“Sem teoria revolucionária, não pode haver movimento revolucionário. Nunca se insistirá o bastante nessa ideia num momento em que a pregação da moda do oportunismo abraça a fascinação pelas formas mais estreitas da atividade prática”.
(Vladímir Ilitch Lênin, O que fazer? [1902], 2020, p. 39)
Por Vinícius Bomfim[1]
O novo livro de Renato Assad Entregadores de aplicativos: a luta de um novo proletariado é um verdadeiro sinônimo de práxis. Juntando conhecimento teórico marxista e as experiências no trabalho de entregador plataformizado e na organização política deste “novo proletariado”, apresenta uma contribuição que geralmente falta nos estudos sobre a plataformização. Amplamente discutido nos castelos acadêmicos, o tema muitas vezes carece de um relato a partir de experiências reais no trabalho em plataformas, o que é bem detalhado por Renato.
A principal tese do livro é o aparecimento de uma nova fração dentro da classe trabalhadora que surge a partir das novas configurações do mundo do trabalho, especificamente no trabalho realizado a partir de plataformas digitais. Dentre as diferentes categorias de trabalhadores plataformizados, os entregadores de aplicativos aparecem na cena política brasileira com papel de destaque, principalmente no Breque dos Apps em 2020, numa manifestação em prol de melhores condições no trabalho de entregas. A partir da reestruturação produtiva do capital[2], com o objetivo de explorar e dominar econômica e politicamente melhor a classe trabalhadora na luta de classes, “Surge uma nova parte da classe trabalhadora intrinsecamente vinculada aos novos modos de extrair sobretrabalho alheio” (Assad, 2024, p. 60), abrindo assim “uma nova etapa da luta de classes” (Ibidem, p. 40).
A classe trabalhadora, como dizia o historiador Edward. P. Thompson em seu clássico A formação da classe operária inglesa, está em um constante processo de se “autofazer-se” (expressão equivalente ao termo Making em inglês, constando no título no original), se reconstruindo enquanto classe a partir das contradições históricas da luta de classes, pertencimento cultural e histórico a alguma identidade, características adquiridas com os novos métodos de trabalho e da reorganização do conflito capital-trabalho. Isso é evidenciado no caso dos entregadores de aplicativos, “que expressam a constituição de uma nova parte significativa [da] classe trabalhadora mais heterogênea, fragmentada e complexa dos grandes centros urbanos mundiais”, revelando tanto as precárias condições de trabalho como também novas formas de organização coletiva, seja a nível nacional ou internacional (Ibidem, p. 135).
Esse novo mundo do trabalho é caracterizado como uma síntese histórica de reestruturações produtivas em que Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), acumulação flexível de capitais e avanço de políticas neoliberais, sendo materializadas em plataformas digitais “que facilitam e moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (Poell, T; Nieborg, D; Van Djick, J, 2020, p. 4). Mas, além disso, as plataformas são “um novo modelo produtivo do capitalismo contemporâneo” (Assad, 2024, p. 50), que radicalizam as formas de exploração, controle, gerência e vigilância do trabalho, uma nova atualização da maquinaria que não se diferencia em conteúdo do “monstro mecânico[3]” (Marx, 2017, p. 455) dos séculos passados. Desta forma, não é possível cair no conto do vigário das grandes empresas de plataformas em se declararem como mediadoras entre seus chamados colaboradores/parceiros com clientes, sendo evidente a propaganda ideológica em negar a condição de trabalhador e de naturalizar e esconder o controle e exploração do trabalho inéditos historicamente (Assad, 2024, p. 52-3).
Controle gerencial algorítmico em tempo real; transferência de custos e riscos do processo de trabalho ao trabalhador; remuneração baseada no trabalho intermitente, numa rigorosa separação entre tempos de trabalho e não trabalho, atualizando o salário por peça, analisado por Marx[4] pelo “salário por corrida”, sendo que os valores são definidos unilateralmente pela plataforma (Assad, 2024, p. 62); punições por bloqueios pela plataforma, realizada de maneira arbitrária e sem chance de recurso; aquisição por parte do trabalhador de suas ferramentas de trabalho, como veículos de transporte, manutenções, aparelhos celulares, bags e materiais de proteção individual; e esse novo tipo de trabalhador adaptado aos interesses históricos do capital, o assim chamado “empreendedor”.
