Na rua, lado a lado, somos muito mais do que dois[1].
Entregadores e entregadoras por aplicativos, aqueles que constituem uma nova parcela da classe trabalhadora, demonstraram mais uma vez e categoricamente, a partir de elementos inéditos de organização e luta como produto do acúmulo de uma experiência concreta de mobilização, o recomeço em curso das experiências históricas de luta dos explorados e oprimidos – de um novo tipo de proletariado vinculado ao setor de serviços.
Por Renato Assad
“As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, em face do capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, […], essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política” (Marx, Miséria da Filosofia).
Nos últimos dias 31 de março e 1° de abril, entregadores por plataformas realizaram uma nova greve nacional: o Breque dos APPs. Assim como em 2020, 2021, 2022 e 2023 (2024 foi o único ano em que não houve greve da categoria), motocas em sua maioria, mas também bikes (agora em maior expressão) voltaram às ruas para reivindicar melhores condições de trabalho.
Exigindo de maneira centralizada e a nível nacional, os entregadores demandaram a partir da mobilização independente de base o aumento da taxa mínima por entrega para R$10,00; R$2,50 por quilômetro rodado adicional; limitação do raio de entregas para bicicleta de até três quilômetros e o fim das coletas duplas, triplas, ou seja, o pagamento de uma taxa por cada pedido entregue.
Os números que circulam nos meios de comunicação da imprensa tradicional e burguesa falam entre 50 e 70 cidades que se somaram ao Breque dos APPs, mas para nós do comando de greve de São Paulo e para o comando nacional, os números são muito maiores: avaliamos uma adesão ao movimento de mais de 100 cidades em pelo menos 20 estados do país.
Podemos afirmar, indene de dúvidas, que se tratou da maior greve da categoria já realizada no país, uma expressão cristalina da consolidação do movimento dos entregadores, ainda que sob reivindicações de natureza econômico-sindicais, como “uma das principais forças organizadas da classe trabalhadora brasileira” (Gonsales, 2025)[2].
Não só. A dimensão deste último Breque dos APPs se destaca também em relação ao terreno internacional que, para além do apoio de diversos entregadores e motoristas de países como EUA, Argentina, Itália, Suécia, Taiwan, Filipinas, Equador e Colômbia, não encontra similaridade processual em qualquer outro país. Não há movimento parecido até hoje que se aproxime da dinâmica, peso e profundidade que se expressam já há alguns anos na guerra dos entregadores do Brasil contra as empresas-plataformas. É um fato que, longe de qualquer perspectiva ufanista ou de novas formas de corporativismo, implica aos entregadores plataformizados do Brasil uma responsabilidade de magnitude histórica e decisiva. Um processo que a depender do seu desenvolvimento pode vir a inverter a correlação de forças entre exploradores e explorados e abrir passo a um salto de qualidade no enfrentamento à precarização do trabalho e, consequentemente, a um questionamento político cada vez mais generalizado aos entregadores e outras categorias de trabalho no país e mundo afora sobre a apropriação violenta de trabalho excedente não pago.
O asfalto como terreno da exploração, mas também da resistência
Em São Paulo, a greve não deixou dúvidas sobre a concretude das proporções históricas dessa mobilização. Tratou-se de uma verdadeira explosão dos entregadores da maior cidade da América Latina que concentra hoje a maior parcela de entregadores do país com aproximadamente 320 mil trabalhadores dos mais de 1,6 milhão de vendedores de suas forças de trabalho às plataformas e que se dividem entre o trabalho de delivery e a circulação de passageiros[3]. A categoria de entregadores por plataforma, dentre as 50 maiores categorias de trabalho no país, foi a sétima que mais cresceu nos últimos anos (Krein; Manzano, 2020)[4].
No primeiro dia do Breque, a categoria reuniu-se na Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu, e saiu em motociata, com muitos bikes no cortejo – aproximadamente três mil trabalhadores/as – primeiro para a Avenida Paulista e depois para frente da sede do iFood em Osasco-SP, empresa que hoje monopoliza quase 90% do mercado de entregas por plataformas no Brasil.
A circulação das motos e bikes não só impressionou pelo barulho[5] e pelo tamanho, mas pela atitude ofensiva que impuseram os entregadores, numa clara demonstração não só de indignação às atuais condições de trabalho, mas de um ódio de classe que tomava as feições dos milhares de entregadores.
