Os 100 dias de governo Lula suscitaram, como é comum quando um governo completa cerca de 3 meses de mandato, uma avaliação de todos os setores, da extrema esquerda à extrema direita. Nesta nota, nos interessa construir um painel comparativo sobre as apreciações dos 100 dias de governo com posições políticas que consideramos representar matizes importantes da esquerda, amplamente falando. A derrota eleitoral de Bolsonaro coloca uma situação política de transição que mudou parcialmente a correlação de forças entre as classes, porém uma política correta diante da nova conjuntura e do novo governo de conciliação de classes pode contribuir para que o pêndulo político gire definitivamente mais à esquerda ou volte para a direita. Por essa razão, a polêmica entre as organizações tem o papel fundamental de encontrar os meios para impulsionar a luta direta dos explorados e oprimidos, fora disso tudo é ilusão.
ANTONIO SOLER
A derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro passado foi um marco decisivo para o cenário político nacional, uma derrota do neofascimo em termos eleitorais. De um lado, nessa disputa eleitoral, setores importantes da classe dominante e das forças armadas jogaram pesado, de forma institucional e extra institucional, para reeleger Bolsonaro e, de outro, a chapa que tinha condições eleitorais de derrotar essa força ultrarreacionária de extrema direita fez uma campanha totalmente dentro dos marcos do regime e com um programa que pouco falou com as necessidades concretas das massas trabalhadoras.
Desta forma, a derrota do neofascista foi, de alguma forma, uma espécie de auto conquista política dos setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora. Apesar da desmobilização política imposta pelo PT – papel assumido também pela direção do PSOL – e sua ampla aliança eleitoral com setores da burguesia, a classe conscientizou-se do perigo encampado por Bolsonaro para o conjunto dos seus direitos. Desta forma, derrotou eleitoralmente uma máquina política reacionária que nunca se viu no Brasil, tudo isso, repetimos, apesar do desarme político para enfrentar o combate direto que significou a chapa Lula-Alckmin.
A derrota eleitoral de Bolsonaro foi um marco histórico. A eleição de Lula não alterou – e nem poderia – por completo a correlação de forças entre as classes, mas coloca uma situação política distinta, mais favorável para a mobilização dos trabalhadores e oprimidos. Essa vitória eleitoral das massas abriu as portas para uma mudança significativa da correlação de forças, no entanto, isso só irá se concretizar se a classe trabalhadora e os oprimidos conseguirem superar os obstáculos, manobras e traições que as direções burocráticas colocam, para impor de forma auto organizada a sua agenda nas ruas, condição incontornável para transformações efetivas.
Apesar de a derrota de Bolsonaro ter sido uma vitória eleitoral das massas, no seu lugar foi eleito um governo burguês de conciliação de classes que tem como objetivo normalizar o regime político, recuperar o pacto de 1988, em um cenário de crise estrutural que torna essa tarefa difícil. Por essa razão, neste período de 100 dias do governo Lula, tivemos acontecimentos decisivos que demonstram que Lula e seu partido (PT) não mudaram um milímetro sequer sua linha – da construção da chapa Lula-Alckmin, passando pela campanha, transição aos primeiros três meses do governo – orientada pela estratégia de conciliação de classes com a burguesia e seus representantes de todas as colorações.
A verdade é que nos 100 dias de governo predominou políticas voltadas à normalização da democracia burguesa, da exploração e opressão, ou seja, uma tentativa de conciliação em todas as frentes. No entanto, essa tentativa enfrenta uma série de resistências dos setores mais reacionários que querem vetar qualquer medida progressiva e intensificar as contrarreformas apresentadas pelo governo. Houve um deslocamento da correlação das forças à direita nos últimos anos que gerou enormes benefícios para as patronais brasileiras e, por isso mesmo, as iniciativas compensatórias enfrentam uma forte oposição dos partidos da direita, inclusive dos que são opostos ao bolsonarismo. Foi exatamente isso que aconteceu com a política em relação às forças armadas depois de 8 de janeiro, com o novo arcabouço fiscal e com as viagens internacionais de Lula.
Assim, nesse percurso de 100 dias se confirma a caracterização de que esse é um governo burguês de conciliação de classes, liberal-social, e com pretensões normalizadoras do regime político. Ou seja, é inimigo da classe trabalhadora, apesar desta ter sempre enormes expectativas com esse tipo de formação político-governamental. Mas a experiência com esse governo, como indicam pesquisas de opinião pública,[1] com as suas requentadas e insuficientes medidas de compensação social e as contrarreformas que começam a aparecer podem levar a que a experiência com esse governo seja mais rápida do que se esperava, o que colocará ainda mais polarização no cenário político.
