Em 2024 completa-se 92 anos da publicação do primeiro volume da obra prima de Leon Trotsky “História da Revolução Russa”. Não apenas pela estatura do revolucionário, mas também pelo monumental relato histórico e teórico em dois volumes da maior revolução do século passado, temos que nos apropriar criticamente na forma de um rigoroso estudo. Sem dúvida, essa seria a melhor forma de homenagear a memória do autor.
De qualquer forma, Roberto Sáenz encara esse desafio em “Sobre a História da Revolução Russa”. Neste ensaio ele nos oferece uma rica síntese dessa obra prima de Trotsky e da cultura política estratégica revolucionária inaugurada por Marx e desenvolvida pelos revolucionários do século XX. E não o faz de maneira academicista, mas em em contato vivo com o desenvolvimento da luta de classes hoje no mundo. Com um possível rebote à esquerda da situação mundial, que não está descartado para nada, a testagem das relações entre revolução, insurreição e tomada do poder pode se dar na prática.
Esse é o caso ainda particular da Argentina – país politicamente central hoje -, pois a luta das massas nas ruas contra um governo de extrema direita, que quer impor derrotas históricas à classe trabalhadora, pode levar a uma virada à esquerda, o que colocaria em sangue vivo toda a estratégia revolucionária legada pela revolução Russa e elaborada por Trotsky em sua História da Revolução Russa. Assim, a síntese dessa obra por Sáenz é uma provocação para que possamos nos apropriar criticamente das ricas lições deixadas pelos revolucionários em uma etapa da luta de classes em que seremos cada vez chamados à ação revolucionária.
Redação
Sobre a “História da Revolução Russa” de Trotsky
Por Roberto Sáenz
Em 29 de junho de 1932, Leon Trotsky terminou de escrever uma de suas obras-primas, sua História da Revolução Russa. Reconhecido mesmo fora das fronteiras do marxismo como obra-prima historiográfica, foi também concebido para transmitir às novas gerações militantes as lições da Revolução de Outubro.
História da Revolução Russa é uma bela obra.[1] A ambição deste ensaio é sugerir à militância de esquerda em geral que comece a relê-la e estudá-la porque ela é extremamente atual para os tempos polarizados em que vivemos. É uma obra riquíssima, com muitos ângulos; Tem uma “arquitetura” que tem que ser vista como um todo.[2]
Esse é o primeiro objetivo deste ensaio: sugerir que as pessoas leiam o livro, que comecem a trabalhar nele como uma ferramenta preciosa – especialmente seus capítulos estratégicos – para os eventos sangrentos que estão por vir. O segundo objetivo é focalizar alguns dos capítulos mais importantes para os propósitos deste ensaio, que se encontram principalmente no segundo volume.[3]
Nosso objetivo não é abordar a obra como um estudo do materialismo histórico (assunto no qual Trotsky foi um verdadeiro mestre), nem mesmo abordar a HRR como uma história comparada das revoluções – o que também é –, mas sobretudo continuar acumulando ferramentas de trabalho político revolucionário, da política como arte estratégica.[4]
Há vários desses tipos de textos educativos sobre assuntos estratégicos, especialmente de Trotsky. O HRR pode ser comparado (em seu caráter específico, é claro) com as Lições de Outubro e também com Stalin, o grande organizador das derrotas. Cinco anos após a morte de Lênin, os escritos da Internacional Comunista sobre questões militares, etc. O HRR está mais focado na política, na relação entre o partido e as massas. No entanto, os capítulos que mais me interessam focalizar são aqueles que tratam das questões da estratégia, da passagem do plano político para o militar, embora sem perder de vista que a obra como um todo é um verdadeiro “afresco da revolução” onde Trotsky demonstra a força da política revolucionária sob certas condições (já apontamos em outros textos que a política revolucionária pode mover montanhas em certas ocasiões; ver Ciência e Arte da Política Revolucionária).[5] A política revolucionária não tem a mesma força em condições de revolução, de ascensão das massas, do que em condições obviamente não revolucionárias.
Lênin tem textos básicos de educação na política revolucionária, que são variados, mas têm elementos extremamente educativos e instrutivos do trabalho revolucionário. Por exemplo, Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920). O renegado Kautsky do mesmo ano tem muitos elementos de educação política, assim como O Estado e a Revolução, pensado de outro ponto de vista. Sobre a Revolução Alemã, de Pierre Broué, que foi historiador e não político, tem, no entanto, elementos importantíssimos de educação política dedicados à Revolução Alemã (1918-1923), debate que também atravessa o Lições de Outubro de Trotsky (1924).
Trata-se, sobretudo, de dar mais ferramentas à militância para os tempos que se avizinham (ou melhor, que já estão em curso): a reabertura da era de crises, guerras, revoluções, reação e barbárie que já vivemos neste novo cenário internacional, tendências históricas da época que já nos colocaram em “outro mundo” muito mais parecido com a primeira metade do século XX: tendências aos extremos, polarização, confrontos diretos entre classes, crise da mediação democrático-burguesa, regimes de extrema direita, confrontos com forças repressivas, derramamento de sangue etc.[6]
1- DA VIOLÊNCIA NAS PALAVRAS À VIOLÊNCIA NOS ATOS
A luta de classes internacional situa-se hoje em um novo cenário, para além das enormes diferenças em cada caso. O fundamental é que estamos em um cenário de confrontos de classe mais diretos, ainda que esse novo cenário esteja virado para a direita ou para a extrema direita.
Isso não anula os elementos de bipolaridade e agudo choque de classes. Analistas marxistas que veem apenas um polo, o da reação, mas negam o bipolo, o da resistência, da defesa ativa, da radicalização dos confrontos, de como a reação é confrontada nos quatro pontos cardeais do globo, são derrotistas.
Mesmo com um mundo girado politicamente para a direita nesta conjuntura, a radicalização dos confrontos pode acabar abrindo um processo de radicalização da vanguarda que não é em todos os casos dominado por correntes islâmicas como no Oriente Médio.
A luta contra Milei na Argentina é clássica e com o peso da esquerda (embora a classe operária propriamente dita – indústria – ainda esteja tendo dificuldade para entrar na luta), todas as instâncias “soviéticas” e de auto-organização são plenamente propostas, bem como treinar e moderar a militância diante do “protocolo antimotim” e do spray de pimenta, o confronto cara a cara com a política e a gendarmaria, etc. Aprender a desafiar os limites que a repressão quer impor (e que forças reformistas como os K querem internalizar. Não há nenhum milico e continuam marchando pela calçada…).
Note-se também que no Norte Ocidental há uma maior entrada da classe operária em cena, nos EUA e na Grã-Bretanha e Alemanha, por exemplo. No primeiro país há um processo de reorganização em curso, de retomada da experiência histórica da nossa classe e da juventude que não vou desenvolver aqui.
Há também o retorno de guerras clássicas, como na Ucrânia, e confrontos militares brutais que lembram os grandes feitos de emancipação nacional das décadas de 1950 e 1960 estão colocando as coisas em outro terreno: o do confronto direto de classe e militar (tendências para as quais devemos preparar política e praticamente nossa militância; aprender a militar em condições mais duras).
Tudo isso no contexto de que as tendências à radicalização da luta de classes encarnam a luta entre as tendências socialistas, pelo menos em alguns países como a Argentina, onde, em geral, a luta de tendências tem sido mais difícil (até porque os processos têm sido mais difíceis. Não esqueçamos que um país com peso histórico como a Argentina carrega o peso de 30.000 desaparecidos, 100 deles do antigo PST).[7]
Temos de aprender com as grandes revoluções, sem esquecer os limites que também existem em termos da radicalização da nova geração e da crise da alternativa socialista que ainda existe.
A HRR vai do mais objetivo até a mais subjetivo. Neste século 21, vivemos em um “mundo desorganizado” objetivamente. Acumulam-se elementos objetivos para os desenvolvimentos revolucionários, mas, de momento, as tendências de extrema-direita dominam por toda uma série de razões que não vamos desenvolver aqui (ver “Guia de Estudos sobre a Situação Mundial: Uma Nova Etapa Começou” e “Uma Luta de Classes Mais Radicalizada, um Desafio Redobrado para a Esquerda Revolucionária“, ambos textos no Izquierda Web).
Isso significa que os elementos subjetivos estão mais atrasados. No entanto, nas últimas duas décadas houve um acúmulo de experiências que as correntes derrotistas, desde o SU na Europa (a autoproclamada Quarta Internacional) à Resistência no Brasil, não veem, mas que necessariamente, pela lógica íntima das coisas, radicalizarão a luta de classes (já o está fazendo, em condições muito duras como as de Gaza ou mais leves na Argentina, por exemplo).
Como acabamos de apontar, no HRR Trotsky vai dos elementos mais objetivos aos mais subjetivos. Se crises, guerras, revoluções, barbárie e reação se desenvolvem, as coisas podem caminhar para a desmoralização ou radicalização, ou uma dialética simultânea em ambas as direções em diferentes setores. De qualquer forma, é somente a partir dessa radicalização que o partido e as correntes revolucionárias, os organismos do tipo “soviético”, as coordenadoras etc., todos os elementos de subjetividade da classe trabalhadora englobados em geral, começam cada vez mais a se esculpir. E é só então que a política define os desenvolvimentos. Isso dito assim, no entanto, também é mecânico, porque o partido revolucionário tem que intervir intensamente na formação dessa radicalização.
Estão sendo gerados “paralelogramas de forças” onde, se o partido revolucionário está à frente do processo, pode fazer a diferença, uma diferença astronômica.[8]
Ressaltemos: nem sempre define a política. É necessário utilizar o conceito de “paralelogramo de forças” para compreender o encadeamento da ação – política e física – revolucionária. Por exemplo, no Volume II do HRR, seu último capítulo, que consideramos o mais importante da obra do ponto de vista estratégico, que trata da “arte da insurreição”.
Se estamos falando de uma insurreição, é porque há condições para tomar o poder. Para chegar a esse estágio e não ser um delírio esquerdista, os outros fatores têm que estar presentes: a crise, as formas soviéticas, uma maioria política na parte mais concentrada da classe e do partido.
Quando esses elementos estão definidos, avançados, podemos ir diretamente para os problemas estratégicos, que são a passagem da política para a ação. Isso acontece não só na revolução; também em qualquer ação que tenha certas proporções, como o confronto de fevereiro na Argentina contra a Lei Omnibus ou a ocupação da ponte rolante na Gestamp.
Se nos referirmos ao aspecto macro da revolução, há o mau exemplo de Smilga quando, nas Jornadas de Julho, afirma prematuramente que é tempo de “travar a batalha decisiva para além dos altos e baixos da política…“. O que ele quis dizer com isso? Que a política não importava, que não importava se a vanguarda de massas e as massas estavam prontas para dar esse passo, se o partido não tinha anuência suficiente para agir: um erro completo. Ocorre que, para chegarmos a esse ponto em que já estamos “para além da política”, todos os outros fatores precisam ser dados.
No Volume I há um movimento do objetivo para o subjetivo, mas os sovietes estão em vigor desde a Revolução de Fevereiro. Dessa forma, é “mais fácil”: partindo do duplo poder, vamos para o soviete discutir política. Já no Volume II há os elementos mais subjetivos da experiência revolucionária, todos os elementos estratégicos aparecem.