Em nossa parada à frente do MASP, dois fatos chamaram a atenção. O primeiro deles foi a incapacidade da Polícia Militar de garantir a ocupação de apenas uma faixa, uma exigência feita ainda na concentração do ato. Foram três faixas ocupadas, consequência da própria correlação de forças que impôs o movimento ao braço repressivo e armado do Estado burguês – o mesmo que semanalmente se ocupa em realizar apreensões ilegítimas das motos (ferramentas de trabalho) dos entregadores. Segundo, para além da demonstração de força naquele momento, uma importante parcela dos entregadores exigiam de maneira espontânea a parada de motos ou bicicletas que pela área circulavam para averiguar algum tipo de “fura greve”.
Mercadorias foram retiradas das “bags” de alguns trabalhadores de maneira mais ou menos agressiva, fatos que rapidamente foram processados coletivamente e que resultaram no consenso de que “ninguém entrega nada hoje” e que “trabalhador não agride trabalhador”. Por outro lado e de maneira covarde, estes acontecimentos têm sido sistematicamente usados pelo campo da direita para tentar deslegitimar a greve e imputar, sob uma série de preconceitos sociais e raciais, uma natureza marginal e criminosa ao movimento.
Organizada a saída da Av. Paulista, as motos e bicicletas partiram com seus motores e pedais mais quentes do que nunca rumo à porta do iFood, e o que não faltou foram punhos erguidos ao alto nesse trajeto que parou avenidas como a Rebouças e a Marginal Pinheiros. Durante o trajeto, um rodízio era feito pelas chamadas “lideranças” da cidade para falar e agitar no carro de som que encabeçava o comboio. “Sabe pilotar?”, “pega aqui minha moto”, “segura o carro de som que vai descer ou vai subir”, e assim foi até o destino final. Eu mesmo troquei de moto três vezes e em uma delas a bateria tinha ido para o espaço, mas o empurrão para o tranco foi imediato.
A chegada à porta do iFood foi emblemática. Há ali, na Avenida dos Autonomistas, quase na entrada desta empresa parasitária (uma das principais responsáveis pela precarização em massa do trabalho no país – pela materialização de uma “nova morfologia do trabalho”[6]), um radar semafórico. Passou o caminhão de som e o semáforo fechou. Neste momento estava eu, acompanhado de outros companheiros no caminhão, olhando uma massa de motocas esperando o semáforo abrir. A imagem era impressionante, e quando o semáforo abriu o “bonde” chegou com a faca nos dentes e o sangue nos olhos!
Rapidamente o carro de som se posicionou na frente do iFood e as motos iam parando na avenida e os entregadores se concentrando o mais perto que podiam dos portões da empresa. Era um retrato impetuoso de um corpo social que chegava ali para arrancar algum tipo de justiça – e com as próprias mãos. Em questão de minutos as faixas já estavam penduradas nos portões com alguns entregadores em cima deles e os demais se aglomeravam na porta de entrada exigindo uma resposta às reivindicações do movimento.
Foram algumas horas ali. A pressão do movimento era feroz, um reflexo inverso e classista da voracidade com que iFood e companhia exploram a categoria. Num primeiro momento houve duas posições: 1) que entrássemos assim que pudéssemos para negociar e 2) exigir que os representantes da empresa supracitada saíssem para negociar conosco lá fora, em nosso terreno. Em um ensaio inédito de uma assembleia de base, de uma assimilação coletiva dos métodos da democracia operária, muito acalorada, a segunda posição acabou por perder força por uma série de razões, dentre elas o papel de contenção de alguns setores da esquerda da ordem que ali estavam. Assim, a entrada de uma comissão terminou por suceder.
A empresa exigiu que os celulares de todos os que entraram fossem deixados em outra sala para que não houvesse qualquer tipo de comunicação entre a categoria e a comissão representativa. Lá fora, marmitas cozinhadas pelos próprios entregadores e outras oferecidas como contribuição de determinados movimentos sociais eram distribuídas. A fome de muitos era saciada, mas a cara feia continuava. O tempo mudava, aproximava-se uma forte chuva, e quando ela chegou, os entregadores fizeram o que sabem de melhor: encarar a dureza da realidade, aquilo que ela é. Aliás, alguém já viu motoboy com medo de chuva?
Durante alguns minutos formou-se uma roda de dança, um revezamento de movimentos e passos que arrancavam sorrisos, que teciam laços de solidariedade e que, inevitavelmente, fizeram surpreender a patronal que assistia tudo pelas câmeras e achava que com o dilúvio a categoria iria embora aos poucos.