Um partido burguês-operário defendendo seu governo
Vejamos a posição do PT e demais organizações da esquerda sobre o balanço dos 100 dias de governo Lula. Certamente que a apreciação do PT em relação ao seu próprio governo é marcada totalmente pelo horizonte estratégico desse partido, que desde o começo da década de 1990 abandonou totalmente as reformas estruturais e o projeto socialista, fez acordos políticos e de financiamento eleitoral com as grandes empresas, assumiu a conciliação de classes e o social-liberalismo como paradigmas inabaláveis.
De um partido operário-reformista em sua fundação na década de 1980, em um processo de transformismo regressivo, tornou-se um partido operário-burguês nos anos 1990. Hoje, após as diversas experiências feitas com o PT nos mais diversos cargos executivos governando o estado burguês para manter os interesses da classe dominante, podemos dizer que pelo caráter da sua direção, programa e práticas políticas assumiu um caráter burguês-operário; o que encerra esse partido na perspectiva da pequena política burguesa, no qual o horizonte máximo são as compensações sociais cada vez mais escassas. Ou seja, o desmobilizador reformismo sem reformas do lulismo não resolve o problema estrutural algum da nossa classe, apenas prepara novas investidas reacionárias e retrocessos, tais quais os vividos nos últimos quatro anos.
Assim, o balanço que faz a direção do PT dos 100 dias do Lula 3, em sua nota “100 dias de reconstrução do Brasil”[2], não poderia ser outro do que, segundo eles: “marcantes avanços”, o “combate à desigualdade” e a “promoção da justiça”. E, como comprovação desses “compromissos” foram retomadas políticas como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e a recomposição do salário-mínimo. No entanto, temos que considerar que essas políticas do governo estão muito longe de dar conta da fome endêmica que vem assolando 33 milhões de pessoas, da falta de 6 milhões moradias e da necessidade de um salário-mínimo de ao menos R$ 6.388,55 segundo o DIEESE. Certamente, soluções que exigem princípios, estratégias e táticas independentes da grande burguesia nacional e do imperialismo, ou seja, toda uma linha política que nada tem a ver com o PT e seus aliados no governo e fora dele.
Como política econômica, a nota do PT diz que o “país” (seria melhor dizer, a “patronal”) conhece o “compromisso” do PT com “a estabilidade, o combate à inflação e a saúde das contas públicas” e a “urgência da retomada do crescimento econômico do país”. E coloca como exemplos o combate de Lula contra a política monetária do Banco Central e o fim da Lei do Teto de Gastos. Apesar de toda a grita de Lula e do PT com as taxas de juros, o governo não reduziu a meta inflacionária que poderia impactar fortemente a política de alta dos juros do Banco Central. Mas o governo não a toma justamente para manter todas as pontes intactas com o capital financeiro, mais um fato que cristaliza a natureza política de classe deste governo. Mas o alinhamento do governo ao tripé neoliberal não ocorre apenas em relação à política monetária, com o novo arcabouço fiscal de Lula, que foi enviado ao Congresso, e que pode ser ainda mais acentuado em sua tramitação; o teto de gastos foi ligeiramente flexibilizado (com um crescimento de 50% a 70% das receitas e de 0,6% a 2,5% deste) mas está mantido com o objetivo de fazer caixa para continuar pagando a insuportável dívida pública que consome cerca de 50% das receitas do governo.
Tudo isso para que seja feita economia para as despesas não-primárias (juros e amortizações da dívida pública com os megainvestidores) que consomem anualmente cerca de 50% do orçamento federal a cada ano. Ou seja, o governo para satisfazer a fome de lucro do capital financeiro e, portanto, intensificar a desoneração do capital especulativo para que ele possa aumentar a sua competitividade, irá continuar a restringir o orçamento para os gastos primários, ou seja, saúde, educação, saneamento, moradia etc. Essa é a primeira contrarreforma direta do governo Lula que, juntamente com as demais medidas que vem adotando, além de confirmar a o seu caráter burguês, coloca uma inversão na lógica exigência-denúncia em relação a esse governo no sentido de que a denúncia do seu caráter e medidas burguesas devem ganhar mais peso.