De qualquer forma, não vamos nos apressar com este último. Vamos dar um passo de cada vez em nossa avaliação do HRR.
2- POLÍTICA REVOLUCIONÁRIA COMO “CARNE E SANGUE”
O segundo ponto que queremos destacar é o valor geral da obra de Trotsky. Ele consegue uma espécie de “façanha”; É uma obra de história atípica. É um texto histórico-político, que não se sabe exatamente o que é, certamente não é uma obra de história tradicional. É uma tentativa de Trotsky de compilar registros detalhados das lições da Revolução Russa; Um “resumo” dos debates político-estratégicos do marxismo, do que tem a ver com a nossa prática, com a nossa ação, processada no calor da maior revolução da história.
Vamos imaginar que temos um tesouro e queremos compartilhá-lo com as gerações futuras. Lênin morre, Trotsky é um pouco mais jovem; Ele tem um tesouro em suas mãos e quer compartilhá-lo porque é uma experiência histórica muito rica e colossal. Além disso, infelizmente, deve evitar que essa experiência, esse tesouro, seja totalmente falsificado e esvaziado pelo stalinismo. Como ator principal da revolução, sua experiência o torna ainda mais adequado para compartilhá-la.[9]
Então, sua HRR é a preocupação de Trotsky em compartilhar as lições e tesouros contidos na maior revolução sociopolítica da história da humanidade, esse é o valor que tem, essa é a motivação. Como ele quer compartilhar tanto a experiência histórica quanto as conclusões, as generalizações dessa experiência, então ele escreve um texto que é metade histórico e metade teórico, onde os elementos teóricos são registrados em torno do calendário da revolução. Não são capítulos teóricos, são geralmente capítulos históricos, são escritos em carne e sangue, como toda verdadeira política revolucionária.
Eles estão tão ligados à experiência que dificilmente podem ser demonstrados fora da experiência.[10] Esta obra de Trotsky, como disse Milcíades Peña, com seu alcance, com sua ambição, é uma das maiores obras do marxismo revolucionário do século XX. Tem, para exagerar um pouco, a monumentalidade de O Capital de Marx.
Mas se você ler qualquer capítulo de O Capital verá que ele é muito sobre categorias e categorias, mesmo que seja atravessado pela experiência (também é magistralmente permeado por carne e sangue, além de ter uma penetração impressionante).[11] Trotsky usa categorias, mas em torno de uma narrativa histórica, porque ele também tenta defender um legado político contra o stalinismo: essa é a ambição particular desta obra.
É também como se Trotsky tivesse dito: “Começarei a escrever isto antes que se esfumace”, antes que se apagasse a impressão gráfica dos fatos – ele a terminou em 1932, escreveu-a em três anos (1929-1932 o primeiro volume; o segundo apareceu em 1933). Parece que Trotsky escreveu como se fosse “sobre papiros” – é o que diz um de seus secretários. Ou seja, ele ditava, tinha secretários, mas quando começou a corrigir fez um pergaminho inteiro como se fosse um papiro babilônico. “Como se fosse uma bíblia sem fim”, diz o secretário Jean van Heijenoort.[12]
Há capítulos de HRR que podem ser chatos, mas há muitos que prendem como se fosse uma obra literária, é claro que Trotsky é também, junto com Engels, uma das principais “canetas” do marxismo revolucionário. Marx e Lênin escrevem com enorme estrutura e solidez, mas com menos “suavidade”, por assim dizer. Contém um retrato psicológico, sociocultural, brilhante de alguns atores. Mas de repente – o que não é muito bom pedagogicamente falando – chega à parte teórica como “sem aviso”, no meio da história cativante, e aí você tem que começar a fichar, a estudar; vários capítulos estão repletos de teorização.
Há também na HRR uma grande história comparada das revoluções, o que é muito difícil porque as revoluções são processos muito complexos, “diabólicos”. Acima de tudo, temos dificuldade em compreender revoluções que estão fora da nossa própria experiência histórica; um amigo me disse com veemência que “temos dificuldade de entender o século XIX, e a mesma coisa acontece comigo pessoalmente com a Revolução Francesa: não é tão fácil de entender ou conceituar.[13] É mais fácil pensarmos em revolução em termos de proletariado-burguesia-campesinato-imperialismo-classes médias, mas em termos de aristocracia-burguesia-terceiro estado, é mais difícil”. No entanto, as revoluções inglesa e francesa estão muito bem sintetizadas na obra.
- A ENTRADA DAS GRANDES MASSAS NA VIDA POLÍTICA
Trotsky tem muito cuidado e sutileza ao combinar os fatores objetivos e subjetivos da revolução. Aqui entra um elemento que é muito finito, mas muito importante: Trotsky escreve esta obra não como um doutrinador, mas como um revolucionário que sabe que, em primeiro lugar, a revolução é obra da experiência das grandes massas. A preocupação dele com a questão partidária, que é fundamental, a coloca aí, ele não vê como um fator que vem de fora, remotamente controlado. Nessa obra das grandes massas é que o partido – incluindo a personalidade de Lênin – adquire toda a sua relevância estratégica e histórica, todo o seu caráter decisivo (Trotsky é brilhante na compreensão materialista e dialética do papel da personalidade na história).[14] Quando a pena é quem inclina a balança, é porque a balança está lá, e a balança é o fazer das massas na revolução. Revolução significa que as massas tomam seu destino em suas próprias mãos, entrando na vida política.
E, no entanto, essa “pena” é um fator ativo em cada um dos elos e na própria revolução; um fator decisivo na história das revoluções contemporâneas.[15] E esse fator é o partido revolucionário: não há revoluções que ocorram sozinhas, ou, pelo menos, onde a classe explorada tome o poder sozinha. Mesmo que partidos burocráticos tomem o poder, bem, eles são partidos ou organizações burocráticas; Nesse caso, a revolução será anticapitalista, mas não socialista. Só no caso da Comuna de Paris houve uma revolução triunfante – efemeramente – sem uma direção partidária adequada.[16] Sem partido ou partidos revolucionários, não há revolução. Não há sociologismo nisso. Muito menos existem “revoluções socialistas objetivas”, porque o fator subjetivo da vanguarda revolucionária de classe, as tendências revolucionárias e os órgãos de duplo poder da classe, são decisivos. Sem a classe operária não há revolução socialista, algo que repetimos ad nauseam desde a formação da nossa corrente, há mais de vinte anos (ver “Crítica às revoluções socialistas ‘objetivas’).
Quando comentamos o que os colegas de trabalho discutem, o diálogo diário deles pode ser sobre futebol, salários, família, fábrica, etc. Bem, não são massas entrando na vida política, como podemos ver diariamente quando não há situações revolucionárias. As massas que entram na vida política são o que Natalia Sedova descreve em A Vida e a morte de Leon Trotsky, onde ela diz que foram morar em um pequeno apartamento quando chegaram a Petrogrado, e não conseguiram dormir porque o quarto dava para a rua e na rua havia muita gente falando até às três da manhã sobre a revolução, do soviete, de Lênin: a atmosfera estava hiperpolitizada.
Isso se vê um pouco na rebelião popular, que também tem elementos que nos permitem pensar e fazer a experiência. Mas a revolução (assim como de certa forma a reação e a contrarrevolução, As Fúrias, Arno Mayer), mesmo com seus altos e baixos, é um momento de fúria, é como se houvesse milhões de pessoas, por dias e dias, entrando e saindo da Capital Federal. Os líderes bolcheviques se revezavam para falar às massas.
Veio Zinoviev à “ágora” – um grande orador, mas um oportunista – depois veio Trotsky, depois Lenin e assim por diante (Lenin e Trotsky dividiram o colchão para dormir nos dias “soviéticos” de fúria revolucionária). Os sovietes eram como um teatro onde havia sempre milhares de pessoas na plateia, havia uma “performance” o tempo todo. Assim como podemos lembrar aqui a imagem gelada e contrastante da contrarrevolução stalinista, com a praça completamente vazia, como apontaram Rosa e Rakovsky, quando a praça está vazia o único elemento ativo é a burocracia.
Na introdução da obra, Trotsky diz que “a característica mais marcante de uma revolução é a entrada das grandes massas na vida política“. Desde o primeiro dia, para além dos milhares de problemas estratégicos e da decisiva ação e reação dialética entre o partido, a minoria, a maioria, etc., a revolução é uma revolta de massas, uma fúria de massas, que dura um longo período. Quando as massas entram na revolução é muito difícil tirá-las daí. Por isso a burocracia toma cuidado como que para não fazer xixi na cama, para que não haja transbordamentos. Depois vêm todas as outras discussões: temos falado muito sobre revolução e não tanto sobre contrarrevolução: o que acontece quando as massas saem de cena…
Trotsky tem muitos textos muito valiosos, mas esta é uma de suas obras mais ambiciosas, juntamente com uma distinta, mas extremamente matizada, que é A Revolução Traída; é muito menor em tamanho, mas para além dos limites históricos, tem grande precisão e está à esquerda do trotskismo mais tradicional, que configurou uma espécie de giro à direita em relação ao próprio Trotsky.[17] A revolução permanente é um pouco seca porque é uma síntese, é uma teoria da revolução em um ponto alto de abstração. A obra da qual nos ocupamos aqui é mais do que teoria, é um “tratado” sobre política revolucionária cheio de vida.
4- MASSAS, VANGUARDA E PARTIDO
Em termos de teorização, há uma inter-relação entre política revolucionária, estratégia, guerra e partido como formas de expressar nossa ação. A política revolucionária como arte de conquistar as massas; a estratégia como os passos para o poder; a guerra como passagem para o lado prático-físico da coisa: guerra, guerra civil, insurreição. E o partido como a mais difícil, a menos objetiva, a mais abstrata… e a coisa mais difícil de construir. A organização revolucionária aparece com graus crescentes de necessidade em cada um dos elos do processo revolucionário, nesse sentido a imagem da “pena” que decide as coisas em última instância é enganosa: menospreza a importância estratégica do partido revolucionário.
A ideia de partido aparece muitas vezes como uma abstração, porque a globalidade, a universalidade, que é o que caracteriza o partido em matéria política, é sempre mais complexa, é uma dupla decantação ou uma dupla destilação, dos amplos setores das massas, para a vanguarda, para o partido. A consciência de classe e socialista é de “segundo nível”, ou seja, é um trabalho sobre a consciência popular espontânea.[18] Sempre haverá mais gente no Comitê Militar Revolucionário ou na Guarda Vermelha do que no partido, porque é mais abstrato, menos imediato, o que o camarada menos entenderá: “Por que eu vou para o partido se o sindicato está lá? Por que vou à disputa se está lá a coordenação?” Isso é uma lei.
Isso é importante para a compreensão da sistematização histórica. A política, a estratégia, a guerra, surgem da interação entre as classes, a vanguarda e o partido. A teorização da interação entre o partido e as massas é política revolucionária. A ciência e a arte da política revolucionária é a reflexão sobre a experiência da nossa ação, da nossa inter-relação com o movimento de massas e com a vanguarda (fusão, como Lênin chega a dizer, que nada tem a ver com seguidismo ou dissolução; é uma fusão no mais alto nível da ação organizadora e da consciência da vanguarda de massas: o nível da revolução. Militamos todos os dias, mas em geral refletimos pouco sobre as nossas próprias ações. E essa obra de Trotsky nos ajuda a refletir sobre a ação coletiva do partido em condições revolucionárias, e de fato, em qualquer condição, tanto para os grandes quanto para os pequenos).[19]
Quando Trotsky, no capítulo “A Arte da Insurreição“, começa com a dialética entre revolução, insurreição e conspiração, há todo um jogo de inter-relações que remete à tomada do poder. Este capítulo começa teoricamente decompondo esses elementos. E o debate que se travou com o kautskyismo (passivante) e o anarquismo (espontaneísmo), e a síntese do bolchevismo nesses termos.
