Sétima parte do artigo “Economia e política global em tempos de Trump”

Por Marcelo Yunes

7.1 O retorno do fantasma do horror nuclear

Em todos os âmbitos, em todos os fóruns, em todos os níveis, percebe-se a sensação de mudança de época. Não se trata apenas da incerteza trazida pela personalidade de Trump à frente da maior potência mundial. É quase o contrário: o retorno de Trump – quando parecia que a era Biden voltava a trazer um manto de previsibilidade às relações internacionais – é, por si só, uma expressão de quão profundas são as mudanças na configuração dessas relações. Isso se manifesta em todos os terrenos: desde o mais básico, a preservação da paz mundial, até os realinhamentos geopolíticos, o impasse no crescimento econômico, a polarização política e social, a dissolução dos antigos consensos ideológicos, o destino incerto da inteligência artificial e a impotência global diante das mudanças climáticas.

É significativo que, do ponto de vista do equilíbrio militar entre as potências, muitos analistas já falem de uma terceira era nuclear. A primeira abrangeu o período da Guerra Fria (1945–1989); a segunda, com a distensão após a queda da URSS e a progressiva redução dos arsenais nucleares, foi a mais calma. Mas essa tranquilidade terminou com a invasão da Rússia à Ucrânia, que muitos marcam como o marco inicial da terceira era. Uma era que se assemelha a uma reedição da primeira Guerra Fria, mas com outros atores e outras características.

A primeira delas é que, diferentemente do período do pós-guerra, não há apenas dois atores exclusivos, mas ao menos três: embora EUA e Rússia ainda detenham, com muita vantagem, os dois maiores arsenais nucleares do planeta, o poder econômico, político e militar da China a coloca como potencialmente o maior rival dos EUA. Algo que começa a se concretizar também no campo da capacidade nuclear: enquanto EUA e Rússia ostentam arsenais com mais de 5.000 ogivas nucleares, a China, que começou com uma capacidade modesta de algumas centenas (nível do Reino Unido ou da França), alcançará mil ogivas nucleares em 2030 e mil e quinhentas antes de 2035.

A segunda diferença em relação à primeira Guerra Fria é que há muito menos “institucionalização” do status quo sob a forma de tratados sobre mísseis que controlem quem tem quanto e quais são os protocolos de uso (algo crucial que evitou o uso de armas nucleares durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1961). O último tratado de importância ainda vigente, o New START, expira em fevereiro de 2026. Como já dissemos, Trump e Putin não parecem ter o menor interesse ou intenção de renová-lo. Pela primeira vez na história da humanidade, nos próximos anos os arsenais nucleares provavelmente não estarão sujeitos a nenhum limite formal estabelecido por tratado algum. Trata-se de uma verdadeira e alarmante novidade, e um sinal do quão imprevisível e potencialmente caótico é o período que se abre.

Em terceiro lugar, essa mesma ausência de acordos e limites entre as principais potências estimula o apetite de potências menores, que querem aumentar seu arsenal ou, sobretudo, começar a tê-lo. Entre os candidatos firmes a conseguir armas nucleares pela primeira vez, seja por desenvolvimento próprio ou por convencimento de aliados para recebê-las, estão o Irã e a Coreia do Sul. O primeiro, como garantia frente a Israel – o único país do mundo que possui armas nucleares sem jamais tê-las declarado –; a segunda, como garantia frente à Coreia do Norte. Além disso, tanto a Coreia do Sul quanto o Japão têm dúvidas profundas sobre a disposição de Trump em manter de forma efetiva o guarda-chuva nuclear dos EUA,[1] o que explica que, pela primeira vez em sua história, e em oposição às décadas anteriores, hoje 70% dos sul-coreanos veem com bons olhos que seu país possua armas nucleares.

