Quatro décadas de luta de classes na Bolívia

Para entender o golpe de estado e a rebelião contra o governo ilegítimo

ALE KUR

Neste espaço, queremos destacar alguns dos principais eventos políticos que a Bolívia passou nos últimos 20 anos, para ajudar a entender a situação atual, como se chegou A ela, rastreando a origem de muitos de seus elementos.

1980-90: o neoliberalismo

A Bolívia sofreu, durante as décadas de 1980 e 1990, uma brutal ofensiva neoliberal nas mãos de seus governos. De acordo com as diretrizes do FMI e do Banco Mundial, houve progresso com privatizações e demissões em massa em várias áreas da economia. Entre eles, um dos mais importantes foi a promulgação em 1985 – pelo governo de Paz Estenssoro, do MNR – da Lei 21.060, que privatizou a mineração boliviana (desde a revolução de 1952, estava nas mãos de uma agência estatal chamada COMIBOL) e demitiu mais de 20 mil mineiros. Isso golpeou o que havia sido o epicentro do movimento operário boliviano até aquele momento: a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores em Mineração da Bolívia (grande protagonista da revolução de 1952), a espinha dorsal da Central dos Trabalhadores Bolivianos. Os governos também avançaram com a privatização do gás natural (da qual a Bolívia tem enormes reservas) nas mãos de transnacionais, lançando as bases para um dos principais conflitos do próximo período.

Por outro lado, nesse período os movimentos camponeses e indígenas se desenvolveram assim como o MAS (Movimento ao Socialismo) de Evo Morales, com um epicentro entre os plantadores de coca na província de Cochabamba. Eles lutaram, entre outras coisas, contra as políticas dos governos que procuravam erradicar o cultivo de coca, equiparando-o ao tráfico de drogas. Também lutaram pelo reconhecimento dos direitos dos povos nativos, pisoteados historicamente por um Estado racista.

1999-2000: A “guerra da água”

Nesse contexto, o governo de Hugo Banzer tentou, em setembro de 1999, avançar com a privatização do serviço de água em Cochabamba, concedendo o serviço a uma multinacional de capitais norte-amerricanos (Bechtel – Aguas del Tunari). Através da lei 2029, a água foi convertida em mercadoria, prejudicando tanto os moradores urbanos quanto os camponeses que a usavam para irrigação. As taxas de água subiram mais de 300%, levando a população local a uma situação desastrosa.

Em resposta a essa situação, ocorreu uma primeira grande rebelião popular na região entre dezembro de 1999 e abril de 2000: “Quase espontaneamente, surgiu um tecido social heterogêneo, composto por vários setores: sindicatos, conselhos de bairro, associações profissionais, transportadores, professores, agricultores irrigantes, plantadores de coca, estudantes, etc. Todo esse conjunto diversificado de setores encontrou expressão e unidade em torno de uma nova entidade organizacional chamada Coordenadora de Defesa da Água e da Vida (…) A espinha dorsal da coordenadora eram os agricultores da irrigação e trabalhadores fabris, que, juntamente com os outros setores, empreenderam um ciclo de mobilizações que levaria à grande revolta popular de abril de 2000, um levante que conseguiu expulsar a Bechtel de Bolívia.”[1]

A rebelião de Cochabamba, que enfrentou duramente às forças repressivas bolivianas (polícia e exército), deixou mortos e muitos feridos, mas culminou em um importante triunfo popular: derrotou o Estado de Sítio imposto pelo governo e reverteu a privatização da água. Mas também implicou a unidade de ação dos setores camponeses-indígenas, sindicatos, trabalhadores e as pessoas exploradas e oprimidas em geral. Dessa maneira, a relação de forças amplamente desfavorável dos anos 90 começou a reverter e um novo ciclo político começou.

2003: A “guerra do gás” e a rebelião de outubro

O próximo episódio importante foi a chamada “guerra do gás” em 2003. Essa foi desencadeada pela decisão do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (“Goni”) de permitir a exportação de gás para os Estados Unidos através dos portos chilenos, no marco de uma crise econômica e social difícil. O gás seria exportado a um preço baixo e sem benefícios para o povo boliviano. Essa decisão foi a gota ue transbordou o copo de água de um enorme descontentamento acumulado pelos setores populares bolivianos, contra o modelo neoliberal e contra um estado racista e autoritário.

A partir de setembro, dia após dia, novos setores foram incorporados a um ciclo de enormes protestos populares: os camponeses, os motoristas de La Paz, os professores rurais, a população de El Alto. Esta última é uma cidade satélite de La Paz de componente principalmente originário, que hoje conta com cerca de um milhão de habitantes. R. Sáenz a define como uma “cidade proletária” onde a identidade aimará dos habitantes coexiste com seu caráter assalariado e até da classe trabalhadora, com uma proporção considerável trabalhando na indústria [2]. Existe a “Federação dos Conselhos de Bairro” (FeJuVe), uma organização formada por delegados dos bairros populares. A população de El Alto se mobilizou maciçamente em outubro de 2003, enfrentando duros confrontos com o exército boliviano, que deixou cerca de 30 mortos (o chamado “massacre de outubro”). Foi uma verdadeira insurreição urbana que conseguiu abalar o país inteiro.