Pensemos nessa palavra, inter-relação. Em primeiro lugar, há várias classes nas massas: a classe operária, o campesinato, os soldados, etc. Em segundo lugar, há a vanguarda e a vanguarda das massas, a do campesinato e a da própria classe operária, das classes médias, etc. Terceiro, o próprio partido tem setores avançados e setores atrasados. É um jogo de inter-relações e pressões: o partido e sua direção, seus quadros, suas fileiras, os setores avançados, os setores soviéticos do proletariado, a classe operária em geral, o campesinato.
Se fôssemos considerar apenas o partido e as massas, sem o elo intermediário da vanguarda e da vanguarda das massas (que é aquela que tem que ser combatida com unhas e dentes com o resto das tendências se quisermos ser líderes),[20] seria uma abstração total, se assim fosse, seria muito fácil fazer uma revolução. Mas é mais complexo. Esse jogo de inter-relações expressa dois tipos de correlações:
1) Correlações de classe social: Cada classe expressa um programa com nuances diferentes. O campesinato não dá a mínima para o problema dos salários, ele se preocupa com a propriedade da terra; É uma classe muito variada e de estratos, mas não tem um programa socialista: quer a propriedade, não abolí-la. E o proletariado se preocupa em acabar com a exploração do trabalho, o controle operário e, no limite, acabar com todas as formas de propriedade. As nacionalidades preocupam-se com o direito à autodeterminação. E os soldados se preocupam com a paz.[21]
2) Correlações políticas: Há operários e operárias avançados e outros atrasados. Há operários e operárias que foram impactados pela geração da pequena burguesia e há operários e operárias que foram radicalizados. Isso também é profundo. Há uma frase muito importante de Trotsky que marca o elemento central do fator subjetivo na inter-relação com a objetividade das coisas: o bolchevismo criou seu próprio meio.[22] Lênin era zeloso em impedir que as ideias da pequena burguesia entrassem e infectassem o partido. Não fala em “criar seu meio social” no sentido de construir uma seita; ele está falando em evitar que o partido seja contaminado por representações pequeno-burguesas do mundo (e é por isso que a elaboração teórica independente, e não apenas a elaboração teórica universitária, é tão importante).[23]
Então, há várias classes exploradas e oprimidas, não apenas uma, e há a burguesia, há a camada burocrática pequeno-burguesa que os reformistas construíram. Há os problemas sociais e também os problemas políticos e a representação do mundo. Tudo isso é uma correlação complexa na revolução, sem esquecer que, além das classes exploradas, as classes dominantes também estão atuando. É como um magma, uma espécie de lava ou fermento em que agem todas as determinações sociopolíticas, inclusive as internacionais. É nesse nível de complexidade que o partido é introduzido como fator ativo e criativo, como aponta Gramsci (a história como política em ação e o(s) partido(s) revolucionário(s) como fatores ultra-relevantes nessa história).
Assim, voltamos à relação entre o partido, a vanguarda e a classe (vou insistir nisso, que em geral nos tem ficado um pouco débil).[24] Entre o partido, a vanguarda e a classe. Entre o partido, a vanguarda, seus organismos e a classe. Entre o partido, a vanguarda, suas organizações e as demais classes exploradas. Entre o partido, a vanguarda, seus organismos, as classes exploradas e as classes dominantes. Entre tudo isso e o imperialismo. Num arco-íris de determinações, a política desenrola-se como num filme: o governo provisório da Revolução Russa fez concessões, as coisas foram conquistadas, houve até grandes conquistas. Mas quando há duplo poder, cuidado, porque o governo usa essas conquistas – que de qualquer forma não resolvem o essencial – para escamotear o duplo poder e salvar o Estado burguês. Toda a arte da política revolucionária, a relação com as massas e a vanguarda, é uma manifestação diabólica de imensa complexidade, porque a política é um jogo de inter-relações, e é também um jogo de nuances de opinião.
A política revolucionária tem essa complexidade porque tem que encontrar duas coordenadas: a coordenada de classe e a coordenada revolucionária. Não se trata apenas da coordenada de classe, porque pode haver um governo de classe reformista, e também há o sindicalismo. Independência de classe não é o mesmo que o revolucionário.[25]
Mas a coordenada da revolução não poderia existir sem a coordenada de classe: isto é, populismo, ações radicalizadas, até ultraesquerdistas, lado a lado com a conciliação de classes. Trata-se de encontrar em cada momento dos acontecimentos o ponto exato da inter-relação entre a coordenada de classe e a coordenada revolucionária. Entre a posição de classe da sua política e aquele ponto que não é a revolução, mas está sempre um milímetro à frente da realidade, o que permite que você tenha consignas de transição, porque se não, vai para o outro lado.[26] O ponto certo de ruptura com o status quo: é essencialmente disso que se trata a política revolucionária.
5- O “REALISMO REVOLUCIONÁRIO”[27]
Isso se refere ao que Trotsky diz no capítulo “Os bolcheviques e os sovietes“, e que ele repete[28] de várias maneiras diferentes: que a política de Lênin é uma escola de realismo revolucionário.
A política revolucionária não é coisa de tubo de ensaio, mas acompanha a experiência das massas e da vanguarda. A política é realista quando parte das determinações da realidade, das necessidades da realidade e da experiência real das massas e da vanguarda em cada momento de seu desenvolvimento. Desse ponto de vista não é ultraesquerdista, a política de Lênin é realista e revolucionária porque ele nunca perde de vista o terreno real da necessidade. Por exemplo: o problema das massas não pode ser resolvido sem acabar com a guerra; nunca em todo o 1917 podemos perder de vista que a guerra deve acabar. Trotsky diz que a escola de Lênin não é “explodir balões coloridos“, é o oposto da demagogia política: é dizer às massas e à vanguarda o que é real. Ele ressalta que uma das coisas do stalinismo que mais aviltou a política revolucionária foi começar a dizer qualquer abobrinha e mentir. Temos de ser honestos, não demagogos.
Há aqui várias determinações, como estar disposto a permanecer em minoria, que não é a pretensão de ser minoria: é a capacidade de ser minoria hoje para ser maioria amanhã, porque se está agarrado às determinações mais profundas.[29] O que as massas não entendem hoje, podem vir a entender amanhã. O caráter realista da política de Lênin faz com que ela adquira força material porque expressa, na política e nas consignas, elementos que devem ganhar força material.
Aqui podemos acrescentar algo mais que Trotsky aponta em suas biografias inacabadas de Lênin, e também Ernest Bloch em O Princípio da esperança: o realismo de Lênin é um realismo imaginativo, uma imaginação realista. É “representar o mundo” transformado, mas partindo das determinações da realidade. A realidade é, mas podemos transformá-la. Esse é o elemento ativo do marxismo, o lado ativo do pensamento que Lênin redescobriu quando estudou a Ciência da Lógica de Hegel em 1914/15 (“o pensamento não apenas representa o mundo, mas o cria“, diz mais ou menos Lenin em uma conhecida observação à obra de Hegel).
O capítulo “Os bolcheviques e os sovietes” tem várias coisas: a capacidade de ver os giros políticos, a capacidade de garantir que as palavras de ordem não fiquem à reboque dos acontecimentos, porque as tarefas são direcionadas para o momento certo, não em qualquer momento. A política revolucionária é afiada, se não for afiada não é revolucionária, embora ser afiada não signifique “cuspir” loucuras.
Trotsky insiste que o caráter realista da política leninista é que ela se apoia nas necessidades materiais e ataca no momento certo, encontrando uma formulação que não está a dez mil quilômetros de distância da experiência das massas, mas que tampouco planeie, ou seja, que não fique atrás ou ao lado, mas um milímetro à frente.[30]
Não é uma política ultraesquerdista ou subjetivista, não é um capricho. Também não é objetivista, oportunista, não vai “com a corrente” (a não ser em condições revolucionárias, quando quem vai contra a corrente são os reformistas). É realista, é implacável. Responde de forma revolucionária e, se encontrar aliados pelo caminho, tudo bem, e se não, também. É objetiva.
Ademais é um diálogo, é encontrar a formulação que responda às necessidades, e nessa base dialogar sempre com a experiência das massas e da vanguarda. Não é laboratorial, mesmo a própria formulação de consignas em geral não é inventada pelo partido, encontra-se na nossa própria experiência; quando há um ascenso, às vezes a consigna é formulada pelas massas e o partido a assume, porque a formulam de forma mais concreta.
Aqui é interessante fazer uma observação sobre as consignas transitórias: elas são sempre uma mistura de tarefas e organização. Não é o “encontrar a consigna certa” do morenísmo, que perdia o elemento organizador. Em toda política revolucionária há um elemento organizador (auto-organizado) da vanguarda e do próprio partido. Sem o elemento auto-organizador não há política revolucionária. Porque, a certa altura, a política revolucionária responde sempre a uma necessidade que, ao mesmo tempo, questiona o status quo até certo ponto, ainda que vá um milímetro mais longe; transborda.
6- O PARTIDO COMO FERRAMENTA COMBATIVA
No primeiro capítulo do segundo volume de HRR há um elemento muito importante de acordo com o que temos apontado: “a política revolucionária é realista e combativa“, militante; é ativo, não passivo. Combativo é isso, e acho que Trotsky diz isso em algum lugar: nas avaliações do bolchevismo, o partido nunca está fora da equação. Recentemente, em um conflito, houve um debate: “Não há condições, a greve está derrotada, é isso, vamos levantar”. O partido disse “não sei, vamos fazer a experiência”. Também não devemos fazer loucuras[31], mas devemos entender que as relações de poder, no final, são medidas em ação. E a ação do próprio partido é um elemento da realidade, não devemos fazer uma leitura objetivista da realidade deixando o partido fora da equação. Mais uma vez, apontamos que a ideia do partido como uma organização que “inclina a balança apenas no final da revolução” é uma falsa ideia que perde de vista o fato de que o partido faz parte da equação revolucionária em todos os momentos de seu desenvolvimento (além do fato de que seu peso e sua capacidade de inclinar a balança são diferentes de acordo com as circunstâncias e de acordo com sua magnitude).
Quando o partido, nos níveis macro e micro, é um fator com certo peso, nem o partido nem a ação podem ficar de fora da equação. Não é possível avaliar se a correlação de forças é boa ou não, se o esforço e a ação do partido não são somados. Se se vê o partido como um fator externo, passivo, diletante, que apenas comenta a realidade, então ele não é colocado como um elemento da equação.