Na parte final do seu balanço de 100 dias, em relação aos oprimidos e excluídos, a nota do PT afirma que estes “estão voltando a ser reconhecidos como cidadãos e cidadãs de direito”. Em que pese que Lula tenha criado ministérios voltados para esses setores da classe trabalhadora, a sua incorporação igualitária na sociedade passa necessariamente por profundas reformas na estrutura econômica, política e cultural da sociedade. Passa pela imposição de salários iguais para homens e mulheres, pela reforma agrária e urbana sobre controle dos trabalhadores, pela revogação do novo Ensino Médio e pelo fim do vestibular, pela legalização do aborto, pela legalização das drogas e pelo fim da política militar. Medidas democrático-modernizadoras que um governo burguês de conciliação de classes normalizador como esse está longe de desenvolver, pois requer o enfrentamento ao grande capital e a todo o reacionarismo que campeia o país.
No tema da tentativa de golpe do dia 8 de janeiro deste ano, o documento afirma que o governo será no futuro reconhecido pelo “enfrentamento e superação da tentativa de golpe de estado” e que, para isso, “os agentes, incentivadores e financiadores da tentativa de golpe, militares ou civis, responderão por seus crimes”. O tema é que o governo, por seu caráter estruturalmente conciliador com a burguesia e com o reacionarismo, perdeu uma chance ímpar de ir para cima do bolsonarismo. O objetivo da invasão das instituições federais em Brasília era o de criar uma crise institucional para o governo decretar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) que tornaria Lula refém dos militares logo no começo do seu governo. Essa tentativa de manobra foi identificada e o governo acabou decretando intervenção federal na segurança pública do distrito federal. Porém, por pura conciliação confiança de classes e na confiança na institucionalidade e nos acordos com o centrão, que agora estão custando caro, o governo já acumula duas derrotas no Congresso, Lula perdeu uma conjuntura favorável logo depois do 8 de janeiro para ir para cima dos setores mais reacionários.
Após a tentativa de golpe do início do ano houve importantes mobilizações massivas e repúdio generalizado à tentativa de fechamento do regime, era a hora do governo tomar medidas concretas contra os golpistas através de projetos de lei que enterrasse qualquer resquício de intervenção política das forças armadas sobre os poderes da república, bem como com os tribunais federais, com a militarização da polícia e com a anistia aos torturadores e assassinos da ditadura militar. Mas, ao invés disso, o governo deixou apenas para o judiciário toda e qualquer iniciativa de punição aos golpistas, o que redundou em um processo de investigação, que pode chegar a punir alguns poucos empresários e militares e, no máximo, na inelegibilidade de Bolsonaro, que segue livre, leve e solto percorrendo pelo país para reorganizar a tropa neofascista, fazer uma dura oposição pela extrema direita ao governo e voltar com força a disputar o poder central. Como parte do conservadorismo institucional, que governa de forma separada da luta e da organização direta dos trabalhadores, não bastasse o acordo com Arthur Lira para Presidente da Câmara, o governo e o PT mantiveram e indicaram dirigentes burgueses e bolsonaristas para todos os escalões do governo federal.
No âmbito internacional, o balanço do PT reivindica o retorno do Brasil “ao projeto de integração regional da América do Sul, à CELAC, aos BRICS, à cooperação com os países da África, aos grandes fóruns internacionais, promovendo a paz, o diálogo e o desenvolvimento.” Mas o que temos visto até aqui nas viagens de Lula em seus discursos foi um zigue-zague entre posições, ora alinhamento com o imperialismo estadunidense, ora alinhamento com o novo imperialismo chinês. Em relação ao principal fato hoje da política mundial, que é a guerra na Ucrânia, um conflito Inter imperialista por procuração combinado como uma guerra de defesa nacional, foi particularmente errante, passou de uma posição abertamente pró-russa ao dizer que “a Ucrânia não pode ter tudo…” para uma posição mais equidistante entre os imperialismos.
Setores da classe trabalhadora tinham expectativa de que Lula iria realizar um “revogaço” das contrarreformas dos governos anteriores, desenvolver uma política econômica distinta do tripé neoliberal ou um aumento significativo do salário-mínimo. No entanto, mesmo diante de uma conjuntura favorável após o 8 de janeiro, as chances de avançar efetivamente contra as forças mais reacionárias foram desperdiçadas devido à estratégia permanente de conciliação de classes do governo. Desta forma, o que ocorreu nestes 100 dias, foi a aplicação de medidas parciais com vistas à normalização da gestão democrática-burguesa do estado depois de quatro anos de reacionarismo e ultraliberalismo, mas que estão muito longe de garantir aos trabalhadores e aos oprimidos condições mínimas de existência, mobilização, trabalho, remuneração, formação e moradia.