Sob esse último aspecto, uma nota. No debate sobre a suposta autonomia dos assim chamados “empreendedores”, nosso camarada autor afirma que esses discursos não passam “de uma narrativa ideológica a serviço dos interesses das grandes empresas para ocultarem a relação de assalariamento e explorarem agudamente essa categoria…” (Ibidem, p. 73). Concordamos, mas o empreendedorismo não é apenas uma ideologia. Além do aspecto ideológico e subjetivo, a lógica empreendedora é, ao mesmo tempo, um modo de vida e uma prática de gerenciamento da força de trabalho a partir da adaptação psicofísica do trabalhador aos métodos de trabalho historicamente empregados pelo capital (Amorim; Moda; Melvis, 2021).
Antonio Gramsci (2014) em Americanismo e Fordismo destaca as estratégias do capital em adaptar a classe trabalhadora à dinâmica produtiva Taylor-fordista. O Americanismo sintetizou o desenvolvimento histórico do industrialismo nos Estados Unidos, combinando os métodos de trabalho taylorista com a criação de um “novo tipo humano” (Ibidem, p. 266). O aspecto principal que queremos retirar de Gramsci é a sua compreensão de que “os novos métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver” (Gramsci, 2014, p. 266, grifos nossos). A construção da hegemonia do Americanismo, assim como a atual do empreendedorismo, corresponde a uma necessária relação entre as técnicas gerenciais e organizacionais do trabalho à adaptação de um determinado tipo de trabalhador coletivo que corresponda aos interesses históricos da acumulação de capitais. Nesse sentido, “O empreendedorismo não se separa das técnicas produtivas e gerenciais existentes, contrariamente atua em conjunto com elas para formar uma maneira de se viver da classe trabalhadora” (Amorim; Moda; Melvis, p. 8).
A artimanha do capital em retirar a imagem de “empreendedor” do burguês dono dos meios de produção e detentor de capitais e colocá-la na bag do jovem, negro e periférico, o perfil predominante do trabalhador nas plataformas de entregas (Assad, 2024, p. 72), constitui uma estratégia que aparenta que todos podem empreender. Basta trabalhar duro e ser “disruptivo”, “inventivo”, “criativo”, “moderno”, aprimorar seu capital humano[5] para atuar no mercado, tomar banho gelado às 4h, usar sapatênis e roupas baratas, já que CEOs presam por isso. Dessa forma, nega-se o antagonismo de classe e a identidade classista dos trabalhadores ao colocar em pé de igualdade o “baiano simpático”, dono do iFood que reluta pela regulação do trabalho de entrega[6], e o entregador com jornadas que chegam a 80 horas semanais[7].
A categoria impõe desafios para a esquerda (revolucionária) na questão organizativa. Com a despolitização promovida pelos setores hegemônicos da esquerda brasileira, principalmente pelo PT e suas centrais sindicais como a CUT[8], tanto a chamada “política” como os sindicatos são vistos como problemas, dificultando assim uma “constituição de uma identidade coletiva de trabalhador que se sobreponha ao imaginário de uma suposta autonomia no trabalho” (Assad, 2024, p. 123), ainda mais pela forma como o trabalho de entregas é realizado, pela dispersão do trabalhador coletivo territorialmente, como também pelo intenso individualismo e ideais de empreendedorismo propagado pelas plataformas digitais.
Contraditoriamente, o Breque dos Apps simbolizou a grande capacidade dos entregadores em se mobilizarem a partir “de sua autodeterminação sob a inegociável premissa da democracia operária (Ibidem, p. 95), sendo a primeira demonstração “do potencial e da centralidade que os trabalhadores de plataformas possuem hoje na luta de classes” (Ibidem, p. 89), sendo visto na prática a possibilidade de se estabelecer laços de solidariedade entre os entregadores e a classe trabalhadora como um todo.