Deve haver condições, claro, não estamos fazendo uma teoria blanquista da revolução. Mas o partido é um fator combativo porque é um elemento ativo na equação da correlação de forças. A totalidade social combina elementos objetivos e subjetivos, e os elementos subjetivos adquirem, em certas circunstâncias, uma brutal objetividade, podendo modificar o resultado. Um derrotista vai dizer: “Ah, viram, perdemos de qualquer maneira”, mas não se sabia se estava perdido de qualquer maneira. Isso vale para a revolução, mas também para a tomada de fábricas: como na guerra, você não sabe como um conflito vai terminar até que a ação seja iniciada.[32]
Vivemos algo assim na famosa greve do Crónica de 2005 contra as demissões.[33] Estivemos ali muitas noites, havia vários camaradas no quinto andar, subíamos a comida com corda, havia bate-paus da patronal, os militantes que acompanhavam a luta dormiam no salão… E bem, os trabalhadores, no quinto ou sexto dia, dizem: “Camaradas, não aguentamos mais, vamos descer”, e desceram por volta das quatro da manhã… Não sei por que não saímos. E às sete horas abriram-se as portas, e todos entraram para trabalhar; eles reintegraram os que haviam sido demitidos. Como se explica isso? Dez anos depois, todos foram demitidos, mas ganhamos mais dez anos de trabalho, o que não é pouca coisa. A moral: é difícil lidar com conflitos e não há necessidade de fazer teorias ultraesquerdistas ou oportunistas, mas o partido, em geral, tende a empurrar a ação mais longe um conflito, na disputa com a burocracia que sempre busca freá-lo.
Dizemos “em geral” porque às vezes há que desacelerar se no calor da luta se pode cometer uma ultrada. Os bolcheviques tentaram impedir as Jornadas de Julho, nas quais não havia condições de se lançar ao poder. A política revolucionária não é oportunista nem sectária: é revolucionária, ajustada às necessidades do momento.
Não dá para deixar o partido de fora da equação, porque aí se tira toda a espessura militante. Kautsky, ao contrário, dizia que “o Partido Social-Democrata é um partido revolucionário, mas não um partido que faz revoluções“. Ah, olha para isso. As ideias dos revisionistas eram profundas, não são bobagens: um partido revolucionário que não faz revoluções. Somos um partido que quer fazer revoluções, junto com as massas e a vanguarda.
O partido kautskyano que não faz revoluções, tem quarenta imprensas, obtêm milhões de votos, reúne milhões, mas fica fora da equação da greve de massas, por exemplo (era um partido reformista, claro). O partido revolucionário, que faz revoluções ou pretende fazê-las, está nos piquetes de greve da vanguarda e das massas; está na linha de frente. Isso torna o aspecto combativo, militante, ativo, junto com o outro aspecto, o realista. Não somos loucos ou ultraesquerdistas, somos combativos, não somos oportunistas ou diletantes. Vemos o partido como um fator ativo na equação.
Existem três concepções: uma é a concepção kautskiana passiva de revolução, onde a palavra “maioria” é usada para capitular, é usada de maneira formal, doutrinária, onde tem que haver uma maioria que vote em um plebiscito. Mas a maioria também se encontra na ação, não só nos órgãos representativos.
Na outra ponta temos Blanqui. A ideia do blanquismo é a revolução puramente conspiratória, um grupo conspiratório separado das massas. Hal Draper diz que Marx falava bem dele; não concordava com a ideia conspiratória tout court da revolução – para Marx, como sabemos, a revolução é obra das grandes massas –, mas justificava o lado revolucionário de Blanqui, o fato de que ele queria fazer revolução.[34] Assim como o irmão mais velho de Lênin, que foi executado pelo regime dos czares. Muito de Lênin, de sua ação, de seu compromisso e do partido bolchevique, também vem da experiência conspiratória blanquista e de seu irmão populista, que de forma equivocada, mas muito corajosa, lutou para derrubar o czar.
Por último, o marxismo revolucionário aspira a liderar as grandes massas, mas romper revolucionariamente com a ordem das coisas, fazer revolução: somos um partido que quer fazer revoluções. Então é combativo, militante, não é contemplativo. Lembremos as teses sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram nada além de interpretar o mundo, mas trata-se de transformá-lo“. Também o que Rosa diz: “Não se trata apenas de ganhar a mente do trabalhador, mas de conseguir que mova a mão“. Quando você tem que agir, você tem que agir! É um teste: 2001, 2017, Gestamp, Minetti; Diante da primeira lei omnibus, em fevereiro deste ano, etc.
Se há que se tomar um curso ativo, prático, físico, eficaz, tem que se fazer! (Embora nunca esqueçamos que o lado prático-físico das coisas sempre depende da política; a política está no comando. Nesse sentido, ver “A Política como Arte Estratégica“, Esquerda Web). Porque é também a prova de que o partido tem reflexos, que não é puramente discursivo, pura fala; isso é determinado pelo calor da luta de classes à medida que ela se torna mais radical, mais exigente, mais dura. Você não precisa ser Lenin e Trotsky, não é isso: nós nos colocamos à prova todo santo dia, e se quando temos que agir não o fazemos, é gravíssimo.
Isso tem a ver com o caráter militante da organização. E também com outra questão, que é a gestão dos tempos, não é a mesma coisa se passamos à ação hoje ao invés de amanhã, especialmente na insurreição. Trotsky diz que a política revolucionária é um problema de dias, semanas ou no máximo meses, e isso se aplica não apenas à insurreição, mas também a qualquer conflito? “Bem, nos jogamos agora ou nunca nos jogaremos“. Tomamos os tempos em política, deixaste o momento passar e deixaste passar a revolução.
Há um texto horrível de Plekhanov que, incrivelmente, muitos marxistas até hoje reivindicam, O Lugar do Homem na História, é uma porcaria. É a teoria objetivista de que se um vaso de flores caísse e quebrasse a cabeça de Robespierre, qualquer outra pessoa tomaria seu lugar. Deutscher o cita no terceiro volume da trilogia O Profeta Banido para criticar Trotsky, ou seja, se caísse um vaso na cabeça de Lênin, qualquer outra pessoa poderia tê-lo substituído. Trotsky diz que não, que naquele momento histórico, naquela encruzilhada, se um vaso de flores caísse sobre a cabeça de Lênin, possivelmente toda a história do século XX teria sido diferente… Trotsky parece subjetivista, mas não o é: centrou-se na correlação histórica objetiva, o caráter ativista e militante do partido é um elemento decisivo.[36]
Se não, a política não faz sentido, por que fazemos política se tudo se faz sozinho? Em Abril e Outubro, Lênin empurrava e empurrava, exigia e exigia, advertia que podiam perder o momento da revolução, ela estava com uma ansiedade terrível porque naquele momento ninguém lhe dava a mínima bola.[37]
7- A FORÇA ESTRATÉGICA DA POLÍTICA BOLCHEVIQUE
Trotsky escreve: “A imprensa partidária não exagerou nos fatos, não tentou distorcer a correlação de forças, não tentou se impor aos gritos. A escola de Lênin era uma escola de realismo revolucionário, e os dados da imprensa bolchevique de 1917 revelam-se nos documentos da época incomparavelmente mais verdadeiros do que os dos outros jornais. A veracidade provinha da força revolucionária do bolchevismo, mas ao mesmo tempo consolidava essa força.” E então ele diz: “A renúncia a essa tradição constituiu posteriormente uma das piores características do stalinismo“.
O que Trotsky está dizendo aqui é que o fato de as massas não terem uma consciência totalmente revolucionária não significa que sejam idiotas. Se há uma mentira na imprensa, um exagero, isso tira a credibilidade da política, inclusive da política revolucionária.
E falando da desproporção entre política e aparato, ele diz: “Consignas que respondem às necessidades agudas de uma classe e de uma época se criam através de milhares de canais“. Estamos falando de condições revolucionárias e de um partido que tem influência de massas; se temos a política certa e somos 600, não é a mesma coisa, temos que ser objetivos (temos que nos construir!). Tudo o que é dito nesta obra são leis universais, mas que pressupõem proporções. Trotsky fala de um partido como os bolcheviques, em plena revolução, com um aparato minúsculo, mas que já tinha elementos de um partido de massas. Embora o aparato fosse minúsculo, afirmava-se com a força de sua política e de sua organização (que não é a mesma do aparato).
Este capítulo de “Os bolcheviques e os sovietes” contém esta ideia: “Não somos charlatães, temos que nos basear apenas na consciência das massas, não importa que nos vejamos relegados à minoria. A política bolchevique em sua totalidade nos parece a antítese direta da demagogia e do aventureirismo.”
“Os bolcheviques têm perfeita consciência de que a força se acumula na luta, não a evita passivamente.” Isso nos remete a uma discussão mais global dos primeiros vinte anos do século 20, quando, segundo a concepção do kautskyismo na social-democracia alemã, a greve geral só poderia ser usada se houvesse um golpe de Estado, nada mais. Era preciso “conservar” as forças e não jogá-las na ação…[38]
É um debate que anda de mãos dadas com uma interpretação errada do testamento de Engels. O texto estava mutilado, e é um pouco “ingênuo” também, esclareço. A ideia é manter uma postura puramente defensiva em relação às conquistas do partido. Vamos pensar em um partido pequeno, com quinhentos ou seiscentos filiados. Deve ser preservado? Claro que a gente tem que cuidar disso, não ser irresponsável. Mas apenas mantê-lo, sem testá-lo em ação? Como você tensiona o músculo, como se forma, como você treina seu ofício? Não há como aprender a nadar sem pular na piscina, as aulas teóricas de natação são estúpidas. Se é um partido revolucionário, não só o preservamos, há que fazê-lo exercitar-se.
No dia 14 de dezembro de 2017, quando queríamos voltar para a Plaza Congreso, as pessoas achavam que éramos loucos, ninguém queria voltar. Cruzamos a Praça correndo, “como vamos voltar se já saímos?”, e não, não tínhamos saído, era uma questão de dar a volta e voltar, como é que íamos deixar a polícia nos ver fugindo se havia condições de voltar? (Há que se ter muita seriedade quando da avaliação dessas condições.) [39] Bem, no dia 18 passamos por cima, fomos os últimos a sair da Praça do Congresso quando ocorreu a repressão, nos portamos super bem, alguns companheiros se machucaram um pouco, tivemos cinco presos, mas foi extraordinário como aprendizado![40]
É claro que se há mortes em uma ação é um problemão. Há que tratar de evitá-las. Em tudo, especialmente na vida política, há proporções. Fazer a experiência, testar o partido, sacudi-lo um pouco, que se acostume com o gás, que chupe limões. Mas também devemos cuidar do partido e de sua militância, não o levar a uma emboscada gratuitamente, não ser irresponsáveis. Sempre fomos uma corrente muito responsável nesse sentido; cuidamos e valorizamos cada militante, não somos aparatos. Saímos em dezembro de 2017 com cinco presos e algumas contusões, está perfeito. Sair com mortos, nesse caso, teria sido um delírio, pode ser que em outro caso não o seja (quando é inevitável apesar de tomarmos todos os cuidados!). No Argentinazo também não tivemos nenhuma morte do partido, mas poderíamos ter tido por causa de alguma bala perdida.[41] Na vida política há proporções relativas dependendo da magnitude das coisas em jogo.