Finalmente saía a comissão de representação. A notícia era dura diante de uma expectativa coletiva: nenhuma reivindicação seria atendida. Mas, ainda debaixo de forte chuva, recuperamos o método assembleário. Não havia desmoralização, pelo contrário: em questões de minutos fora decidido a manutenção da greve e a orientação de “brecar” já naquela noite e no dia seguinte os principais pontos de coleta da capital e região metropolitana. A categoria saía aos poucos da frente da sede do iFood e pelas ruas, pelo asfalto, se dirigia aos principais comércios de delivery para impor coletivamente uma nova velha ferramenta de luta: os piquetes. E assim foi, não saiu pedido algum dos principais shoppings e restaurantes durante todo o dia seguinte em São Paulo e em outras várias cidades do país. Segundo a a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes da cidade (Abrasel/SP), em caso de restaurantes que dependem exclusivamente das empresas-plataformas para o serviço de delivery, a queda chegou a 100% em muitos estabelecimentos.
A conformação do Breque
Façamos agora um breve movimento de digressão para melhor compreender a materialização do último Breque dos APPs. Em nossa avaliação o estopim sucede a partir de uma combinação de alguns de elementos que desenvolveremos aqui.
- A condição social dos entregadores. A categoria é predominantemente masculina (entre 95-97%) e 68% se declaram pretos ou pardos. O rendimento mensal da categoria coloca os seus trabalhadores nas classes D e E da estratificação social brasileira: aquelas que apresentam um rendimento familiar de até R$2,9 mil mensais e que, segundo dados do IBGE (2022), constituem 50,7% da população brasileira, ou seja, mais da metade do contingente populacional[7].Dessa forma, com quase três anos desde o último reajuste das taxas de entregas feito pelo iFood em julho de 2023 (de R$6,00 para R$6,50 e de R$1,00 para R$1,50) como concessão ao Breque realizado naquele mês, os ganhos dos trabalhadores, sempre abaixo do valor/hora do salário-mínimo, se fizeram cada fez mais distantes da garantia à subsistência. A isso, soma-se também a alta inflação alimentar que chegou a 7,69% no ano passado – um valor muito maior dos 1,11% constatado em 2023[8].Tais dados terminam por dar materialidade a uma condição de vida que flerta constantemente com o pauperismo, e não à toa, hoje, 3 a cada 10 entregadores passam fome no país – encontram-se em situação de insegurança alimentar[9]. Ou seja, a realidade objetiva que se encontram hoje os trabalhadores de entregas por plataforma gerou e segue gestando um mal estar generalizado, um dos principais elementos para a explosão da última greve.
- O contundente fracasso do Grupo de Trabalho anunciado no 1° de maio de 2023 pelo atual governo burguês liberal-social de Lula-Alckmin para se discutir e efetivar um projeto de regulamentação do trabalho de entregas e circulação de passageiros por plataformas. À época dissemos, a partir do coletivo Entregadores Unidos pela Base, que se tratava de uma armadilha, um espaço de contenção dos ânimos da categoria. Por isso, não se trata de uma coincidência que 2024 tenha sido o único ano que não tivemos Breque dos APPs: muito se apostou neste espaço de superestrutura e pouca atenção ou qualquer prioridade foi dada às ruas – à organização de base. Ou seja, uma relação entre “praça” e “palácio” completamente desbalanceada e muito aquém dos desafios colocados na luta contra a precarização do trabalho via plataformas. Assim sendo, o fracasso do GT terminou por evidenciar não só a natureza de classe do atual governo federal que apresentou um projeto patronal de cabo a rabo (PLP 12/2024), mas a necessidade de retomar a mobilização por baixo – pelas ruas.
- A conformação de uma frente única nacional para lutar. Durante alguns meses reuniões virtuais foram sendo convocadas para se discutir a necessidade de um novo Breque. A adesão teve um dinamismo crescente, novas “lideranças” regionais, algumas sem nenhuma experiência na luta, outras com muito acúmulo, foram se somando. Construía-se ali cada vez mais um processo de síntese: era necessário voltar a “brecar”, e dessa vez com a maior amplitude territorial possível.Mesmo que muito heterogênea no que diz respeito às convicções ideológicas, assimilou-se que naquele espaço havia um objetivo em comum e que todos ali presentes buscavam difundir e materializar uma nova mobilização de base da categoria: frases como “chega de tanta exploração”, “heróis na pandemia, escravos no dia a dia” e outros pronunciamentos como estes que deram origem às faixas levantadas no ato em São Paulo, demonstram categoricamente que o discurso sobre se tratar de um trabalho autônomo ou qualquer coisa do tipo tem progressivamente perdido força e espaço na categoria. Logo, a data foi escolhida, as pautas hierarquizadas e a tarefa estavam dadas: construir e construir! Nesse sentido, apareceu, assim como as novas formas dos velhos piquetes, outra velha e fundamental ferramenta do axioma do movimento operário agora constituída a partir da virtualidade: a frente única.
