitar a ampliação de gastos e investimentos em benefício dos capitalistas)

De acordo com Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do Banco Central durante o governo de FHC (1999-2003), para se reverter a tendência ao endividamento, é preciso de um ajuste recorrente de R$250 bilhões ao ano, pois somente assim será possível obter um superávit na ordem de 2% a 2,5% do PIB, ou seja, consideravelmente maior do que a poupança prevista no pacote do governo (R$327 bilhões entre 2025-2030). Para levar isso adiante seriam necessárias medidas de choque ao estilo do Milei na Argentina, mas poderia provocar uma explosão social e, no caso específico do PT, significaria a destruição do partido e do lulismo como tal.  

Este caso exemplifica a contradição da estratégia de conciliação de classes: por um lado, a burguesia briga porque acha que o pacote é insuficiente e exige um ataque ainda mais forte; de outro, o governo ataca os salários e vários benefícios sociais para agradar aos empresários que fazem parte da “frente ampla” contra Bolsonaro, mas que não quer aprofundar o ajuste porque isso chocaria diretamente com a base do PT e colocaria em risco suas possibilidades para se reeleger em 2026. Em meio a essa disputa, a única certeza é que a classe trabalhadora sai perdendo, pois todos os setores concordam em colocar o custo da crise sobre seus ombros, embora divirjam no grau do ajuste.  

Quem é o “pai” dessa criatura?

Por fim, mas não menos importante, temos que analisar os posicionamentos de setores da esquerda diante do pacote fiscal. Vejamos os casos da Resistência e do MES, duas correntes internas do PSOL que se reivindicam trotskistas, mas que realmente passaram para o campo da conciliação de classes e defendem uma estratégia campista. 

Dessa forma, diluem as contradições de classe sob uma lógica em que o confronto entre “campos políticos” sem âncora de classe é a chave central para a formulação de seus programas e táticas. No caso do Brasil de hoje, isso se traduz em uma redução da política à luta entre o “campo neofascista ou de extrema direita” de Bolsonaro contra o “campo progressista” liderado por Lula, juntamente com representantes da “burguesia democrática”. 

No que diz a respeito da Resistência, em seu site publicaram o comunicado do PSOL sobre o pacote fiscal, no qual abertamente se apresentam como base do governo Lula e, portanto, eles “reafirmam seu compromisso com os esforços do governo Lula para garantir a implementação do plano de governo eleito nas urnas” e, ademais, justificam que a tarefa de seus parlamentares é: “contribuir para o impulsionamento de políticas que promovam igualdade, justiça social e direitos dos trabalhadores”. 

Além disso, acreditam nas declarações do presidente Lula contrárias a realizar mais cortes orçamentários que afetem as pessoas mais necessitadas, ao mesmo tempo que sinalizam que lutaram “pela manutenção dos direitos sociais conquistados, mobilizando a sociedade civil contra as pressões do mercado e retrocessos a quaisquer políticas em prol da classe trabalhadora”. Por isso, concluem dizendo que apoiarão a taxação dos super ricos e se oporão aos cortes de gastos sociais.

Em outras palavras, para o PSOL e Resistência, o governo está em disputa entre as pressões do grande capital com a base histórica do PT que apoia um programa de reformas estruturais. É um relato fantasioso que não se corresponde com a realidade, mas que serve de justificativa para capitular à frente ampla de Lula e deixar de lado as reivindicações da classe trabalhadora. Neste caso concreto, significa que não chamam a lutar para derrotar o plano de ajuste fiscal que impulsiona o governo Lula e, pelo contrário, geram confusão ao recusar-se a identificar o governo o responsável do pacote de ajuste neoliberal e anti-operário porque, segundo eles, isso seria fazer o jogo à à extrema direita. 

No que diz ao MES, essa organização emprega “discursos vermelhos” para ocultar sua política oportunista. Por exemplo, fazem alguns apontamentos críticos ao governo federal, mas continuam dentro do PSOL que é base da frente ampla de Lula 3, sob o critério eleitoralista de manter suas representações parlamentares. 