A doença do campismo tardio pega setores da esquerda
O PSOL é um partido que surgiu da expulsão de parlamentares do PT que se posicionaram contra a reforma da Previdência de Lula em 2003 e de um setor do funcionalismo que rompeu com o lulismo nesse período. Aparece como um partido de tendências centristas e radicais independente dos governos, mas que vai ganhando um caráter reformista até que no ano passado, com a federação partidária com a Rede, o ingresso na chapa Lula-Alckmin e no governo, o seu caráter independente é liquidado pela sua direção, jogando na lata do lixo uma experiência, no que pese seus limites e caráter majoritariamente reformista, de independência de classe – motivo pelo qual, a nossa corrente Socialismo ou Barbárie junto a um conjunto de militantes, romperam com esse partido, iniciando um novo processo de construção de uma nova alternativa política socialista independente dos patrões e dos governos.
Dessa forma, com a sua liquidação enquanto partido independente que adota o campismo como estratégia[3] permanente – mesmo esta estratégia de conciliação com a burguesia ter sido sistematicamente derrotada pelos acontecimentos históricos -, o balanço do PSOL em relação aos 100 dias de Lula não poderia ser muito distinto do realizado pelo PT.
Em seu balanço dos 100 dias, “PSOL na luta para que o programa de mudanças seja garantido”[4], o PSOL e suas correntes majoritárias (Primavera Socialista, Revolução Solidária, Resistência e outras) apresentam um diagnóstico totalmente equivocado de que o atual governo seria legítimo representante da classe trabalhadora e dos oprimidos e, consequentemente, a estratégias e táticas que desarmam para as necessárias lutas.
O balanço da direção do PSOL é um engano do começo ao fim. Segundo ele, a maior vitória desse governo foi contra a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro, pois segundo o PSOL, o que se confirma com “a firmeza do governo ao anunciar a intervenção na segurança pública do Distrito Federal, a demissão do comandante do Exército e uma convocação à unidade nacional contra o golpismo foram fundamentais”. Já falamos acima o quanto capituladora foi a resposta de Lula à tentativa de golpe, o que deixa a extrema direita com as mãos livres para outras tentativas golpistas e para voltar ao poder nas próximas eleições…
A direção do PSOL afirma que a extrema direita segue como “a principal força de oposição ao governo Lula”, o que no geral é correto, porém não passa nem perto de diagnosticar a insuficiência e a capitulação do governo frente ao golpismo que, devido a isso, mantém as condições para que a mesma extrema direita possa se fortalecer e continuar a golpear. Isso significa que não toma seriamente o perigo que significa o bolsonarismo, como oposição de extrema direita que se coloca contra qualquer medida minimamente progressiva – quando e se houver – e os direitos democráticos dos trabalhadores. Não deixemos de frisar que, o governo, por conciliação com a burguesia e os chefes das forças armadas, perdeu uma tremenda chance de derrotar o bolsonarismo definitivamente. Desprezar esse aspecto da realidade tem como efeito desarmar a luta independente pela unidade de ação contra o bolsonarismo – não em frente única ou participando diretamente de um governo burguês, como faz o PSOL e todas as suas correntes internas, mas por meio da unidade de ação independente nas ruas.
Ao fazer malabarismo para não reconhecer que esse é um governo burguês de conciliação de classes, portanto incapaz de atacar de forma minimamente estrutural os interesses da classe dominante, acabam em uma tentativa miserável de justificação do seu apoio e participação ao dizer que são favoráveis às medidas progressistas do governo que seria o “revogaço”, a “reforma tributária progressiva”, o “desmatamento zero”, o “combate às privatizações” e “embora a proposta em debate tenha como centro a simplificação e não o alívio tributário aos mais pobres, seguiremos reivindicando elementos de progressividade”. Mas, como não poderia deixar de ser, em meio à crise que vivemos, nenhuma dessas medidas estão no rol de prioridades de um governo normalizador de conciliação de classes.
Até o momento – além da revogação dos decretos que facilitam a compra e porte de armas – não tivemos nenhuma significativa, nem mesmo o da reforma do Ensino Médio; a reforma tributária do governo não vai tocar no regressismo do sistema tributário brasileiro, apenas unifica impostos que tendem a se concentrar no consumo e afetar ainda mais os trabalhadores; o desmatamento até 17 de fevereiro foi de 209 quilômetros quadrados, essa é a maior marca da série histórica iniciada em 2015[5]; o governo não reverteu nenhuma das privatizações dos governos anteriores e não enfrentou a privatização do Metrô de Belo Horizonte. Tudo isso, sem falar das novas regras fiscais do novo teto de gastos.