8- DAS PALAVRAS AOS ATOS
A arte da política é a arte da representação. Passamos da política à insurreição quando dirigimos as massas e a vanguarda das massas. A arte da insurreição é a arte de estapear a cara do inimigo. Não é a arte da representação, é a arte da ação física, ilegal, material. Como dizia Clausewitz, a arte de quebrar a vontade do inimigo. Não é convencer o patrão a nos dar um aumento salarial, ou a suspender as demissões, é ocupar a fábrica e dizer “se você não ceder, vamos jogar seu filho do telhado”, como fizeram os trabalhadores de Matarazzo nos anos 1970. A arte da política é a arte de conquistar a maioria dos operários da fábrica, de entrar em relações com os companheiros de trabalho. A arte da guerra civil, da insurreição, é o plano em que se passa da política para as relações físicas. É quando seu parceiro lhe diz “você já falou comigo pelos cotovelos, estão todos convencidos, agora me diga o que precisa ser feito!”
Os trabalhadores não te dão bola em 5 dos 365 dias do ano. E quando chega a hora da ação, eles dizem “me diga o que fazer”, e somos pegos de surpresa; estamos tão acostumados a falar, que na hora de agir, as coisas ficam mais difíceis, mais exigentes.
“O que mais vocês querem? Vão e tomem o poder!“, diz Lênin no início de outubro. “Já temos a maioria do Soviete de Petrogrado, a maioria do Soviete de Moscou, os tipos de Governo Provisório já estão pegando fogo, há condições internacionais: o que mais querem?” O partido é testado quando deixa de ser puramente parlamentar, diletante, e passa à ação. E essa é a passagem da política para a insurreição, para a ação física; como disse Clausewitz, é a continuação da política por outros meios.
Não só no caso de revolução ou insurreição, mas também quando é hora de uma mobilização revolucionária diante da repressão, ou um exemplo simples como uma ocupação de fábrica, onde naturalmente entra o caráter conspiratório: se você vai ocupar a fábrica, não vai sair por aí dizendo aos patrões. Novamente, vamos pensar na ocupação das fábricas, porque isso é algo que se aplica a todas elas. Você tem que fazer certo, você não pode fazer isso loucamente. In extremis fomos para a ponte rolante, gostaria de ter tido o apoio dos camaradas: quer-se ganhar a luta, não perdê-la obviamente.
A passagem para a insurreição, nas condições da revolução, é como qualquer passagem para a ação quando as coordenadas políticas, de classe, de vanguarda, de massas do setor que você dirige já estão estabelecidas e o camarada pergunta ao partido: “O que fazemos agora?” Por exemplo, em Minetti, colocou-se o problema de como restaurar a eletricidade (é um moinho de farinha que foi ocupado por seus trabalhadores anos atrás, uma luta na qual nosso partido teve um papel fundamental). Tivemos uma experiência muito rica. Toda a juventude do partido estava lá, com muitos soldados por perto. Os companheiros estavam em cima do silo; naquele momento, com os companheiros determinados a ficar lá em cima, poderia ter havido um massacre. O governo não ousou fazer um massacre, há uma correlação política, não é apenas uma decisão militar.
A correlação política é continuar lutando, animar-se, ter suas demandas atendidas, etc. Subir no silo é uma ação de tipo militar, embora esteja cercada por toda a política. Os companheiros desciam sozinhos quando se cansavam, mas as operações repressivas não ousaram ocupar e reprimir porque poderia haver uma morte, ou muitas. E não foi a insurreição de outubro, foi uma ocupação fabril em Córdoba. Não ousaram reprimir porque o custo político era imenso se um camarada morresse. Ao mesmo tempo, subir em um silo é uma decisão política, mas tem um lado militar: sobes até 70 metros, com sua família, para ficar aí por vários dias; é da ordem da ação, da política transformada em ação (insistimos: sempre dadas as condições políticas favoráveis).
É quando Yoffe diz que é preciso “saltar ao poder”. Leiam a carta de Yoffe de 1926; é linda, terrível, mas linda. Ele era contra o stalinismo, mas acabou cometendo suicídio porque estava em estado terminal. Foi um grande diplomata bolchevique. O que Yoffe diz em 1917 é que as condições políticas estão dadas (o oposto de julho de 1917, quando não estavam), o que nos resta é ousar dar o passo para a insurreição. Este “as condições estão dadas” pode até referir-se a ações que sabemos que vão ter consentimento mesmo não tendo sido votadas em lado nenhum, não é uma questão de consentimento “parlamentar”: a política já deu tudo o que podia dar e agora temos de passar aos bifes. Isso está no capítulo 42 da HRR.
9- O MOMENTO CONSPIRATÓRIO
A experiência da Revolução Russa sintetiza um debate, que é como o elemento “babeufiano” da tomada do poder, o elemento conspiratório – Babeuf liderou um levante tardio durante a Revolução Francesa, em 1797.[42]
Os órgãos da tomada do poder são os sovietes. Mas o soviete ainda é “parlamentar” até certo ponto. Uma frente única de tendências para a tomada do poder é montada: o Comitê Militar Revolucionário. Mas alguém precisa dirigir esse comitê.
E a realidade é que foi o partido bolchevique que organizou a insurreição. A tomada do poder, a insurreição, é um capítulo militar que depende de uma direção política. Quem se propõe a organizar a tomada do poder? Os sovietes podem votar para tomar o poder, mas depois alguém tem que organizá-lo.
Em 18 de dezembro de 1919, na Alemanha, formou-se um comitê revolucionário, entre o espartaquismo liderado por Karl Liebknecht (mas que não foi votado no partido), e dois outros órgãos: uma espécie de conselho dos trabalhadores de Berlim e outro setor cujo nome não me lembro agora. Esse comitê tinha umas cem pessoas, nada mais, e eles decidiram tomar o poder, mas ninguém organizou… Eles decidem em assembleia, todo mundo fica sabendo, a burguesia também, e os massacram. Também foi prematuro, porque o resto do país não ia acompanhar Berlim; mas, além desse aspecto, havia o fato de que eles resolvem entre cem pessoas tomar o poder, mas não há uma pessoa encarregada de organizar a insurreição…
Parece bobagem, mas não é, é um evento histórico. Falham do lado conspiratório, também falham porque não havia condições na Alemanha para o resto do país acompanhar Berlim. Rosa Luxemburgo também não era a favor do elemento conspiratório, as discussões que teve com Lênin foram muito duras, porque não havia maturidade no espartaquismo, tinha um viés “espontâneo” em decorrência da má experiência com a burocracia social-democrata.
Como se vai a uma revolução e a uma tomada do poder sem conspiração? A conspiração decorre do fato de que alguém tem que organizar a tomada do poder e que essa ação, é claro, tem um elemento secreto (não é publicada nas redes sociais).[43] Apoiado nas organizações de massas, o elemento conspiratório é feito pelo partido, porque embora o soviete seja o órgão de poder, é parlamentar demais para essa tarefa, muito à luz do dia e pouco executivo. Não se diz alegremente numa assembleia de mil pessoas: hoje vamos tomar o poder.
Essa discussão é desenvolvida em Lições de Outubro, o questionamento da “legalidade soviética” tout court. Legalidade e legitimidade são conceitos diferentes. A legitimidade não deve ser formal, não é levantar a mão e aceitar o que se vota, mesmo que se vote contra a tomada do poder quando há condições para isso (esse foi o desastre de Brandler na revolução alemã de 1923). Pelo contrário, a “legitimidade” é dada pela avaliação de que estão reunidas as condições para a tomada do poder. Dentro e fora do soviete, entre as massas que dizem: “Vamos lá, o que fazer?” e toda a vanguarda que faz essa pergunta deve ser organizada conspiratoriamente. Há uma inter-relação entre a conspiração e o Comitê Militar Revolucionário, entre os órgãos da insurreição. A conspiração é mais uma tarefa propriamente do partido e, como é uma ação ilegal, é conspiratória.
É uma conspiração que anda de mãos dadas com uma série de outras conspirações, como a conspiração e o levante de Kornilov, por exemplo: não há mais legalidade para todos os lados, tudo é revolução e contrarrevolução. Revolução e contrarrevolução andam de mãos dadas, são irmãs siamesas, não há revolução sem contrarrevolução, não há revolução sem repressão feroz, não há (Arno Mayer). Como não há revolução e tomada do poder sem contrarrevolução, a tomada do poder é conspiratória.
Insurreição, então, é o envio de forças voltadas para a tomada do poder: o batalhão, isso ou aquilo, a Guarda Vermelha, a guarnição, os bolcheviques armados… A insurreição seria o próprio ato de tomar os órgãos do poder. Também em Trotsky há a ideia de insurreição elementar ou semi-insurreição, os levantes populares que atingem o poder e derrubam o presidente: a rebelião popular tem elementos semi-insurrecionais, mas eles não conseguem tomar o poder, são espontâneos demais para isso. É melhor chamá-las de semi-insurreição, porque não estão organizadas por um fator subjetivo; a conspiração é o fator organizador consciente do partido que conspiratoriamente organiza a insurreição, mas para que a conspiração funcione e para que se organize a insurreição uma revolução madura tem que estar em curso. Sem revolução, seria blanquismo, ou seja, em qualquer contexto conspiratório vamos e tomamos o poder, e não é disso que se trata.
Assim, dialética é revolução, insurreição, conspiração, dialética da revolução. Revolução refere-se ao processo de massas como um todo, a insurreição é inconcebível sem órgãos de duplo poder da vanguarda de massas, e a conspiração é inviável sem o partido e, eventualmente, de outras organizações políticas revolucionárias que se propuseram a tarefa de lançar e organizar a tomada do poder.
Isso resume muitas discussões, contra o kautskyismo reformista, mas também contra Rosa, que era revolucionária, mas tinha essa apreensão contra o fator organizador por causa da questão da burocracia. O luxemburguismo entendia a greve de massas como uma ação independente que unia os organizados e os desorganizados; ela não entendia insurreição e conspiração, e confundiu conspiração com blanquismo (nisso ela cedeu à posição tradicional de Kautsky). Quando Lênin insiste que a insurreição deve ser tomada como arte, a palavra arte refere-se a uma ação, a arte como prática, a preparação para agir.[44]
Kautsky entendia a revolução como um fato passivo sem o partido, talvez Rosa entendesse até mesmo a insurreição, e percebeu em janeiro de 1919 – muito tarde – que isso não era suficiente. A conspiração não era compreendida: era considerada anarquismo, mas não só pelos reformistas, mas também pelas outras correntes revolucionárias não leninistas. Lênin, paradoxalmente, também aprende esse elemento com seu irmão, porque o leninismo tem um elemento de continuidade – não no programa, que é classista; não na política revolucionária, que aspira ser das massas; mas no elemento conspiratório – com os velhos terroristas Narodnik e com Blanqui, e talvez com a tradição de Babeuf e seu sucessor Buonarroti, que, como Blanqui, eram revolucionários minoritários, que não levavam em conta as massas. A teoria revolucionária em funcionamento antes de Marx e Engels foi a de Buonarroti, que sintetiza a experiência do levante fracassado de Babeuf e é o pai político de Blanqui.