A isso se somaram também setores como mineradores e a Central Obrera Boliviana (COB), com colunas de milhares de trabalhadores indo para La Paz enfrentando repressão (desempenhando um papel muito importante os mineiros de Huanuni, no departamento de Oruro). [3]

Os dias de outubro combinaram greve geral, barreiras, mobilizações em massa e confrontos: como resultado dessa heroica luta popular, que deixou mais de 60 mortos, Sánchez de Lozada foi forçado a renunciar e deixar o país rapidamente em 17 de outubro.

A renúncia de Sánchez de Lozada significou um duro golpe ao neoliberalismo boliviano e seus partidos políticos tradicionais (que praticamente entraram em colapso desde então), além de um enorme triunfo popular que revigorou suas reivindicações e suas organizações. Desde então, nasceu a chamada “Agenda de Outubro” dos vários sindicatos e movimentos sociais, que incluía a exigência da nacionalização de hidrocarbonetos (expropriando as multinacionais), a industrialização da Bolívia e a realização de uma Assembleia Constituinte (com participação popular) [4] para refundar o país em novas bases (reconhecendo, entre outras coisas, os povos originários e seus direitos). A COB também foi fortalecida novamente. Por outro lado, iniciou um forte ascenso da figura de Evo Morales e do MAS boliviano, que conseguiu capitalizar politicamente essas jornadas.

2005: renúncia de Carlos Mesa e triunfo do MAS

Após a renúncia de Goni, o país ficou a cargo do então vice-presidente: Carlos Mesa (o mesmo político que se apresentou como o principal oponente de Evo Morales nas eleições de 2019). Mesa tentou continuar com as políticas neoliberais, fazendo alguns gestos de negociação e concessões menores, mas sem atender às demandas dos movimentos sociais. Neste contexto, em 2005, fortes mobilizações populares, barreiras e uma greve geral (impulsionada pelo COB e a FeJuVe de El Alto), exigindo o cumprimento da Agenda de outubro. Uma profunda crise política se abriu e, finalmente, Mesa renunciou à presidência em junho de 2005.

Em dezembro daquele ano, foram realizadas eleições presidenciais, nas quais o Movimento pelo Socialismo (MAS) foi o vencedor, sendo Evo Morales eleito com 54% dos votos. A rebelião de outubro de 2003 havia deixado a sua marca nas urnas.

2006: Nacionalização dos hidrocarbonetos e Assembleia Constituinte

Evo Morales iniciou sua presidência em janeiro de 2006. Uma de suas primeiras medidas foi promover a nacionalização parcial de hidrocarbonetos (maio de 2006): desde então, os recursos do subsolo pertenceriam ao Estado, embora não as máquinas e instalações necessárias para sua extração e processamento. Essa nacionalização parcial envolveu a negociação de contratos de concessão com empresas privadas (multinacionais), onde continuariam a manter uma parcela dos benefícios, embora, em troca, o Estado recebesse uma parcela muito maior da receita do que anteriormente. Foi uma maneira de cumprir parcialmente o ponto principal da Agenda de Outubro, embora de maneira limitada e sem ir profundamente contra os interesses capitalistas.

Por outro lado, em julho daquele ano, foi aberto o processo de formação de uma Assembleia Constituinte, com a eleição de representantes pela população.

2008: começa o conflito com a “Medialuna de Oriente”

Nesse ano começou o conflito entre o governo do MAS e as forças político-sociais da chamada “Medialuna de Oriente” (Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando). São regiões com uma estrutura econômica e demográfica diferente da do oeste boliviano: com um componente indígena menor e mais “branco”, onde se encontra a produção de hidrocarbonetos e agricultura moderna, com forte presença de capitais estrangeiros. Lá, se afirmaram os movimentos “autonomistas” ou “cívicos”, dirigidos por setores burgueses e apoiados pelas classes médias abastadas, com forte tom racista e antioriginária. Elas visavam manter uma proporção maior dos benefícios da exploração econômica dos recursos naturais e ter maior autonomia política – com um conteúdo fortemente elitista e antipopular. Esses movimentos também contavam com forças de choque com características fascistas, como a Union Juvenil Cruceñista (a qual pertencia Fernando Camacho, atual líder dos golpistas de 2019).

Nesse contexto, realizou-se um referendo revogatório em agosto de 2008 que questionou a continuidade de Evo Morales e dos prefeitos das províncias. Evo sobreviveu com 67% dos votos a favor de sua continuidade. O mesmo fizeram 6 dos 8 governadores em jogo. Isso não acabou com o conflito político que continuou a aumentar, incluindo em setembro o assassinato de 20 camponeses nas mãos de grupos fascistas no Oriente. Uma onda de indignação popular percorreu o país, desencadeando grandes manifestações que levaram a um cerco campones armado sobre Santa Cruz [5]. Quando estava colocada a possibilidade de esmagar os fascistas, Evo Morales ordenou o desarmamento do cerco, buscando uma “saída negociada” para o conflito. Dessa maneira, ele salvou a vida dos separatistas de extrema direita do leste da Bolívia (os mesmos que hoje  voltaram à carga sob a figura de Camacho). A partir daí, Evo negociaria com a burguesia do Oriente muitas das questões essenciais de sua política, reduzindo assim fortemente seu já moderado programa de transformações sociais.