Claro que, se o Irã conseguir bombas atômicas, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos buscarão restabelecer o equilíbrio regional adquirindo-as também. À lista, cabe adicionar dois países europeus. Um é a Ucrânia, o que dependerá do rumo da guerra e do tipo de acordo que – provavelmente este ano – será alcançado para encerrá-la com a Rússia (embora Putin jamais aceite a capacidade nuclear da Ucrânia, não se pode descartar que as conversas com Trump terminem mal). O outro é a Turquia, como continuidade e aprofundamento da política agressiva de projeção (e intervenção) internacional de Erdogan na Ásia e na África.

O tratado New START permite aos EUA e à Rússia manterem 1.550 ogivas nucleares implantadas e 700 pontos de lançamento para os chamados mísseis estratégicos (capazes de aniquilar cidades inteiras). O restante do arsenal – ou seja, as ogivas não implantadas, mas armazenadas, e as armas nucleares táticas – não tem restrições. O que farão Trump e Putin? Agirão como líderes responsáveis, ou darão rédea solta aos seus melhores instintos de fanfarrões arrogantes, aumentando a produção de ogivas nucleares e/ou intensificando o uso das ogivas armazenadas?

Por ora, no ambiente mais belicista de Trump, já se fala em retomar os testes nucleares, que os EUA e a Rússia não realizam desde os anos 1990. Por outro lado, reforçar os programas nucleares de produção – sem falar em criar novos – colocaria ainda mais pressão sobre a já problemática agenda fiscal de Trump (e a de Putin, pressionada como está pelo curso da guerra na Ucrânia). A China tem mais margem nesse sentido, mas parte de uma base muito menor. Se Trump e Putin decidirem retomar e intensificar a corrida armamentista, terão que convencer suas populações de que os sacrifícios econômicos adicionais inevitáveis valerão a pena.

Em qualquer caso, impõe-se uma conclusão: a crescente desordem do mundo começa pela incapacidade da potência hegemônica (EUA), das superpotências nucleares atuais (EUA e Rússia) e do novo aspirante a hegemonia e superpotência nuclear (China) de estabilizar acordos básicos. Nem sequer restam de pé os canais mínimos de comunicação de emergência entre potências, que possam impedir ou conter – como ocorreu na crise dos mísseis em Cuba, em 1962 – conflitos potenciais desencadeados por acidente ou por decisões precipitadas de comandos intermediários.

No início da Guerra Fria, em 1947, cientistas do mundo todo, hoje agrupados no Bulletin of the Atomic Scientists, estabeleceram o “Relógio do Juízo Final” (ou do Apocalipse – Doomsday Clock), que indicava de forma simbólica o quão perto a humanidade estava de um holocausto causado por ação da própria espécie humana. A principal ameaça, sobretudo no início, era uma guerra nuclear generalizada, mas posteriormente foram incluídos riscos de acidentes ou perda de controle de armas biológicas e desastres ambientais; a ameaça mais recente adicionada foi a inteligência artificial.

O relógio foi inicialmente ajustado para sete minutos antes da meia-noite, e de acordo com as mudanças geopolíticas e tecnológicas, os ponteiros avançavam ou5 recuavam. Assim, o momento histórico em que o perigo esteve mais distante foi em 1991, com a dissolução da URSS: 17 minutos para a meia-noite. E qual foi o momento mais próximo? Exatamente aquele que coincide com a data da última atualização: 28 de janeiro de 2025 – faltando apenas 89 segundos. É apenas uma metáfora, claro. Mas também é um símbolo.

7.2 Realinhamentos fluidos e conflitos fora de controle

Vimos que uma das marcas do “Trump 2.0” é que ele não dá como garantida nenhuma aliança estratégica – muito menos as táticas – nem mesmo com os aliados históricos dos EUA. A recente tentativa de acordo entre Trump e Putin sobre a Ucrânia, ignorando olimpicamente tanto a própria Ucrânia quanto a União Europeia, é um exemplo bastante representativo do atual momento de “alianças suspensas”. Se a UE terá a vontade e a firmeza para enfrentar Trump – e como ele reagirá – é algo incerto (e sujeito a mudanças repentinas). Mas, novamente, é um claro indicador da incerteza global.