Naquela época já havia uma série de elementos oportunistas na social-democracia alemã, porque também a ideia da revolução de maiorias, que ditas assim mecanicamente, é perigosa. Obviamente, a revolução é um ato de maiorias, mas que tem um conjunto de determinações, porque senão, é espontânea. Ou seja: a revolução é algo mais complexo do que ter “a maioria”. É uma articulação entre as frações de massa e as frações de vanguarda das massas mais avançadas, influenciando o polo mais ativo, e até, como aponta Trotsky, neutralizando aqueles que podem se levantar contra a revolução obtendo deles pelo menos o consentimento passivo, além de ter construído um partido revolucionário que alcança uma hegemonia sobre o grupo mais ativo de nossa classe (“ter construído” o partido é uma forma de dizer, pois se vai construindo sobre a experiência da revolução, mas é preciso partir de um determinado piso construtivo para poder dirigir).[45]
É claro que olhar a política revolucionária para trás é fácil, mas é mais difícil olharmos para frente, quando as coisas se expressam em seu embrião, não em todo o seu desenvolvimento.[46] Olhando para trás, é óbvio como atuar “quão bom era Lênin, quão tolos os outros”. Mas agora estamos aprendendo e renovando uma herança do marxismo revolucionário. Estamos fazendo uma renovação através do balanço do stalinismo, mas há um elemento de “síntese da experiência” que são as lições dos processos revolucionários do século passado em seus pontos mais altos (experiência que certamente será enriquecida pelas revoluções socialistas que estão no futuro).
Naquele momento não era tão simples assim, nem Rosa entendeu. O elemento conspiratório não foi compreendido porque o fator organizador que o partido significa não foi compreendido. Rosa tinha a ideia, derivada de Marx, de que o partido e a classe são a mesma coisa.[47] Muitas vezes é necessário insistir para ambos os lados: não ceder ao atraso das massas no que diz respeito ao partido e ao seu programa no caminho para a revolução, e também ao lado de que o continente último é a classe no pós-revolução (é mecânico dizê-lo, mas talvez se entenda. A verdade é que em todos os casos é preciso lutar contra a retaguarda oportunista e também contra o ultraesquerdismo; cada caso deve ser avaliado de forma concreta para saber de que forma inclinar a vara).[48]
A nossa preocupação é transmitir uma combinação de lições em relação ao stalinismo, mas também temos de ter em conta as lições em relação à social-democracia; essas são as duas burocracias históricas, e temos que aprender criticamente com ambas. A luta contra a burocratização leva-nos mais para o elemento democrático, mas o balanço da social-democracia leva-nos para o partido e para o sangue da luta de classes radicalizada. É preciso encontrar a coordenada certa nisso: a ênfase contra o stalinismo é a ênfase contra o substituicionismo, e a ênfase contra a social-democracia é a ênfase no partido revolucionário.
Trotsky dá uma definição que é engraçada, parece um trava-língua: “Na combinação da insurreição de massas com a conspiração, na subordinação do complô à insurreição e na organização da insurreição através da conspiração, consiste aquele capítulo complexo e responsável da política revolucionária que Marx e Engels chamaram de Arte da Insurreição“.
Vamos dar um passo de cada vez com o trava-língua. “Na combinação de insurreição de massas com a conspiração“, diz Trotsky, porque a insurreição é um evento de massa, não de uma ultraminoria. “Na subordinação do complô à insurreição“: a conspiração está subordinada à insurreição na medida em que está implícito que há condições para a insurreição, e “na organização da insurreição através da conspiração” (conspiração como conspiração) entende-se que não há organização da insurreição sem o elemento conspiratório.
Nessa série de correlações, Trotsky tenta respeitar as relações relativas entre revolução, insurreição e conspiração. Ele faz um esforço de combinação, de entender que o momento conspiratório, que é o momento do partido por excelência, tem que ter as condições dadas. Organiza uma franja da vanguarda de massas que se encarrega da insurreição no quadro de uma revolução de massas. Tudo isso constitui o Capítulo 43, que se refere a algo que até mesmo os bolcheviques conseguiram resolver corretamente e que é para nós o coração estratégico do HRR.
O que os bolcheviques resolveram bem foi essa correlação. Conseguiram uma representação autêntica das massas. Como conseguiram, sem serem substituídas, assumir as tarefas que cabem ao partido na conspiração? Isso alude a algo que, como já dissemos, está muito mais presente em Lições de Outubro, que é o legalismo soviético. Refere-se também ao que dissemos há algum tempo sobre a entrada do partido na ação. Às vezes, o momento da ação está maduro, mas não há o suficiente dessa consciência (há setores conservadores do partido que recuam), e há uma coisa chamada consentimento na ação ou consentimento para a ação. Esse consentimento não é algo que se expressa no parlamento, é uma convicção promovida pela própria ação. Quando o fato se consuma, as pessoas dizem “claro, está perfeito, isso é bom, finalmente”.
Pode até ser que os órgãos “parlamentares” (sovietes, claro) da classe operária fiquem aquém das necessidades do momento. Nos momentos revolucionários, a direção está atrás do partido, o partido está atrás do soviete, o soviete atrás das massas, porque às vezes, no mundo das representações, a gente fica tonto, e por outro lado o cara que pensa com o mecanismo do “prata na mão, bunda no chão” é mais concreto que todos os outros (no nosso presente não revolucionário, o habitual é a dinâmica oposta, mas isso é interessante porque alude aos momentos em que o peso conservador do partido está presente).
O que quero dizer é que há correlações que vão do partido para as massas, e há correlações que vão das massas para o partido. O consentimento para a ação baseia-se numa leitura que ignora – exagero – as representações e os diálogos com o operário mais de base, que diz: “Ou eles param de se ferrar e tomam o poder ou vamos para casa“. O partido, em certa medida, tem interesses próprios, e às vezes se torna conservador, porque, senão, corremos o risco de ficar sem partido. Mas, nesse momento estratégico, o partido está lá para tomar o poder e, se não está lá para isso, não está lá para nada. Isso é mais fácil dizer do que fazer, mas a palavra certa aqui é insight.[49]
Perspicácia para ler a realidade como ela é de acordo com suas determinações de classe e políticas. É como toda a obra desenvolvida no primeiro capítulo, ou seja, a capacidade de apreciar uma determinada situação quando da totalidade estamos vendo um pedacinho apenas.
Há uma citação muito bonita na biografia inacabada de Trotsky sobre Lênin (há dois textos, não me lembro qual deles). Trotsky conta como Lênin, a partir de sua capacidade de ouvir, de reunir elementos aparentemente dispersos, conseguiu antecipar uma realidade que ainda não havia se desenvolvido completamente. Isso remonta à perspicácia política, obviamente combinada com a experiência. Quando há um partido com mais contato com as massas, essas coisas podem ser feitas.[50]
10- LÊNIN E TROTSKY DIANTE DA TOMADA DO PODER
Finalmente, vem algo que é ao mesmo tempo delicado e “divertido” (girando em torno da mesma coisa): a combinação de aspectos políticos, práticos e táticos da insurreição. O elemento político da insurreição refere-se a toda a batalha contra Zinoviev e Kamenev, que desde o início se negam à decisão de tomada do poder. Todas as condições estão maduras, mas Zinoviev e Kamenev são oportunistas, são derrotistas, recusam o elemento político da insurreição. Depois, há o elemento prático, que é o elemento conspiratório. E depois há um elemento de tipo tático, que se desenvolveu quando Lênin queria que o partido sem mais organizasse a insurreição, e Trotsky dizia: vamos ser vivos, que o Soviete de Petrogrado e o Comité Revolucionário coloquem que as tropas do antigo czarismo ou dos alemães estão vindo e querem nos invadir: uma manobra política para legitimar a tomada do poder.
Para deixar mais claro: tratava-se de apresentar defensivamente uma ação ofensiva. Isso é importante. Sempre que tomarem uma fábrica digam “ocupação pacífica”, senão, ninguém te apoia. Devemos sempre exagerar verbalmente o elemento defensivo: a ação deve ser sempre feita com o maior consentimento possível, e apresentá-la defensivamente é sempre melhor do que parecer ofensivo. Nunca se deve dizer “viemos da Faculdade de Ciências Sociais, lemos ‘Ciência e Arte da Insurreição’ e queremos tomar a fábrica e cortar o pescoço do patrão”… Quem faz isso é o mais esquerdista do mundo… E um reverendo idiota, porque assim ninguém nos apoia, ficamos muito ofensivos.
Toda ação ofensiva é sempre apresentada defensivamente. Nós dizemos: “As tropas do czar estão chegando, eles querem desarmar a guarnição e derrotar o berço da revolução”, você não diz: “Vamos para a insurreição!” Enquanto o partido está engajado no elemento conspiratório, ele busca uma maneira de legitimar o que vai fazer, fazendo-o parecer uma ação defensiva. Ação ofensiva sempre, sempre, por se tratar de uma ação militar que, em última instância, remete a correlações políticas, que sempre se apresentam defensivamente para obter consentimento. Não há nada que ganhe mais consentimento do que o elemento democrático: “A repressão está chegando, querem nos matar, é injusto”. O elemento democrático envolvido é sempre o que melhor consegue o consentimento de amplos setores.
Então, o elemento tático se referia a isso. Lênin disse que o partido deveria iniciar a insurreição, e Trotsky concordou, mas queria pensar taticamente em como disfarçar a ação. O que nada tem a ver com Zinoviev e Kamenev, que eram contra a tomada do poder. Lênin, da Finlândia, vendo os traços largos, insistiu em tomar o poder, tentava focar o partido por todos os meios, o que por si só já era correto. Taticamente, no entanto, Trotsky estava certo em apresentar as coisas como as apresentou.
Há o elemento político, prático e tático da tomada do poder. E não vale apenas para essa circunstância, vale para tudo: além do fato de que ao mesmo tempo temos que educar a vanguarda para que ela não confie no mero legalismo, quando nos dirigimos a amplos setores temos que inserir a palavra “pacífico”, “legal”, “constitucional”, para mostrar que é o outro que nos ataca e não nós que atacamos – além do fato de que é verdade, porque somos agredidos pelo sistema capitalista.
Nunca devemos sair e “brincar de bobo” quando estamos em um ambiente onde há consequências. Mascaramos a ação e a legitimamos para que ela seja imposta, e temos que saber que sempre depois de uma ação há reação, não há ação sem reação. Não é uma ação sobre um corpo inerte, é uma ação sobre um corpo vivo que responderá. É da ordem das forças da classe viva, é da ordem da revolução e da contrarrevolução.
11- CONSCIÊNCIA, “COMPULSÃO” E PARTIDO
Voltando a essa questão da “política, prática e tática”, a política revolucionária unifica em uma única concepção o reino da representação e o reino da insurreição e da ação. A luta por representação e ação juntas compõem a política revolucionária. Tudo o que tem a ver com a passagem da política para a ação pode ser considerado como da ordem da guerra civil, no sentido de relações de classes e luta de classes traduzidas para a linguagem do confronto físico. Mas não só na insurreição, mas também nas marchas com confrontos, por exemplo.
E bem, não é a mesma coisa chegar com 200 pessoas a uma marcha, ou 300, ou mil, como o trotskismo de hoje, do que chegar com 40 mil. Com quantas pessoas chegamos é da ordem da política, e é claro que o número de pessoas com quem chegamos vai modificar a ordem da ação física, como enfrentamos a polícia, etc. Se nos enfrentamos dirigindo 40 mil pessoas, não é o mesmo que entrarmos em confronto com mil jovens em nossas colunas. Resistir com as bandeiras, ou diante da fila de meganhas e gendarmes, suportar o gás e as balas de borracha, é uma ação física (temos que “manter altas as bandeiras”), mas responde a uma necessidade política, que eles vejam que estamos na vanguarda da luta contra o protocolo repressivo ou o que quer que seja.