O PSOL para tentar justificar a ausência de medidas progressivas, coloca que Lula não tem maioria legislativa, “sabemos que o governo ainda não tem maioria sólida no Congresso Nacional e não parece que será fácil construí-la”, e ensaiam uma tímida crítica em relação a posição do governo de apoio a Arthur Lira para presidente da Câmara. Houve um reequilíbrio na governabilidade burguesa nos últimos anos que fez com que o poder do Congresso, que controla mais o orçamento federal e a agenda política. Dessa maneira, não se pode ter medidas progressistas sem um processo tremendo de mobilização popular nas ruas, o que só se pode fazer de forma independente do governo, sobre isso se silencia o balanço da direção do PSOL.
Sobre as medidas “pra valer” do governo Lula, como é o caso da nova regra fiscal, a resolução aponta que têm “aspectos positivos”, pois é “menos rígida”, pode “ser alterada com mais facilidade”, mas o problema é “limitar o investimento público, ainda mais quando há incertezas sobre o ritmo de crescimento econômico no Brasil diante da queda no crescimento mundial.” Na verdade, essa proposta de regramento fiscal de Lula vem para preencher uma lacuna deixada por uma contrarreforma que não pôde na prática ser levada a cabo em toda a sua extensão: o teto de gastos de Temer.
No lugar de uma contrarreforma falida, Lula vem com outra contrarreforma mais flexível que tem pleno apoio da classe dominante, que restringe investimentos públicos em dois mecanismos restritivos e que tende a ser ainda mais acentuada em sua tramitação no Congresso Nacional. O texto não fecha caracterização de qual é o verdadeiro teor do novo regramento fiscal, porque esconde que se trata de uma contrarreforma que vem substituir o teto de gastos de Temer. Porém, como sempre, essa dubiedade na análise do PSOL está a serviço de levar à frente uma política de direita. A federação partidária do PSOL com a Rede já decidiu, com votos favoráveis do PSOL, que vai votar na proposta e “lutar por mudanças estruturais”.
O PSOL tenta salvar algum verniz progressista dizendo que não se pode confiar apenas nos acordos com o Congresso pois “hoje com ampla maioria conservadora, haverá riscos de retrocessos”, que é necessária a mobilização “por medidas concretas de avanços para o povo brasileiro e evitar qualquer ataque aos direitos.” O mesmo se dá com o combate ao bolsonarismo, que o julgamento dos crimes de Bolsonaro pode significar a “intensificação da polarização política” e os ataques de extrema direita às escolas e demais crimes, “demanda unidade para a mobilização permanente das forças de esquerda”.
Nesse discurso da direção do PSOL é preciso separar o que é constatação da realidade da conciliação de classe, suas estratégias e táticas. Na verdade, a ampla maioria do Congresso é reacionária e irá enfrentar qualquer medida progressiva que venha do atual governo conservador por sua estrutura, assim, o mesmo não irá se apoiar na luta e organização direta da nossa classe: irá legislar diretamente contra os trabalhadores e oprimidos. A polarização política é inevitável e tende a ser mais violenta – fato agravado pela política do governo diante do fracassado golpe de 8 de janeiro -, o que só pode ser enfrentado pela mobilização direta nas ruas; a unidade da esquerda para impulsionar a mobilização não pode ser confundida como frente única com o governo e nem como subsidiária à política de Lula como faz o PSOL que chama não à unidade antifascista, mas à uma frente com um governo burguês e seu programa. Devemos ter como estratégia central e permanente a organização da luta pela base, o que exige independência política total, tanto dos patrões, quanto do governo e da burocracia que lhe dá sustentação no movimento de massas.
Assim, este partido tenta justificar a sua participação orgânica em um governo burguês de conciliação de classes. Coisa totalmente diferente é lutar pelos interesses dos trabalhadores e dos oprimidos enfrentando de forma independente o bolsonarismo, fazer exigências ao governo, denunciar quando não são atendidas e exigir mais quando são – tudo sem criar ilusões de que um governo burguês pode resolver os problemas estruturais dos trabalhadores. Mas, setores que se colocam à esquerda do partido (MES, Fortalecer, COMUNA e APS), que se colocam contrários ao novo arcabouço fiscal, seguem defendendo as “medidas progressistas” e não propõem a ruptura do PSOL com o governo[6].