A partir da experiência de Renato na mobilização dos entregadores de aplicativos, como um dos cofundadores dos Entregadores Unidos pela Base, participou a nível nacional e internacional do processo de construção de um sindicalismo de novo tipo, buscando se desvencilhar do sindicalismo tradicional, de tendências pelegas. Para o nosso autor, mesmo diante do processo ainda em construção, estamos diante de
uma nova espécie de sindicalismo; um novo tipo de trabalho político-sindical resultante das lutas dos entregadores que prefiguram, hoje, um movimento (nacional e internacional) constituído sob causas comuns (de natureza econômica, mas com potencial histórico-estratégico) ainda sem um programa enraizado e com, cada vez mais, a possibilidade de uma unidade com demais categorias do trabalho plataformizado (Ibidem, p. 106).
[…]. Abre-se, com isso, uma possibilidade histórica de se instituir, de maneira coletiva, a conclusão subjetiva de que é necessário construir organizações sindicais de base políticas à altura da luta de classes em nosso tempo (Ibidem, p. 124).Outro importante debate presente no livro é sobre as regulamentações do trabalho por aplicativos. Pegando o caso do PLP 12/2024, que tem como objetivo regular o trabalho de motoristas de aplicativo, formalizando o desconhecimento de vínculo trabalhistas entre empresas e trabalhadores. O chamado “autônomo com direitos” na verdade atua como “a naturalização sob a forma de lei de uma exploração impensável até anos atrás” (Ibidem, p. 125), sendo permitido jornadas de até 12 horas de trabalho. Mesmo com a promessa do pagamento de R$ 32,09 por cada hora efetivamente trabalhada, outra forma de não contabilizar o tempo de trabalho fora do período das corridas, e com a integração dos motoristas ao INSS, as remunerações tendem a decair. Além da impossibilidade de se realizar 44 horas efetivamente trabalhadas semanalmente (p. 121), como aponta o texto da PLP, e a contribuição ao INSS de 7,5%, irá se acentuar a exploração do trabalho por parte das empresas-plataformas e demandará mais tempo de trabalho para que os motoristas adquiram o suficiente para sobreviverem[9].
Com isso, o novíssimo Fim da História de Francis Fukuyama e o Adeus ao Trabalho caem por terra: nenhuma fração da classe trabalhadora é inorganizável, como também não se findam as formas de resistência, seja ela de forma autônoma, política ou sindical. Os laços de solidariedade construídos entre os entregadores, mesmo que ainda se exija um processo pedagógico de organização, é algo que aqueles que buscam o horizonte revolucionário devem levar em conta. Qualquer estratégia revolucionária séria deve considerar os entregadores de aplicativos, como os trabalhadores por plataformas em geral, como atores políticos centrais da classe trabalhadora na luta de classes hoje. Por isso mesmo, tendo em mente o lema leninista de que “não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária”, Renato Assad nos brinda com o excelente Entregadores de aplicativos: a luta de um novo proletariado, uma espécie sob rodas do clássico A situação da classe trabalhadora na Inglaterra de Engels, estimulando o debate e aspirações revolucionárias para a construção de uma sociedade livre do jugo do capital.
Referências Bibliográficas:
AMORIM, H.; MODA, F.; MEVIS, Camila. O empreendedorismo não é apenas uma ideologia: a subordinação no trabalho plataformizado. In: LEONE, Eugenia; PRONI, Marcelo (orgs.) Facetas do trabalho no Brasil contemporâneo. Curitiba: CRV, 2021. p. 325-342.
ASSAD, Renato. Entregadores de aplicativos: a luta de um novo proletariado. Rio de Janeiro: Multifoco, 2024.
BIRH, A. “A fraude do conceito de capital humano”. Le Monde Diplomatique, 01/12/2007. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-fraude-do-conceito-de-capital-humano/. Acesso em: 24/07/2024.
CUT. “Motorista autônomo e com direitos”, 08/04/2024. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/motorista-autonomo-protegido-e-com-direitos-1fdc. Acesso em: 03/12/2024.
DIAS, Edmundo Fernandes. “’Reestruturação produtiva’: forma atual da luta de classes”. Revista Outubro, n. 01, 1998, pp. 45-52.
GRAMSCI, Antonio. “Americanismo e Fordismo”. In: Cadernos do Cárcere, vol. 4. São Paulo: Civilização Brasileira, 2014, pp. 238-282.
MARX, Karl, O Capital: Livro I. São Paulo: Boitempo, 2017.