De fato, parte da sensação de caos atual vem do fato de que as linhas de divisão entre os blocos não estão mais claramente delineadas por ideologias, como na Guerra Fria. O bloco “Ocidental” continua sendo liderado pelos EUA, mas as fissuras com a Europa, como vimos, são cada vez mais profundas, enquanto novas alianças vão se formando. Por exemplo, a aproximação entre Japão e Coreia do Sul – rivais históricos desde a Segunda Guerra Mundial – é um sinal disso; ambos os países buscam maior comprometimento dos EUA para conter as ameaças chinesa (no caso do Japão) e norte-coreana (no caso da Coreia do Sul), mas Trump claramente não facilita as coisas. Algo parecido ocorre com a integração da Índia no chamado Quad (EUA, Índia, Japão e Austrália): a ideia dos EUA era consolidar uma aliança asiática para conter o avanço da China, mas, se já havia fricções entre os membros asiáticos, Trump adiciona conflitos com o sócio principal.

O bloco “antiocidental” tampouco é homogêneo. As relações de aliança entre China e Rússia – sem falar das que ambas mantêm com Irã e Coreia do Norte – são oblíquas e cruzadas. O principal elo comum é reativo e defensivo: escapar das sanções e boicotes comerciais, financeiros e tecnológicos impostos pelos EUA. Há também uma sociedade e complementaridade importantes no comércio de armas convencionais e de tecnologias avançadas com aplicação militar (principalmente satélites e drones).

A posição dos “neutros” – aqueles que não estão claramente alinhados nem com os EUA nem com a China – é ainda mais complexa. A Índia pertence ao mesmo tempo ao Quad e aos BRICS, sem liderar efetivamente nenhum dos dois fóruns; o Brasil é membro dos BRICS e mantém relações relativamente amistosas com a China (parceiro comercial inevitável), mas de forma alguma rompe com os EUA, ao mesmo tempo em que busca desesperadamente concluir o acordo Mercosul–UE. Os blocos regionais africanos como a CEDEAO (ECOWAS) e seu desmembramento recente, a Aliança dos Estados do Sahel, buscam autonomia, se distanciam da França – potência imperialista em processo acelerado de retirada de suas ex-colônias no continente – e flertam com a China no plano econômico e com a Rússia no plano militar, sem romper também com os EUA. Os blocos econômicos asiáticos mais importantes, como a ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), temem ficar presos no meio da disputa entre EUA e China e buscam um difícil equilíbrio entre manter a relação comercial essencial com a China e não despertar a ira do Tio Sam. Ao mesmo tempo, vários de seus membros – como Filipinas (que abriga bases militares dos EUA) e Vietnã – mantêm acirradas disputas diplomáticas com a China pela delimitação do Mar do Sul da China. Em resumo, os realinhamentos estão apenas começando.

Nesse contexto, uma das “vítimas” da reconfiguração do mundo que está em curso hoje – e que será ainda mais acentuada sob Trump – são as missões de paz da ONU. Nas duas primeiras décadas do século, embora nunca tenham se destacado por sua eficiência ou por alcançar plenamente seus objetivos, essas missões cumpriam um importante papel ideológico: o de sustentar a ideia de que existia uma ordem global, liderada pelos EUA, capaz de intervir (de forma limitada) diante do surgimento de conflitos difíceis de controlar ou de mediar.

Hoje, nem essa fachada resta, especialmente em regiões como a África, continente que abrigou a maior parte dessas missões. Diante do crescente desinteresse dos EUA, das restrições orçamentárias e dos resultados insatisfatórios de muitas missões anteriores, o consenso, a vontade e os meios para organizar novas operações são hoje muito menores do que antes. Soma-se a isso o fato de que os conflitos – como no caso das organizações jihadistas – ultrapassam as fronteiras dos países, e que a natureza dessas organizações esvazia o sentido de enviar tropas de mediação: “De que serve uma missão de paz quando, do outro lado, há terroristas?”, perguntava-se um diplomata da União Africana (“Out with a whimper”, The Economist, edição 9249, 04/01/2025).