Em um editorial assinado por Israel Dutra e Roberto Robaina, apontam que o pacote é um “ajuste contra o povo” e, para derrotá-lo, chamam a unificar com a luta pela prisão para Bolsonaro e pelo fim da escala 6×1. Taticamente, o plano está correto, mas o problema é que os dirigentes do MES se esqueceram de um “pequeno” detalhe, a saber, em nenhum lugar do editorial eles mencionam o governo federal e sua responsabilidade na formulação dos cortes do pacote. Em outras palavras, parece que eles militam em um país sem governo federal e sem presidente!

Embora o MES use uma linguagem mais “vermelha”, na verdade reproduz a mesma política da Resistência e da direção do PSOL, pois identifica Haddad como o autor do pacote e exonera Lula. É difícil – para não dizer impossível – vencer uma batalha quando não se consegue nem identificar o inimigo!

Em resumo, o MES e a Resistência fazem parte do campo da conciliação de classes e, portanto, não conseguem identificar o governo Lula como o autor do pacote fiscal. 

Às ruas para derrotar o pacote fiscal, exigir a prisão de Bolsonaro e pelo fim da escala 6×1!

Por tudo o acima exposto, nós do Socialismo ou Barbárie (SoB) acreditamos que é necessário derrotar nas ruas o pacote do governo Lula e impor uma reforma tributária baseada na taxação das grandes fortunas, ao mesmo tempo que exigir o fim da escala 6×1 e a prisão de Bolsonaro e de todos os cúmplices da conspiração golpista. 

Certamente, a extrema direita representa um perigo no Brasil e precisamos derrotá-la nas ruas. Nesta conjuntura é imprescindível unificar a luta pelas pautas econômicas com as pautas democráticas e políticas. Mas, para isso, é necessário liberar as forças da classe trabalhadora e dos setores oprimidos da “camisa de força” da conciliação de classes, cuja estratégia consiste em esvaziar as ruas e apostar na resolução dos conflitos na esfera institucional, um caminho que cada dia se mostra uma rua sem saída. 

Nos últimos meses testemunhamos conflitos e mobilizações que mostraram que é possível “virar o jogo” mediante a luta nas ruas. Por exemplo, a comunidade de Souza Ramos na Sena Madureira: após de várias semanas de atos e protestos que ganharam apoio entre amplos setores da população paulistana, conseguiu uma vitória parcial ao impedir a derrubada de centenas árvores e o despejo da vizinhança por parte da Prefeitura de Nunes para construir um túnel. Também podemos mencionar os protestos pelo fim da jornada de trabalho de 6×1 que se espalharam por mais de 26 cidades em todo o país, que colocaram à defensiva a extrema direita e, ainda mais importante, foi o estopim que encorajou os trabalhadores da Pepsico a entrarem em greve e obterem uma vitória parcial que conseguiu pequenas mudanças na jornada de trabalho. 

Em nossa opinião, embora essas lutas sejam parciais, elas indicam o potencial para mudar a correlação de forças por meio da luta da classe trabalhadora junto com os setores oprimidos. Essa unidade “dos de baixo” pode ser construída ligando as lutas por pautas econômicas às lutas pelas pautas democráticas e políticas.

Diante dos desafios colocados pela nova conjuntura que se abre, a esquerda revolucionária não pode ficar passiva. Pelo contrário, é necessário que desenvolvamos táticas que permitam um maior intercâmbio político entre nossas organizações para impulsionar ações unitárias. Por isso, chamamos à CSP-Conlutas e demais correntes de esquerda para construir um encontro nacional operário, estudantil e popular, para organizar campanhas e mobilizações para o próximo período, com o intuito de conformar um bloco de enfrentamento à extrema direita e de oposição ao governo Lula no país.