No geral, a causa para a realização do maior Breque dos APPs no país até então foi a combinação dos elementos acima citados. Entretanto, não há como deixar de mencionar os limites e contradições expressadas na organização e construção do movimento, elementos sectários, corporativistas e economicistas que persistem e que exigem, de uma maneira ou outra, uma superação política para a efetivação de conquistas históricas. Abordaremos isso a seguir.
Meter marcha, mas para onde e como?
A suspensão do Breque foi anunciada ao final do dia primeiro de abril e o sentimento majoritário ecoava um “vamos por mais, vamos pra cima!” e isso não é qualquer coisa! Pois, se tratando de condições de trabalho extremamente precarizadas, em que o entregador recebe por corrida – o salário por peça que afirmara Marx ser a forma por excelência de remuneração do capitalismo –, paralisar as atividades laborais durante dois dias significa uma perda importante da renda para a categoria. Ou seja, isso demonstra uma convicção coletiva da necessidade da luta: de que para arrancar qualquer conquista deve-se apostar na mobilização pela base – na auto-organização dos trabalhadores – mesmo que isso possa fazer atrasar algumas contas e boletos no fim do mês.
Dessa forma, diante de uma negativa do iFood em atender as reivindicações da categoria e do silêncio das outras empresas-plataformas, a categoria decidiu esta semana, em plenária nacional aberta que contou com aproximadamente 200 entregadores do país inteiro, a realização de um novo Breque dos APPs dentro de um período de 3 meses e um ato nacional no dia 1° de maio – dia internacional do trabalhador e trabalhadora.
Tais encaminhamentos, os quais nós incentivamos e defendemos na plenária, são um passo importante para a conformação de um calendário de lutas da categoria. Entretanto, os desafios para consolidar tais iniciativas requerem a combinação de alguns elementos indispensáveis: a) a realização de plenárias estaduais e municipais que centralizem a categoria a partir de uma democracia de base; b) a independência financeira com a conformação de fundos de greve locais para rodagem de material e qualquer tipo de iniciativa solidária com colegas da categoria; c) a batalha para concretizar a unidade entre os entregadores e entregadoras com demais categorias de trabalho, sobretudo com aqueles que hoje são forçados a trabalhar na escala 6×1; d) a exigência do movimento ao governo federal para a realização de uma audiência pública que obrigue as empresas a responderem às reivindicações da categoria através da própria voz dos trabalhadores.
Apresentadas as questões mais táticas diante da ascensão da luta da categoria, é necessário também refletir sobre as perspectivas mais estratégicas da luta de classes em que o movimento dos entregadores joga uma partida decisiva; sobre aquilo que está para além das atuais reivindicações econômicas e sindicais.
Hoje, é categórico que estamos diante um mundo novo, um mundo extraordinário que deixou a velha ordem para trás – que rompeu com a “antiga normalidade” e se apresenta, sobretudo, como um mundo disruptivo. Nesse novo enquadramento de uma nova etapa global de desequilíbrio que combina múltiplas crises por todos os terrenos do desenvolvimento histórico (guerras, colonialismo, barbárie, reações e possíveis revoluções), acentua-se de maneira dramática a contradição capital-trabalho. Evidencia-se a materialização de uma processualidade ultra contraditória entre o hiperdesenvolvimento tecnológico e condições de trabalho análogas ao século XIX, e a luta dos entregadores no Brasil e no mundo, assim como de outras categorias precarizadas e superexploradas, nada mais é que um pulso de resistência aos imperativos mais violentos do capitalismo do século XXI. Ou seja, uma reação às ações predatórias que têm como objetivo o aumento da apropriação e controle do trabalho excedente não pago.
Nesse sentido, partindo da anterior caracterização, os choques entre as classes sociais se farão cada vez mais diretos – mais impetuosos – e é necessário preparar-se para um salto qualitativo na guerra de classes sob a perspectiva da reversibilidade dialética – da capacidade se apoiar nos elementos mais progressivos e dinâmicos da realidade para edificar novos processos revolucionários. Logo, a categoria dos entregadores assume uma natureza de potencial estratégico para esta empreitada, uma luta de dimensão histórico-decisiva que pode impor um revés peremptório às novas formas de explorar trabalho e consolidar condições materiais (objetivas) e espirituais (subjetivas) para vincular a luta por reformas à luta revolucionária.