2009: Nova Constituição e eleições presidenciais

Parte do exposto foi o referendo em 2009 de uma nova Constituição, que foi aprovada com 61% dos votos. A partir daí surgiria a estrutura institucional do Estado Plurinacional da Bolívia, como resultado de um compromisso entre algumas das demandas históricas dos setores populares com as classes dominantes e os velhos aparatos de dominação. Esse compromisso manteria os principais fundamentos do capitalismo dependente e atrasado da Bolívia, ao mesmo tempo que fazia certas concessões aos povos nativos [6] e capturaria em seu texto algumas das conquistas já obtidas com a luta popular durante a década. No final daquele ano, Evo Morales foi reeleito para um segundo mandato com 64% dos votos.

2010-2011: Choques com os setores populares

Nos anos seguintes, o governo de Evo Morales desenvolveria confrontos com sua própria base social: os setores camponeses, operários e populares, desgastando e causando divisões internas entre esses setores.

Vamos apontar dois casos aqui. O primeiro deles, o chamado “gasolinaço”, foi uma tentativa da Evo de retirar os subsídios aos combustíveis (dezembro de 2010, no contexto da crise econômica global), causando um forte aumento de preços que afetou bastante os setores populares. Isso desatou uma resistência que pôs de novo em pé o povo de El Alto e outros setores (incluindo uma greve do transporte). Finalmente, Evo teve que voltar atrás com a medida, mas sofreu um desgaste considerável. Em abril de 2011, uma greve geral se desenvolveu por aumentos salariais, em resposta à inflação, com significativas mobilizações de trabalhadores.

No ano seguinte, um descontentamento semelhante se originou com a tentativa do governo de construir uma estrada através do parque nacional TIPNIS, lar de várias comunidades nativas e de uma reserva natural. Tratava-se de um megaempreendimento capitalista com forte impacto nas comunidades e no meio ambiente. Isso causou grande resistência dos setores indígenas e camponeses, que entraram em conflito pela primeira vez em larga escala com o governo de Evo: que reprimiu mobilizações muito grandes, causando uma maior distância com esses setores.[7]

O longo declive de Evo e a derrota de 2016

A partir desses eventos, começaria uma queda na popularidade do governo Evo, uma erosão do que era até então sua principal base de apoio. Várias organizações se distanciaram do governo e o nível de entusiasmo em geral diminuiu. Embora isso não afetasse imediatamente o fluxo eleitoral (obtendo uma nova reeleição em 2014 com 61% dos votos), marcaria uma tendência a longo prazo de enfraquecimento. Com novas condições internacionais, isso pode ser visto em 2016 na derrota do referendo, onde a possibilidade de concorrer às eleições foi novamente levantada. Foi sua primeira derrota eleitoral em uma década inteira.

Embora os eventos de 2019 não estejam incorporados a esta cronologia, é importante observar nas tendências de longo prazo alguns dos elementos que servem para entender a situação atual.

NOTAS:

[1] Citado em “La guerra del agua de Cochabamba – Bolivia. La movilización de todo un pueblo en defensa de un bien común”. Grupo Semillas, 10/8/2006. En: http://www.semillas.org.co/es/la-guerra-del-agua-de-cochabamba-bolivia-la-movilizacin-de-todo-un-pueblo-en-defensa-de-un-bien-comn

[2] “Crítica del romanticismo “anticapitalista””. Por Roberto Sáenz. Revista SoB 16 de abril de 2004. En: http://www.socialismo-o-barbarie.org/?p=11974

[3] “OCTUBRE NEGRO 2003 LOS MINEROS DE HUANUNI VINIERON A SALVARNOS” Bocamina Comibol – Bolivia·martes, 17 de outubro de 2017. Em:

[4] “Bolivia: La potencia revolucionaria del 17 de octubre de 2003” Eduardo Paz Rada, Nodal, 30/10/18. En: https://www.nodal.am/2018/10/bolivia-la-potencia-revolucionaria-del-17-de-octubre-de-2003-por-eduardo-paz-rada/

[5] “El camino suicida del pacto con la extrema derecha racista. No disminuye el grave peligro de secesión”. Por José Luis Rojo e Martín Camacho, Desde La Paz. Socialismo o Barbarie, periódico, 25/09/08

[6] “Declaración de Socialismo o Barbarie Bolivia”. La Paz, 22/01/09

[7] “Bolivia: Los porqués del conflicto del TIPNIS”. Por Míriam García, 2 de outubro de 2011. Em: https://www.servindi.org/actualidad/52382

TRADUÇÃO: JOSÉ ROBERTO SILVA