MODA, Felipe. “Autonomia com direitos? O PL que regulamenta o trabalho dos motoristas por aplicativo”. Esquerda Online, 13/03/2024. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2024/03/11/autonomia-com-direitos-o-pl-que-regulamenta-o-trabalho-dos-motoristas-por-aplicativo/. Acesso em: 03/12/2024.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O que fazer?: questões cadentes do nosso movimento. São Paulo: Boitempo, 2020.
POELL, T; NIEBORG, D; VAN DJICK, J. Plataformização. Revista Fronteiras – estudos midiáticos 22 (1), 2020.
PLY, Bianca. “Entregadores de App passam fome, sede e enfrentam jornadas de até 80 horas semanais, mostra pesquisa”. Intercept, 17/04/2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/04/17/entregadores-passam-fome-em-jornadas-de-ate-80-horas/. Acesso em: 03/12/2024.
“Quem é o dono do Ifood, que Lula chamou de ‘baiano simpático’”. Revista Grandes empresas e grandes negócios, Globo, 07/03/2024. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/negocios/noticia/2024/03/quem-e-o-dono-do-ifood-que-lula-chamou-de-baiano-simpatico.ghtml. Acesso em: 03/12/2024.
[1] Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Atualmente pesquisa sobre a plataformização do trabalho e o cooperativismo de plataforma.
[2] Lembremos que a reestruturação produtiva é uma forma do capitalismo conservar sua dominação classista e exploração econômica da classe trabalhadora diante de suas crises sistêmicas, reestruturando dessa maneira o modo de vida social a partir de novos paradigmas políticos, econômicos, culturais, ideológicos e tecnológicos, no interior do processo produtivo. Como bem diz Edmundo Fernandes Dias (1998, p. 46), “A história do capitalismo é a história da reestruturação produtiva”.
[3] O capítulo 13 do Livro I de O Capital intitulado “Maquinaria e grande indústria” descreve historicamente a consolidação da maquinaria e o controle de classe capitalista no interior da produção.
[4] Marx (2017) descreve o chamado salário por peça como a relação de assalariamento que se realiza ao “medir o trabalho gasto pelo trabalhador pelo número de peças por ele produzido” (Ibidem, p. 623). Típica da passagem das formas de subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, é uma forma de assalariamento que intensifica o trabalho, dado o prolongamento da jornada de trabalho para obtenção do trabalho necessário, garantindo assim a reprodução social do trabalhador. Contudo, alerta Marx, o salário por peça é uma modificação do salário pelo tempo de trabalho (Ibidem). Assim como na plataformização, o trabalhador é estimulado a prolongar a jornada de trabalho para garantir sua reprodução social, o que torna “supérflua” (Ibidem, p. 624) ao capital a supervisão e controle do trabalhador, já que subjetivamente ele mesmo os faz para adquirir o mínimo para sobreviver.
[5] Birh, A. “A fraude do conceito de capital humano”. Le Monde Diplomatique, 01/12/2007. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-fraude-do-conceito-de-capital-humano/.
[6] “Quem é o dono do Ifood, que Lula chamou de ‘baiano simpático’”. Revista Grandes empresas e grandes negócios, Globo, 07/03/2024. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/negocios/noticia/2024/03/quem-e-o-dono-do-ifood-que-lula-chamou-de-baiano-simpatico.ghtml. Acesso em: 03/12/2024.
[7] Ply, Bianca. “Entregadores de App passam fome, sede e enfrentam jornadas de até 80 horas semanais, mostra pesquisa”. Intercept, 17/04/2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/04/17/entregadores-passam-fome-em-jornadas-de-ate-80-horas/. Acesso em: 03/12/2024.
[8] CUT. “Motorista autônomo e com direitos”, 08/04/2024. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/motorista-autonomo-protegido-e-com-direitos-1fdc. Acesso em: 03/12/2024.
[9] Moda, Felipe. “Autonomia com direitos? O PL que regulamenta o trabalho dos motoristas por aplicativo”. Esquerda Online, 13/03/2024. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2024/03/11/autonomia-com-direitos-o-pl-que-regulamenta-o-trabalho-dos-motoristas-por-aplicativo/. Acesso em: 03/12/2024.