Acrescentemos que a própria ação física (digamos, a conspiração) podemos dizer que é da ordem da guerra civil, que é a continuidade da luta de classes por outros meios, sob formas violentas, que continua sendo a luta de classes.
A guerra civil propriamente dita, declarada como uma guerra de classes com exércitos, na Revolução Russa veio após a revolução, a partir de meados de 1918. Então, de certa forma, todo o arco da história da Revolução Russa é da ordem da política revolucionária stricto sensu, no sentido de conquistar a direção das massas e levá-las ao poder e tudo o que isso implica. Depois disso, uma vez no poder, veio a guerra civil propriamente dita, embora, de qualquer forma, a guerra civil seja uma guerra política por excelência, porque há a consciência das massas que defendem a terra e suas conquistas.
Uma guerra entre Estados também é política, mas de forma mais mediatizada. Na guerra mundial, numa guerra imperialista, as massas são subordinadas, não são sujeitas. Na guerra civil são sujeitos, na guerra imperialista não são, são objetos, são bucha de canhão do conflito. A guerra civil, defendendo o pão, a paz e a terra, é uma guerra política. Mesmo a guerra civil dos exércitos napoleônicos, da Revolução Francesa, exportou relações capitalistas de produção; o recrutamento forçado de massas também tem elementos de guerra civil e guerra política, porque os soldados do exército francês se consideravam cidadãos, não eram servos, não eram vassalos (consideravam, como aponta Marx, que na guerra estavam defendendo sua porção da pátria que era sua terra conquistada).
A HRR termina com a tomada do poder ou alguns dias depois; Todas as discussões que se seguiram, que são muito ricas, estão fora da obra. Mas a obra como um todo também deixa uma mensagem: resume toda a trama, todos os elementos da ação e da política revolucionária concebida como política, como guerra, como ação, como tudo. Resume isso em termos da capacidade de conquistar as massas, a capacidade de liderar, de representar seus interesses. Não se trata de uma concepção militarizada de revolução, como a dos guerrilheiros, em que os revolucionários não conquistam as massas representando suas experiências, mas se impõem a elas como um aparato, embora incorporando suas demandas.
O bolchevismo é um diálogo entre o partido e as massas, um diálogo que se funda na própria experiência política das massas, e é da ordem da consciência e organização (auto-organização e partido), da assunção da consciência revolucionária pelas grandes massas. É a ordem da política, que também resume a guerra civil, mas não é da ordem do militarizado em si.
Há uma frase muito bonita de Trotsky que diz “os soldados vão para a guerra tradicional por compulsão…” A compulsão está ligada à disciplina cega. Podemos não entrar na revolução, ninguém nos força; é óbvio que, se todos os nossos amigos vão, temos uma pressão, como não ir?, mas não é o mesmo que a compulsão da guerra: quem não se alistar no exército, vai para a prisão. Quem não se alista no soviete, bem, é um operário sem partido. As circunstâncias também arrastam as pessoas, é lógico, os setores mais ativos vão aderir à revolução. Além disso, numa guerra civil, os combatentes não saem por compulsão, mas por compromisso político, razão pela qual dizemos que é a guerra política por excelência. O Exército Vermelho não era compulsivo, muito pelo contrário: os elementos mais ativos da vanguarda operária se juntaram a ele por consciência de classe e socialista, o que é o oposto da compulsão.
Então a ideia da revolução bolchevique, a nossa ideia de revolução, é a da ação com um altíssimo grau de consciência e organização, ação histórica mais consciente do que qualquer outra revolução.
Logicamente, na revolução socialista há elementos de compulsão (qualquer trabalho coletivo os tem, afirma Marx contra os anarquistas): alguém vai a uma assembleia, se vota em algo, fica em minoria, e você tem que aguentar porque se vota por maioria. Mas há uma ideia de revolução com toda uma mecânica histórica, organizacional, complexa, que se refere à ação consciente e à conquista da compreensão e consentimento das massas, politicamente ganhaste a direção. E esse aspecto político, especificamente político, é por convicção, no nível partidário, não é por compulsão.
Em suma, é o mesmo com o partido revolucionário: o integra por convicção e por decisão própria. Mas sendo militante há tarefas coletivas que respondem a uma certa disciplina e direção: o que se chama centralismo democrático, e não podemos desenvolvê-lo aqui. Qualquer trabalho coletivo requer alguma ação coordenada. E a ação coordenada requer um certo número de “coordenadores”. E essa ação tem um elemento democrático de decisão coletiva para realizá-la, e depois um elemento centralizado na ação.
De qualquer forma, a característica da revolução socialista é que seu “ambiente natural” é a política: convicção política organizada em órgãos de poder e partido. A partir daí, surgem as demandas de ação, que envolvem centralização e disciplina. Mas, ao contrário das organizações militarizadas, onde o elemento militar e disciplinar cego à consciência dominava, nos partidos revolucionários e nas revoluções socialistas o elemento conscientemente organizado domina a compulsão.
E por isso mesmo a perspectiva do comunismo, como assinalou Marx, é a possibilidade do desenvolvimento de cada um como parte do desenvolvimento de todos.
NOTAS
[1] Homenagem a esta obra no 92º aniversário da publicação do primeiro volume (1932). O segundo foi publicado um ano depois.
[2] Aproveitamos para agradecer a Patricia López por seu intenso trabalho na edição e correção deste texto, que se baseia em uma escola de quadros do nosso partido realizada em fevereiro de 2020, e que adaptamos à situação atual. Um texto que podemos tomar como complemento à mais conceitual “Política Revolucionária como Arte Estratégica“, que foi também uma reelaboração de outra escola de quadros partidários.
[3] Sugerimos a leitura deste ensaio com o nosso “Política Revolucionária como Arte Estratégica” ao seu lado.
[4] Para simplificar, vamos doravante resumir o título da obra de Trotsky como HRR.
[5] De qualquer forma, avaliamos este ensaio, sobretudo, como um complemento ao nosso texto “A Política Revolucionária como Arte Estratégica“, em Esquerda Web.
[6] Tudo isso em uma escala muito mais mediada do que naquela época. Ainda não há revoluções; Nem as forças fascistas são verdadeiras. Mas é um fato que a normalidade das últimas décadas já foi quebrada e temos de nos adaptar mental e praticamente a esta realidade, em que podemos passar da violência nas palavras – e estamos a mover-nos em alguns casos dramaticamente, como o genocídio em curso em Gaza – para a violência e brutalidade nos atos.
[7] Nossa corrente não é morenísta, mas justifica, em termos gerais, a orientação de classe que o PST tinha contra a linha guerrilheira do mandelismo. Dentro disso há pilhas de erros – para não mencionar o antigo MAS – mas devemos a nós mesmos uma avaliação detalhada disso. Ao privilegiarmos para a fundação de nossa corrente um balanço internacional de trotskismo e stalinismo – abordagem que consideramos estar dentro do melhor da tradição do marxismo revolucionário e que não foi realizada por nenhuma corrente trotskista de origem latino-americana – temos um balanço mais especificamente nacional pendente. O mesmo acontece com os outros grupos de nossa corrente, que devem enfrentar o balanço específico do que o trotskismo fez em seus países como parte de suas tarefas fundacionais.
[8] Como já explicamos em outras oportunidades (NT: ver “Colocar al partido a la cabeza del proceso histórico”, Izquierda Web), o paralelogramo de forças é forjado, até certo ponto, objetivamente – ainda não somos correntes de massa ou vanguardas de massa, mas correntes de vanguarda – mas se as correntes revolucionárias nos colocamos à sua cabeça, inclusive se ajudamos a forjar esse paralelogramo de forças, criamos poder: podemos inclinar a balança; esta é a educação básica de Trotsky em muitos de seus textos da década de 1920.
[9] Não temos lido sobre a psicologia de Trotsky, mas é difícil imaginar qualquer ser humano daquela época histórica que não tivesse ansiedade.
[10] Há marxistas que desconhecem o conceito de experiência. Consideram-na uma categoria “pragmática”. Mas escapa-lhes que toda a verdadeira experiência do ponto de vista marxista é permeada pela teoria e pela prática (ver “Althusser, filósofo do stalinismo tardio“, Esquerda Web).
[11] Assim, O Capital é uma das obras teóricas mais abstratas e concretas conhecidas na história da humanidade.
[12] Heijenoort tem uma bela obra intitulada Com Trotsky de Prinkipo a Coyoacán. Após a Segunda Guerra Mundial, ele deixou o exército, desanimado com o fenômeno stalinista, e dedicou-se com sucesso à sua profissão de matemático.
[13] Nem sua reivindicação absoluta nem sua rejeição tout court servem para aprofundar suas complexidades e alcance universal (ver também a esse respeito nossa crítica a Althusser, cuja abordagem era, a nosso ver, sectária).
[14] Escrevemos mil vezes que é uma abordagem oposta à de Plekhanov em seu Papel da Personalidade na História, uma espécie de reducionismo do marxismo ao sociologismo.
[15] Os vários “clubes” da ala esquerda da Revolução Francesa já eram formas muito embrionárias de partidos modernos. E, de alguma forma, os Levellers e Diggers da Revolução Inglesa, ainda que com mais distorções e formas objetivas, também o foram.
[16] A natureza efêmera da Comuna de Paris – que durou menos de três meses – deveu-se a vários fatores. Um deles, fundamental para qualquer revolução, é que o interior não seguiu Paris. Mas é claro que a falta de uma organização partidária moderna (uma ou várias) também conspirou contra seu sucesso. Além disso, como aponta Engels, cada uma das correntes que a compunham fez na experiência da Comuna o oposto do que havia propugnado anteriormente (algo que de qualquer modo se pode entender pela riqueza imensurável de cada revolução tomada de uma maneira específica).
[17] Sem dúvida, o antidefensismo, em seu ultraesquerdismo pequeno-burguês, também moldou uma guinada à direita em relação a Trotsky, de outra forma.
[18] Digamos que o térreo ou o primeiro andar, não importa nessa metáfora, seja a consciência popular do “eles ou nós”, dos ricos e dos pobres ou coisas assim (não há nem “coisas assim” nos tempos que correm; lembremos que Lênin insistiu que, em geral, é a consciência burguesa que acaba se impondo sobre as cabeças das massas). Quando falamos de “consciência de segundo nível”, queremos dizer que a classe política e a consciência socialista são um trabalho sobre a consciência prévia e natural. E nessa tarefa o partido entra como elo de primeira ordem, mesmo que haja elementos de radicalização. Tais elementos de radicalização são forjados “objetivamente”; a consciência revolucionária e socialista organizada é outra questão: requer a mecânica complexa das massas, da vanguarda, dos órgãos de duplo poder e do partido ou partidos revolucionários.
[19] Veremos mais adiante que o elemento conspiratório é central e presente em todos os momentos de nossa ação, em qualquer circunstância política: não é à toa que Lênin apontou que o partido revolucionário é legal e ilegal. É preciso pensar em cada caso sobre o que atribuir a cada termo.
[20] Dizemos que a vanguarda e a vanguarda das massas são o elo a ser disputado pelo partido com unhas e dentes contra o resto das tendências, simplesmente porque há aqui um jogo de “engrenagens”: sem conquistar relevância, hegemonia entre a vanguarda e a vanguarda das massas, não é possível liderar as massas. Daí a guerra total entre tendências socialistas, não só na Revolução Russa, mas, por exemplo, historicamente na Argentina. Uma guerra sem fim que merece manobras, picadas nos olhos, etc.