O resultado é a “terceirização” da intervenção militar por parte dos Estados a empresas privadas russas ou turcas, ou a forças irregulares patrocinadas por governos como os da China, Ruanda ou Emirados Árabes Unidos. As características habituais desses contingentes são uma maior capacidade militar e menos restrições operacionais de cunho político – estas últimas típicas das missões da ONU. Em outras palavras: forças quase mercenárias que atuam por conta e ordem (mas não sob responsabilidade direta) dos Estados envolvidos, com a vantagem de poderem ignorar questões relacionadas aos direitos humanos. Mais um sinal de um mundo com menos mediações, mais brutal e mais impiedoso. As grandes perdedoras são as populações de países como a República Democrática do Congo, Sudão, Somália, Nigéria ou os países do Sahel africano.

Fatos como o de uma guerrilha apoiada por Ruanda, o M-23, ocupar uma das cidades mais importantes da República Democrática do Congo (Goma, no leste do país, com quase 3 milhões de habitantes), ou o de os houthis do Iêmen se financiarem cobrando uma espécie de pedágio de navios mercantes que entram no Mar Vermelho rumo ao Canal de Suez, revelam uma realidade de descontrole global crescente, com regiões inteiras onde a autoridade dos “Estados soberanos” é desafiada com sucesso por atores “ilegais”. No mesmo sentido, vale mencionar episódios como o corte de cabos de internet no Báltico, atribuídos – de forma plausível, mas sem comprovação – à Rússia, entre muitas outras pequenas e grandes irrupções da “ordem global” que permanecem impunes por falta de autoridade legal, militar ou “moral” capaz de exercer punição.

7.3 Por trás da geopolítica, espreitam as massas e sua (crescente) impaciência

Diante da mudança de etapa global, a lamentável resposta de alguns setores da esquerda – inclusive marxistas – tem sido o desânimo e a angústia: os piores conselheiros imagináveis para quem se considera parte de correntes políticas revolucionárias. Essa atitude é indigna de militantes, autocomplacente e desmoralizante, mas é também algo pior do que tudo isso: é um erro. Significa, simplesmente, não abordar o mundo de forma marxista, dialética; significa ver apenas os fenômenos e a superfície, sem conseguir identificar o movimento subterrâneo – e nem tão subterrâneo assim – que agita os verdadeiros protagonistas da história. Que não são as personalidades carismáticas, nem as nações, nem os blocos de nações, mas sim as grandes massas exploradas e oprimidas. Com suas lutas, suas consciências, suas contradições, suas desigualdades… e suas potencialidades. Encontrar nessas potencialidades os pontos de apoio para a ação política é a primeira qualidade – e o primeiro dever – de qualquer militante marxista que se preze. Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a filosofia dos derrotistas.

É verdade que há regiões onde o panorama parece atravessado exclusivamente pelo jogo de xadrez das grandes potências. É o caso da guerra na Ucrânia. Ali, a progressiva defesa do direito nacional à autodeterminação foi sufocada entre a ofensiva de Putin e o atlantismo miserável de Zelensky, que apostou todas as suas fichas em se abrigar sob as asas de um EUA que hoje o abandona sem piedade. Enquanto isso, a possibilidade de uma reação do povo russo contra a semiditadura autoritária de Putin está suspensa, como vimos, enquanto o front de batalha continuar sorrindo para o Kremlin. Mas esse bloqueio das aspirações legítimas das massas diante da geopolítica e dos canhões não é representativo da tônica em todo o mundo.