Diante da natureza política de classe do governo, manter apoio político, ministros e outros cargos, vice-liderança e base de sustentação no Congresso é uma desmoralização que afetará profundamente a militância do PSOL nos próximos anos. As correntes internas mais à esquerda, ao não romperem com o liquidacionismo completo da independência de classes, passarão para o campo da ordem burguesa. Da mesma forma que as correntes internas do PT, que capitularam sistematicamente ao processo de mudança da natureza político-social do PT através de um entrismo de longo prazo, essa adaptação da esquerda do PSOL tende a fazer com que essas correntes em alguns anos sejam totalmente burocratizadas, implodam em várias partes ou se dissipam. Ou seja, tenham o mesmo fim de várias correntes de esquerda do PT.
Unilateralidade e sectarismo atrapalham a luta
A posição do PSTU diante do novo governo é distinta das duas primeiras aqui apresentadas. Em que pese a sua inércia teórica em relação ao balanço das revoluções do século XX – que não lhes permite tirar conclusões histórico-teóricas fundamentais quanto ao papel da classe trabalhadora nas revoluções socialistas -, a sua concepção objetivista da luta de classe – que muitas vezes o cega e o faz errar gravemente em relação aos processos reais da luta de classes – e o seu aparelhismo sindicais – que os torna distante dos processos mais dinâmicos da classe trabalhadora e da juventude -, o PSTU é uma organização que se mantém no campo da independência de classes.
O seu balanço dos 100 dias, em “Editorial: os 100 dias do governo Lula”[7], parte da crítica ao slogan “O Brasil voltou” e ao discurso de Lula sobre os 100 dias de seu governo. Ao fazer um recuo histórico sobre os encadeamentos políticos das últimas décadas que levaram à vitória de Bolsonaro, afirmam “que foram os governos do PSDB e do PT que construíram as bases sociais e as decepções políticas que permitiram o surgimento do bolsonarismo”. Aqui temos um problema explícito de unilateralidade – elemento comum na análise dos companheiros – que não contribui em nada para uma apreciação mais justa da realidade e nem para construir políticas para impulsionar a luta dos trabalhadores.
Os governos do PT tiveram políticas em todas as linhas que foram parte da criação das condições que permitiram o surgimento do bolsonarismo, porém o PSTU comete o erro oposto do PSOL e de muitas de suas correntes: perde de vista a combinação entre as condições objetivas e subjetivas. A crise do capitalismo, a ofensiva reacionária e as políticas do PT nos últimos anos foram parte de uma combinação que permitiram a ofensiva reacionária que levou ao impeachment, ao governo Temer e à consolidação de uma situação reacionária com a eleição de Bolsonaro em 2018.
Os governos lulistas, como são governos de conciliação de classes, carregam a contradição de serem governos que gerenciam o estado burguês para garantir a exploração e opressão sem a confiança total da burguesia. Assim, quando se pretendia uma dose maior de exploração e opressão, o cálculo da classe dominante foi o de que os governos do PT não dariam conta. Mas, certamente, a ofensiva reacionária foi possível também pelas políticas dos governos petistas que reprimiram as greves operárias em 2012 nos canteiros das mega construções, as manifestações de junho de 2013 e as lutas contra a Copa, além de bancar o estelionato eleitoral no segundo mandato de Dilma, duras medidas neoliberais e a lei antiterrorismo. Ou seja, um conjunto de medidas que fizeram os seus governos perderem base social, o que foi um prato cheio para o golpismo jurídico-parlamentar ultrarreacionário levado a frente pela maioria da burguesia que se seguiu daí.
Por essa razão, foi um erro brutal do PSTU não ter caracterizado toda a movimentação pré-impeachment como parte de uma ofensiva reacionária, que iria levar a governos burgueses ultrarreacionários, como os de Temer e de Bolsonaro e que, sem defender politicamente o governo petista, exigia uma forte contraposição do conjunto da classe trabalhadora. Ao invés disso, teve uma política de tentar disputar as movimentações de rua dirigidas pela direita e a famigerada posição política do “Fora todos” diante de uma onda reacionária que queria colocar um governo de direita a frente do poder.