[21] Apontamos tudo isso circunscrito, é claro, à Revolução Russa.
[22] É engraçado que existam correntes hoje que reivindicam o lado “passivo” do marxismo, contrastando-o com uma definição de Trotsky desse tipo, e que consideram que as teses de Marx sobre Feuerbach “ainda não são marxistas”. É o que aponta o marxista italiano Sebastiano Timpanaro, super sério e reivindicador do trotskismo contra a maré nos anos 70, mas para reafirmar o materialismo (ou seja, que a natureza e o universo sempre serão maiores do que nós, sempre serão, em certa medida, objetivos para nós, e nesse sentido receberemos uma influência que nos vem de “fora”) não é preciso inclinar a barra para a “passividade”… (Sobre el materialismo. Ensayos polémicos en torno a la teoría, la praxis y la naturaleza, Edições IPS).
[23] É óbvio que se trata de uma elaboração que se faz em tensão crítica com os desdobramentos ideológicos do momento. Também é óbvio que é útil polemizar com as tendências da moda na universidade. Outra coisa é adaptar-se a eles ou perder de vista o riquíssimo arsenal do “marxismo esquecido” anti-stalinista, que está aí para ser explorado e divulgado, um marxismo que foi contra a maré e não desfrutou do impacto de um Althusser ou de intelectuais stalinistas après la lettre como ele.
[24] Fomos enfraquecidos ao inclinar a vara para o lado democrático da revolução socialista, para o balanço do stalinismo. Mas também deve ser inclinado para o outro lado: para o lado do “sangue” da revolução.
[25] É o que acontece, por exemplo, com as correntes oportunistas (hoje nem isso, porque perderam completamente de vista os critérios elementares de classe): acreditam que com independência de classe tudo se resolve. Não, senhor, isso não basta, mesmo que seja um passo em frente: temos também de conseguir a ação revolucionária, sobrecarregar o Estado e o regime, construir organizações de auto-organização e de duplo poder, construir o partido legal e ilegal que saiba fazer parte da radicalização. Que saiba “morder” o regime pela esquerda e não entregar isso à extrema direita. E tudo isso sem nunca perder de vista o ângulo de defesa das conquistas democráticas dentro da democracia burguesa, que também deve ser defendido com unhas e dentes.
[26] Este é um ponto chave para nunca ficar atrás da realidade: você deve estar sempre um milímetro à frente dela. A relação de forças é medida em fatos; nunca podem ser medidos apenas intelectualmente. A experiência da Argentina sob Milei e diante de todos os derrotistas por aí (como o marxista brasileiro Valerio Arcary) é instrutiva a esse respeito (“Ante el segundo intento de la omnibus”, izquierda web).
[27] Não confundir com o “realismo socialista” na arte, que é exatamente o oposto do realismo revolucionário e imaginativo de Lênin em questões políticas. O realismo socialista foi uma adaptação ao que existia: a realidade foi pintada com um “realismo” ingênuo para esconder as condições de exploração e opressão da URSS stalinizada. O realismo revolucionário de Lênin partiu materialmente das condições dadas para transformá-las dialeticamente (as condições dadas são, a realidade é; ignorá-las não pode dar origem a uma política revolucionária ancorada no real).
[28] Lênin repetia muito as ideias sob vários ângulos. Trotsky, que escreveu mais bonito, talvez menos. Mas a insistência tem um caráter educativo que pode não estar na moda na academia, mas quando é escrita de forma militante e não acadêmica, talvez seja inevitável (é claro que o autor deste texto “odeia” a academia, dito de forma simpática e não sectária).
[29] Uma coisa interessante que o marxista Colletti diz é que a “realpolitik” parece “realista” no momento empiricamente concreto, mas no final é a coisa mais irreal que existe do ponto de vista da tensão socialista revolucionária.
[30] É muito comum que os “fanáticos” da frente única tomem isso como uma estratégia e não pelo que ela é: uma ferramenta tática muito importante, mas tática. Invariavelmente, a frente única serve para enfrentar um inimigo maior, mas tem os limites das direções tradicionais. Por isso, seu uso é sempre para superá-las em algum momento, nunca como uma tática em si. Tomá-la como tática em si – isto é, como estratégia – é uma das formas clássicas de transformar revolucionários em reformistas (vide o caso das correntes trotskistas do PSOL brasileiro).
[31] Quando apostamos na ocupação da ponte rolante na Gestamp, a grande maioria das correntes nos acusou de sermos “ultraesquerdistas”. No entanto, sempre consideramos que essa iniciativa era muito correta: era uma forma de tentar forçar a ocupação da usina diante de uma base indecisa e de uma burocracia que golpeava contra ela. Havia muita simpatia pelos companheiros demitidos, apesar do medo incutido pela burocracia, e era preciso medi-la ou a luta estava derrotada. Fizemos corretamente o teste e saiu uma conciliação obrigatória que o governo depois não cumpriu, mas isso é outra questão.
[32] Aqui há uma analogia com a arte da guerra de Clausewitz. Clausewitz diz que quando você entra na briga você não é mais dono de si mesmo. E na luta de classes – sem levar isso de forma irresponsável porque as análises estão aí para medir as coisas – é um pouco assim. Quando você entra em uma luta, de certa forma você não está mais totalmente no controle de si mesmo: os resultados de uma luta não são dados com antecedência.
Mas também é verdade que ser arrastado para uma luta de ultraesquerda por instigação do inimigo é um tremendo erro: foi o que aconteceu com Karl Liebknecht – geralmente muito empenhado, mas inclinado à irreflexão – quando detonou a revolta de Berlim, em Janeiro de 1919, sem que houvesse condições para o país acompanhar a capital. Terminou como todos sabem: numa derrota gravíssima, com Liebknecht e o próprio Rosa assassinados pelos capangas da social-democracia.
[33] Uma greve contra demissões em um jornal argentino que estava fechando.
[34] O blanquismo atravessa dois períodos históricos. É um híbrido entre a ala esquerda da Revolução Francesa e a revolução socialista que ainda estava por vir. A tradição conspiratória, especificamente, vem de Babeuf, traduzido por seu lugar-tenente Filipo Buonarroti, que tira uma conclusão conspiratória do fracasso da Revolução Francesa em termos verdadeiramente emancipatórios.
[35] Tanto no grande quanto no pequeno, os ensinamentos são os mesmos. É o que diz Hegel sobre o viver o universal no particular.
[36] O marxista Karl Korsch insistiu corretamente, contra a social-democracia alemã da década de 1920, no caráter ativista do partido revolucionário.
[37] Voltamos ao problema da ansiedade na política. O fato é que nós, militantes, somos uma totalidade da qual a psicologia não pode ser excluída.
[38] Dialeticamente, o “momento conservador” é muito difícil e muito transitório: ou se avança ou se retrocede.
[39] Mesmo sob Milei, que é um governo de aspirações bonapartistas, que tem um protocolo antimotim, que reprime e encenifica mais a repressão, que encurrala com escudos, que dispara balas de borracha, gás lacrimogêneo, spray de pimenta e jatos de água, as coisas são administráveis no desenvolvimento atual da vanguarda. Outra coisa seria se as balas de chumbo fossem colocadas em jogo, então as coisas mudam completamente, já estaríamos em um terreno de revolução e contrarrevolução ou de pura e simples ditadura militar.
[40] Mais uma vez, o desafio agora sob Milei é superior, porque sua agressividade é superior. Não se trata apenas de se defender ou saber recuar, nem apenas de saber suportar: temos de aprender a morder, a desafiar até certo ponto – de forma bem refletida – as forças repressivas, temos de incorporar elementos conspiratórios na nossa ação, a cuidar das nossas figuras e dirigentes partidários, etc.
[41] Mas, novamente, as condições para isso ainda não existem. Embora possam existir no futuro. Em todos os casos, o critério é cuidar do partido, cuidar da militância, cuidar para não ser preso, mas desafiando o status quo repressivo, o protocolo, sair às ruas, não marchar na calçada, exceto em casos de força maior, resistir na linha de frente e até, se as circunstâncias forem certas, morder.
[42] Aqui invertemos dialeticamente o que dissemos acima. Se Trotsky delimita claramente o processo revolucionário, o momento da insurreição e o elemento conspiratório como uma rica totalidade, o momento conspiratório não substitui a revolução como um todo e suas correlações políticas de massa, mas também não pode ser – no outro polo – dissolvido.
[43] Hoje, sob o governo repressivo de Milei, muitas de nossas ações podem ser conspiratórias para que a polícia ou a gendarmaria não se antecipem a nós.
[44] Como ação e criatividade, mas guiada por uma ciência que é a da política marxista. Ciência que também inclui um elemento intuitivo, pois não há como medir com um termômetro como está a temperatura política para dar um passo tão complexo que é se jogar no poder, embora seja claro que um índice elementar é ter uma certa maioria entre as massas mais ativas dos explorados e oprimidos.
[45] Mandel afirmou, de forma um tanto mecânica, mas interessante, que em uma situação revolucionária o partido pode ser multiplicado, no máximo, por quatro. A ideia me parece, de qualquer forma, um tanto evolutiva, embora tudo dependa de haver um processo de radicalização de amplo alcance e sair vitorioso de uma luta de tendências que é invariavelmente “sangrenta”.
[46] Hegel afirmou o oposto dialético disso, que o resultante esconde o desenvolvimento, mas na realidade é o mesmo que estamos apontando: o processo em tempo real é relativamente “cego” porque há muitos desenvolvimentos alternativos possíveis. Então, quando o resultado está lá, a coisa é fácil: a história é escrita, mas então ocorre o fenômeno oposto: os caminhos alternativos que seriam possíveis não são vistos. É por isso que Benjamin diz que a história é escrita pelos vencedores e que a revolução deve redimir todos os grandes lutadores da história – classes, partidos e povo, militantes.
[47] Perde-se sempre de vista o quão renovador Lênin – que se apresentava como pura ortodoxia – foi em relação a Marx. Trotsky é uma história diferente: ele nunca se apresentou como ortodoxo, exceto quando teve que defender o legado do bolchevismo na década de 1930.
Sobre esse assunto, Korsch é agudo, pois destaca como por trás da ortodoxia se esconde, em sua maioria, uma atitude preguiçosa e passiva em relação às lições que a experiência da luta de classes nos deixa (Bensaïd copia sem dizê-lo). Ficamos lisonjeados ao saber que somos heterodoxos.
[48] Esse tombamento da vara é um elemento complexo que deve ser compreendido: nenhuma situação é absoluta, é preciso saber lidar com os ensinamentos do marxismo de forma sutil para poder responder revolucionariamente – isto é, disruptivamente – em cada circunstância concreta.
[49] Segundo a Real Academia Espanhola, perspicácia é “a agudeza e penetração da vista”, ou o que afirmamos em Ciência e Arte da Política Revolucionária, a importância da intuição na política.
[50] Em suma, quanto mais contato real se tem com as grandes massas, mais partido se é.
Traduzido do original em https://izquierdaweb.com/a-proposito-de-historia-de-la-revolucion-rusa-de-trotsky/#_ftn35