Por exemplo, o que ocorre na Palestina é, antes de tudo, uma tragédia humana para o povo palestino – mas nem tudo é tragédia. Também há resistência, há alegria legítima como quando foi firmado o recente cessar-fogo; há indignação nas imensas manifestações pró-Palestina que percorreram e continuam a percorrer o globo, de África do Sul à Noruega, passando por Nova York; há desgaste político, não apenas de Netanyahu, mas – e isso é mais profundo – da própria causa sionista, que aos olhos de massas crescentes está irrevogavelmente comprometida. À barbárie do genocídio e da limpeza étnica pretendida por Israel – e agora por Trump – opõe-se um impulso de massas com uma força política e moral de legitimidade renovada. Não será tão fácil expulsar um povo inteiro de sua terra para construir resorts de praia para milionários e sionistas.

O avanço das forças de extrema-direita na Europa – mesmo considerando sua forte heterogeneidade – é, sem dúvida, um alerta que deve ser levado muito a sério, assim como o crescimento do racismo e da xenofobia em setores das massas. Dito isso, seria miopia – ou cegueira – ignorar as contratendências e contradições. A ascensão eleitoral do AfD não ocorre no vazio: ela provoca verdadeiras marés humanas nas grandes cidades alemãs em rejeição a uma força política que, ao mesmo tempo em que se abraça geopoliticamente a Putin, flerta com a simbologia e o discurso nazistas. A força de Marine Le Pen avança nas pesquisas, mas: a) ainda está por se ver se “a terceira será a vencida”; a França é um país com enorme tradição de lutas nas ruas e debate ideológico, o mais agitado da Europa; b) seu peso continua sendo eleitoral – ela não organiza ativamente massas reacionárias, como faziam os movimentos fascistas ou de extrema-direita clássicos; e c) mesmo que venha a vencer as eleições, resta saber o quão radical será sua prometida ruptura com o status quo – o exemplo de Giorgia Meloni, que após sua vitória com os “antieuropeístas” do Fratelli d’Italia não tirou nem a unha do prato da UE, é elucidativo. A crise europeia castiga salários, empregos e, sobretudo, as perspectivas da juventude – mas não está escrito em lugar algum que a extrema-direita seja a única beneficiária possível dessa situação. Acontecimentos continentais e extracontinentais podem mobilizar reservas democráticas e combativas nas massas europeias que jamais se esgotaram.

Na América Latina, está-se longe do momento das rebeliões populares da primeira década do século, mas tampouco se constata nenhuma onda direitista avassaladora. De fato, em sete dos dez países da América do Sul há governos que não mantêm qualquer alinhamento automático com os EUA – e muito menos com Trump. Aqui, talvez boa parte da evolução política da região dependa do que acontecer com o Brasil e, talvez, com a Argentina. Uma crise maior do governo Lula – da qual já há alguns sinais – ou do governo Milei – que pode evoluir para um colapso qualitativamente mais explosivo e fulminante – podem inclinar o eixo político do continente nos próximos tempos.

Os “especialistas em geopolítica” que se debruçam para tentar prever o destino do embate entre EUA e China, mergulhados na semiologia sinológica do Partido Comunista Chinês, raramente incluem em suas análises o pequeno detalhe do que se passa na cabeça de mais de um bilhão de adultos chineses (incluindo os quase cem milhões de membros do partido). Uma coisa é relatar os avanços da ciência e tecnologia chinesas, as obras de infraestrutura e os planos oficiais para setores estratégicos; outra, muito diferente, é ignorar que o orgulho chauvinista promovido pelo PCCh nem sempre encontra eco entre as massas – especialmente entre os jovens urbanos – que vivem uma crescente sensação de expectativas frustradas. Ninguém sabe – nem mesmo o partido governante – de que formas e em que tempos esse descontentamento se manifestará. No entanto, não é preciso compartilhar da histeria anticomunista da mídia ocidental para perceber que, para as amplas massas, o “socialismo com características chinesas” responde mais aos sonhos das elites do partido do que às necessidades reais de centenas de milhões de pessoas.