Essa apreciação parcial da realidade faz o PSTU cometer mais erros de análise e caracterização em seu balanço, dando pouco peso para o que significou a derrota de Bolsonaro em outubro do ano passado. “A derrota eleitoral de Bolsonaro e o fracasso da sua tentativa golpista foram sentidas como um alívio por grande parte da classe trabalhadora e os setores mais oprimidos.” Olha, pensamos que encarar esse processo apenas como um “alívio” que “gera ilusões” é um equívoco, pois tirar, mesmo que eleitoralmente um neofascista do poder com todo o peso que colocou setores da burguesia e das forças armadas para o reeleger não é algo trivial e gerou uma mudança na situação política nacional com impacto sobre toda a América Latina.
A eleição, como não poderia deixar de ser um processo eleitoral, não mudou de forma significativa ainda a correlação de forças, pois colocou em seu lugar a chapa Lula-Alckmin, uma aliança de partidos da ordem e um governo que burguês de conciliação de classes que não tem a menor intenção de se apoiar na luta para fazer mudanças estruturais. Porém, setores da classe trabalhadora viram nessa derrota do neofascismo uma vitória – parcial e eleitoral, obviamente – política sua, o que coloca mais disposição para mobilização. É o que estamos assistindo em várias categorias em variadas regiões do país: entregadores por aplicativo, sem-terra, trabalhadores do transporte, funcionários públicos, professores e estudantes. São vários os setores mais propensos para a luta e que começam a fazer uma experiência com o novo governo de conciliação de classes liberal-social.
Como parte de uma análise unilateral que leva a uma linha política parcial e sectária, para o PSTU, a tarefa colocada para a classe “é a de construir um campo de classe, que possa fortalecer um projeto seu para o país, que enfrente os capitalistas e o imperialismo e possa efetivamente derrotar também o bolsonarismo”. Em princípios gerais esses objetivos estão corretos. Porém, para lutar contra o campismo com setores “democráticos” da burguesia[8] – como constrói o PSOL ao apoiar e compor o governo Lula -, é preciso combinar as táticas de exigências e denúncias, de unidade de ação, de frente para lutar e de frente política de esquerda. Em relação às táticas de exigência e denúncia, é preciso fazê-las sempre apelando para a mobilização da classe trabalhadora, da juventude e dos oprimidos, não com exigências desconectadas à Lula – como tem feito o PSTU em relação à revogação da reforma do ensino médio -, pois essas apenas geram mais ilusões no governo.
É preciso combinar exigência e denuncia – que ficam mais nítidas com as contrarreformas em curso – em torno da revogação de todas as contrarreformas com prioridade na do Ensino Médio, a redução da jornada de trabalho sem redução de salário, o salário-mínimo do DIEESE, a reforma agrária e urbana sob controle dos trabalhadores, a reversão de todas as privatizações e a prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas. Na medida em que o governo não vai realizando essas exigências ou vai apresentando contrarreformas, como a do novo teto dos gastos, o campo para denúncias vai se ampliando. Hoje, por exemplo, temos que colocar no centro do nosso sistema de consignas a denúncia contra o novo teto de gastos e o chamado de unidade de ação contra essa medida.
A unidade de ação – não o chamado à frente única com o governo, como fazem muitas correntes, pois isso nos colocaria a todos no campismo oportunista – contra o neofascismo se faz central na luta de classes. Assim, o chamado permanente à luta nas ruas em defesa da prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas tem peso fundamental político. A mudança parcial que tivemos da correlação de forças com a derrota eleitoral de Bolsonaro só irá se inclinar efetiva e definitivamente a nosso favor se impusermos uma derrota profunda ao bolsonarismo, e hoje isso passa pela prisão do neofascista.
Os trabalhadores não vão chegar à independência política de classe sozinhos, precisam do apoio político das organizações revolucionárias através de princípios, estratégias e táticas – sendo que estas últimas são as que atuam em contato mais direto com a realidade imediata. Com o alinhamento da maior parte da direção dos movimentos sociais ao governo, e as decepções que isso irá ocasionar, temos uma grande oportunidade de construir a CSP-Conlutas e outros instrumentos de independência de classes e de mobilização autônoma dos trabalhadores e oprimidos. Assim, além da independência de classe no abstrato, é preciso combinar o chamado da unidade de ação diante de várias demandas concretas com políticas de frente independente para lutar, chamando à unificação com todos os todos os setores do movimento independente – como a Intersindical.