Dessa forma, por mais que tenhamos afirmado que hoje os entregadores se imponham como um dos principais movimentos em luta da classe trabalhadora no país, tal movimento precede, todavia, de um programa e direção revolucionária – da consolidação, em última instância de uma identidade classista que tem avançado lentamente. Mas isso não é de responsabilidade da categoria, tampouco de suas direções orgânicas e heterogêneas, mas da crise de alternativa socialista que não pode ainda terminar de ser superada frente à crise de direção da esquerda revolucionária.
Muitos setores da esquerda tentaram algumas aproximações com o movimento dos entregadores, mas uma aproximação saturada por uma lógica oportunista e clientelista que em nada contribui aos desafios colocados na ordem do dia para os entregadores e para a classe trabalhadora em geral. Outros setores da esquerda independente sequer tentaram essa aproximação, seja lá qual for a justificativa para tamanho pecado e falta de sensibilidade política.
Mas, contrariamente e de maneira progressiva, o acúmulo das experiências de luta dos entregadores tem forjado, em nossa opinião, a possibilidade de se edificar um novo tipo de sindicalismo de base e independente que supere as burocracias sindicais e suas direções que vivem do produto da luta, mas que jamais se dedicam a ela. Não à toa a categoria tem verbalizado cada vez mais a necessidade de formar associações ou entidades para uma representação orgânica e combativa da categoria, um salto no campo da subjetividade dos entregadores que deve ser amplamente impulsionado. Isto é, a categoria que expressa hoje o recomeço das experiências históricas de luta do proletariado, também ensaia um recomeço de uma (re)organização sindical que pode ser histórica e decisiva à atual etapa da luta de classes.
Por último, não nos restam dúvidas do que pode significar uma vitória concreta dos entregadores – da conquista de melhores condições de trabalho –, condição basilar para seguir avançando na luta contra as novas e velhas formas de exploração do trabalho. Contudo, tampouco hesitamos em ressaltar uma das principais lições que nos deixou a revolucionária Rosa Luxemburgo: as principais conquistas dos trabalhadores são sempre em matéria de consciência (revolucionária) e organização (independente dos governos, burocracias e patrões).
Viva o Breque e a auto-organização da classe trabalhadora!
Notas:
[1] Trecho final do poema “Te quero” de Mario Benedetti, falecido poeta, escritor e ensaísta uruguaio que integrou a chamada “geração dos 45” que constituiu a terceira fase do modernismo que se desenvolveu até a década dos 70.
[2] Gonsales, Marcos. Breque dos apps: a ascensão do novo proletariado de serviços, Blog da Boitempo, 2025. https://blogdaboitempo.com.br/2025/04/03/breque-dos-apps-a-ascensao-do-novo-proletariado-de-servicos/
[3] O número exato de entregadores no país é extremamente difícil de ser aferido com precisão. Isso acontece por duas principais razões: a) a falta de transparência das empresas-plataformas sobre o número de cadastros nas plataformas e b) a alta rotatividade na categoria que envolve uma série de fatores sociais, econômicos e políticos. Mas para que tenhamos em conta o tamanho do contingente social desse novo proletariado do setor de serviços, a categoria hoje, mesmo com a dificuldade anteriormente citada de identificar com exatidão o número de trabalhadores de entregas por plataformas, equivale numericamente a mais ou menos 20% da maior categorial de trabalho do país: o trabalho doméstico que conta com cerca de seis milhões de trabalhadores ocupados, sobretudo mulheres negras.
[4] Manzano, Marcelo; Krein, André. A pandemia e o trabalho de motoristas e de entregadores por aplicativos no Brasil. REMIR Trabalho, 2020.
[5] Antes de sairmos do Pacaembu a polícia exigiu que não se cortasse de giro nenhuma moto, mas o barulho, cessado de maneira consciente na frente de todos os hospitais pelos quais passamos, foi ensurdecedor.
[6] Antunes, R. (2014). Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil. Estudos Avançados, 28(81), 39-53. https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/83893
[7] Assad, Renato. Entregadores de aplicativos: a luta de um novo proletariado. Rio de Janeiro: Grupo Multifoco, 2024.
[8] https://www.dw.com/pt-br/como-brasileiros-driblam-a-alta-dos-pre%C3%A7os-dos-alimentos/a-71889100
[9] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/04/levantamento-aponta-que-3-em-cada-10-entregadores-de-sp-e-rj-enfrentam-inseguranca-alimentar.shtml