Nos países pobres da Ásia e da África, não há muito o que esperar de lideranças incompetentes, autoritárias, corruptas e, frequentemente, tudo isso ao mesmo tempo. Em 2024, as surpresas vieram do lado dos movimentos de massa, não dos Estados: desde a surpreendente vitória eleitoral de um ex-maoísta em uma Sri Lanka sufocada pelas receitas do FMI, até a não menos surpreendente queda da aparentemente inamovível Sheikh Hasina em Bangladesh, passando pela fulminante reação das massas sul-coreanas à tentativa de autogolpe reacionário — com lei marcial e tudo — do rapidamente destituído Yoon Suk Yeol, ou o crescente retrocesso da ditadura militar em Mianmar diante de uma frente comum de movimentos insurgentes. Na África, em contrapartida, a dinâmica foi, em muitas regiões, de mais autoritarismo e mais divisões nacionais e étnicas, que só alimentam o desespero e as tentativas de emigração. Mas sempre pode haver novidades inesperadas no continente com a população mais jovem do planeta.

A maior incógnita, de todo modo, está no que pode acontecer nos EUA com o governo Trump. Desde os primeiros dias no cargo, Trump foi uma máquina de lançar medidas reacionárias contra todos os setores da população imagináveis, dentro e fora do país: ataques aos direitos dos imigrantes, das mulheres, da comunidade LGBT, dos trabalhadores do funcionalismo público federal; discursos chauvinistas ridículos, zombarias a países vizinhos e europeus, acenos a Putin e Xi Jinping, ameaças brutais aos palestinos, retaliações contra os aliados europeus — e a lista continua. Por ora, Trump tem a iniciativa e obriga os demais a ficarem na defensiva ou a agir apenas em reação. Mas não devemos nos enganar: no poderoso movimento de mulheres e LGBT, na recente tendência à sindicalização — sobretudo nos novos setores da economia de serviços e plataformas —, nas reservas democráticas de um país com imensa tradição nesse sentido, Trump terá que enfrentar uma resposta das massas estadunidenses. Aí veremos o quanto das tendências políticas de direita e extrema-direita, que hoje geram rejeição e desalento, tem capacidade real de se sustentar no tempo.

O momento político é, sem dúvida, reacionário: Trump faz o primeiro movimento, e todos os demais atores devem ajustar sua resposta. Mas acreditar que isso será para sempre, que as contradições não se acumulam, que o movimento de massas vai permanecer surdo, mudo e imóvel diante das tremendas ondas que sacodem o barco e da imperícia — ou loucura — do capitão e dos demais oficiais, é não entender em que mundo estamos e, sobretudo, para qual mundo estamos indo. Na China, como nos EUA, na Europa e em toda parte, à margem dos grandes espetáculos geopolíticos que monopolizam os olhares da mídia e dos analistas, a luta de classes continua seu trabalho subterrâneo.

Nem a economia, nem a política, nem a dinâmica social global apontam para um cenário de mudanças graduais; pelo contrário, os próprios “donos do mundo” que se reúnem em Davos esperam — e temem — um horizonte de convulsões em todos os níveis. Que se cuidem aqueles que só enxergam as negociações nos bastidores e os gestos estridentes para a imprensa. Pode ser que, mais cedo do que se espera, quem ocupe o centro do palco já não sejam os figurões da política imperialista, mas outros atores muito mais numerosos, anônimos e impacientes. Porque hoje todos olham para os Estados nacionais, para suas relações recíprocas, para seus complexos científico-militares. Mas em um amanhã não necessariamente distante, o olhar — e o corpo! — pode estar voltado para profundas conflagrações sociais. Essa é a aposta fundamentada de quem luta pela causa anticapitalista e socialista neste já bastante atribulado século XXI.

[1] Vejamos uma forma brutal, mas realista, de colocar o problema: “Para qualquer presidente dos EUA surge a pergunta: sacrificaria Los Angeles para vingar Seul? E os seus inimigos — acreditam que ele o faria?” (“A nova ameaça nuclear”, The Economist nº 9410, 17-08-2024).

 

Tradução: Martin Camacho