Pensamos que não basta a construção da CSP-Conlutas ou de qualquer outra organização sindical, esse é um instrumento que não substitui a construção de um partido/organização revolucionária. É preciso entender que a nova situação política, com a falência política do PSOL, coloca a possibilidade e necessidade da reorganização política da esquerda socialista, que passa hoje pela construção de uma frente nacional da esquerda revolucionária que convivam todas as correntes políticas independentes dos patrões e dos governos – na qual, evidentemente, não cabem os partidos estalinistas/oportunistas. Neste sentido, foi um erro grave do PSTU liquidar com a construção do Polo Socialista Revolucionário. Hoje, pela imaturidade que temos na luta de classes e experiência com as direções no campo da revolução, essa reorganização não será feita simplesmente com a adesão de indivíduos ou grupos ao PSTU ou a qualquer outra organização: temos que construir uma frente política de todas as correntes para criarmos um espaço comum de discussão e organização para intervir de forma comum na realidade e ir construindo os acordos necessários para um processo de unificação.
Para finalizar, os companheiros fazem no final do seu texto uma série de propostas corretas de consignas para enfrentar a realidade, mas parece-nos que falta uma hierarquia programática mínima em seu sistema de consigna que permita aproveitar essa nova situação política aberta com a derrota eleitoral de Bolsonaro. Enquanto estamos fechando a edição desta nota, está sendo noticiado mais um escândalo em torno de Bolsonaro sobre a fraude na emissão de comprovantes de vacina para que o presidente, família e assessores pudessem viajar aos Estado Unidos no final de dezembro do ano passado, bem como mensagens trocadas entre o Ajudante de Ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e Airton Barros, advogado, ex-militar e amigo de Bolsonaro, sobre a conspiração golpista antes da posse de Lula. Todos os fatos que reacendem uma conjuntura favorável a luta pela prisão de Bolsonaro.
Esses fatos apenas comprovam a necessidade de colocar hoje no centro da política a exigência e a luta pela prisão de Bolsonaro e todos os golpistas. Precisamos de um sistema de consigna voltado para essa circunstância política que pode abrir uma conjuntura de lutas mais políticas: Prisão de Bolsonaro, suspensão da tramitação do novo teto de gastos, revogação da reforma do Ensino Médio, trabalhista e previdenciária, direitos trabalhistas para todos, aumento do salário-mínimo do DIEESE, redução da jornada para 30h semanais, reforma agrária e urbana sob controle dos trabalhadores e não pagamento da dívida pública. Nessa nova circunstância política que se abriu com as novas denúncias e a prisão de Cid, é preciso colocar no centro da pauta a luta pela prisão de Bolsonaro, é preciso exigir que as direções das organizações do movimento de massas convoquem imediatamente uma jornada nacional de luta pela prisão de Bolsonaro. Vamos às ruas para que Lula determine a prisão de Bolsonaro já!
[1] Segundo o Datafolha, em pesquisa realizada entre os dias 29 e 30 de março, Lula tem a aprovação de 38% dos brasileiros e é reprovado por 29%, 30% consideram o governo regular e 3% disseram não saber responder. Para 51% dos participantes da pesquisa Datafolha, Lula fez menos do que o esperado nos três primeiros meses de governo. Outros 25% responderam que o presidente fez o que se esperava, enquanto 18% avaliam que o mandatário superou as expectativas.
[2] Veja em (https://pt.org.br/nota-do-diretorio-nacional-do-pt-100-dias-de-reconstrucao-do-brasil/)
[3] O campismo é a estratégia que foi adotada, notadamente, pelo stalinismo de construir frentes com setores burgueses “democráticos” que levou ao apoio e participação em frentes, alianças e governos burgueses. Tática que acabou em derrotas históricas, como a da revolução chinesa do final dos anos 20, e a desmoralização de várias organizações políticas por todo o século XX. O giro que vemos o PSOL e suas correntes políticas, que eram revolucionárias de participar e apoiar o governo Lula, não terá outro fim do que dificultar a organização independente dos trabalhadores e oprimidos e desmoralizar milhares de companheiros para a política e a estratégia revolucionária.
[4] Veja em (https://psol50.org.br/psol-reafirma-luta-para-garantir-implementacao-de-programa-de-mudancas-que-venceu-nas-urnas/)
[5] Veja em https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/02/desmatamento-recorde-na-amazonia-e-acao-criminosa-contra-governo-lula-diz-marina-silva.ghtml
[6] Veja em http://cstpsol.com/home/index.php/2023/04/30/carta-aberta-a-direcao-e-a-militancia-do-psol/
[7] Veja em https://www.pstu.org.br/editorial-os-100-dias-do-governo-lula/